sexta-feira, abril 20, 2018

Ando tão à flor da pele

Ontem assisti ao vídeo da Gal Costa, em que ela apresentava o Zeca Baleiro com a composição "Vapor barato”, uma interpretação por excelência.

O tema trata da angústia e o desespero do provável amor não correspondido, mas os versos tocam tão profundamente que podemos adaptá-los a qualquer situação, desde que estejamos emocionalmente envolvidos.

O verso em que diz “ Ando tão à flor da pele, qualquer beijo de novela me faz chorar, ando tão à flor da pele, que teu olhar me faz morrer…” e por aí vai, nos remete a uma gama de sentimentos.

Ando tão à flor da pele, quando assisto em documentários em canais pagos, que centenas de crianças brasileiras viveram longe de seus pais, em outros países, e agora, na idade adulta, lutam para encontrar vestígios de sua vida passada. Pais que foram sequestrados, torturados, mortos pela ditadura que grassou no País.

Ando tão à flor da pele quando vejo questões fundamentais na política externa serem discutidas via Twitter, como o caso da Síria em que Trump ameaça com mísseis e o embaixador da Rússia promete derrubar estes mesmos mísseis, enquanto vidas são destroçadas.

Ando tanto à flor da pele quando vejo um Nobel da Paz sendo proibido de visitar um preso político em nosso Brasil.

Fico à flor da pele, quando assisto à regionalização de nosso país ser padronizada por uma cultura pasteurizada através de um modelo midiático, sob vários aspectos, obedecendo cega e servilmente ao imperialismo da mídia maior, principalmente da TV, enquanto quarto poder, introjetada pela maioria do povo brasileiro.

Fico ainda mais à flor da pele, quando imaginam que estes senhores, poucas famílias que mandam no setor, estejam financiando a educação e a cultura do povo brasileiro, quando na verdade estão deformando e rindo de nossa cara, preocupados apenas com os bilhões que depositam em contas da Suíça.

Fico à flor da pele, quando estes mesmos senhores lutam por liberdade de expressão, quando de fato, somente temos uma verdade, a verdade dita e exacerbada por estes mesmos donos do monopólio.

Fico tão à flor da pele, quando nossa programação regional é limitada a pequenos blocos, sucintos, relegados a segundo plano e em horas onde a audiência é mínima.

Fico tão à flor da pele, quando os estilos de vida, de moda, de arte são ditadas de acordo com modelos adaptados ao poder do consumo, do marketing da beleza padronizada e da falta de integração social, na qual a liberdade de escolha é tolhida e dirigida a uma sociedade imprevidente. E o lamentável é que muitos consideram esta conduta correta e condenam um rigor na regulação dos meios de comunicação e o governo com seus interesses de manutenção no poder, furta-se a este processo. Há os que são a favor do monopólio da mídia por puro desconhecimento, porque só veem um lado da questão, acreditando que o grupo midiático está em consonância com a Constituição, o que não é verdade. A sociedade incauta, por sua vez, dia a dia se afunda, chafurdando na lama do marketing televisivo, adquirindo hábitos que muitas vezes ferem suas crenças mais íntegras e, tentando seguir a corrente pseudomoderna, perseguem caminhos que a transformam num caldo inodoro, pronto para estatísticas padronizadas.

Criam para si, formas de pensamento, estilos que contrariam seus pares, esquecendo as suas raízes, suas tradições, sua cultura e seu relacionamento harmonioso com a cultura regional.

Esquecem os grandes compositores, os poetas, a arte, a literatura. O que vale são as novas formas de interação com o público a partir de monossílabos exaustivamente repetidos, uma forma enviesada de música, além da veneração por livros de autoajuda, ou acerca de sub-celebridades.

Aparecer, sob qualquer hipótese, é o que realmente importa.

Mas fico tão à flor da pele também, quando assisto a Gal, a Bethania, a Maria Rita, o Lenine, o Criolo, só para falar de alguns.

Fico à flor da pele em ler e reler um Kafka, um Machado, um Dostoievsky, Florbela Espanca, Mia Couto, também para falar de alguns.

Ou ler um artigo de um Leonardo Boff, um Gustavo Moreira, Alberto Villas, Menalton Braff, também só para citar alguns.

A estes, e muitos, muitos outros, meu coração se arrepia, e fico emocionado à flor da pele.

Uma emoção boa.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/users/geralt-9301/autor: Geralt

quinta-feira, abril 19, 2018

Faz tempo

Faz tempo que não se vai à janela, nem se observa a rua, nem se reflete na vida.

Faz tempo que não se pula amarelinha, nem se ensaia passos de dança, nem se sorri.

Faz tempo que o mundo anda cinza, que o medo acolhe as portas, que o riso encolheu.

Faz tempo que o ódio é mais inspirador que o amor.

Faz tempo que a divisão é o elemento maior.

Faz tempo que se rompeu o elo.

Faz tempo que se anda em atropelo, sem olhar para o mar ou rever amigos.

Faz tempo que se anda sozinho, que se olha uma tela e não se absorve nada.

Faz tempo que o mundo anda para trás.

Faz tempo que a vanguarda deixou de ser protagonista dando lugar ao retrocesso.

Faz tempo.

Fonte: Bess Hamiti in: https://pixabay.com/pt/users/Bess-Hamiti-909086/

segunda-feira, abril 09, 2018

Para não dizer que não falei das flores I

Talvez não faça diferença ler um ou outro, em qualquer ordem. Ou seja tudo a mesma coisa. Para não dizer que não falei das flores I ou II.

A manobra foi lenta e gradual. Bem estudada, desenhada segundo os meandros mais complicados que se apresentavam.

Usava-se das estratégias arquitetadas com cuidado, apreensão, focalizando o ponto de partida, que seria a vitória final. Sem retrocesso, sem voltar ao ponto de partida, sem pedidos esdrúxulos de recuos providenciais ou renúncia ao poder tomado pelos dedos fortes que empunharam as bandeiras das escolhas.

E a mão foi firme, optando por linhas vibrantes, que condissessem com os objetivos do desenho, principalmente, no ferir despudoradamente o tecido, sem antes porém escolher a dedo o fio necessário, aquele que abrange todo o molde, transformando uma imagem disforme num alto-relevo emergente.

Usar o dedal com precisão, para que não se esparja o sangue e arruíne a estrutura, puxar devagar a linha, com cuidado, quase com carinho, enfiando-a na agulha e trazendo para próximo ao peito, para não perder o equilíbrio e deixar que se escoe por entre os dedos, como água que jamais será retomada.

Esquecer o carretel ou o novelo e focar nas meadas, nas quais as linhas se dispõem paralelas revelando os vários tons, permitindo o descortinar da criatura sendo produzida.

Assim se deu a manobra lenta e gradual de se mostrar o talento no desdobrar do bordado, desde as costuras mais simples, porém necessárias, até os floreios mais personalizados.

sexta-feira, abril 06, 2018

Eu e a velhinha de Taubaté

Acho que sou meio parecido com a velhinha de Taubaté, do Veríssimo, que acreditava piamente no governo do General Figueiredo. Eu acredito na Globo e entendo o que o povo que vê TV, pensa como eu. Sabe por quê? Porque eu assistia ao programa Amaral Neto, repórter, lá pelos meados de 1970, mostrando as belezas naturais e culturais do Brasil, além da união que o governo militar trouxera ao nosso imenso país continental.

Ah, nesta época, eu amava a Regina Duarte, que depois da Ritinha, de Irmãos Coragem, passava a ser no ano seguinte, a namoradinha do Brasil com a novela Minha doce namorada. Um primor de pessoa. Sei que ela era assim na vida real: doce, simpática, sorriso amplo e pura! Antes ainda, no tempo dos Irmãos Coragem, ano em que o país ganhou a Copa do México, a tortura ainda era encoberta nos porões dos órgãos de repressão, e o General Médici era um presidente que mantinha um olho nos partidos clandestinos e outro nos campos de futebol. Por coincidência a novela tinha como um dos principais núcleos, o de um jogador de futebol e suas peripécias no campo. Mas novela também era cultura e informação! Tenho certeza disso. Ah, o Brasil foi campeão em 70!

Nas diretas já, a Globo demorou a transmitir os eventos, quando milhares de pessoas foram às ruas reivindicando eleições diretas. Eles eram contra e tinham seus motivos. Imaginem aquela baderna nas ruas, aquele povo sem freio. Era de assustar mesmo! Mas aos poucos, viram que o povo estava muito engajado num espírito de mudança para melhor e que outras emissoras já noticiavam com fervor. Decidiram aderir.

Depois de todas as tragédias, ficou o Sarney . E com ele, a nova moeda, o plano cruzado e segundo o presidente, cada brasileiro deveria ser fiscal dos preços, um fiscal do presidente, um programa em todos os cantos do país. Tudo muito bem encampado (talvez elaborado) pela Globo. Eu e muitos fomos os fiscais do Sarney, porque acreditávamos na poderosa. Ela sempre tinha razão. Se necessário, chamávamos a polícia, inclusive, tudo bem documentado pela TV. Havia até bótons com o slogan, “Eu sou fiscal do Sarney”. Foi em 1986. Em 1988, um tanto desiludidos, ouvíamos a nossa eterna namoradinha do Brasil interpretar a mãe da vilã, em Vale tudo. Ela sempre bondosa e íntegra, a honestidade em pessoa, lutando contra a tudo que representava a corrupção e roubalheira no mundo dos negócios e no Brasil. Eu me perguntava, tal como a velhinha de Taubaté, se existia corrupção nesta época? Ah, coisa de novela!

Apesar de todo o esforço, a coisa desandou um pouco e a TV fazia muitas entrevistas com especialistas em economia para mostrar ao povo brasileiro, que ainda havia uma saída, tal como agora, com estes vídeos de celular, que estão mandando.

Então, para salvar a pátria, surgiu Color de Mello, que se elegeria com a missão de acabar com os marajás e a Globo sempre atenta, apresentou um Globo Repórter inteiro esmiuçando a vida dos marajás, os funcionários públicos que se utilizavam do erário publico para as suas conveniências. Inclusive, no último debate do Lula, ela manipulou, quer dizer, ela ressaltou as imagens e diálogos, dando plena supremacia ao Collor, no JN. Uma emissora que sabia o que era mais útil para o seu povo. Isso, naquele áureo e abençoado tempo em que se assistia apenas a Globo. Prenderam a poupança dos brasileiros, houve escândalos, mortes como a do PC Farias, impeachment, mas tudo acordado e o país prosseguiu na santa paz de Deus. Ah, a nossa namoradinha, em 1990 era uma mulher determinada e forte, que juntava ferro-velho, envolta numa trilha sonora brega de Magal, “Me chama que eu vou”. A rainha da Sucata tentava mostrar ao brasileiro que ele podia dar a volta por cima e vencer no seu negócio (?) . Só que ela se apaixonava por um milionário. É, a nossa namoradinha não era mais a mesma, era brega e desbocada, bem de acordo com a primeira dama da época. E vá amor ao casal “real”. Afinal de contas, os tempos mudam e o que fica é o melhor para o Brasil.

Alguns anos mais tarde, em nova eleição, com o Lula concorrendo, a namoradinha teve medo. Não a personagem, mas a própria atriz, manifestando o seu medo real com a provável chegada de Lula ao poder.

Aos poucos, como a velhinha, comecei a me decepcionar. Houve outras mídias, e muita coisa estranha me deixava com a pulga atrás da orelha. Muita manipulação, muito apelo, muita tramoia. Assim caminhava a humanidade e quando a Dilma foi presidente, houve até passeata por R$ 0,20 centavos sendo uma manifestação quase diária apresentada pela emissora.

Mas como todos os coxinhas, eu ainda acredito. Não vou me suicidar como a velhinha de Taubaté, porque tenho grupos que me acolhem e até políticos que pensam como eu, como aquele do “ bandido bom é bandido morto”. E depois disso, eu sei que uma emissora de TV não tem nada a ver com a política. Eles apenas informam. Vou ouvir este mortadela, aí embaixo, mas fingir que não ouço pra não lhe quebrar a cara!

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Houve muitos fatos que são por demais conhecidas atualmente, gerando este ódio entre classes. Alguém ainda duvida deste quarto poder? Nem sei se às vezes, não é o primeiro. E muitos atos contra a vida e a justiça virão!

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/homem-branco-modelo-3d-isolado-3d-1847732/

quarta-feira, abril 04, 2018

Para não dizer que não falei das flores II

Rosas se espalhavam pelo alambrado, tingindo de vermelho o cenário, no qual se avistavam pequenos pedaços de azul da parede do prédio.

Quase não se via o outro lado da cerca, tão fortes estavam as rosas.

Tínhamos a impressão que o verde era apenas um adereço à beleza e ao perfume que revelavam.

Houve momentos em que cresceram tanto, que atingiram o jardim por trás da cerca, envolvendo-se nas margaridas, nas frágeis papoulas ou nos vigorosos cravos amarelos.

Achávamos que o vermelho suplantava as cores da discórdia, do ódio, da intolerância.

Pensávamos que o desafio estava tomado, que o sangue vertido nas lutas pela democracia representava os anseios de uma sociedade fragilizada por anos e anos de dissociação cidadã de sua pátria.

Pensávamos por fim que a sociedade estava madura.

Mas as pétalas foram caindo aos poucos, lentamente, no subterrâneo dos insetos devoradores, minando as raízes, as folhas, os galhos. Minando o verde da esperança até chegar no vermelho. O vermelho símbolo de tantas lutas, para estas formigas, pulgões e toda a sorte de predadores estimula o ódio, a intolerância, o desamor, o desrespeito, o embate furioso contra as leis, contra a democracia, o golpe.

Pois as pétalas se espalhavam, as rosas vermelhas que enfeitavam e transformavam milhares de cenários cinzas e pobres em espaços de esperança e melhoria, hoje estão sendo dizimadas através da mão canhestra do carrasco, até mesmo dos alienados que seguem o fluxo dos desinformados (ou manipulados).

Mas o mundo gira, e as flores tem a temperança da natureza, há tempo de brotar e por certo nem todas serão destruídas, porque a terra é fértil e o adubo está aí, pra ser espalhado.

quarta-feira, março 21, 2018

Lascívia


Este conto é um desafio de uma oficina online,

sobre a elaboração

de um conto erótico com o protagonismo masculino.


Carlos estava sentado na poltrona, ao lado da janela, entediado. Quem diria que ficasse assim, depois da reunião com os estagiários e as modelos excitantes que participaram da aula de pintura. Entretanto, nem a aula ou as mulheres faziam-no esquecer o homem que se atravessara na frente do carro, obrigando-o a parar quase em cima da calçada. Por um momento, imaginou tratar-se de um assalto, apesar da aparência de executivo. Mas quem poderia confiar num homem de terno e uma maleta embaixo do braço, hoje em dia? Dera uma desculpa, dizendo-se interessado em saber sobre as suas aulas. Carlos não respondera. Estava irritado demais para explicar qualquer coisa.

Levantou-se, pegou um café e voltou a sentar-se, olhando o deserto da rua que se alongava além da vidraça. Não chegava ninguém, era o que pensava. Entretanto, não demorou muito e bateram na porta.

Espiou pelo olho mágico e avistou uma cara disforme de fundo de colher. Abriu a porta e um homem alto, de barba e cabelo curto o observava com indisfarçada atenção. Seria alguém interessado na aula de pintura? Mas teve um sobressalto, quando o reconheceu. Era o mesmo do carro que o interpelara no dia anterior, quase cometendo um acidente. Fez um gesto rápido de fechar a porta, mas o outro o impediu com o pé.

O homem se desculpava por ter vindo até a sua casa e explicou de imediato, que soubera por um de seus alunos da aula de pintura. Disse, por fim, que procurava por uma pessoa.

Carlos tirou o celular do bolso e digitou um número. O outro ficou inquieto, pedindo que não chamasse a polícia, pois não era um criminoso. Só queria fazer algumas perguntas. Mostrou seus documentos e acrescentou que era um empresário do ramo do aço.

Carlos gritou, irritado:

― Porra, cara, não me interessa a tua vida, nem o que tu faz! Pra mim, isso é assédio à privacidade e perseguição. Não sei quais são os teus objetivos e vou chamar a polícia. Não te conheço, não tenho nenhum negócio contigo, portanto vaza!

Neste momento, o homem retirou o pé da porta e começou a chorar, em desespero. Em soluços, dizendo-se constrangido, pediu pelo amor de Deus, que o ouvisse. Ele só queria conversar, fazer algumas perguntas.

Carlos, intrigado, não sabia o que fazer. Um pouco desarmado, perguntou:

― Mas o que tu qué saber? É aula de pintura? Sabes o que faço aqui, tenho meia dúzia de estagiários e algumas mulheres bonitas. Elas ficam no meio entre os cavaletes, despidas, e cada pintor com a sua prancheta e suas tintas. Resumindo, é isso que fazemos. Não tem segredo. Agora, cara, disse tudo, pode ir embora.

― Eu tenho uma oferta a fazer. Deixe-me entrar, ver o local onde a aula acontece, conversar um pouco. Não leve a mal, mas a minha oferta é em dinheiro, eu pago por uma aula ou as do mês todo. Só quero que confie em mim e converse comigo. Olha os meus documentos, vê o meu celular, aqui estão todos os meus dados.

Carlos não quis ver os documentos. Coçou a cabeça, dividido. Um mês de aula, pensou. Bem que seria uma solução para algumas dívidas. Então, deu a cartada:

― Trezentos.

O outro sem piscar abriu a carteira e entregou três notas de cem reais. Carlos pegou o dinheiro, um tanto chateado consigo próprio. Mas que mal havia, se o homem mesmo fizera a proposta? Ele precisava de dinheiro, o outro queria pagar. Então que entrasse.

Ele entrou, deu alguns passos em direção a uma poltrona, a mesma em que Carlos estava anteriormente sentado, observando a rua pela vidraça. Olhou em torno e mostrou-se um pouco apreensivo. Perguntou se Carlos não queria olhar os documentos para se asseverar que ele era um homem de bem. Carlos, então leu o nome na identidade: Paulo Sorren Herrmann.

― Tu é bem conhecido. Teu nome sempre na mídia.

― Sim. Mas não vamos falar de mim, pelo menos neste aspecto empresarial, de homem bem sucedido, com família e filhos. Eu sou um homem que procuro muitas coisas, que não encontro na minha vida profissional e pessoal. Por isso, quase supliquei para entrar.

― Não entendi nada.

― Vou me explicar. Eu acho maravilhoso este ambiente, este cenário. Tudo aqui me dá uma atmosfera de sensualidade, de lascívia.

―Vou te dizer, que somos muito liberais na sexualidade, mas posso te garantir que sou hétero.

― Não te preocupa. Falei no ambiente apenas. É ele que me envolve, que me cerca, que me consome. Se me deixar ficar aqui, quando houver aula, eu posso pagar muito mais.

Carlos o olhava preocupado. Afastou-se um pouco e ofereceu uma cerveja.

― Não quero beber. Quero que você me fale tudo, me explique o que acontece e como acontece aqui.

― Eu resumi há pouco.

― Mas me fale mais, dê detalhes. – Dizendo isso, esticou as pernas parecendo mais relaxado.

Carlos foi até o quarto e trouxe um cigarro de maconha. Sentou-se num banco de couro e fumou lentamente. Ofereceu a ele, mas Paulo argumentou que nunca tinha usado.

― Tu é um burguês safado.

― Porque diz isso? Tu que te diz liberal e tem preconceito contra mim.

― Beleza. Tem razão.

Carlos fumava e enchia o ambiente de um aroma adocicado. O outro ficava cada vez mais à vontade. Levantou-se, caminhou pela sala e observou os cavaletes encostados na parede, os bancos altos de madeira, a banqueta de couro onde as modelos sentavam. Olhou para Carlos, que agora deixara o banco para sentar-se no chão, numa posição imitando a de lótus. Indagou:

― Não vai me contar tudo?

Carlos fungou e falou com a voz um tanto fanha, em virtude do fumo. Sorriu e perguntou se ele queria saber tudo.

― Sim, tudo.

― Então para de girar pela sala. Senta aí.

Começou a descrever a aula e Paulo tinha a impressão de que já estivera naquele local, que sabia tudo o que iria acontecer, mas gostava de ouvir, como se fosse a história das mil e uma noites. Uma história que se repetia, mas retomava um sabor diferente.

Por fim, repetiu o que ouvira:

― Então a modelo lindíssima senta-se na banqueta, no círculo, completamente nua. Homens e mulheres a ficam analisando entre os cavaletes, observam o seu corpo, o contorno dos seios, a saliência da barriga, o umbigo, a genitália e eles se excitam.

― Não, ninguém se excita. É um trabalho, cara, se orienta!

― Ah, não me diz que tu não fica de pau duro também.

― Claro que não, pelo menos, não de propósito. Pode acontecer, mas a gente se controla.

― Eu já estou excitado, imaginando tudo que me disseste.

― Não é legal, cara. Isso é só imaginação. Aqui não é para isso.

― Mas eu imagino sim, imagino os olhares enviesados, fingindo que estão desenhando ou pintando. Eles observam os detalhes e sentem tanto tesão que quase não resistem. Tanto eles, como elas. Quando um homem está lá, também observam a silhueta, a barriga, e deslizam com seus olhares por reentrâncias que mais se interessam, observam o pau caído, encolhido, o saco achatado no banco e se seduzem a si próprios.

Em seguida, suspira sôfrego e prossegue:

―Eu preciso participar de uma aula. Só vou encontrar aqui, o que nunca consegui no meu meio, tu entende?

―Aqui não é casa de prostituição, cara, deixa de ser vacilão. Por que tu não vai na zona ou contrata uma garota de programa.

― Assim, tu tá me ofendendo. Não podes acabar com a minha ilusão, com o meu sonho. Com prostituta, tudo é falso. Aqui é real.

― Não, nenhuma mulher ou homem, nenhum modelo vem pra se exibir com qualquer intenção sexual. Ninguém vem vender o corpo aqui. Isso é uma aula de arte, cara.

― Pois então, eu não quero comprar nada. Só a tua permissão. O gozo só é verdadeiro, quando é espontâneo. É isso que preciso.

― Mas o outro não sabe da tua intenção. Ele é um profissional.

― Pode saber. Eu posso me excitar com quem está ali no círculo e acabar gozando, entende. Pode ser um ou dois. Uma mulher e um homem. Sem eles saberem a princípio, mas depois, haverá uma reação subliminar que aos poucos vai nos comprometendo. Vai atingindo a todos, como uma orgia de sedução.

― Então tu é gay.

― Sou bi e só sinto prazer assim. Eu sonho com isso, Carlos. Por favor, deixa eu participar da aula de artes, eu quero o círculo, quero os olhos escondidos e comprometedores. Eu sei, que aos poucos, todos vão sentir a mesma paixão, o mesmo tesão. Basta haver alguém que os seduza.

― E tu acha que pode fazer isso?

― Posso, assim como fiz contigo.

― O que tu queres dizer, cara? Que porra é essa?

― Que assim como a Sharazade eu recontei a história e tu revivesse tudo. Tu estás excitado, to vendo daqui.

― Cara, já te ouvi demais, se toca. Vai embora, vaza.

― Não fica irritado, sei que és hétero, é normal, não muda nada. E eu não vou sair, eu paguei pra me ouvires, lembras? Agora quero que marques uma aula. Eu preciso ter essa experiência.

Carlos levantou-se, dirigiu-se à janela e abriu a cortina. Uma luz tênue se estabeleceu, expressando o entardecer que findava. O outro se aproximou e falou quase ao seu ouvido:

― Eu espero. Não precisa ser amanhã. Quando tu quiser.

Carlos não disse nada. Sentiu com prazer o aroma adocicado que ainda envolvia a sala e como o sultão Shariar, quis ouvir a história de novo.

Fonte da ilustração: Efes Kitap - site: https://pixabay.com/pt/users/efes-18331/

terça-feira, março 06, 2018

O verão agoniza

Nem sempre a noite clara, a brisa entre o arvoredo, a avenida com luzes esparsas pairando sobre bancos e jardins, parecem a plenitude da paz no fim de verão. Pode ser sim o reflorescer das esperanças dos que se reencontram, o harmonizar do mate solitário no banco de madeira, o gorjear dos pássaros noturnos que sinalizam o início do descanso.

Ou a emboscada da solidão que martela de leve os que carregam na mochila pesada de vazios, a busca insensata das bebidas e drogas, do ser não sendo quase nada, dos que mendigam amores e dinheiro no chão das esquinas desenhado entre folhas e luar.

Outro dia, o vi recolhendo latinhas perto do parque infantil. Fumava uma bagana e parecia procurar alguma coisa indefinida, talvez uma dúvida da qual não se livrava. Olhou-me de soslaio e sem vacilar, disparou: o que é cupincha? Surpreso, respondi indeciso: comparsa. Ele reagiu com um grunhido e silenciou.

Pensei em afastar-me, mas perguntei se juntava muito material à noite. Ele repetiu cismado: me chamou de cupincha. Tentei descrever a palavra; seria companheiro?

Ele riu com alguns dentes à mostra. Depois, se aproximou, o que me produziu algum receio. Confidenciou que um camarada o mandou levar drogas até determinado lugar, mas não aceitara. Só vivia de sua cachaça e não queria se sujar. Entendi que "se sujar", em sua linguagem, era tornar-se um criminoso. Concordei que não devia se envolver com drogas. Ele deu uma gargalhada e me abandonou de vez, como se entrasse num mundo paralelo, do qual eu não fazia o menor sentido.

Fiquei alguns minutos observando o arvoredo da avenida, as poucas pessoas que passavam, o veraneio que agonizava bonito como o abandono dos pássaros na maciez dos ninhos.

Afastei-me e pensei na ética humana. Aquele homem podia não ter nada, nem esperança, nem saúde, nem importância para os transeuntes, mas tinha ética. Mesmo que tudo fossem devaneios, não importa, ali estava incrustada a ética em suas convicções mais profundas. Ética não é para todos.

sábado, março 03, 2018

O que Saint-Exupéry, um amigo e as redes sociais tem a ver?

Há muitas coisas que nos chamam a atenção, quando participamos de redes sociais como o facebook, o twitter, o Snapchat, Instagram, entre outras. Por exemplo, há pessoas que conhecemos ou não e que compartilham assuntos de mesmo interesse, como no meu caso, a literatura, a política, filmes, músicas, ciências da informação, com ênfase em biblioteca, os livros enfim.

Não sou muito dado a bate-papo online, nem participar de redes de orações, discussões religiosas, jogos, nem muito menos expor coisas muito íntimas, como por exemplo, um beijo apaixonado em minha mulher (porque se já foi fotografado, por certo, feito alguma pose e publicado na rede) então, já este beijo não é tão espontâneo assim, é meio dramaturgia, não é mesmo? Claro, que ocorrem os flagrantes e isso é legal. Mas falo daqueles encontros arrumadinhos, tudo muito certinho e o beijo tascado de forma cinematográfica. Ah, isso é engraçado.

Há coisas intimas também, como um jantar em família, na alegria em estar com a família num passeio ou ou viagem. Acho saudável, claro respeitando os limites da soberba e da ostentação. Mas não estou aqui para julgar ninguém, muito menos para criticar os inúmeros integrantes das redes sociais, inclusive os meus amigos.

Por outro lado, sei que no dia a dia, quando topo com uma pessoa com dificuldades físicas, e às vezes, um certo atraso em demonstrar o que desejam expressar, fico um pouco impaciente. É um defeito meu, é claro, já que devia ser mais tolerante, principalmente porque todos, sem excessão, inclusive eu, somos cheios de dificuldades, ou psíquicas, ou em virtude da idade avançada, ou da pouca idade, ou dos comportamentos rígidos assimilados, das inseguranças, ou mesmo da arrogância, da autoestima exacerbada, da intolerância, enfim, todos temos algum tipo de inquietude em relação aos valores e atitudes dos demais. Ninguém é perfeito.

De todo modo, está claro que não sou paciente, mas também não sou intolerante. Sou uma pessoa que espera, espera que a outra mostre a que chegou, e sem nenhuma superioridade interior, tentar me aproximar e ser o mais natural possível. Não quero exercer o papel de juiz, nem professor ou qualquer personagem investido de poder e segurança para mostrar quem é o melhor. Desta forma, evito demonstrar minha impaciência e respeitar o tempo e o limite do outro.

Falo isso, porque fico me perguntando sobre uma pessoa que vem a minha casa, pelo menos uma vez no ano, nos verões, quando vem ao Cassino.

Na verdade, eu o conheci através de outras pessoas, e nem tinha motivo de ser seu amigo, apenas procurava ser gentil e educado nos poucos encontros que tivemos em comum com outros conhecidos. Via de regra, vem no meu aniversário, mesmo que não seja convidado. Não reclamo, já acostumei com sua presença e sei o quanto é sincero. Uma vez ao ano, quando vem também me convida (eu e minha família, para um churrasco especial, que faz somente para nós). Fico pensando no motivo de tanto desvelo, uma vez que não é meu parente e a amizade, para ser sincero, começou quase em via única, do lado dele, porque para ele, parece que há um lastro que consolidava uma amizade eterna. Não que eu o dispense, ao contrário, sempre o trato com a maior sinceridade e gentileza, mas somos pessoas tão diferentes, que se torna extremamente difícil uma conversa entre pessoas com objetivos tão distintos. Se eu fosse um cara extrovertido, talvez ele tivesse motivos para me procurar.

Ao contrário, sou meio quieto, e essa característica se acentua em virtude das dificuldades em que ele apresenta em desenvolver os assuntos. Jamais poderia falar nos temas que me interessam com ele, pois somente concordaria com um ãh ãh absorto, provavelmente olhando ao longe, perdidos em seus pensamentos.

Via de regra, seus assuntos prediletos referem-se ao celular de última geração que acabou de comprar, do carro ano 95 que está tinindo de novo, do último DVD da banda de pagode, das fotos dos sobrinhos, dos passeios que faz na praia e do exame destes assuntos meia hora depois, repetindo tudo de novo. O interessante é que ele sabe de cor qualquer dia do ano em que tenha feito uma compra, como por exemplo comprou um aparelho toca-discos 2 em 1, com prato para LP, toca-fitas e rádio am fm, nas Lojas Colombo, no dia 19 de abril de 1988, dia do Índio. Ou a TV preto e branco de 21 polegadas, da marca Philco nas lojas Manlec, em 1982, no dia dos namorados.

Por isso, não esquece jamais as datas de aniversário, inclusive, a minha (e olha que não havia facebook, quando o conheci).

Acabo, ficando na estratégia de perguntar em círculos sempre a mesma coisa, que lhe diga respeito e intervir com um detalhe ou outro sobre mim, que também possa sugerir algo referente a ele.

Por isso, indago a mim mesmo e aos que me conhecem, por que ele sempre me procura com esta absoluta sinceridade, que embora apresente um certo egocentrismo, sempre procura me agradar de uma maneira ou de outra, ora convidando para um churrasco, ora trazendo as fotos que tirou num dos aniversários para mostrar, ora trazendo um DVD para assistir, mesmo que não seja o meu gênero preferido, mas que imagina, com convicção infantil, que me alegrará sobremaneira.

Por estas e por outras, sem querer propalar meus bons sentimentos, talvez seja exatamente isso, essa maneira honesta de ser, sem vislumbrar meus interesses pessoais, sem me importar com as horas que vão naquele mate de vai e vem, sem ouvir muito mais do que o silêncio.

Talvez seja um ato de doação. Mas não é só pra ele, é para mim também, no momento em que me dispo um pouco do que sou e fico mais próximo do ser humano. Afinal, ser amigo também é uma qualidade humana. Acho que é isso. Não ter muita paciência e às vezes, até procurar, disfarçado, as horas no celular, ocorre sim, mas a diferença é que o aceito como é.

Muitos que o conhecem, o tratam como um idiota, como uma criança a quem se dá ordens e se exige pouco para não encher o saco.

Pelo contrário, procuro sempre ressaltar as suas qualidades, incentivá-lo a melhorar em seus projetos, talvez medíocres para a maioria das pessoas, mas que para ele, são grandiosos, como tirar a carteira de motorista para dirigir o carro que comprou.

Não lhe dou conselhos nem faço ressalvas em suas atitudes. Ouço o que tem a dizer e dou a minha opinião, sem muitas reservas. Procuro falar das coisas que lhe dizem respeito, e acrescentar-lhes um frescor que normalmente não teriam, por mais simples e banais que possam parecer. São coisas suas. É a sua vida. Por isso, acho que intui uma certa cumplicidade com a sua percepção de vida.

Mas voltando às redes sociais, como no início da crônica, observo que algumas pessoas que conheço (ou assim acredito) demonstram qualidades completamente estranhas em seus seus perfis públicos, a ponto de pensarmos que se trata de outra pessoa completamente diferente.

E fico me perguntando, será que eu estou equivocado? Que elas são exatamente como aparecem na rede e que na vida real não passam de um produto de minha imaginação? Nem sei se há uma intenção de exibirem uma personagem diferente ou se acreditam que a persona que criam é a sua realidade interna. Quem sabe, uma inspiração para uma vida melhor? Um upgrade de mais qualidade?

Afinal, todos somos enigmas, até mesmo para nós mesmos. Temos cavernas escuras em nossas mentes que não mostramos para ninguém, até mesmo para nós mesmos. E o quando o fazemos, tomamos um choque e juramos de pés juntos que foi tudo um sonho. Que é obra do destino ou da manipulação do terapeuta.

Entretanto, afundado em minhas próprias cavernas e a cada dia, tirando um pé, pra chegar no claridade do dia, procuro mostrar minhas preferências, sem me preocupar muito com a aprovação alheia. Claro que fico muito satisfeito que curtam e comentem o que publico, mas fico feliz com opiniões diferentes das minhas, pois ao declararem, estes estão sendo sinceros, como sou com aquele amigo, sem quererem me agradar simplesmente. Neste caso, a discussão proporciona um pluralismo de ideias interessante. Mostro claramente que sou de esquerda, mais especificamente socialista, que assumi de acordo com minha visão de mundo, dos valores que apreendi.

Afinal, como diz Cazuza, todos precisam de uma ideologia pra viver. E cada um tem a sua. Que bom que seja assim.

Respeito os que pensam diferente, critico, discuto e aceito as críticas. Há casos, afinal, sou humano, que procuro ocultar as publicações alheias e comentários, pois para a boçalidade, não há argumento.

Por outro lado, exerço o meu gosto pela literatura e faço da escrita o meu ritual diário. Também adoro viajar e de vez enquanto, publico alguma coisa que lembre as viagens que participo. Cenas que considero curiosas ou bonitas. Também falo alguma coisa em música e os que virem meu perfil, percebem que gosto muito do Chico e que procuro assistir seus shows. Além disso, gosto de filmes, principalmente os que tem conteúdo dramático e faço algumas resenhas nos meus blogs. Falo um pouco em espiritualidade e para isso, devo estar focado numa emoção religiosa para expressar alguma coisa, porque prefiro não repassar nada em que não acredite.

Às vezes, sinto que sou um chato, porque insisto em alguns assuntos, como o horror à ditadura e por isso, sou muito cobrado e criticado. Mas tudo bem, se não me mostro como sou na realidade, pelo menos não douro a pílula, me mostrando um santo no altar do facebook.

Por isso, fiquei pensando neste meu amigo, cujas dificuldades físicas e neurológicas, não o impedem de exercer as suas tarefas com muita competência. Nesta pessoa que confia em mim, e que tento ser paciente, aceitando-o como é.

Em razão disso, lembrei de um livro que a maioria dos adolescentes de gerações passadas leram: "O pequeno príncipe" de Saint-exupéry. Quando o li, me impressionou o modo como o autor descrevia as relações humanas sob imagens metafóricas, através da raposa, da rosa, do príncipe de outro planeta, do geógrafo, do bêbado. São pessoas em absoluta solidão, que finalmente se deparam com o sentimento, assim despertado pela raposa, que diz ao menino, a frase tocante, que expressa o real significado da vida. "Os homens esqueceram a verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer”.

Através desta lembrança, tive um pequeno insight, que não é nada original, mas que centenas de pessoas já devem ter experienciado em nas suas relações com o próximo. Todos querem ser cativados, de alguma maneira. Na redes sociais, nas festas, nos encontros, no dia a dia, até mesmo nas relações quase imperceptíveis do comércio, onde estamos via de regra preocupados com o produto e o comerciante com a própria venda.

A raposa queria ser cativada. E o que fazer, perguntou o Pequeno Príncipe. "Você deve ser muito paciente. Eu não preciso de ti.Tu não precisas de mim. Mas, se tu me cativares, e se eu te cativar…ambos precisaremos um do outro. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas."

Saint-Exupéry sabia dessas coisas. É só preciso paciência.

terça-feira, fevereiro 20, 2018

O DILEMA DA PRIMEIRA-MINISTRA

Este conto faz parte de uma oficina literária com o desafio de se inserir no conflito dois personagens reais, Indira Ghandi e o papa João Paulo I. Um encontro impossível, pura ficção.

A Primeira-Ministra da Índia, Indira Gandhi teve uma visita inusitada, na penúltima noite de outubro de 1984: um emissário da Mossad e o Papa João Paulo I. Tudo começou assim.

Indira ensaiou alguns passos, decidida, em direção ao corredor pouco iluminado, observando os pequenos focos de luz que vinham do jardim. Estremeceu, tinha consigo que alguma coisa fatídica estava por acontecer. Mas ultimamente, sua vida estava recheada de acontecimentos surpreendentes. Examinou-se no espelho lateral, próximo à porta, ajeitou com as duas mãos, a ghaghara, saia longa que lhe parecia menos pretenciosa do que o sári e acolheu o véu à cabeça, o significativo odhini, que produzia, sabia disso, uma expressão mais resoluta e misteriosa. Salientava seus olhos negros e grandes, e seu nariz alongado causava um ar de sapiência estudada. De todo modo, talvez a situação exigisse tais doses de vaidade.

Quando chegou à sala e avistou as duas figuras na penumbra, teve um sobressalto. Um dos homens levantou-se e acercou-se dela, apertando-lhe a mão, amistoso. Era o emissário da Mossad, chamado Hersch. Ela, entretanto, não conseguia desviar os olhos do outro, cuja fisionomia quase se escondia na penumbra.

Hersch, ao seu lado a fitava sem sorrir. Seus lábios finos e olhar entrecortado, se deparavam com uma mulher assustada, o que o deixou intrigado. Não imaginava encontrar uma mulher como Indira Ghandi, assim, desorientada. Passou a mão imensa pelos cabelos ralos, apertou os olhos azuis que pareciam disparar das órbitas e perguntou:

- Conhece-o, não? A senhora tem a plena consciência do motivo pelo qual estamos aqui.

- Sim, evidentemente. Mas como é possível isto?

Neste momento, o outro se aproximava lentamente. O cabelo grisalho alinhado para a direita, os olhos apequenando-se atrás dos óculos, ante a fisionomia alegre, o sorriso denso. Vestia-se com um terno preto e o colarinho fechado, vestimenta de sacerdote. Mais perto, percebeu um leve suor na testa ampla de Indira. Esta puxou o véu um pouco para trás e estendeu-lhe a mão.

- Não posso acreditar, não consigo entender como o senhor está aqui.

- Quando Irmã Vincenza veio trazer-me o café da manhã, com o seu afável "Buongiorno, Santo Padre" e eu não respondi, muitos também não acreditaram. Meus partidários, porém, sabiam de tudo. Ou pretendiam saber. Quanto à V. Exª., é preciso acreditar além do que vê, fundamentada nos sentimentos.

Ele sorriu, aconchegando as mãos nas suas.

Indira se recompôs e, por um momento, esqueceu toda dúvida e temor.

- Por favor, V. Santidade, me chame de Indira. Se tenho um milagre em minha casa, em meu País, deixemos de formalidade - e dirigindo-se a Hersch - O emissário também deve ter uma revelação importante, para chegar a este extremo!

- Muito mais do que eu, senhora. O Santo Padre tem muito a dizer. Eu sou um emissário da Mossad, e a minha intenção é salvaguardar as comunidades judaicas na Índia, o único país onde não sofremos discriminações. E a senhora sabe, a religião mulçumana está crescendo muito neste país.

- Nosso encontro teria um caráter informal.

- Exatamente, senhora. O Santo papa que me convenceu a vir aqui!

- Mas ele não está...?

- E quem não está, não é mesmo, nos dias de hoje, onde há tantas traições.

Ele os interrompeu:

- Alguns dias atrás, o dezessete de outubro seria meu aniversário. Atualmente tenho outra data a comemorar. É a impermanência da vida, como refletem os hindus.

Os demais silenciaram. A Primeira Ministra até tentou ser gentil, mas aquela ideia era tão extraordinária, tão surrealista que não encontrava meios de se comunicar e sentir-se à vontade. Ofereceu-lhe um chá. Em seguida, uma criada aproximou-se e serviu-o, na mesa despojada que destoava da sala ornamentada. O papa João Paulo I serviu-se com absoluta calma, gestos pausados, delicados. Seu olhar pousava nos objetos, como se pretendesse ajustar neles o olhar que os vislumbrava. Um olhar apaixonado, vibrante, que não se coadunava com o dos demais. Indira tomava alguns goles, sôfrega, ouvindo a declaração do emissário.

- Não se preocupe, que meu amigo Luciani, ele permite que o chame assim, me induziu da maneira mais tranquila. Surgiu como um frágil foco de luz, quase a chama de uma vela, que foi se fortalecendo, até se tornar uma luz densa e arrebatadora. O papa sorri, dizendo que o emissário tem a capacidade de acomodar tudo numa caixa padrão e sempre o conteúdo é maior do que o invólucro. - Certamente, V. Santidade sabe do que estou falando. Quando me apareceu, eu não tinha a expectativa, nem o sentimento do que realmente deveria fazer.

- Essa expectativa se refere ao meu país? - perguntou Indira, intrigada.

- Podemos afirmar que é de uma abrangência mundial.

- Então encaminhemo-nos ao meu gabinete. Na verdade, devia tê-los convidado desde que chegaram.

- Se não se importa, senhora, ficamos por aqui mesmo. A menos, que haja a impossibilidade do sigilo. - Asseverou o emissário, abandonando, cauteloso, a xícara sobre a mesa.

- Meus guarda-costas da etnia Sikh cuidam de meus negócios. Eles têm a disciplina como eixo principal de sua crença e tenho absoluta confiança neles. Acho porém, que no escritório ficaríamos mais bem acomodados.

- O que tem a dizer, meu amigo Luciani?

- Que a oportunidade se aporta. O que temos de fazer não deve esperar, a não ser com o tempo da compreensão.

- Então está bem. Continuemos aqui.

- Nós viemos, naturalmente por um motivo especial, mas deixarei que meu amigo mesmo a convença. - Apontou para o papa que fisgava um doce com a ponta do garfo.

- Estou ansiosa em ouvi-lo.

- Talvez o que tenho a dizer-lhe não mude em nada os fatos ou pelo menos, não a curto prazo. O essencial, no entanto é conhecer a verdade e a verdade está acima de nosso conhecimento. É única. Não existem duas verdades. Não se pode afirmar que tal autoridade sofreu um ataque cardíaco ou que morreu pela espada. Não. A morte é uma só. Por isso, a verdade, vem do alto e a mentira é dos homens.

- Mas os homens são filhos de Deus.

Indira percebia-se mais tranquila, o que a deixava intrigada, não a ponto de negligenciar a curiosidade. Deveria ocupar seus pensamentos e coração naquele encontro e no resultado que produziria em sua vida. Talvez fosse isso, uma guinada, uma mudança de direção e ela pudesse assim, vencer todos os adversários, de agora em diante.

- Há duas maneiras de nos encontrarmos com a verdade: a primeira é abrir o coração e deixar que a verdade flua do alto, sem a nossa participação física. Na adoração, na entrega do espírito, na meditação, no deixar envolver-se nas mãos de Deus. A segunda, é agir de acordo com a lei, com as condutas de moral, de honestidade, bondade, de consolo, de integração com as rochas, com as conchas, com os animais, com a natureza. Deus não está apenas no sacrário, ou na comunhão, ou no sacrifício da missa, como o veem os religiosos, mas na natureza, em todas as religiões, em todas as crenças, nos pobres, nos que vivem à revelia da sociedade, até nas pedras.

- V. Santidade acredita nisso... meu Deus, fala como um hindu!

- Sou a favor da vida.

- V. Santidade me deixa confusa. Não veio aqui para me convencer ou falar de religião?

- Seguramente, não falei de religião.

- E o emissário, o que tem a dizer?

- Vou direto ao ponto. Não queremos que V. Exª. perca o poder para os conservadores. Os mulçumanos há cada dia propagam mais a sua religião e ratificam o ódio pelos judeus, além disso, os conservadores de ultradireita entregarão a Índia ao grande colonizador, à Inglaterra, através da dependência econômica. Não queremos isso. Não podemos ser massa de manobra! O governo fatalmente se submeterá aos interesses das classes superiores, dos donos de terras e sindicatos poderosos. Haverá toda sorte de criminalidade e corrupção! Os poderosos terão preferência aos partidos organizados.

- Um me fala de política e o outro de religião!

- Não, do encontro com a verdade, que vem de Deus.

- Mas então?

- Vim aqui para que o movimento que alavanca as possibilidades dos mais pobres não pereça. Que o slogan de 1974 "garibi hatao" seja reativado. Que a Índia dispense o apoio internacional e execute o seu próprio desenvolvimento social. Que não haja ódio entre doutrinas, mas a união entre os filhos de Deus. Por isso, eu o convenci a vir, afinal, ele luta pela reintegração dos judeus, que faz parte deste caldo cultural tão dissociado da realidade nos dias atuais.

- E como resolver esta questão, Santo Padre? O senhor tem uma solução?

- A solução depende de sua aproximação com os representantes da religião Sikh e pedir perdão.

Indira chacoalhou a colherinha entre os dedos. A observação era absurda. Esquivando-se de qualquer agressividade, porém, perguntou com paciência:

- Por que V. Santidade me pede isso?

- Porque é a única maneira de evitar o derramamento de sangue que está por vir. Tal como Irmã Vicenza em meu leito de morte, V. Exª. desconhece o destino do homem, as tramas que o envolvem. Ele fez uma pausa, segurou-lhe as mãos, afetuoso e pediu que ouvisse o que o emissário tinha a declarar, em relação aos detalhes políticos.

Hersch assentiu, de bom grado.

- Pois não, amigo Luciani. Para que o destino da desavença e da destruição não se cumpra, a senhora deve assumir o perdão de seu governo como ferramenta essencial para a paz. Deve estender a mão aos sikhs, pedindo que acolham o seu pedido de perdão pela invasão ao seu templo sagrado - e antes que ela tentasse argumentar ao seu favor, ele prosseguiu, enfático - sabemos que foi uma tentativa desesperada de trazer a paz à Índia, impedindo que o líder dos separatistas exercesse maior desestruturação da nação, mas a que preço, não? Olhe, não pedimos que V.Exa. se converta a sua crença, apenas que mantenha um olhar mais atento, quase de súplica, investindo nos sentimentos mais profundos de seus partidários.

A primeira-ministra ainda tentou esclarecer, do jeito que costumava convencer a si mesma de que havia sido razoável em sua estratégia.

- Eles querem dividir a Índia. Querem estabelecer uma nação desunida. Nossas tropas ocuparam os estados de Punjab e Haryana, porque os rebeldes se espalharam em manifestações violentas. Precisávamos reestabelecer o controle da Nação. Portanto, foi inevitável a invasão do templo, porque o líder deles se refugiou lá.

O emissário não ousou contrariá-la. Apenas sugeriu que utilizasse a diplomacia, ao que ela replicou: _É uma humilhação! - Seus olhos outrora límpidos, estavam marejados e não havia como evitar o conflito de sentimentos. Uma dose de desilusão reinou em seu íntimo.

Ao voltar-se para João Paulo I, Indira observou um sorriso leve, expressando uma aura de santidade que transtornava ainda mais o seu coração perturbado. Talvez por isso, sentara-se a sua frente, almejando que ele lhe desse as respostas, cujas perguntas pululavam desordenadas. Também sorriu para ele e quando o fazia, sentia-se tranquila e receptiva. Então, ele completou o tema, com afável delicadeza.

- Talvez a sua missão seja hostil aos seus sentimentos humanos, mas muito elevada perante os desígnios divinos. Muito mais do que diplomacia, trata-se de uma demonstração de humanidade, de que a filha principal da Índia não é somente a Primeira-Ministra, mas uma cidadã solidária, que respeita e ama todos os seus conterrâneos, sem ver-lhes a casta ou a inclinação política ou religiosa. Sabe, Irmã Indira, a vida não tem sido fácil para eles também.

Neste momento, o pranto silencioso embargou a voz e ela se aquietou, sem dizer nada, apenas limitando-se a ouvir o Pontífice.
- É uma verdadeira tragédia para os que lutam pela liberdade ou o que chamam de liberdade. Se V. Exª luta pela liberdade dos pobres, pela socialização da terra, das riquezas, deve lutar também pelas liberdades individuais.

Num esforço extremo, a estadista superava a mulher:

_A mando de quem vierem aqui? Meu Deus, às vezes, penso que tudo não passa de uma alucinação. Querem que eu me aproxime dos sihks e peça perdão? Mas nossas relações são de paz, vejam os meus agentes que pertencem esta seita!

O emissário e o papa se entreolharam, expressando, talvez, tudo o que seu coração trouxera na bagagem.

Indira observava o Santo Pontífice e de repente, seus olhos se transformaram, como se a revelação saltasse pelas órbitas. Seu coração abalado a fez recuar, aproximando-se do corredor envidraçado. Lá fora, do outro lado da residência, o jardim todo às escuras, tão bem guardado pelos agentes. Então, voltou-se para os dois que agora estavam separados.

O papa folheava algumas páginas da Bíblia, que o emissário lhe entregara. Este desenhava pequenos círculos com os pés, contornando as estrelas dos ladrilhos. Ela aproximou-se e pousou a mão sobre a Bíblia, reluzindo a ametista no anular, num gesto de alerta. O papa levantou os olhos e a ouviu, paciente.

- V.S. pretende indicar-me um caminho! Agora, sinto que as coisas estão aqui, na minha mente, no meu coração. São eles... eles me trairão. Assim, como o senhor previu a sua morte ...

Ele faz um aceno com a cabeça. Seus olhos diziam mais do que ela gostaria de ouvir. Entretanto, nada parecia surpreender Indira, desde que iniciara o dia, portanto, até nos discursos que teria pela frente, suas previsões seriam as mesmas.

- Então acha que...

- Minha filha, quando nos afastamos do perdão e da justiça, buscamos a vingança.

Ela dirige-se ao emissário.

- A revelação era esta?

Ele abre os braços, mostrando que não há nada a esconder.

- E como sabe?

- A senhora mesma afirmou. Veio dele, do amigo Luciani.

- Então, que devo fazer? Se pedir perdão, apenas para me livrar da vingança, para me livrar da morte, não serei digna para a história. Estarei apenas abreviando a minha partida, mas faltarei com a verdade que o senhor propaga.

- Por outro lado, evitará o derramamento de sangue. Evitará que a Nação se abaixe ao colonizador imperialista, que o povo seja esmagado na miséria, que o capitalismo destrua os benefícios alcançados, impeça que os judeus sejam mais uma vez expulsos de seus nichos.

Neste momento, o emissário Herscher se encaminha até a mesa, juntando-se aos dois. Quando ela pergunta "Devo então desviar o rumo, devo mascarar o meu destino?", ele devolve, convicto: "Ao contrário, deve exercer o seu destino. Está em suas mãos."

Indira abaixou a cabeça, melancólica. Um filme se passou em sua vida: Lembrou o pai, Nehru, o qual ajudou enquanto era primeiro ministro, recordou da vitória na guerra do Paquistão, cuja parte oriental, resultou na República de Bangladesh, com sua influência e participação marcante, motivando a aceitação pelo povo que a elegeu. Pensou em sua vida pessoal, na sua família, em seu filho que morrera num acidente aéreo, no outro filho que detestava política, mas que faria qualquer coisa para agradá-la. O que seria dela, a partir de agora?

Suspirou. Perguntou ao emissário:

- Quando será?

- Não sabemos com certeza, mas o fim está próximo. V.Exa. tem de se apressar.

- Tão pouco tempo assim?

- Tempo suficiente para decisão. Para a reconciliação. Para o pedido de perdão.

O velho papa ouvia o diálogo, alisando suavemente a página de um salmo. Quando Hersch perguntou o dia, Indira retirou um pequeno calendário da gaveta da mesa. Ele repetiu a data por duas vezes. E na segunda vez, completou:

- Trinta de outubro. Deve ser amanhã. O ator inglês já chegou?

- Peter?

- Sim Peter Ustinov. Você não deve ir ao jardim sob hipótese alguma, amanhã. Esqueça a entrevista.

- Que loucura!

João Paulo I levantou-se, deixando a Bíblia aberta sobre a mesa e se aproximou de Indira. Abraçou-a e abençoou-a ante o olhar emocionado do emissário. Em seguida, perguntou se ela pediria perdão à nação Sikh. Indira afirmou que pediria perdão, conforme o desejo do sumo Pontífice.

Neste momento, o emissário foi até a porta principal e pediu que um dos agentes entrasse na sala. Indira o olhou petrificada. Seria ele, o homem que a mataria, ou junto com o outro, executaria o plano na íntegra. Perguntou ao papa, o que significava aquilo? Teria chegado a sua hora?

Ele sorriu e acrescentou, satisfeito.

- Ele mesmo dirá.

O homem, a princípio, receoso, depois mais seguro aproximou-se e estendeu a mão à Primeira-Ministra. Ela recuou alguns passos, mas deteve-se, paralisada. Seria o seu fim, a previsão se antecipara para o dia anterior? Estaria ali, encomendada a sua morte? O que queria aquele homem e o outro guarda-costas que acabava de entrar.

- Nós queremos a paz e antes que peça perdão, nós também pedimos, pelo derramamento de sangue que também causamos. Queremos partilhar da mesma paz que V. Exª pleiteia.

Indira Gandhi estremeceu. Voltou-se para o jardim e sorriu.

Na noite seguinte, proferiu o discurso mais lindo e emocionado, que lhe valeu por presságio, em toda a sua história:

"Não me importa se perco a vida ao serviço da nação. Se morrer hoje, cada gota de meu sangue revigorará a nação."

Somente Hercher sabia que ela descobrira o dia de sua morte e por isso, fizera um vaticínio tão preciso.

Entretanto, a esperança de que não se concretizasse fora inabalavelmente destruída pela vingança do homem. O papa convencera Indira, mas o coração empedernido do antagonista não soubera compartilhar o mesmo ato conciliador. Somente o emissário Herscher sabia o quanto ela fora enganada, não por ele, nem pelo papa, mas pela bestialidade humana.

A verdade está no alto, não no homem.

sábado, fevereiro 10, 2018

Pensar nas nuvens

Desci lentamente a rua, uma ladeira estreita, amaciando os pés nas folhas amarelas, dobrando esquinas, pesquisando um ar mais puro. Sem saber, tinha em meu coração que coisas ameaçadoras interromperiam a minha trajetória.

Mas que fazer, se não esmagar com as mãos aquele gato pequenino, que miava insistente, que teimava em não ser afogado no tanque? Puxar o gatilho da mente, disparar as ondas elétricas do cérebro, insistir no improvável. Viver outra armadilha, muito mais densa, mais perigosa. Enroscar-me na rede como um peixe agonizante.

Olhar pelos atalhos e sentir que a dor é bem mais intensa quando se vê a alegria dos outros. Os outros que estão tão próximos, acirrando com olhos fixos nossa dor, que quase os tocamos e sentimos sua gosma grudenta, sua respiração ofegante, seu hálito sujo.

Poder fugir da armadilha, escapar da dor imensa, mergulhar no passado, pisar novamente as folhas secas, amaciar os pés na fofura verde-amarela, sentir o hálito puro do entardecer do outono, correr. Correr, correr, correr. Buscar longe uma alegria aqui, tão perto, dentro do peito. Jogar, jogar, jogar. Até cansar e deitar no chão de grama molhada, pernas para cima, barriga ofegante, coração calmo. Olhar o infinito do céu e perceber as nuvens se deslocando faceiras. Respirar fundo.Olhar para o amigo do lado e sentir-se apoiado. Saber que não se é um só, mas uma falange. Uma alegria única jamais conquistada.

Entretanto, esta quase certeza da ameaça que se aproxima. Pois as nuvens já não correm faceiras, nem posso vê-las deitado.

Que a alegria era única e o céu ficou pra trás. Vida a esmo. Pungente. Doída. Nau sem rumo, peixe quase morto, agonizante, agoniado, agonia, urro de dor.

Fechar e abrir os olhos e antever o futuro insosso, bisonho, sem luz, sem brilho, sem. Vestir-me assim, qualquer cor que faça presença. Que sobressaia na multidão de zeros, que fuja de senso padronizado de ver o mundo.

Que fuja da certeza e afunde nas incertezas, nas buscas, nas procuras insensatas, no gargalhar insano de afundar o gato no tanque.

Que se dane o gato, que se dane o seu miar horroroso. Que se dane a dor. A dor do gato. A minha dor. Libertá-lo pode ser apenas o início da prisão eterna, libertá-lo pode significar a morte. Por que deixar viver o que morto está? Por que ouvir o desespero do miado, se a constância da fome vai lhe percorrer o caminho? Por que insistir na esperança?

Contudo,pode haver uma saída. Todos os gatos são resistentes, são caprichosos, perspicazes. Sabem lutar, sobreviver.

Por que dividir o cálculo, destruir a lógica? Por que inferir uma certeza se não há nada absoluto. Quem sabe salvá-lo ou deixá-lo à própria sorte.

Gato maldito que me deixa tantas dúvidas. Interrompes meus pensamentos, invades minhas ideias, me pressionas com teus ais.

Entrar na sala, sentir os lambidos indecorosos, as súplicas nos meio olhares, os meio sorrisos, as mesmices, a mediocridade.

Conviver com elas e pensar elevado. Pensar nas nuvens com os pés atolados na lama.

Pular a cerca, correr pelos muros, subir paredes, com as pernas presas no concreto, no subir das escadas, no descer em elevadores, no respirar aflito, na ansiedade da porta que se fecha. Ouvir as risadas lá fora. Só as risadas e não ver ninguém. Não ver o amigo do lado. Nem a falange.

Quem sabe pela luz filtrada da cortina, ainda enxergo o menino esticado na grama molhada, sorrindo, escamoteando o tempo, sugando a vida sem pressa, olhando as nuvens faceiras no céu e pensando que o amigo ainda é uma falange.

quinta-feira, fevereiro 01, 2018

O verão de nossos dias

Ilustração: pintura a óleo de Evanoli Resende Corrêa

Tanto se fala no verão. No sabor das águas, no saborear da brisa, quando não dos ventos do Cassino. Acima de tudo, o bate-papo com os amigos.

Verão é isso. Jogar conversa fora, sem muito compromisso.

Talvez seja mais do que um andar ao léu, ou margear a praia de bicicleta nos fins de tarde. Ou como diz Vinícius na música, “um velho calção de banho , o dia pra vadiar”. Talvez seja mais do que conversar sem compromisso. Talvez seja mais do que lagartear ao sol.

Talvez seja apenas viver. Viver plenamente, o que, às vezes, deixamos de fazer durante o ano.

Claro que não se quer um tempo exclusivo de fazer nada. Mas um tempo pra nós mesmos, onde nem nos olhemos tanto no espelho, nem nos preocupemos tanto com a sandália gasta.

Mas um tempo para ler aquele livro que prorrogamos sem a devida atenção, e que sempre nos vem à memória.

Um tempo para nos dedicarmos à natureza. Para pormos em prática a tranquilidade dos dias. Para esquecermos a rotina, a afobação dos bancos, das lotéricas, dos shoppings.

Para deixarmos o cidadão comum e sermos especiais. Especiais de um dia de verão.

Ah, as águas de verão. As chuvas de verão. Os amores de verão. O verão que temos em mente, na memória, no passado e no presente.

O verão de nossos dias.

Os dias que virão.

sexta-feira, janeiro 12, 2018

O reflexo da porta

Patrícia mais uma vez olhou-se no espelho, mas agora seus olhos perdiam-se num passado distante. O reflexo da porta projetado pela sala contígua, apontava o perfil de Benvindo que se afastava, talvez à procura de uma juventude que havia perdido.

Talvez fosse a culpada de sua fuga: aos poucos negligenciara a aparência, o bem viver, o relacionar-se com os amigos e declinar de ser a protagonista. Não, ela era só a dona de casa que o acompanhava nos jantares, nas festas da empresa, na vida social do marido.

Talvez não fosse nada disso, pensou. Não passasse de um encanto transitório por um rabo de saia, uma mulher trinta anos mais jovem, um despertar para uma paixão fantasiosa, de um homem de meia idade. Afinal, não era o que acontecia com quase todos os casais?

Mas se houvesse uma saída, uma maneira de alterar essa situação, de modificar o rumo, esse consenso social? Ela seria outra pessoa, poderia tornar-se uma mulher ativa e participante de uma nova sociedade. Uma realidade em que ela fosse a protagonista.

Então mostraria a todos, se tivesse sorte, que ainda possuía seus encantos e vigor. Participaria do concurso de dança e usaria o vestido da suavidade da valsa ou da energia do tango. Ela seria a estrela, fotografada, anunciada nos microfones, revelada na ribalta. Era a realização do sonho, a virada tão desejada. Já tinha o convite, faltava participar.

Por fim, Patrícia afastou-se do espelho, deu alguns passos pelo velho parquê, torceu o salto fino e esbarrou no capacho. Segurou-se como pode na maçaneta da porta e chamou o táxi.

Em pouco tempo, estaria lá entre os seus pares, magra e linda, revivendo um passado que não fora seu.

O táxi chegou. O porteiro subiu. O elevador parou no andar de Patrícia. Tocaram a campainha. Ligaram.

Patrícia não atendeu.

domingo, janeiro 07, 2018

AS VÍRGULAS DE ANTÔNIA

Para que servem as vírgulas. Se nos detivermos com atenção nas minúcias, observamos que há dezenas de usos, nos quais extraímos da mente, como apêndices desnecessários da linguagem, a não ser para respirarmos com mais tranquilidade.

Entretanto, gramaticalmente, poderíamos falar em intercalações, tais como as do adjunto adverbial, da conjunção, ou de expressões explicativas, bem como nos apostos ou no uso após o vocativo, e o que é mais corriqueiro, nas enumerações. E aqui elas se fazem valer, altivas, imponentes, revelando aos incautos a força de seus significados e significantes, mostrando o porquê de suas inserções.

Mas na verdade, estas funções gramaticais não despertam curiosidade em nosso discurso cotidiano, ao contrário, nem percebemos a sua localização, seu uso adequado ou indiscriminado.

Via de regra, respiramos saciados no linguajar afoito de quem, quase sempre, tem pressa absoluta. E lá vai vírgula.

Ao menos que sejamos especialistas em linguística, damos conta de suas funções e qualificamos suas determinações.

A nós, pobres mortais, interessa-nos, quando muito, o conteúdo, o texto subjacente ou o ponto final. Este último, absoluto, austero, próprio, poderoso, deixando pra trás qualquer virgula ou interrogação mais arguta. Encerrando o que nos parece enfadonho, perigoso ou impróprio.

Talvez porque não nos atenhamos às indagações que a vida nos dirige e passamos o rodo de graça nos momentos mais simples, mesmo que recheados de novidades e reflexões. Queremos o ponto final e com ele outros pontos, outras procuras, outros caminhos, sempre atentos ao fim, ao “the end”, “se fini”, ao encerramento, ao fim propriamente dito para começar tudo de novo.

Esta é a angústia atual do homem, o homem que consome o tempo sem viver, que reclama das horas escoarem-lhe pelas mãos, como mercúrio de termômetro quebrado.

Não percebe a plenitude dos acontecimentos mais puros, mais sensíveis e íntimos de sua existência.

Talvez precise parar apenas, desapegar-se dos compromissos fugazes (ou apenas convenientes ao padrão inspirado por uma sociedade consumista e falsa de valores) e projetar seu pensamento e todo o seu coração nas coisas mais simples e proveitosas, essenciais e menos pontuais.

Quem sabe, devesse o homem absorver-se do lazer e encontrar prazer em acontecimentos simples do cotidiano, sem deixar-se levar no lodaçal poluído da mídia, padronizando mentes pelo senso comum, produzido para rotular e criar necessidades alicerçadas em valores mercadológicos. Um mundo avesso ao passo amiúde dos velhos, às mãos integradas dos que oram, à mente livre dos que param e meditam, à fragilidade dos meninos de rua, à loucura dos famintos.

Talvez pessoas que não se deixem seduzir apenas pelos grandes acontecimentos, mas que extravasem seus sentimentos nos cantos dos pássaros, no grito insistente do bem-te-vi, no gorjear esquisito da alma de gato em seus contatos diários no amanhecer do dia.

Talvez estas não pontuem acontecimentos transitórios, mas cultivem o sabor dos presentes que a natureza via de regra oferece a quem faz parte dela. Apenas.

Tal como as vírgulas e suas pequenas interrupções, que nos instigam a ver nas palavras, mais do que seus signos representam, mas desvendar seus mistérios, desencadear significados, encontrar no contexto a vontade prenhe de saber, de descobrir, de vivenciar o que o outro apresenta. O que nos diz. Não apenas o ponto final, não apenas o encerramento, mas linha por linha, descrevendo cada sensação, cada matiz novo, quase tonalidade, como sons musicais e cores tingindo o mundo diverso que se apresenta no texto.

Quem sabe o seu uso amoroso, delicado, exacerbado como uma paixão fulminante.

As vírgulas de Antonia. Assim ela veste as palavras e anotações e títulos e autores e as remete ao contexto, bem como ao leitor do produto que está acessando.

Ela gosta das vírgulas, mas gosta mais ainda dos acessos, das maneiras sutis de informar, do jeito delicado e suave de integrá-las ao contexto, usando e abusando de suas qualificações, sentindo-as como parte integrante da amostra, sem restrição, mas ampliando o conhecimento da informação.

Talvez mostrem o seu frisar a vida com calma e cuidado, o seu passar cauteloso e preciso, alcançando a plenitude do encontro, da interação com o outro, muito mais do que simples considerações técnicas.

Para que servem as vírgulas de Antônia? Para chamar a atenção, para mesclar sentimentos, para adocicar as regras. Tal como o cajado sonhado do Caminho de Santiago de Compostela, ela as usa como efeito agregador e até enfeite.

Um adorno útil no caminho que vira ponte.

Um sorriso aqui, um piada ali, um caso do passado e a história se desenrola recheada de vírgulas, sem pontos, a não ser reticências para um novo recomeço. Sem ponto final, somente vírgulas. As vírgulas de Antônia.

Que importam os apostos, vocativos, advérbios?

São as vírgulas que absorvem delicadamente o grande mundo da informação e o fazem com cuidado, esmero, atenção.

Afinal, as vírgulas estão aí, para as pequenas coisas, separando e juntando acessos, intercalando assuntos, mesclando títulos, identificando autores. São as vírgulas de Antonia. Não pontos finais. Pontos? Só os de acesso.

(Crônica que tenta metaforizar o nosso relacionamento com o mundo e o outro, baseado em aprendizagens simples, para viver intensamente. Para tanto, lembramos das vírgulas, como ponto de intercalações e de encontros. No curso Capacitação e Gestão da Qualidade em Bibliotecas, cujo módulo Representação Descritiva pelo AACR2 , tivemos a honra de ter como ministrante a Profa. Antônia Motta de Castro Memória, as vírgulas foram “contestadas” em tom espirituoso, em vista do sentido gramatical, nada que devesse ser revisto, porque estavam em absoluto acordo com as regras do código. Mas a tal “discussão” das vírgulas me levou a imaginar esta crônica.)

quinta-feira, janeiro 04, 2018

As laranjas do vizinho

Diariamente, deliciava-se olhando as laranjas do vizinho. Não eram suas, talvez por isso mais saborosas. Divertidas. Tinham uma cor exuberante, apesar da luz quase inadequada do inverno.

Ficava ali mastigando pensamentos. Nada melhor do que olhar as laranjas do outro. Estas têm os que as nossas não têm. Isso, se as temos.

Se pudesse subir no último degrau da escada e escalar o muro, por certo aquelas seriam suas também.

Um dia, faria um bem para si próprio, retirando delicado, uma a uma, todas as laranjas do vizinho.

Por que somente ele tinha laranjas? Por que havia plantado, produzido, cuidado com carinho do que era seu? Por que era dono de um bom espaço. E daí? Ele também era seduzido pela terra, limpara o lixo dos fundos do quintal, examinara todas as plantas, que eram poucas, mas passíveis de crescimento, tal como as laranjas do vizinho.

Não havia nada atrás de seu muro. Apenas aquelas laranjas apetitosas, suculentas, das quais sentia um arrepio nos dentes, em pensar no simples ato de uma dentada em sua polpa. Via-a entre suas mãos: os gomos inchados de suco, os fios soltando-se, pequenos fiapos que se uniam aos gomos ou os atravessavam com cuidado. Via-as abrindo-lhes a casca, puxando uma parcela aqui, outra ali, até deixá-las totalmente brancas. E nuas ficavam, quando se lhes retirava levemente a casca para não ferir os gomos. Nuas em suas mãos frágeis a acalentar uma laranja roubada.

Por que a laranja do vizinho é tão apetitosa?

Por que não nos contentamos com as nossas, mirradas, casca com ferrugem, murchas? Por que sempre vemos no outro o que não encontramos em nós mesmos.

Tal como as laranjas, a nossa vida é cheia de frutos que podem ou não ser partilhados, que podem ou não resistir à poeira, aos maus tratos, às intempéries. Que podem ou não crescer exuberantes. Nem tudo depende de nós. Mas um pouco, sim.

Quem sabe deixamos de lado aquelas laranjas que nos parecem tão apetitosas e examinemos as nossas, com calma, carinho, cuidado. Talvez seja só do que precisem.

sábado, dezembro 30, 2017

Os textos mais acessados em dezembro de 2017

A bolha

O trauma de Alice

O gato cinza

Um natal ecumênico

Se o Natal te oferece

TRABALHO VOLUNTÁRIO NO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO : UMA PROVOCAÇÃO PARA A VIDA

METÁFORAS CRUÉIS : desqualificação das mulheres e negros

PIOLHOS DE RICO

Tio Pedro e a Mangacha

Um passeio no Gordini, com meu pai

Países que mais acessaram o blog em dezembro de 2017

1)Brasil

2)Estados Unidos

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9)Quênia

10)

Romênia

sábado, dezembro 23, 2017

Se o Natal te oferece

Se o Natal te oferece música, luzes e cores, aproveita. Usufrui da alegria e festeja.

Se o Natal te oferece abraços, risos e flores, aproveita. Corresponde à euforia e brilha.

Se o Natal te oferece fé, orações e lembranças do Aniversariante, aproveita. Ameniza os sentimentos, te doa, te alegra e reza.

Se o Natal te oferece passeios, encontros e festas, aproveita. Compartilha com os amigos e parentes as tuas memórias, os teus desejos, os teus caminhos para acertar nos trilhos e urgente, refaz o desfeito, acerta o erro e resgata a história.

Se o Natal te oferecer a mão, a comida, o amor, a bondade, aproveita. Retorna com mais amor, mais amizade, mais bondade e sustenta a mudança que talvez advenha desta passagem para o bem. Vive feliz e despreocupado. Te desembaraça de pensamentos confusos, de medos e cicatrizes. Te livra do mal.

Mas não esquece jamais, dos que ficam lá fora, longe das festas e dos fogos, longe dos amigos, dos parentes, dos vizinhos. Afastados da vida, mortos em seu caminhar obtuso, zumbis. Aqueles invisíveis que parecem passar por nós nas ruas do dia a dia. Lembra deles agora, porque é Natal. Lembra dos que juntam latas no lixo, dos que vivem no lixo, dos que chafurdam nas calçadas, deitados e papelões afugentando-se do frio e da sede, vivendo a morte em vida. Lembra dos que se sentem perdidos, em trajetórias aleatórias, pseudoescolhas sob domínio de drogas, arrebatados dos princípios mais íntimos que os impede de viver. Párias numa terra do nada.

Lembra dos exilados da própria pátria, pois são nada, talvez nem um número que os identifique entre os humanos. Os miseráveis que amplificam a cada dia a desumanidade das celas, provavelmente culpados, mas talvez elos nesta engrenagem suja e hipócrita em que vivemos, na qual a maioria dos que são presos e julgados são negros e pobres.

Lembra dos excluídos pela cor, pela orientação sexual, pela etnia, pela pobreza, por quaisquer preconceitos que desvalorizem o ser humano, dando-lhe uma dimensão aquém para rotulá-los e conformar o coração “bondoso" e afiado do brasileiro.

Lembra dos pacientes em leitos de hospital, dos que sofrem as mazelas dos governos que fingem protelar o orçamento em nome de uma administração financeira falsa ou mal intencionada.

Não reza pelos governos. Reza por ti por que te falta o 13º salário, reza por ti que não tens esperanças.

Não reza por quem bateu panelas numa manifestação seletiva, porque até a corrupção é seletiva, segundo o Juremir Machado da Silva (Correio do Povo). “Uma das mais contundentes expressões do irrealismo brasileiro é dizer que a população não bate panelas contra Michel Temer por estar cansada, desiludida, anestesiada. As panelas não batem porque a corrupção do governo Temer não incomoda tanto quanto incomodava a do PT. No Brasil, até a corrupção é seletiva. Tem corrupção e corrupção. O corrupto chega nas altas instâncias e diz: “Você sabe com que ladrão está falando? E sai voando. Com Temer a turma dos camarotes vai se ajeitar nas poltronas de grife e continuar assistindo ao triste espetáculo da miséria nacional. Que importa a esse pessoal sofisticado se negros patinam na pobreza? Temer é herói nacional para o mercado, que ansiava pela reforma trabalhista, mesmo se ela está produzindo demissões em cascata em alguns setores. Era esse mesmo o objetivo.”

Entretanto, reza e sonha, porque é Natal. Tem esperança e te veste de azul, amarelo, verde, vermelho, cores alegres que manifestem a tua alegria. Mas não te esquece jamais, que o Cristo que vive em nosso coração, para quem é religioso, ou a sensibilidade que está em tua alma, só pode ser apurada e tornar-se plena, se lembrares que lá fora há outros Cristos esquecidos. Revigora teus sentimentos. Alimenta tuas esperanças, mas lembra, hoje os mísseis da indiferença, da covardia, do racismo, do fascismo, da face perversa do poder, da intolerância religiosa arrastam seguidores como um rio bravo e por enquanto, não escolhem os culpados, porque em breve, todos o serão.

Finalizando, citamos o dramaturgo alemão Bertolt Brecht que diz: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.”

Feliz Natal!

quarta-feira, dezembro 13, 2017

O trauma de Alice

Fonte da ilustração: Fotografia de Wilson Rosa da Fonseca

Alice estava abalada. Não havia naquele momento nada que a mantivesse com os pés fixos na realidade. Seus pensamentos eram interrompidos por outros mais confusos e delirantes. Tinha vontade de correr, de sair do próprio corpo, de abandonar a vida. Mas não faria isso. Nem mesmo tomaria uma bebida forte ou qualquer outra droga que a estabilizasse. Não, faria o que sempre fez. Ficar quieta, parada, quem sabe, olhando o mar.

Entretanto, nem mesmo isso a consolava. Como ficar quieta se tudo havia perdido. Se a dor da separação, se o trauma da traição a instigava a tomar uma atitude contra si, como sempre fizera.

Desceu as escadas do velho apartamento, degrau por degrau, cabeça baixa, algumas lágrimas nos olhos, um sofrimento silencioso de quem não sabe o que fazer. As paredes do prédio pareciam mais velhas e descascadas. Ela observava a tinta avermelhada, por trás da verde brilhante num pedaço descamado. Quem pintaria de vermelho uma parede de um prédio? Alguns degraus estavam partidos, como se houvessem sido pisoteados anos a fio e agora surgia a superfície disforme e esfarelada. Como não percebera isso nestes anos todos em que morava no edifício?

Na rua, ainda voltou-se para a parede esquisita. Era de uma cor mortiça, tosca, quase sem qualquer matiz que indicasse uma pintura recente. Era feio o prédio onde morava, assim como era feia e terrível a sua vida.

Dirigiu-se até a garagem onde deixava o carro, o seu pequeno carro que sempre a servira em todos os momentos, em todos os eventos, mas hoje parecia tão fraco, quase inútil. Um motor velho, um design antiquado de fusca de cor caramelo. Tudo parecia desandar a sua volta. Tudo parecia incorreto, frágil e sem vida. Mas era o que tinha. Era dele que precisava para sair dali, para afastar-se nem sabia para onde. Talvez olhar o mar, como pensara.

O homem da garagem aproximou-se, indicando a saída melhor, afastando-a dos carros que se perfilavam a sua esquerda. Irritou-se. Por que ele sempre a orientava a sair da garagem? Ela, uma professora, será que não tinha condições de dirigir sem que alguém a aconselhasse? Por aqui, por ali, não, não, espere um pouco, dê uma ré, assim, pode sair. Que diabo, não precisava dele para nada e se batesse em algum carro, o problema era dela, não dele.

Pelo retrovisor, observou-o com cara de satisfeito, como se tivesse cumprido a missão. Idiota, pensou. Talvez nem saiba dirigir um carro.

Na rua, esqueceu o homem da garagem. Deu algumas voltas enquanto olhava para o vazio. Nada havia que a alertasse para uma presumível esperança. Nem melhorava o seu humor, muito menos, impedir-lhe as lágrimas.

Não muito longe dali, avistou a lagoa. O mar que se perdia no horizonte, as luzes do entardecer que pintavam de dourado as águas e o brilho das ilhas. Ficou ali, à beira do porto, observando os barcos, analisando o vai e vem das ondas. Por fim colocou uma música no toca-fitas. O carro de Alice ainda tinha toca-fitas.

Era uma música antiga, mas que significava muito. Love is all, de Malcolm Roberts, ela sabia quase de cor. Poderia ter escolhido uma música italiana, que sempre embalava seus momentos mais radiantes, mas Love is all era perfeita. Lembrava de quando o cantor a vencera no Festival da Canção e o quanto torcera por aquele britânico. Sempre o mantivera junto, em todos os eventos e sonhava com aquele amor inabalável. Na rua, não muito longe, avistou um quiosque onde vendiam cervejas. Fez um gesto para o rapaz que organizava algumas mesas para o público que viria mais tarde. Ele aproximou-se com uma cerveja.

Alice tomava devagar. Absorvia com calma o líquido e quanto mais ouvia a música, mais fixava o infinito, mais sonhava o amor sofrido. Lágrimas agora juntavam-se aos grânulos de gelo presos à garrafa. Tomou-a e pediu outra, do mesmo tamanho, com o mesmo conteúdo e a mesma dose de sofrimento. Já curtia aquele sofrimento, já sentia a melancolia de perder o amor, de se sentir traída, perdida entre as dores da alma. Repetia várias vezes "love is all" e entornava a bebida que agora escorria suave pela garganta, apaziguando a mente. Dizia a si mesma, embora em voz alta, que queria morrer, nada mais a prendia nesta vida. Somente a morte, a morte a libertaria de suas angústias. A morte seria o bálsamo para o fim de seu sofrimento. Nem se deu conta, porém que o carro não estava com o freio de mão puxado e assim, livre, foi aos poucos descendo uma pequena rampa e se ela não tomasse qualquer providência, viraria um barco a mais na lagoa. Mas Alice não percebeu e começou a cantar bem alto “Yesterday, I knew the games to play, I though I knew the way...Love is all, I have to give, Love is all, as long as I shall live..." Enquanto cantava, ela chorava e o carro deslizava nas águas e aos poucos se afastava para longe do cais.

O rapaz que arrumava as cadeiras no quiosque percebeu alguma coisa errada. Afinal, o carro havia caído na lagoa e daqui a pouco, afundaria. A mulher não havia visto? Morreria afogada? Olhou para os lados, mas àquela hora, poucos passavam no lugar, apenas alguns carros que se afastavam para os bairros num entardecer de sábado, por isso começou a chamar a mulher.

Alice embevecida com a cerveja e a música, não percebeu o quanto estava encrencada. Mas ouviu alguém chamá-la, devia ser ela, não havia quase ninguém no cais. Olhou para os lados e apavorada, reconheceu que estava perdida na lagoa, bem distante da margem. Nem Malcolm Roberts a salvaria, o carro já começava a entrar água e logo, logo afundaria. Que seria dela? Começou a gritar em desespero. Meu Deus, eu estava brincando, não quero morrer. Me tirem daqui, eu quero viver! Quero sair daqui, vou morrer afogada, dentro de um fusca, pelo amor de Deus, é trágico e fútil demais.

O rapaz atirou-se na água, nadou como pôde tentando aproximar-se do veículo, que percebia afundar a cada momento. Esforçou-se contra as ondas que pareciam mais avantajadas devido à mudança dos ventos que via de regra ficavam mais fortes ao anoitecer. De onde estava, ainda ouvia os gritos de Alice e sentia que as forças faltavam, mas não podia desistir. Parou alguns minutos para respirar, mergulhou e aproximou-se um pouco mais. Olhou a imagem que surgia como um ícone do desespero a sua frente, o veículo já quase submerso, a não ser as pequenas janelas do fusca que ainda refletiam algumas luzes do poente. O rapaz parou mais uma vez, outro mergulho, outra respiração forte e aproximou-se num salto no carro, conseguindo enfiar a mão pela janela e procurar pela mulher tentando resgatá-la. Segurou-a pelos cabelos e num instante sem qualquer cuidado, mas com a intenção de salvá-la, puxou-a pela janela, segurando em seguida, os ombros e a cabeça para retirá-la para fora. Ao deslocar o restante do corpo, tentou falar-lhe, mas Alice não conseguia articular nada. Ele tentou levá-la na direção do cais e numa poita, onde havia um pequeno barco, levantou-a com o maior esforço e colocou-a dentro da embarcação. Fez então tudo o que aprendera alguma vez num curso de primeiros socorros. Assoprou em sua boca e nesta respiração, Alice, tossindo e vomitando água voltou a si. Ele ainda perguntou o que havia acontecido.

Ela o olhou agradecida, mas ainda chocada, respondeu insegura: Eu devia ter ouvido Datemi un martello de Rita Pavone. Era a mais indicada para o momento.

terça-feira, dezembro 12, 2017

Um natal ecumênico

Nos dias que antecedem o Natal, percebemos que apesar da correria natural pela proximidade da data, ocorrem, por vezes, acontecimentos inesperados e muitas vezes inexplicáveis.

Numa data distante, num Natal que se vai no tempo, ficaram as lembranças como registros que vira e mexe, nos ocupam a mente.

Lembro de meus pais atarefados, cada um na sua atividade, além da demanda natalina. No jantar, eu e minha irmã conversávamos animados sobre os brinquedos, o tema que mais nos interessava. Ela já tinha escolhido o seu, uma boneca de louça, olhos azuis que abriam e fechavam e comentava isso com a maior eloquência, como se fosse o ápice da modernidade. Já havia, inclusive, escolhido o nome: Maximira Carlota. Eu a ficava ouvindo e me perguntando que nome era aquele. Mais tarde descobrira que era a protagonista de uma radionovela, uma personagem que chorava o tempo inteiro, vivendo a mocinha ingênua e sofredora. Eu sonhava com um caminhão com carroceria ou uma locomotiva. Meu pai falava do trabalho, da possibilidade de no final da semana, mais perto do Natal, ele poder ir à noite, para fazermos as últimas compras. Minha mãe, certamente aumentava a lista que costumava levar para não esquecer nenhum item.

O que ela não sabia, é que grandes surpresas estavam por vir. Tudo começava pela característica ímpar de nossa rua, que era considerada uma rua ecumênica, pelo elevado número de instituições religiosas em poucos metros quadrados.

Por outro lado, era uma rua arborizada sem qualquer preocupação paisagística ou compatível com a infraestrutura urbana, desde salsos-chorão que se derramavam na calçada, uma velha figueira se irmanava com os pássaros da vizinhança e que se distinguia na última esquina, até plátanos que desenhavam as calçadas nos meses de outono. Ah, havia também um pinheiro imenso plantado por um morador alguns anos atrás, que se esgueirava entre os fios de luz, procurando o sol e a energia que demandava seu crescimento.

Quanto ao aspecto religioso, o ecumenismo de nossa rua se sustentava a partir da convivência de pessoas com religiões diferentes, mas que se irmanavam especialmente naqueles dias vindouros ao Natal.

Meu pai era católico praticante, minha mãe, nem tanto. Entretanto, a missa do Galo era sagrada, embora sempre saísse da igreja criticando o sermão do padre que segundo ela, repetia o mesmo mantra, chamando à atenção das pessoas que somente compareciam à missa, no dia do Natal. Mas, em meio a esses desacordos, ela sempre ficava emocionada pelos cânticos, pelas mensagens, pelos abraços e pela alegria que inspirava a todos. Afinal, não era tempo de ter rancores, mas de perdão. A igreja ficava no final da rua, próxima à grande figueira e ao colégio ao lado.

Ao lado de nossa casa, havia um centro espírita, no qual a médium era uma mulher um tanto enigmática, para nós crianças e até curiosa pelo desconhecimento que tínhamos de seu ritual, apenas ouvíamos os pontos que se elevavam à noite, ainda que fosse uma pessoa agradável e muito amiga dos vizinhos. Tinha grande apreço por minha mãe, que embora não compartilhasse de sua crença, passava algum tempo conversando e talvez confidenciando seus sonhos e esperanças. vUm pouco mais adiante, no meio da quadra seguinte, ficava a Igreja Batista, cujo pastor implicava com o jogo de futebol que desfrutávamos em frente ao templo, do qual ele temia que algum crente desprevinido recebesse uma bolada. Entretanto, participava ativamente das reuiões do bairro e principalmente sobre a rua, compartilhando com os demais as medidas de melhorias reinvindicadas pelo pequeno grupo populacional.

Mas naquela época, próxima ao Natal, alguém teve a ideia de reunir o pessoal da rua e quem quisesse participar do bairro. Tratava-se de dona Jandira uma velha enfermeira, que morava sozinha e que segundo ela fora objeto de um sonho muito estranho e do qual, precisava compartilhar conosco. Elaborou pequenos convites e levou-os a todas as casas da rua, aproveitando o nome das pessoas que faziam parte da lista que mensalmente recebiam a imagem de Nossa Senhora de Fátima, em sua capelinha de madeira. Foi bem fácil, até porque, líder que era para organizar adultos e crianças, juntara um bom grupo para levar os convites e marcar a hora do evento.

De tardezinha, os vizinhos aproveitavam o tempo em suas cadeiras de praia, tomando chimarrão e jogando conversa fora, enquanto os meninos abaixavam-se entre uma jogada e outra de bola de gude, pintados pelas sombras dos plátanos, que lhes desenhava as camisas e os braços em movimento. As meninas andavam com os carrinhos de boneca e conversavam animadas entre um calçada e outra, como se passeassem num parque.

No dia marcado, Dona Jandira reuniu a maioria dos moradores. Alguns vinham direto do trabalho, outros se enfeitavam após o banho e as mulheres que eram somente donas de casa, já estavam prontas para o evento. Minha mãe se arrumara rapidamente após voltar da fábrica de tecelagem, preparara um chá, alguns biscoitos porque a reunião desta vez, seria em nossa casa.

Dona Jandira colocara as cartas na mesa. O tema era o Natal e estava na hora de fazermos, segundo ela, uma festa natalina que marcasse de forma brilhante a nossa rua e mais do que isso, a nossa convivência de vizinhos e amigos. Isto era na verdade o que o seu sonho a incumbira: organizar grupos religiosos tão diferentes. A discussão foi se desenvolvendo em vieses diversos, uns interessados em elaborar um presépio vivo, outros em fazer uma árvore gigante e organizar um coral, afinal tinhamos uma professora de música no bairro, outros que deveríamos recolher alimentos e brinquedos para as famílias carentes. Alguns não gostariam de participar em nada, porque não tinham tempo ou estariam viajando. Todos os temas foram levantados, estudados e muito discutidos.

Meus pais pareciam felizes com a discussão. Os amigos reunidos, as pessoas discutindo uma maneira de representar o nascimento de Jesus, o que poderia haver de mais religioso e digno do que aquele desejo?

Eu observava a cena com os olhares de criança, cheios de curiosidade e ao mesmo tempo tendo uma nova visão que se afiançava na minha educação religiosa. Aos poucos, o assunto debatido tomava uma eloquencia poderosa, quase etérea e um bem estar parecia tomar conta do grupo. Eu estava feliz e todos pareciam assim ungidos da alegria que entrara por alguma porta e se intalara entre nós.

Hoje, passado tantos anos, eu acredito que naquele momento ocorreu para o nosso bairro uma manifestação verdadeira do Natal. Não importa o que aconteceu depois, talvez tenha sido somente o complemento das atividades do dia de Natal. Mas o que ficara para sempre, é que o Natal estava em nossos corações, em nossos sonhos, em nossas discussões sobre Jesus, Maria e José e como os representaríamos em nossa humanidade tão frágil.

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