terça-feira, outubro 25, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 14

No capítulo anterior, tudo parecia desandar na vida de Sandoval. O seu plano era questionado por Linda, que sabia muito mais do que podia imaginar. Se ela estava disposta a levar o seu próprio plano adiante, ele teria de algum modo tomar uma atitude que a impedisse, mas que ao mesmo tempo, também pudesse livrar-se de Santa. De todo modo, sentia-se perdido, e naquele momento, não sabia o que fazer. A seguir o décimo quarto capítulo de nosso folhetim dramático, nesta terça-feira, 25/10/16.

Capítulo 14


Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/menina-relógio-pessoa-tempo-1563986/

Linda foi quem atendeu a porta. Ao ver Santa, Sandoval teve um estremecimento, temendo trair-se num gesto inesperado ou até mesmo ficando em silêncio.

Linda, ao contrário, parecia muito tranquila e segura. Aproximou-se de Santa, sorrindo e perguntando se havia assistido a missa.

— Não, Linda, você sabe que só fui rezar um pouco. Depois andei um pouco pelo bairro, precisava relaxar um pouco.

— Mas o motorista a acompanhou? Não é muito seguro andar sozinha por aí, dona Santa.

Santa a olhou intrigada. Não respondeu, apenas acrescentou que depois conversaria com ela.

Linda concordou, submissa. Em seguida, pediu licença e afastou-se.

Santa entrou e sentou-se numa das poltronas em torno da mesa, fitando Sandoval e esperando que ele dissesse alguma coisa. Sandoval sorriu e serviu-se de uma bebida.

— Você vai beber, Sandoval? Não acabou de ficar doente?

— É verdade, Santa, mas é que estou um pouco tenso, acho que um licorzinho fraco desses não vai me fazer mal.

— Você é quem sabe. Mas me diga, como foi a reunião? O que decidiram? Você contou a eles a minha condição? Ou melhor, o motivo de minha condição?

Sandoval senta-se no outro lado da mesa, toma um gole do licor fazendo uma careta. Disfarça, tentando ganhar tempo para imaginar o que deve dizer-lhe.

— Muito doce este licor, só as mulheres para gostar disso!

— E então, Sandoval? Vai me contar ou não?

— Calma, Santa, calma. Não faça tantas perguntas ao mesmo tempo.

Santa aproxima-se dele e senta ao seu lado. Sandoval por um momento, pensou que fosse agredi-lo, mas sabia que a mulher não seria capaz de cometer qualquer violência. E depois, havia vindo da igreja! Se bem, que as coisas também por lá não estavam tão tranquilas, só em pensar no tal do bispo Martim, lhe dava arrepios.

Santa, no entanto, parece que tinha alguma novidade para contar-lhe. Olhou-a de vesgueio e comentou:

— Você está diferente, Santa. Parece que está tramando alguma coisa.

— Eu? Tramando? Você é muito dissimulado, Sandoval. Quem fez esta reunião com a família, sozinho, não fui eu.

— Mas eu lhe expliquei as razões, você sabe. Eu não queria a sua presença, porque me sentiria muito mal, você sabe.

— Então, fale o que aconteceu na reunião. Vieram todos?

— Sim, vieram. O Alfredo estava muito nervoso, como sempre. Ele não conseguia entender porque você estava ausente. Mas quando eu revelei tudo, ele e os demais entenderam.

— Você revelou tudo?

— Sim, mas… bem, eu tinha de fazê-lo, não? Não era o que você queria?

— Era o melhor para a família.

— Sim, você tem toda razão, Santa.

— E qual foi a reação de nossos filhos?

Sandoval silencia por alguns minutos, mas em seguida, revela uma fisionomia de réu, suspirando. Santa parece não ter muita paciência com o marido e o instiga a detalhar a reunião.

— Você me parece muito nervosa, Santa. Não quer descansar primeiro? Olha, você mesma disse que veio caminhando da igreja, deve estar cansada.

— Não se preocupe comigo, Sandoval. O meu cansaço físico não é nada comparado com a curiosidade que tenho. Quero saber como Letícia, Tavinho e Alfredo reagiram. Eles não podem ter aceito tudo como uma coisa natural, você não acha?

— Não, claro que não. Mas por que você não pergunta a Letícia? Você sabe que ela é a mais explosiva dos três.

— Eu farei isso, mas custa você me contar agora? Ou você não tem nada a dizer, Sandoval?

Neste momento, batem à porta. Santa levanta-se irritada. Pergunta a Sandoval se ele chamou alguém. Ele acena a cabeça, indeciso. Na verdade, não sabe se deve concordar que esperava alguém. Talvez fosse Linda colocando o seu plano em prática.

Santa abre a porta e Linda aparece com uma xícara de chá.

— Desculpe, dona Santa, sei que não devia, mas vi que a senhora voltara muito preocupada da igreja.

— Linda, eu estou conversando com o meu marido. Desde quando você se intrometeu assim?

— Sei que a senhora tem toda razão, dona Santa, mas é que … desculpe, fui uma tonta, mas eu percebi que estava muito pálida, e fiquei remoendo na cozinha, preocupada.

— Está bem, Linda, deixe o chá aí. – Aponta para a mesa, mas Linda aproxima-se dela e lhe diz ao ouvido. – Preciso falar-lhe.

Santa então, muda a atitude, e mais amena, se dirige à Linda, como se já esperasse aquela reação.

— Você sempre tão atenciosa, Linda. – E voltando-se para Sandoval – Acho melhor tomar o chá lá na saleta. Vou deixá-lo Sandoval com seus pensamentos. Amanhã, você me conta o que aconteceu.

Sandoval sorri, satisfeito. Linda retira a bandeja da mesa e afasta-se em direção à porta, seguida por Santa.

Ao sairem, Sandoval dirige-se à janela que dá para o pátio e sente um arrepio. Aquelas sombras das árvores que se assemelham à silhuetas produzem em sua mente uma angústia, como se representassem a estrutura articulada do plano de Linda.

Aquela mulher era assustadora, tinha pensado em tudo com perfeição e estava manipulando Santa e a todos naquela casa. O que ele poderia fazer? Se conseguir o seu objetivo que é o de enlouquecer Santa, acabará destruindo o seu patrimônio e fazendo chantagem.

Quem poderia afirmar que ela não o incriminaria no golpe que está planejando?

Sandoval afasta-se da janela e pensa numa maneira de impedir Linda de cometer aquele crime contra a sua família, contra ele, principalmente.

E se contasse tudo à Santa? Ela acreditaria nele?

Decide por fim, sair da biblioteca e conversar com Santa, pelo menos, tentar convencê-la a esquecer aquela história. Despediriam Linda e tudo acabaria bem. Mas e a gravação do celular? Ele precisava de um tempo, pois teria de saber a quem ela enviara uma cópia. Provavelmente, o filho, mas não tinha certeza. Por isso, devia tornar-se amigo de Linda até convencê-la a dizer com quem estava a cópia. Depois, destruiria a prova e acertaria a situação com Santa. Não havia outra solução.

Ao aproximar-se da saleta, observa que as duas conversam, mas sabe que não deve interrompê-las. Até é melhor que Santa perceba o quanto está sendo manipulada, pois ele a alertará aos poucos.

Afasta-se, enquanto as duas agora parecem velhas amigas.

Linda o vê afastar-se e levanta-se para observar até onde vai. Depois volta até ao encontro de Santa. Sorri, dissimulada.

— Veja, como o seu marido está preocupado. Mas agora, podemos conversar tranquilas, ele já foi na direção do quarto.

— Então, você me diz que não aconteceu nada demais. Não estou entendendo, Linda. – Conclui, Santa intrigada. Linda a observa com um olhar afetuoso, e quase sorrindo, acrescenta:

— Eu também não podia acreditar no que estava ouvindo, mas fiquei muito feliz em saber que a sua família a ama. Que a reunião não passou de uma oportunidade de lhe fazerem uma surpesa, uma boa surpresa.

Santa porém, não concorda com aquela animação toda. Ao contrário, desconfiada, exige que ela esclareça com detalhes aquela história que não merece crédito algum. Linda, no entanto pretende convencê-la de que a família tem outros planos para ela.

— Não fique desconfiada, dona Santa. Tenha certeza de que todos estão apenas interessados em fazer-lhe um agrado. Eles não querem, pelo que entendi, que a senhora fique estressada com esta missão. Querem lhe dar de presente uma viagem maravilhosa.

Santa reage, indignada:

— Eu não preciso de viagens! Se quisesse, estaria longe daqui!

— Sem dúvida! A senhora e eu sabemos disso, mas deixe que eles a presenteem, eles querem lhe fazer este agrado.

Santa levanta-se da poltrona e caminha pela sala de leitura, achando que tudo não passa de uma grande encenação. Mas sente-se ainda mais perturbada pela conduta de Linda que demonstra uma tranquilidade que em vez de deixá-la confiante, a inquieta ainda mais.

— É só isso? E a gravação no celular? Por que você não me mostra?

— Eu sinto muito, dona Santa. A senhora sabe que não sou muito boa nestas modernidades, e , bem, me desculpe. Acabei não gravando nada.

Desta vez, Santa explode de raiva:

— Não gravou nada? Não é possível! Eu já tinha ajustado o aplicativo da gravação para que você não se perdesse! Como aconteceu isso?

Linda esforça-se para parecer arrependida, mostrando-se nervosa com a revelação:

Desculpe, dona Santa, eu não sei como aconteceu. Estava muito nervosa, e de repente, eu devo ter digitado alguma coisa, não sei.

— Você é uma idiota, Linda. Não fez nada do que combinamos! Eu lhe disse que você me devia essa!

— A senhora disse? Ah, sim, disse. Olhe, dona Santa, tome mais um pouco do chá, não quero que fique mais nervosa por minha causa.

— Eu não estou nervosa, Linda! Estou muito bem. Bem, nem sei se estou, acho que este chá está até me deixando zonza! – Ao dizer isso, volta a sentar-se, angustiada – Mas escute, quem sabe gravou alguma coisa e você não sabe reproduzir.

— Não, tenho certeza de que não gravei. Até abandonei o celular no bolso, desligado. Mas como lhe disse, não aconteceu nada.

— Está bem, não aconteceu nada, mas a revelação de Sandoval sobre o filho que tem com você. O que os meus filhos disseram?

Linda a fita com surpresa, como se a não reconhecesse. Agora, encaminha-se até uma estante e fica apoiada, demonstrando insegurança e medo:

— Não sei do que está falando, dona Santa.

— Não sabe? Você está louca, criatura?

Linda volta em seguida, aproximando-se da patroa, mudando a fisionomia e o cenário. Mostra-se afetuosa e preocupada.

— Acho que a senhora está muito nervosa. Está confundindo as coisas.

— Linda, não é hora para brincandeiras. Por que você está dizendo isso?

Faz-se um silêncio providencial. Afinal, Linda sabe que deve representar o seu papel de modo a deixar dicas aos poucos, como se precisasse do apoio técnico do outro personagem. Na verdade, um personagem que ela mesma criara. Suspira e fala quase em segredo, num tom mais baixo:

— Porque nunca houve nada entre nós, Deus me livre. O senhor Sandoval é um homem íntegro, honesto.

Santa grita, exasperada:

— Por favor, Linda, saia daqui.

— Dona Santa, pense bem. A senhora está confusa, talvez esteja confundindo uma outra história, talvez dessas que ouvimos todos os dias na TV.

— Você está dizendo que estou louca? Sim, só pode ser isso, para contrariar tudo que sabemos sobre o seu passado!

Não diga isso, dona Santa. Eu jamais pensaria uma coisa dessas, mas quero que reflita bem, nunca houve nada entre eu e o Sr. Sandoval, pelo amor de Deus!

— E seu filho? O que me diz sobre isso? Ele também é uma imaginação minha?

Linda a encara com frieza. Sabe que deve ser perspicaz e direta, quando necessário.

— Não sei do que está falando. Eu sou uma mulher solteira, tenho apenas um sobrinho. É a ele a quem a senhora se refere?

— Vá embora daqui, vá embora!

— Dona Santa, acalme-se, meu Deus, que está havendo?

Santa levanta-se da poltrona, dá alguns passos e tenta segurar-se na parede, perdendo as forças e caindo ao chão. Linda corre ao seu encontro. Percebe que a patroa está desmaiada, então dirige-se à mesinha e retira a bandeja com o chá. Afasta-se fechando a porta, com um sorriso.

segunda-feira, outubro 24, 2016

SOBRE O FILME "UM MESTRE EM MINHA VIDA"

Um mestre em minha vida é um filme de 2011, com 83 minutos de duração, baseado na peça teatral de Athol Fugard chamada “Master Harold and the boys”.

Tanto o filme quanto o livro receberam o mesmo título, no Brasil.

Vamos falar um pouquinho sobre o autor da peça, um renomado dramaturgo sul-africano, que vivenciou todos os horrores do apartheid e incluiu este tema em muitas de suas peças, inclusive nesta, acenando para a gama de sentimentos que revela o ser humano desnudo em suas percepções da vida.

Ao contrário do que se possa deduzir em situações conflitantes, extraordinárias e limites, o homem age de modo natural, capaz de amar e odiar, em que pese às circunstâncias desfavoráveis.

Através de um discurso inconformado e eivado de lutas de resistência ao apartheid, Athol Fugard tenta refletir as transformações das relações pessoais através do contexto político-social. Afinal, o homem é produto do seu meio e age em conformidade com seus sentimentos arraigados e obsessivos, internalizados desde a tenra idade. No entanto, através da emoção e do sentimento, ele pode romper esta conjuntura adversa.

Tanto na peça, quanto no filme, a história mostra as relações inter-raciais durante a época do apartheid, na África do Sul, neste caso, nos anos 50.

Os personagens principais são Hally (Freddie Highmore), um adolescente que cresceu na companhia afetuosa de Sam (Ving Rhames) e willie (Patrick Mofokeng), dois garçons negros que trabalham na Casa de Chá de sua mãe, na cidade de Port Elizabeth.

Os dois empregados da Casa de Chá experimentam a realidade hostil do sistema de segregação racial, em cuja estrutura a sociedade criara bancos de praça exclusivos para homens brancos, enquanto que as casas dos negros deveriam ser construídas em bairros distantes.

Entretanto, os dois personagens negros convivem com esta situação tirando o proveito através de suas tendências artísticas pela dança, capazes de cultivar uma abertura particular neste espaço marginalizado, onde podiam conviver em paz.

Esta relação sadia impressiona o adolescente, de tal forma que os momentos em que Sam e Hally estavam juntos foi de extrema satisfação e conhecimento interior.

O mundo é hostil, mas eles sabiam desanuviar as dificuldades, contribuindo para um relacionamento saudável e próspero.

Entretanto, embora Hally, o adolescente e Sam, o garçom, sejam muito amigos e confidentes, a educação discriminatória de Hally o conduz a retomar o preconceito arraigado, motivado por um acontecimento fútil, sendo capaz de ofender e subjugar o amigo da maneira mais cruel e desumana.

Deste modo, ocorre o conflito da peça e do filme, pois todo o afeto compartilhado é destruído em segundos, dando margem a uma série de confrontos, revelando ao público as nuances psicológicas dos personagens.

Se por um lado, o adolescente Hally está convencido de que é forte, autoritário e seguro, por outro se sente atordoado, amedrontado e cheio de remorsos pelos sentimentos obtusos que experimenta.

Sam ao contrário, é firme e parcimonioso em seus sentimentos, dotado de paciência e experiência que o lapidaram como um homem confiante e seguro, mas tanto quanto o amigo adolescente, sente-se abandonado e triste, com dificuldade em retomar a amizade fragilizada.

Os diálogos de Sam, Hally e Willie (que aos poucos mostra uma personalidade inesperada, no decorrer da trama) são bem construídos, passando ao espectador uma verdade, que o faz experimentar as mesmas dores.

Não se tira os olhos, nem o pensamento, nem o coração da tela. Tudo é tão perfeito e verdadeiro, que as palavras fluem tal como a chuva torrencial que cai lá fora, vista pelas vidraças embaçadas da Casa de Chá (aqui, uma metáfora, entre a realidade glamorosa dos brancos e o cotidiano “apagado” e sem encanto dos negros).

A atmosfera triste da chuva, por sua vez, destaca a amargura dos personagens.

Na verdade, o sofrimento de Hally se justifica pela intolerância racista do pai, que ao mesmo tempo em que expõe Sam e Willie a humilhações, através de piadas de mau gosto, também o envergonha por ser um homem desajustado e fraco, consumido pelo álcool.

Hally sente-se dividido entre a inabilidade em lidar com os sentimentos em relação ao pai, a concordância submissa da mãe e o encontro com o novo mundo, cheio de vida e alegria ao lado dos amigos que o viram crescer.

Novamente, ao final, a chuva mostra os dois mundos que se dividem, a chuva lá fora, fria e densa, atrapalhando o percurso de Hally na bicicleta.

Talvez esta corrida na chuva signifique além do sofrimento e do remorso de perder o amigo, um batismo para uma nova vida, lavado pela água que lhe encharca a roupa e empoça as ruas.

Na Casa de Chá, através das vidraças embaçadas, o ruído forte da chuva faz coro para a dança de Sam e Willie.

Serão dois mundos que se separam ou que se completam dali para a frente?

Uma estrada paralela que se afasta ou uma encruzilhada que os une?

É um filme emocionante, repleto de descobertas e perspectivas a serem refletidas.

MAESTRIA DE MATAR

Percorro este corredor repleto de livros e fico me perguntando se valeu à pena. É só por um momento, mas vez que outra me vem esta dúvida.

Não sei, agora nos meus 81 anos de idade, pensando no passado, faria tudo de novo, do mesmo modo impensado, ou talvez excessivamente planejado.

De qualquer maneira, sinto um vazio imenso, olhando para estas estantes cheias e sentindo o coração apertado, por não saber ao certo, se o que fiz dará frutos verdadeiros.

Guardar livros, raspar o tacho das pesquisas, me parece uma coisa divina e ao mesmo tempo perigosa.

Às vezes, podemos nos deparar com algum livro, que traga oculto em suas paginas um segredo terrível. Foi o que aconteceu comigo e que me levou a tantos devaneios.

Agora, cansado, percorro estes corredores escuros e sinto uma ponta de orgulho, não fossem os fatos acontecidos, o peso da culpa e o medo de ser descoberto no final da vida.

E se descobrirem que este amante dos livros, também amante da vida e das mulheres, foi um amante da morte.

Planejar com cuidado dias a fio, cada gesto, cada movimento mais leve, cada passo em falso das pessoas que elegi e aproximar-me devagarinho do seu final.

Não foi uma coisa fácil e ainda não é para mim. Mas sinto que tudo pode acontecer novamente, a qualquer momento.

Mesmo sozinho, viúvo, após tantos anos de convivência, vivendo quase à prestação, ainda temo estas coisas.

Só me restam poucos sons na casa. Poucas vozes que vem ao anoitecer, temerosos que eu morra a qualquer momento. Não sabem então que tenho uma saúde de ferro?

Hoje me foi apresentada uma senhora diferente: nada demais na figura. Era idosa, cabelos pintados de loiro, roupas discretas e felizmente de pouco falar.

Meu filho, que não via há anos, me veio com a novidade.

— Papai, esta é Dona Berenice. Vai ficar com o senhor à noite. Vai ajudá-lo a tomar os remédios ou mesmo preparar o seu banho ou caso precise de alguma coisa, um café na cozinha. É melhor que ela lhe ajude e assim o senhor não ficará sozinho.

Era só isso? Ela pensa que sou idiota. Ficará ali, sentada na sala, na melhor poltrona, lendo revistas fúteis, de fofoca, aguardando a minha morte. Quem sabe esta noite? Ou no próximo domingo? Sei que só se preocupam com isso.

Não fica bem, o filho, um empresário de renome, morando na capital, deixando o velho pai, viúvo e solitário nesta casa enorme, sozinho, aos 81 anos de idade. Não sabe ele que sou muito forte e sadio e quando a minha hora chegar, não é preciso de tutores, de alcoviteiras esperando o desfecho.

Mas tudo bem, ela que fique e ele vá embora, tratar de seus negócios.

Felizmente agora estou sozinho, durante o dia, me dão mais liberdade. Posso passear pelos meus livros, arrumar as estantes devagar, examinar cada capa nova ou antiga, reler os clássicos, a bíblia, os livros proibidos. Será que ainda existem livros proibidos para a minha idade?

Gosto de ficar por aqui, sentar-me nestas mesas de verniz escuro onde tantas pessoas exerceram a intimidade com os livros, pesquisaram em suas páginas, apropriaram-se de seus conhecimentos, seus encontros com a verdade.

Lembro de Laura e não faz tanto tempo assim. Ela chegou um dia, com olhar tímido, gestos hesitantes, fala macia e diminuta. Precisava fazer uma pesquisa para uma monografia, não lembro bem do que se tratava.

Deve fazer 10 anos, é verdade, foi na copa de 96 e os horários estavam meio truncados, por causa dos jogos.

Ela veio num horário destes, em que a biblioteca estava fechada. Bateu na porta, vigorosa, eu atendi, do jeito que estava vestido, pijama e chinelos de lã.

Aproximei-me da vidraça da janela e espiei por detrás da cortina. Pensei irritado, porque não ia para uma biblioteca pública ou da Universidade. A minha não passava de um arranjo de livros particular, que não se limitava a determinadas áreas do conhecimento, mas a qualquer coisa que aparecesse por lá.

Voltei as costas para a janela e regressei ao meu quarto, mas aquela batida intermitente me incomodava.

Retornei irritado, disposto a despachá-la de uma vez por todas. Mas não o fiz, ela parecia bem desesperada. Parece que queria mais do que livros. Queria falar comigo.

— Se o senhor puder abrir, atender-me nem que seja por um minuto, para orientar-me para outra visita, por favor, lhe suplico.

Dizia tudo de súbito, quase sem respirar. Percebi que era uma jovem bonita, de estatura média, cabelos negros e meio despenteados, talvez em virtude do vento que fazia um zunido sinistro no corredor que conduzia ao quintal da casa.

Explicou-me em seguida sobre o trabalho pesado que teria pela frente, na área de história, agora me recordo, mas que precisava, antes de mais nada falar comigo, pessoalmente.

Eu lhe expliquei do horário alterado, a cidade estava deserta, só as folhas farfalhando, fazendo barulho pelas calçadas.

Ninguém se atrevia a sair em dia de jogo do Brasil. Ela não se importava com o jogo. Eu também.

Entrou agradecida, pedi-lhe que sentasse na poltrona que ficava bem defronte onde eu acabara de sentar.

Fiquei quieto, observando-a. Vestia-se com discrição e na mão, um bolsa pequena, mas repleta de sabe Deus o que, que fazia barulho a qualquer movimento. Vez que outra, ela enfiava a mão, como se para certificar-se que tudo estava em ordem. Puxou os cabelos para trás, respirou fundo e começou.

Primeiramente desculpou-se por ter insistido e logo em seguida, deu o recado:

— Trata-se de sua mulher.

Estremeci. Minhas pernas e joelhos batiam descontrolados. Por que falava de minha mulher, que ela tinha a dizer sobre ela, que havia se suicidado há três anos? Quase a despachei dali mesmo, sem querer saber nada, mas me contive, calado.

Minhas mãos tremiam e minha cabeça parecia imitar o movimento, pois estremecia sem que eu pudesse controlá-la.

— Ela não se suicidou. Na verdade, foi arrebatada, compelida por uma leitura.

Quando ela afirmou isso, levantei-me com esforço da poltrona, mas o fiz irritado, pedindo uma explicação. Depois calei-me. Estava exausto, não tanto pela idade, mas pela intromissão em minha vida, assim, de forma tão repentina.

Ela começou a falar em solidão, em buscas desconhecidas, em fenômenos aleatórios, em destino.

Pedi, supliquei que parasse.

Era tarde demais. Tarde no adiantado da hora, tarde para saber.

Que me interessava agora, naquele momento, qualquer revelação; nada tinha sentido.

Nada adquiria sentido há muito tempo. Melhor era deixar para trás.

Olhei para a porta, esperando que ela saísse.

Fazia um silêncio danado na rua.

Os ponteiros do relógio se arrastavam, um passando pelo outro, esperando uma resposta. Uma resposta que não mais significava nada.

Ela saiu desiludida, atrapalhada numa chuva de pingos grossos que começava a cair.

Avistei-a correndo, saltando entre as poças, pisando nas calçadas de lajotas quebradas, que emparelhavam com a rua alagada.

Hoje sei que se a tivesse ouvido, não teria esta sensação de vazio, de abandono.

Tudo que ela relataria, descobrira mais tarde no diário de minha mulher. Mergulhada nas teorias suicidas de um velho livro de bruxarias, coisas espúria e sem qualquer nexo científico, mas extremamente arrebatador, a levara ao desfecho final.

A partir daí, fui me tornando cético, tendo de aprender as técnicas que levassem à morte, não por feitiçarias ou qualquer outra forma de magia, mas as diversas maneiras de matar que aprendera nos livros. Livros de todas as áreas, todos os temas, mas que exclusivamente tratavam do assunto que me encantava.

Por isso, hoje, sou mestre nesta arte.

E esta mulher, esta Dona Berenice que virá aqui, esperar a minha morte, contar os minutos para livrar-se do estorvo, arriscar-se nas suas leituras medíocres imaginando-me alienado e frágil, não perde por esperar.

Seguirei meus rituais, exercerei em sua estrutura vulgar, a maestria do conhecimento inexorável: o ato de matar.

Percorro este corredor repleto de livros e fico me perguntando se valeu à pena. É só por um momento, pois vez que outra me vem esta dúvida. De todo modo, fico numa euforia há muito não experimentada, embora não saiba ao certo , se o que farei dará frutos verdadeiros.

domingo, outubro 23, 2016

Meu pai, a jawa e o Irmão Cassiano

Meu pai largou a maleta de ferramentas sobre a mesa, falou rapidamente com minha mãe e convidou-me a sair. Como sabia de nosso destino, segui-o rapidamente. Parecia um pouco irritado, conhecia aquele vinco entre os olhos, como se analisasse detidamente algum documento.

Subi na velha Jawa, uma motocicleta dos anos 50, enquanto ele dava a partida no pedal. Seguimos rápidos pela rua Dr. Nascimento e chegamos à escola.

Já na portaria, encontramos o Seu Miguel, que nos cumprimentou e foi rapidamente chamar o Irmão Sagres, o orientador da turma. Quando chegou, após os cumprimentos, ele não parecia interessado no assunto de meu pai. Batia uma bola de vôlei, no chão, desatento. Meu pai insistiu no problema, afinal, ele viajaria com a família por duas semanas, era um assunto urgente e não haveria como eu permanecer na cidade.

Irmão Sagres acabou informando que não era problema dele, que devia falar com o Diretor.

Mas afinal, perguntara meu pai irritado, o senhor não é o regente da turma?

Nada parecia importunar a atitude do professor, ao contrário, a falta de educação se acentuava em despachar o meu pai, informando que tinha mais o que fazer.

Meu pai então dirigiu-se ao gabinete do diretor, me deixando ali, pelo pátio da escola.

O professor afastou-se, talvez aliviado por não precisar decidir qualquer coisa sobre a nossa viagem. Ou talvez, porque estivesse interessado em outras coisas mais agradáveis.

Enquanto meu pai resolvia os problemas com o diretor, comecei a passear pela escola, subindo rapidamente uma escada que dava nos compartimentos dos irmãos.

Seu Miguel, que tinha olhos para tudo, me impediu, obrigando-me a descer. Tentei explicar que tinha muita curiosidade pela biblioteca que ficava no mesmo corredor, bem ao lado do anfiteatro, mas ele fez ouvidos de mercador e me indicou a escada para que descesse.

Então, fiz a ronda pelas várias salas de aula, que a estas alturas estavam vazias, pelo adiantado da hora.

Como era inverno, já anoitecia e as luzes eram acesas.

Na penumbra, vi passar uma pessoa dentro de uma sala, com a atitude meio estranha de cerrar e abrir ao mesmo tempo, as cortinas.

Aproximei-me da porta e vi Irmão Cassiano, o nosso antigo professor de religião, andando pela sala e puxando com força as cortinas, quase desprendendo-as dos bandôs.

Intrigava-me aquela atividade de fechar as cortinas e ao mesmo tempo, abri-las com a mesma energia.

Aproximei-me, cumprimentei-o, mas ele nem percebeu a minha presença.

Continuava em seu trabalho com uma determinação incrível. Perguntei se não precisava de ajuda.

De súbito, ele parou e aproximou-se de mim. Senti um certo temor, como se ele fosse empregar a mesma força, empurrando-me porta afora, ou dando-me um safanão.

Mas ele não disse nada. Só sorriu.

Observei que seus óculos arredondados estavam tortos e seus olhos miúdos e azuis se ressaltavam quase por cima da armação. Os cabelos brancos, penteados para o lado, caiam-lhe na testa, desavisados.

Em seguida, ele afastou-se em direção à porta em passos miúdos e voltou-se para mim antes de sair. Então, perguntou:

— Fez os temas de hoje?

Eu pretendia responder-lhe que não tinha mais aula com ele, mas apenas assenti com a cabeça.

Foi aí que ele insistiu:

— Tem uns meninos que estão interessados em aulas sobre sexualidade, mas a grande maioria dos alunos está interessado nas nossas aulas de religião, como devem ser dadas. Por isso, para aqueles, darei explicações individuais, caso seja estritamente necessário. Você não é um daqueles, não?

Eu, como toda a turma do ano passado, era um daqueles sim. Também colocara como item principal no questionário, o tema sobre sexo. Mas respondi que não. Ele suspirou, aliviado:

— Ainda bem. Não falta tempo para estes meninos aprenderem estas coisas. A vida se encarregará de ensiná-los no momento certo, quando tiverem maturidade para isto.

Ele se afastou sem dizer mais nada. Fiquei ensimesmado, pensando que alguma coisa acontecera na mente do professor. Ele parecia desorientado.

Em seguida, ouvi os ruídos de cortinas sendo abertas e fechadas. Ele continuava na sua tarefa metódica de abrir e fechar o mundo. Tal como fizera com o questionário. Só, que lá, se preocupara apenas em fechar. E o conhecimento que desejávamos, cada vez ficava mais distante. Talvez já naquela época, a insanidade já se alastrava em sua mente, enquanto a sexualidade exacerbava em nossos físicos e espíritos. No entanto, nosso conhecimento se dava sem nenhuma informação científica, o que aprendíamos entre nós, era via de regra, de maneira distorcida.

Quando ouvi me chamarem, percebi que meu pai me procurava irritado. Queria saber onde eu andava, porque não me esperara lá embaixo, na portaria.

Pretendia explicar-lhe que estava só passeando pelo colégio e falar-lhe da esquisitice de Irmão Cassiano. Mas decidi ir direto ao assunto e perguntar-lhe como tinha sido a conversa com o diretor.

Ele me cortou rápido:

— Vamos pegar a Jawa e tocar em frente nossas coisas. Aqui já resolvi, tudo, apesar da burocracia!

Na saída, encontramos o Irmão Sagres, que perguntou, tentando ser gentil: conseguiram o que queriam? E meu pai foi direto:

— Sim, mas não com a sua ajuda!

sábado, outubro 22, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 13

No capítulo décimo segundo, a família acabou concordando com a proposta de Sandoval de considerar Santa como incapaz, para que ela não conseguisse mexer no patrimônio. No entanto, Sandoval jamais poderia imaginar que Linda gravara toda a conversa e que faria chantagem, a ponto de também impor as suas condições. É o que veremos no capítulo a seguir de nosso folhetim dramático. Boa leitura!

Capítulo 13

Linda olha em torno, como se aqueles móveis que há tanto tempo convivera, também fossem seus, de direito. Por fim, responde a pergunta de Sandoval com muita segurança.

— Quero que me considere da família, afinal temos um filho juntos. Faço questão que o assuma e repasse a parte da fortuna que lhe cabe de direito. E depois que dona Santa estiver fora do páreo, eu pretendo tomar conta da casa. Nada mais junsto, não acha? E depois, quem sabe um dia não casamos oficialmente?

— Você é mesmo uma desvairada! Eu jamais cometeria uma sandice destas! Fique sabendo de uma coisa, Linda eu posso chamar qualquer empregado e ele arranca este celular

de suas mãos e a mando embora desta casa para sempre.

— Se eu fosse o senhor, não faria isso. Em primeiro lugar, porque já enviei a mensagem gravada para outro celular e em segundo, se o senhor olhar pela janela, vai ver um belo rapaz caminhando pelo jardim. É meu filho, ou melhor, o nosso filho e ele sabe de tudo que está acontecendo aqui.

— Sua desgraçada, você quer acabar comigo. Quer destruir a nossa família. Mas fique sabendo que não conseguirá levar este plano maluco adiante, não pense que uma simples ameaça destas vai me convencer!

Linda fica calada. Dá alguns passos até a janela e olha por um instante para fora. Em seguida, volta-se para ele e pergunta em tom de ameaça:

— Então o que o senhor pretende fazer? Quer que eu conte à Dona Santa tudo o que está acontecendo? Quer que eu lhe diga o que a família está planejando contra ela?

— E como você foi parar aí, sua infeliz, eu não acredito que esta ideia tenha sido sua!

Linda ri, irônica.

— Para o senhor ver o grau de confiança que dona Santa tem no senhor, foi ela quem pediu para que eu me escondesse e lhe contasse tudo o que estava sendo decidido na reunião. Acho que ela foi mais esperta que o senhor.

— Eu não preciso das suas opiniões. O que aquela idiota estaria planejando? Só podia juntar-se com uma gente como você! E está traindo-a, veja, que bela amiga ela arranjou!

— Ela também arranjou um marido que a traiu e pior do que isso, está traindo-a pelas costas convencendo a família de que é uma louca. Nós somos iguais, Sandoval, nós lutamos pelas mesmas coisas, com as mesmas armas!

Sandoval, de repente, tem um acesso de tosse, que o deixa quase engasgado. Os olhos enchem-se de lágrimas e ele vai até a janela. Lá avista o rapaz que senta-se num dos bancos. Volta-se, muito vermelho. O coração aos pulos. Um ódio que o assola, mas que precisa controlar, para contornar o problema. Acha que deve fazer uma trégua, quem sabe, um pacto.

— Pois muito bem, digamos que eu aceite as condições insanas que você está me propondo, você acha que a minha família acreditaria que eu chegaria ao ponto de me sujeitar à chantagem de uma simples empregada?

— O senhor foi bem convincente com eles. Então use o seu grau de convencimento para que entendam que eu não estou brincanco. Agora, depende do senhor, não de mim. Eu proponho que dona Santa vá parar no hospital psiquiátrico. É a única maneira de resolvermos esta situação. O resto se acomoda, com o passar do tempo!

— Você hem, tao prestativa, tao religiosa, acompanhando a minha mulher na igreja, ajudando-a, você a odeia, isso sim! Você quer acabar com a vida dela, quer destruí-la!

— Sim, eu a odeio com todas as forças do meu coração. Ela me humilhou durante todos estes anos! Ela me transformou numa figura apagada, alienada da vida, somente esperando o momento certo da minha vingança! O senhor não sabe quanto eu esperei por esta oportunidade, por este momento!

— Ela era boa pra você, sua ingrata!

— Era conveniente apenas. Eu era a sombra que a acompanhava, eu era sempre a pessoa que estava ao seu lado, em todos os momentos, bastava um chamado para que eu corresse para o seu lado. Era a empregada disponível, 24 horas por dias, quase uma escrava. Na verdade, dona Santa nunca foi minha amiga, ela não suportava a ideia de eu ter um filho com o marido dela. E o que ela fez? Lidou com a situação com dignidade? Me correu de casa? Não, ela abafou a história, para manter as aparência da família aristocrática e extremamente religiosa. Ela me transformou na criada intima, para que o segredo ficasse só entre nós. Ela nunca pensou na vida que o meu filho levava longe de mim, nunca teve piedade pelas minhas noites de desespero quando ele estava doente e eu não podia encontrá-lo, enquanto os filhos dela estavan fortes e sadios ao seu lado! Eu odiava dona Santa, ah como a odeio! Ela me roubou o melhor de minha vida, a convivência com o meu filho.

— Você só quer vingança.

— Não, quero muito mais, quero a minha vida de volta, e somente o senhor pode conseguir isso.

— Mas você não acha que é um objetivo inglório? Acha que é possível enlouquecer uma pessoa? E depois, não acha desumano demais, Linda? Eu não acredito que vivendo tanto tempo ao lado de Santa, você tenha esta coragem! É muito cruel!

— Mas não é o que a família decidiu?

— Não, não é verdade. Nós apenas queremos que ela seja considerada incapaz para tomar decisões quanto ao patrimônio, decisões financeiras. Você quer enlouquecê-la realmente. Você quer inclusive que ela seja hospitalizada numa clínica.

— Mas não é o mais correto? Por que perder tempo, se a coisa pode andar mais depressa? Eu sou considerada sua amiga, ela jamais vai perceber, se eu ministrar medicamentos e o senhor sabe muito bem como consegui-los, além disso, podemos fazer com sofra ameaças, a ponto de não suportar mais!

— Você pensou em tudo, Linda. Você é muito cruel.

— Será melhor para todos. Pense bem – neste momento, Linda passeia pela biblioteca muito segura, como se tivesse as cordinhas nas mãos, para manipulá-lo – a sua filha esquecerá para sempre as sacanagens do marido, afinal, a situação da mãe é mais importante. Porá uma pedra no passado. O Tavinho vai continuar na dele, malandrão, como de hábito. O Alfredo vai viver a vida que sempre quis, já que contou que é viado, com certeza agora vai sair do armário de uma vez!

— Cale a boca, sua vagabunda!

— É melhor se acalmar, Sandoval, não vou mais chamá-lo de senhor, a partir de agora, só na frente da família. É melhor se acalmar, porque está nas minhas mãos.

Sandoval vai até a prateleira, arrasta um livro e retira uma garrafa de bebida. Serve-se no copo que está sobre a mesa e senta-se, desolado. Tenta acalmar-se.

— Meus filhos nunca admitirão essa situação, você sabe, Letícia é uma promotora, uma mulher das leis, inteligente, esperta, não engolirá essa loucura! Sem dúvida, eles entrarão na justiça contra você.

— Se o senhor oficializar a paternidade de meu filho, nada poderão fazer.

Sandoval cala-se aterrado. Nunca imaginara que pudesse ouvir tantas elucubrações de uma mente tão deturpada como a de Linda. Ela só pode ter enlouquecido, pensa.

Afinal, depois de tanto tempo, trazer essa história à baila, fazer chantagem e imaginar este plano mirabolante para livrar-se de Santa, chegava a ser imoral.

Alguém estaria por detrás de tudo isso, certamente Linda não planejara tudo sozinha. Ele precisava descobrir.

Tenta pensar numa saída, mas não vê nada ao seu alcance. Por fim, um pensamento lhe vem à mente, uma ideia que pode ser a sua salvação, a salvação da família.

Aproxima-se da janela e espia ao longe. O rapaz, agora, caminha pelo jardim, de braços cruzados.

Sandoval fecha lentamente a persiana e vai para atrás da escrivaninha, pensativo. Santa o observa intrigada.

Ele senta-se, abre a gaveta da escrivaninha e retira um talão de cheques.

— Linda, eu sei que você deseja muito mais do que isso, mas eu posso lhe adiantar alguma coisa para você me dar um tempo. Você sabe, eu não posso convencer a família de uma hora para outra, eu não posso fazer o que você me pede em relação a este rapaz. Pelo menos, por enquanto. – mostra-se que está convencido e que fará o que ela deseja – até mesmo essa possibilidade de enlouquecer Santa, não é de uma hora para outra, você sabe disso.

— E o que você propõe?

— Um tempo, seis meses por exemplo, para eu poder colocar tudo em dia. Precisarei esquecer a história da incapacidade dela por um tempo, também, terei que me conformar… bem, você sabe, vou ter que agir de outro jeito.

— Seis meses é muita coisa. Três meses, eu lhe dou três meses.

— E você acha que vamos conseguir … sabe, deixar Santa doente, como você quer?

— Como nós queremos. Como a família quer, não se esqueça.

— Não é bem assim, é diferente, mas … que seja. Você acha que teremos tempo?

— Deixe comigo, eu sei o que faço. Mas antes de tudo, já que me ofereceu dinheiro, quero o suficiente para comprar uma casa para o meu filho.

— Está bem, é justo, é justo.

— Um milhão. É o mínimo para comprar uma casa modesta.

— Você está louca? Acha que vou dispor de uma quantia assim de uma hora para outra?

— Sandoval, vamos ser bem honestos. O nosso pacto começa agora. É pegar ou largar. Se pegar, siga as minhas regras. Só isso.

Sandoval abaixa a cabeça sobre a escrivaninha, num suspiro. Neste momento, alguém bate à porta.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/smartphone-mão-telefone-mobile-1445490/acessado em 22/10/16.

quinta-feira, outubro 20, 2016

Pai na bicicleta: uma acrobacia de alegria

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bicicleta-sombra-desporto-hispânico-233379/


Houve tempo em que te vi sorrindo, orgulhoso, satisfeito, encontrando nos filhos a certeza inabalável da vida, do se fazer pai e amigo.

Houve tempo em que me puseste no colo e abriste a página do jornal, ensinando-me a ler. Ali conheci o valor das palavras, da leitura e mais ainda, o prazer de ser amado e protegido.

Houve tempo em que te vi assim, cabisbaixo, olhando pros lados, insatisfeito. Talvez refletisses o que fazer diante dos problemas: da chamada do professor em casa, da briga costurada com o colega, da ordem desobedecida ao cruzar a rua e ver a bola picando, campo à fora, meninos ruidosos, na luta aguerrida do futebol. Sei, que na verdade, me querias na escrivaninha, pequeno troféu, que criaste, mais perto dos estudos e bem distante dos chamados “guris de rua”, daquela época. Benditos guris, nada semelhantes aos de hoje.

Houve tempo em que te vi desconfiado com a política, com os homens do poder, com a autoridade e autoritarismo. Houve o tempo do silêncio.

Houve tempo em que te vi criança, deslizando matreiro nas calçadas vazias de um feriado deserto da semana-santa, bamboleando o corpo numa coreografia imaginada para me mostrar outra face: a da alegria.

Houve o tempo em que me mostraste o cinema de rua, filmes do Sesi azulando as paredes das casas, enchendo-nos de euforia e imaginação.

Houve tempo em que me levaste à igreja, em que me mostraste o sacrário, em que dobraste teus joelhos nas noites de adoração. Houve tempo em que não se ligava o rádio, quando a sexta-feira anunciava a morte de Cristo, mas neste tempo, também eu procurava no Cine Real os clássicos da paixão.

Houve tempo em que te vi torcendo, solitário, por um time que evitavas mostrar preferência, mas via nos teus olhos um matiz diferente quando o vermelho entrava em campo.

Houve tempo em que assumias o Natal e revelavas o prazer de viver em família e sorrir e presentear, participando do que era doce e afável.

Houve tempo em que te vi amigo, solidário e irmão, acolhendo pessoas em casa, pleiteando vagas a amigos no trabalho, cuidadoso e responsável, acalentando as feridas e dores de meus avós em sua jornada final, sensibilizado e sensibilizando.

Houve tempo em que te vi feliz e reconhecido, profissional disciplinado, sendo laureado como operário padrão. Aí, o salto de qualidade estava além do padronizado, do igual, porque expressava na alma a gratidão dos colegas, resultado do desempenho intenso e honesto no que fazias.

Houve tempo em que te vi mais velho, marido, pai, avô. Houve tempo em que o te vi chorar, ressaltando tua humanidade intrínseca, um pedaço de ti te faltava, produzindo uma mágoa silenciosa.

Houve tempo em que te vi brilhar na finitude da vida, convivendo na família em plena lucidez, sobrevivendo aos percalços naturais da idade e apontando uma centelha de luz, mesmo que não o demonstrasses concretamente, víamos em teu olhar assim, tão intenso, dizendo coisas que às vezes não expressavas, mas que tua alma plena identificava.

Sei pai, que vivesses com dignidade até o fim. Sei que não deixaste mágoas, porque não permitiste desunião, desacordo ou preferências.

Sei que soubesses tão bem amar em toda a tua existência, que assumiste a família como dom maior e absoluto em tua opção de vida.

Sei que deixaste o exemplo, pedra fundamental de tua personalidade generosa.

Só não te tenho aqui, agora, mas te carrego comigo em todos os momentos nas ladeiras em que deslizo, tal como tu, na bicicleta de meus sonhos, te vejo ali, na bagageira, indicando os caminhos e rindo do meu medo absurdo das acrobacias que fazias.

Um dia desprendo o pé da roda, pai e faço como tu, sigo em frente e levo apenas a alegria simples de viver.

Mas por certo, te sinto mais intensamente, toda vez que te imito no papel que desempenhaste tão bem: o de pai.

terça-feira, outubro 18, 2016

Por que escrevemos? Por que lemos?


Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/trabalho-workaholic-escritor-1627703/

Bem, é uma questão um tanto difícil, levando-se em conta as diferentes possibilidades, desejos e experiências de cada um. Escreve-se para viver, às vezes, respirar, transformar a poeira dos ossos em energia para alcançar os degraus onde o sol pisa.

Considero que os escritores de todas categorias, seja em que suporte expressem a sua arte, tem como fundamento interno uma procura constante da verdade, com suas buscas visando partidas ou encontros, ou seja, mostrar que outra realidade é possível.

Afinal, o que se deseja se não desmitificar a pretensa realidade? Uma realidade revelada a partir de milhares de padrões, tanto midiáticos, políticos, religiosos, científicos, empíricos ou sociais.

Uma realidade que se metamorfoseia dia a dia de acordo com as conveniências e as máscaras que lhe impõe a sociedade com interesses diversificados.

A literatura, portanto tem esta função social e política de resgatar a realidade, porque a arte é independente.

O escritor deve lutar por exercer a faculdade de enfrentar a realidade sem máscaras, retirando todo o entulho que a sociedade, como um todo, a recobre. A verdade está na mostra social, pura e cristalina, sem os adornos da pílula elitizada e batizada pelo poder.

A literatura é uma só. É este erguer-se e olhar o horizonte e ver além das fronteiras do senso comum, da vida padronizada, do olhar midiático, do politicamente correto.

O leitor descobrirá na verdadeira literatura, aquele engajamento com a verdade e não com o poder, seja em que patamar se estabeleça.

Ler é fundamental para abrir veredas, para multiplicar e sair da mesmice, mas fiquem atentos, leitores: estas serão bloqueadas se impedirem a retomada do pensamento, do discernimento humano e seu direito de escolha.

Quem lê, absorve, introjeta, interage e escolhe o seu próprio caminho.

Webrádio de qualidade, com a melhor programação

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A fotografia da vida de Santa - CAP. 12

No décimo primeiro capítulo Sandoval presidiu a reunião da família, na qual a matriarca Santa não estava presente, muito menos o convidado bispo Martim e Linda, a empregada que Santa fazia questão da presença. Neste encontro, Sandoval conseguiu finalmente convencer os filhos que a mulher estava muito doente, na verdade uma doença mental que a levava a ter visões como a da Virgem e por conseguinte as mensagens que elaborara com a intenção de mudar o comportamento de todos. Para não perder a forturna, a considerariam incapaz de administrar os bens ou decidir qualquer coisa ligada a testamentos. Não sabiam porém, que Linda gravara toda a conversa em seu celular, escondida atrás de uma cortina. A seguir o desenrolar do nosso folhetim dramático, nesta terça-feira, 18/10/16. Todas as terças e sábados, são publicados os capítulos da história “A fotografia da vida de Santa”. Boa diversão.

Capítulo 12

Todos conversam em tom acalorado, após terem tomado a difícil decisão.

Em seguida, porém, a energia adquirida foi se dissipando e seus gestos fragmentados revelavam que seus corações estavam instáveis e confusos.

Aos poucos os filhos e o genro se despediram de Sandoval, deixando-o sozinho na biblioteca.

Sandoval não levantou-se da poltrona, imaginando-os afastarem-se jardim à fora, na ânsia de pegarem os seus carros e correrem para as suas vidas particulares, provavelmente esquecidos rapidamente de tudo que acontecera ali. Afinal, o que importava eram as finanças, os seus bons empregos e o patrimônio que não podiam perder.

Suspirou fundo e sorriu animado. Agora não tinha mais porque se preocupar.

De repente, ouve um barulho e volta-se assustado. Não há ninguém, a não ser ele, na biblioteca. Será que algum dos filhos teria esquecido alguma coisa? Ou Santa havia voltado da igreja?

Levantou-se e passeou pela biblioteca, dando uma olhada para os jardins.

Quando voltou para o lado oposto da janela, surpreendeu-se com a visão de Linda que surgia por entre as cortinas, encarando-o com extrema segurança.

Não disse nada, apenas o observa, enquanto guardava um objeto na bolsa.

— O que significa isso, Linda? O que está fazendo aqui? – Fez uma pausa e concluiu, desolado – Meu Deus, você estava atrás das cortinas! Estava aqui o tempo inteiro!

— Estava sim, Seu Sandoval.

— Mas por quê? Quem lhe mandou ficar ai, sua desgraçada?!

— Talvez eu tenha mais motivos do que o senhor pensa para ficar aqui.

— Ora não seja ridícula, sua empregada de quinta categoria! Vocês está me desrespeitando, isso sim!

— É o que o senhor pensa, né? Eu fui desrespeitada toda a minha vida e agora o senhor se sente assim, que bom!

— O que você quer vivente? Me aborrecer ainda mais!?

— Eu também tenho meus planos, inclusive uma proposta a lhe fazer.

— Quem é você para me fazer propostas, sua infeliz? Saia imediatamente daqui. Hoje mesmo, você será despedida! Vou conversar com Santa e mandá-la para o olho da rua!

— Isso é o que o senhor pensa. Eu não vou sair daqui, até que o senhor ouça o que eu tenho para dizer. E não vou sair desta casa, não.

— É? E por que tem tanta certeza, sua idiota?

— Porque o senhor vai ter que escolher: Ou ouve a minha proposta, ou dona Santa saberá tudo que está acontecendo nesta casa!

Sandoval dá uma risada irônica:

— E você vai lhe contar? Ora, não seja idiota, Santa jamais acreditaria numa criada como você. Saiba que Santa é carola, boazinha para os miseráveis, mas é uma mulher aristocrata, uma mulher que sabe que está numa classe superior! Pensa que é muito esperta, sua imbecil!

— Talvez não seja tão esperta a ponto de contar a todos que nós temos um filho, um filho meu e seu, esqueceu, seu Sandoval?

— Não me chame assim, me respeite, e vá, vá embora daqui. Não quero ouvir a sua voz, não tenho nada a falar com você.

— Mas eu tenho, como lhe disse, tenho uma proposta e acho bom o senhor me ouvir!

— Está me ameaçando?

— Estou sim, porque tenho comigo a gravação de tudo que se passou nesta biblioteca. E vou correndo mostrá-la a dona Santa, ao menos que o senhor ouça o que eu tenho a lhe propor.

— Eu não acredito, eu não acredito que isto está acontecendo na minha casa!

Ele aproxima-se um pouco, e Linda o avisa a parar, porque a gravação do celular já foi enviada para outro número. Neste caso, mesmo que ele a apague, ela já tem uma cópia.
Sandoval fica desesperado.

— Você está louca, Linda. Completamente louca! Pensa que vai ter alguma vantagem em me fazer chantagens? Você não sabe que está num nível inferior, numa classe baixa, muito distante da de nossa família? Você não é nada e mesmo que tenha alguma prova contra mim, nenhum juiz a aceitará. Pense bem.

Linda, no entanto, não parece ouvi-lo. Está muito calma e ciente de seus objetivos.

— Muitas coisas estão acontecendo, que o senhor não sabe. Esta noite um cara entrou no jardim, pulou a área e entrou na copa, deixando propositadamente um cartão com a mensagem de Dona Santa. Ela já anda bem apavorada. Quem sabe a loucura se concretiza?

— O quer dizer com isso?

— O senhor não disse que ela está ficando louca? Pois bem, os seus argumentos são bastante fracos. Mas hoje, ela se mostrou bem assustada. Eu até poderia dizer que havia um traço de loucura na sua fisionomia.

Faz-se um silêncio. Sandoval pensa por um minuto. Encara Linda com raiva, mas entende que ela sabe de alguma coisa sobre Linda.

— Quem era este cara? O que ele queria? Você sabe?

— Calma, seu Sandoval, talvez não soubesse de nada. Talvez fosse apenas uma armação para assustar a pobre coitada.

— Então quer dizer… Linda, você planejou isso?

— Digamos que eu planejei. Agora o senhor já sabe do que sou capaz. Quer ouvir a minha proposta?

Sandoval está transtornado. Seu olhar é de fúria e de espanto. Nunca imaginaria que Linda fosse capaz de elaborar uma história tão maquiavélica.

Ela, no entanto, parece segura, ao ponto de enfrentá-lo, no aguardo paciente de quem conhece os seus limites. Olha-o impassível, com o trunfo nas mãos.

Sandoval a ouve com a argúcia, não convencido ainda de suas artimanhas.

Ele que poderá reverter a situação, afinal, Linda não é nenhuma expert em alinhavar planos mirabolantes. Aí está o seu ponto fraco, não tem dúvidas.

— Você contratou um homem para assaltar a casa, jogar a mensagem de Linda que era dirigida ao bispo Martim e fugir, para deixá-la apavorada, como se a pessoa pretendesse se vingar.

— Mais ou menos isso.

— Em quem era esse homem?

— Meu sobrinho, o senhor conhece, ele já trabalhou aqui, como jardineiro. Conhece a casa como a palma da mão.

— Gentalha! – Respira fundo, com raiva, mas continua – Me diga, quer dizer que este homem que você contratou, este seu sobrinho, como você disse, tinha a incumbência de enlouquecer Santa, de deixá-la transtornada, para que eu aceite tudo o que você planejou.

— Exatamente e quando ela estiver fora do páreo, eu serei a dona desta casa.

Sandoval dá uma gargalhada forçada, com a intenção de menosprezá-la, ao mesmo tempo para deixar claro que é uma hipótese impossível. Linda prossegue, animada:

— É a minha chace de ser a dona desta casa. O senhor nem precisa viver aqui, comigo, basta que me deixe reinar sozinha e absoluta.

— Com que você aprendeu este palavreado? Com a própria mulher que você quer enlouquecer, tirar do seu caminho?

— Dona Santa me ensinou muito, é verdade, mas nunca me apoiou quando soube que estava grávida, obrigou-me a levar o meu filho para bem longe de mim, preocupou-se apenas com o bom nome da família, com as aparências do seu casamento. Sabe, seu Sandoval, eu acho que chegou a minha vez.

—  E você acha que vai ser assim tão fácil? Que vou deixar que tome conta do meu patrimônio, que se torne a dona da casa? Era só o que faltava, meu Deus! Eu querendo livrar-me da loucura de Santa e vem essa vadia querer a mesma coisa! Ora vá se enxergar, Linda!

— Acho que é o mínimo que pode fazer pelo tempo todo em que me dediquei a esta casa.

— Mas você não entendeu, sua louca? Santa está viva! Você quer matá-la também?

— Vocês querem enlouquecê-la, eu só queria ajudar. Basta que façam o que combinaram, afinal, o que a família combinou, não apenas o que uma simples empregada deseja. Todos estavam de acordo em acabar com o reinado da mamãe!

— Não fale desse jeito sua megera!Você é muito dissimulada, mesmo!

— Eu? Dissimulada? É que o senhor não olhou para si próprio, não observou bem os seus queridos filhos, mas se quiser, eu tenho tudo gravado e posso lhe refrescar a memória. Eu, de minha parte, só estou querendo o meu quinhão! Quero o que de fato me pertence!

— E o que você realmente quer, sua demente?

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/casa-construção-in%C3%ADcio-arquitetura-540796/FrankWinkler

domingo, outubro 16, 2016

A experiência humana no filme “De porta a porta” (Door to door)

O filme “De porta em porta” (Door to door), de 2002 do diretor Steven Schachter ( Sem suspeita, Atraídos pela fama, Lady Killer entre outros) mostra a história simples e humana de Bill Porter (William H. Maci), portador de paralisia cerebral, que pretende tornar-se um vendedor.

As dificuldades de Bill são gritantes e proibitivas, pelo menos aparentemente em tornar-se um eficiente vendedor de porta em porta.

Entretanto, com o desenrolar da trama, ele consegue tornar-se um dos maiores vendedores de sua época, mas apesar de sua facilidade em comunicar-se, a vida é muitas vezes injusta e para ele, o passar do tempo pode piorar as coisas.

Bill, no entanto, sabe sobrepujar as suas dificuldades e tornar-se um vencedor.

O filme desenvolve uma narrativa densa, estruturada de forma a delinear situações que vão mostrando ao espectador a metamorfose que ocorre na comunidade, paralelamente à transformação que também ocorre no protagonista.

Aos poucos, ele interage com a comunidade através de suas vendas, mas mais do que isso, através de seu carisma, alinhavado num carinho cheio de humanidade. Aliado a isso, suas atitudes não demonstram qualquer censura ou preconceito à conduta dos que o rodeavam, embora houvesse sofrido preconceitos nem sempre dissimulados, em muitas oportunidades.

Mas a história anda, evoluindo com o passar do tempo, numa analogia ao progresso interior dos personagens e das mudanças tecnológicas que surgiam.

É neste momento, que Bill quase se deixa esmorecer, ao perceber que a sua comunicação precisa não mais bastava, em virtude das novas demandas da sociedade.

A partir dessa condição de sofrimento, ele recebeu em contrapartida o reconhecimento de sua amiga, uma assistente no trabalho de vendas, ajudando-o a reconstruir a sua vida.

Ele relutou exaustivamente em reconhecer que havia outras saídas, que também precisava da ajuda, do carinho e do conforto que sempre soubera transmitir.

Esta caminhada em busca do próprio desalento o levou a descobrir o verdadeiro significado de sua vida e luta pessoal, pois através dela soube dialogar com a comunidade e modificar atitudes arraigadas, pensamentos preconceituosos e vencer a intransigência.

Foi aí o seu ganho pessoal.

Trata-se de um filme denso, com belíssimas imagens de época, uma luminosidade marcante e uma trama comovente.

O filme nos instiga a pensar no outro como um processo desafiante a partir da aceitação de suas deficiências e perceber que as imperfeições da alma podem ser bem mais destruidoras do que as físicas.

Um desafio a compreender e participar da experiência humana, seja de que forma for.

sábado, outubro 15, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 11

Hoje é sábado, por isso, publicamos a seguir o décimo primeiro capítulo de nosso folhetim dramático. Sempre publicamos um capítulo na terça-feira e o outro no sábado. Bem, vamos fazer uma síntese do capítulo anterior. No décimo capítulo, Santa fizera um balanço sobre os desdobramentos da reunião familiar, na qual impora algumas condições à família, ao bispo Martim e à Linda. Estava preocupada e um pouco confusa. Não sabia se o que estava fazendo era o correto para a situação. Entretanto, Sandoval decidira fazer uma reunião sem a sua presença, nem a de Linda, o que lhe produzia um sentimento de desconfiança. Por isso, pedira à Linda que se escondesse na biblioteca e ficasse a par dos acontecimentos. Quando a reunião começara, ela tinha ido à igreja. Sandoval, como um trunfo para derrotar as condições de Santa, dissera à família que ela estava louca.

Portanto, a seguir o nosso décimo primeiro capítulo, com a pergunta de Letícia. Divirtam-se, amigos!

Capítulo 11

— Como louca? O senhor é que enlouqueceu, por que está dizendo esta bobagem?

— Voces acham que ela viu a tal Nossa Senhora? Vocês acham que a bússola apontava para aquela comunidade, ora pelo amor de Deus, só por aí, dá para perceber que ela não está no seu juízo normal!

— Eu estou com o sogro, sempre achei muita maluquice por parte de dona Santa esta coisa de visão, de missão, de querer mudar a gente.

— Cale a boca, Ricardo. – Letícia volta-se indignada para o pai – Escute aqui, papai, mamae pode estar estressada, talvez até a visão seja coisa da cabeça dela, afinal, ela é tão religiosa, tão carola, mas chegar ao ponto de acusá-la de demência, é demais!

— Eu sei minha filha, talvez eu esteja exagerando, talvez você tenha razao, mas veja bem ao caos que este capricho está levando a família. Não podemos ficar presos às atitudes insanas de sua mãe. Vocês se lembram qual era a verdadeira missão dela, inicialmente? Deveria juntar-se a uma comunidade de anarquistas, na ilha, depois às comunidades carentes que vivem nas redondezas, por fim, decidiu impor condições à família, exigindo mudanças no nosso comportamento. Ela não tem um rumo certo, não sabe onde chegar.

— E onde o senhor quer chegar papai? – pergunta Alfredo, desconfiado.

— Por favor, Alfredo, não me olhe com esta censura, sei que você ama a sua mãe...

—Todos a amamos, papai. – conclui Letícia, aborrecida.

— Sem dúvida, sem dúvida. Eu também a mãe de vocês, ela é uma mulher maravilhosa. Só está um pouco perturbada e nós temos a obrigação de ajudá-la. Entretanto, meus filhos, por mais que isso pareça duro e desumano, eu não posso deixar de pensar nos bens de nossa família, na indústria que mantém o patrimônio vivo. Do jeito que está, ela vai nos levar à falência.

— Como assim? Explique-se melhor, papai. – Letícia indagava ansiosa, ao mesmo tempo que voltava-se para Tavinho, que parecia muito à vontade com a situação. Por que ele não dizia nada, pensava.

Sandoval prosseguiu com uma voz entrecortada e triste. Às vezes, mostrava-se mais seguro, embora fizesse questão de informar de algum modo que aquela situação o magoava muito.

— O que eu preciso afirmar a vocês e quero que entendam a minha situação, é que sua mãe não pode dividir a herança, não pode dispor da parte dela para doar para esta comunidade. E ela é bem capaz disso, está convicta, diz que a Virgem exigiu. Imagine, se ela comete uma loucura destas, nós todos estaremos perdidos! Porque, pensem bem, eu tenho certeza de que nós jamais faremos o que ela deseja, por mais que tentemos, é impossível. O ser humano não muda, nós já temos os nossos hábitos arraigados, a nossa vida particular e não somos nenhuns monstros. – olhava em torno e perguntava, pedindo socorro. – Concordam comigo? Podemos até melhorar as nossas condutas, mas fazer a mudança que ela quer, é impossível. Já pensaram nisso, meus filhos?

Tavinho então decidiu intervir, sendo acompanhado pelo olhar de Letícia.

— De minha parte, papai, eu já nem pensava nessa bobagem. Eu jamais trabalharia na fábrica como ela quer e nunca vou deixar o meu curso ou mudar de profissão.

— Pois muito bem, Tavinho corrobora com o que eu digo. A gente não consegue, pessoal, por mais que nos esforcemos. Vamos melhorar sim, pelo bem da família, por sua mãe, mas jamais mudar completamente e ela, se vocês se lembram, foi bastante clara: ou nós mudamos ou ela entrega toda a forturna e vocês sabem que ela é bem capaz disso.

— E o que o meu sogro sugere?

— Eu vou ser muito franco, meus filhos, com o coração doído, mas muito racional e lúcido. A minha proposta é que consideremos oficialmente a sua mãe como uma mulher incapaz.

— Como assim? Ela é uma mulher lúcida, em pleno gozo de seus direitos e deveres, uma mulher que sabe o que quer, uma deusa da sociedade, da elite.

— Eu sei leiticia, eu sei. E já acrescentei que é com o coração doído que proponho isso, mas é a única solução. Precisamos provar que sua mãe está incapaz de decider qualquer coisa em relação ao patrimônio de nossa família, que está mentalmente perturbada, para evitar este desastre!

Ao ouvir a declaração de Sandoval, Alfredo intervém, indignado:

— Eu não acredito no que estou ouvindo, o senhor quer que a gente assine embaixo que nossa mae louca! O senhor é um canalha, papai!

— E você o que é Alfredo? O que você fez para ajudar a família, a não ser se esconder nesta carapaça estranha de efeminado?

— O senhor sempre quis dizer isso, não é verdade? O senhor sempre me odiou!

Ricardo percebendo que a discussão envereda por um tema que pode mudar o objetivo de Sandoval, com o qual concorda, interfere tentar conciliar os ânimos.

— Calma, pessoal, olhe, Alfredo, se a gente pensar friamente, com racionalidade, percebemos que seu pai tem razão. Você acha que não é duro para ele também nos falar sobre isso? Eu vi o sofrimento na fisionomia dele.
Sandoval o olhou, um pouco surpreso. Em seguida, voltou-se para Alfredo que gritava com raiva:

— Não é nada disso, será que vocês não enxergam? Ele quer é se livrar dela!

— Não diga isso, Alfredo. Eu amo a sua mãe, apenas não suporto a ideia de ficar na miséria. É crime isso? É crime tentar proteger o nosso patrimônio, a nossa vida em família? – E falando mais pausadamente – Vocês tem uma vida econômica boa, não há dúvidas, entretanto, todos sabemos que ainda precisam de nossos bens. E depois, tudo isso é de vocês! Se ela dividir o patrimônio, caberá uma parte menor a cada um. Então, qual é o problema, não vamos fazê-la sofrer, ela não precisa saber de nada no início, eu tenho um bom advogado, o doutor Orestes e ele acertará todos os trâmites para que a coisa saia a mais tranquila possível, sem atropelos, sem que apareça na imprensa, tudo na surdina.

— Parece que o senhor já encaminhou tudo, papai. – conclui Alfredo, desolado.

— Eu preciso do apoio de vocês. Ela não vai sofrer e aos poucos, cairá na realidade. Isso de visão da Virgem vai passar, vocês verão. Além disso, podemos fazer uma viagem pela Europa, passar um tempo juntos, até baixar a poeira. Tenho certeza, de que sua mae voltará renovada, uma outra mulher.

— Não sei não, mas que seria um alívio, seria. O que você acha, Tavinho?

— Partindo de você, Letícia, a mais revoltada de todos, dá o que pensar. Se não vai fazer mal à mamãe, por que não pensar no assunto?

Ricardo os observa e conclui a ideia, satisfeito:

— E tudo voltaria ao normal, a paz reinaria no seio familiar. Seu pai teve uma grande ideia, Letícia.Não acha?

— Agora, eu entendi tudo, entendi a ausência de mamãe, você preparou tudo, papai. Você foi cruel, desumano. Não papai, muito pior, você a traiu! Aliás, é moda no Brasil este tipo de traição, não é?

— Alfredo, eu precisei fazer isso. A sua mãe está em outro mundo, ela só pensa naquela gente infeliz, naquela comunidade de gente suja e medonha, que só vem perturbar a nossa família. Está na hora, meu filho, na hora de reagirmos. Infelizmente, é a sua mãe que está na roda, mas foi ela que criou esta história absurda, ela nos enredou nesta trama terrível. Por causa dela, vamos prejudicar toda a família. Ela pensa que uniria a família, mas ao contrário, essas condições destruirão odos de uma só vez, caso consiga o seu objetivo. Isso desagregará a família e vai acabar nos separando. Eu não quero isso!

Letícia, parecendo concordar com a proposta de Sandoval, tenta convencer Alfredo. Tavinho absorto, apenas observa o grupo, sem muito interesse.

— Vamos, Alfredo, procure tirar a mamãe desta história toda. O que papai propõe não é contra ela, é a favor da família, entende?

— É impossivel, Leticia, mamãe é o pivô de tudo que está acontecendo. E é com ela que a bomba arrebenta.

— Eu sei, eu sei, meu irmão. Mas lembre-se que não vai acontecer nada de mal a ela, como você pensa, apenas ela ficará alheia às decisões. Tenho certeza de que ela nos agradecerá no futuro.

— Você se convenceu depressa, convenhamos.

— É a vida, meu irmão. Mamãe se meteu onde não devia. Ela arriscou demais. Nós agora, queremos que tudo permaneça como antes, com ela ao nosso lado, mas sem interferir no nosso destino. Pensa bem o que sua irmã experiente está lhe dizendo, você continuará a sua vida, sem prestar contas a ninguém, não é maravilhoso? É a liberdade que ela nos tirou!

Tavinho aproxima-se um pouco dos demais e intercede:

— E depois, isso não ia dar em nada, Alfredo. Mamãe não tem experiência em lidar com pobre, assim, diretamente, como ela queria. Ela ia quebrar a cara.

— Você também, Tavinho, você está a favor desta crueldade?

— Não, eu lavo as minhas maos. Mas de todo modo, que tudo aconteça sem a minha presença, só para assinar alguma coisa, se necessário. Não quero me envolver nestas coisas de papeladas, de burocracia. Quero viver a minha vida, meu irmão.

— Então cunhado, já tomou uma decisão? – Dirigindo-se a Alfredo.

— Eu não sei o que fazer. Adianta eu me recusar?

— Meu filho, segundo o dr. Orestes, todos devem assinar os testemunhos. Está tudo pronto, basta que assinem concordando.

— Quando ela descobrir, ela vai nos odiar! – exclama Lavínia.

— Sua mae nunca os odiará, ao contrário, ela vai entender e certamente se ligará ainda mais à religião. Isso será uma benção, pois teremos a Santa que sempre conhecemos e o senso comum se restabelecerá. Esteja certo, meu filho, eu que convivo com a sua mãe, vinte e quatro horas por dia, tenho certeza de que esta é a saída para a saúde mental dela. Ela está a cada dia mais alucinada e este estresse alto vai levá-la a uma doença mais grave, vocês tenham certeza. Tudo o que fizermos responderá na saúde mental de sua mae. É a única maneira de salvarmos de uma depressão galopante ou de algo pior.

— Está bem. Eu concordo, mas com uma condição, que façam a papelada sem que ela sofra, de modo algum. Eu não quero minha mãe achando que está louca realmente e que nós a abandonamos. – conclui Alfredo, melancólico.

— Ao contrário, meu filho, ao contrário, estaremos cada vez mais perto, mostrando-lhe a realidade. – E emocionado. – Meus filhos, só eu sei o quanto tenho sofrido e escondido de vocês esta realidade, mas Santa às vezes, nem me reconhece. Outras vezes, fica completamente calada, e eu fico muito tempo esperando que melhore. Houve tempo em que eu lhe lia alguns livros para que se sentisse melhor, afinal ela sempre foi uma boa leitora. Mas graças a Deus, ela tem melhorado, até que começou a falar nesta visão escabrosa.

Letícia aproxima-se, emocionada e abraça o pai. Chama em seguida os irmãos e pede que façam o mesmo, afinal, trata-se do bem-estar da família e da saúde mental da mãe. Só agora ela percebera o quanto o pai estava sofrendo. Portanto, é hora de se unirem e fechar o pacto.

Alfredo arrasta-se da poltrona, desanimado, mas mesmo assim, completa o abraço unindo-se aos demais.

Sandoval enxuga algumas lágrimas, afastando-se do grupo, mas é interceptado pelo genro que o abraça efusivamente.

Atrás da cortina, Linda desliga o gravador do celular.

Fonte da ilustração:https://pixabay.com/pt/análise-pagar-empresários-reunião-626881/Geralt

quarta-feira, outubro 12, 2016

A margem oposta

Fonte da ilustração: fotografia do facebook do escritor e poeta Wilson da Rosa Fonseca

Passei a viver assim taciturno, caminhando sozinho pelas vielas escuras como um vampiro à cata de sangue. Bobagem, a única coisa que talvez nos unisse é a terrível solidão. Tão sozinho como este casaco estirado na poltrona, esperando que sacudisse o pó e o levasse comigo.

Este frio que me atazanava, que me doía as carnes, que me comprimia os ossos e me deixava zonzo. Melhor seria não sair de casa, não enfrentar o vento que fustiga o rosto, que me arde os olhos, que resseca a boca, resfria a alma.

Melhor ficar em casa tomando caldo verde ou chocolate quente.

Melhor esconder-me entre as cobertas macias e ocultar-me do mundo.

Mas precisava ultrapassar as barreiras de meus medos e dar vazão à solidão que me assolava e me deixava assim, desconsolado.

Se ao menos pudesse cometer delito, qualquer delito, mesmo insosso e insano, sem consequência. Qualquer coisa maluca, que não falta grave, mas que me levasse a expiar minha culpa.

Pudera viver como um pária, à margem de tudo, alienado de meus pares, afastado de minha vida mais intima. Por certo, teria motivos para prosseguir.

Caminhada infértil, estéril, vazia.

Quem sabe viveria um momento, um só que fosse, capaz de me transformar em um ser útil.

Desci correndo as escadas e me deparei com a lufada de vento da esquina. Uma esquina sem luz, que se esconde, fronteiriça do mar.

Quisera observar de perto as luzes que oscilam nas ondas negras, brilhando vez que outra, motivadas pelo vento.

Quisera atravessar até a outra margem, afundar meus pés na lama entre os bambus mergulhados. Perscrutar quieto, coração atento, o pousar das corujas, observar seu olhar sagaz nas sombras da noite.

Adentrar mato, inalar o cheiro da terra, esconder-me do vento nas touceiras, conviver com espectros solitários.

Mas ao contrário, o que fiz foi afastar-me da visão noturna da margem oposta, imiscuir-me na cidade, alicerçada em luzes e figuras baratas.

Mulheres que passeavam pelo cais, acenavam, obscenas. Soturnas e sozinhas. Tanto quanto eu e o vampiro de minha fantasia.

De repente, as luzes pareciam mais intensas, movimentos giratórios e alucinantes. Sons que emergiam, línguas de fogo ágeis desfilavam por bares cheios, pessoas que corriam, ruas apinhadas e trânsito parado.

Fechei a gabardine até o pescoço e trouxe a touca aos olhos. Nariz congelado. Óculos embaçados.

Minhas pernas finas, joelhos batendo dentro das calças, ensaiei passos pela calçada lateral.

Um cheiro de gordura do bar de luz amarela e fraca, me dava náusea.

Apoei-me no muro de pedras e sentia as costas doerem. Queria perguntar o ocorrido, acidente, crime, assalto.

Tudo me vinha à mente, mas pouco se transmutava em meus lábios.

Raramente falava, ficava assim, alienado e mudo. Temia ser mal interpretado. Temia respostas. Compartilhamento. Parcerias. Talvez temesse viver.

Olhei em torno, a gordura se misturava com a fumaça do cigarro do homem que passava resmungando coisas sem nexo, iluminado no néon do bar.

Uma mulher se aproximou e por um momento, pensei que se dirigia a mim. Meu coração saltou, desavisado. Mas ela como os outros, entrou no bar ou voltou de onde estava. Nada mais lhe interessava lá fora.

O frio fazia-me bater dentes. Talvez pela ansiedade.

Uma turba voltou aos gritos, conversas aceleradas, corações abalados. Entraram no bar e aos poucos me levaram consigo, como se fosse aquele casaco pendurado na poltrona, que precisava de uso.

Entrei distraído, olhando para o nada.

Mas vi uns balões pendurados no teto e recordei as noites de São João, fogueiras ao relento, chimarrão fumegando, quentão queimando a garganta e nossos olhares congelados na visão dourada do balão que subia. O céu abrilhantado de estrelas, quase cartão postal. Nem percebíamos o frio que enregelava os mais velhos.

Depois, olhei para o chão e vi a lajota rugosa, em preto e branco e me vi pulando amarelinha, espiando no ladrilho brilhante meus olhos curiosos.

Aos poucos, deixei de pensar. Fui empurrado pelo grupo até o balcão.

Um copo de cachaça bateu no tampo de granito danificado.

Uma mão firme no copo, uma mão macia no ombro. O homem me ofereceu, limpando os bigodes, passando a língua pelos lábios, como que purificado pelo álcool. Do outro lado, a mulher da mão macia, me encarava lasciva, revelando na boca vermelha e no olhar, a ponta de alegria que personificava a máscara.

Olhei para um, para outro e aceitei o drinque.

Ela perguntou, voz fina e esganiçada:

— Tá procurando diversão?

Diversão? Foi o que eu procurei em toda a minha vida.

A cachaça escorreu pela garganta e um calor agradável assaltou meu peito. Estufei de alegria. Por um segundo. Logo, a encarei, sério, após largar o copo.

Tentei afastar-me, foi só um gesto.

Ela segurou meu braço, decidida.

— Muito frio lá fora, moço. Aqui dentro está gostoso, não acha? – Apoiou o pé da bota de cano na divisória do banco. O vestido com um rasgo na frente revelou uma coxa branca e macia. Pegou minha mão e fez com que acariciasse sua perna.

Uma música brega envolvia o ambiente, agora numa sonoridade absurda, deixando-me zonzo.

O homem dos bigodes prosseguia ao meu lado, também conversando com outro grupo, inserindo comentários sobre o evento que parecia ter transtornado a todos.

As mulheres já haviam esquecido, mergulhadas em que estavam em suas atividades rotineiras. Umas atendiam no balcão, nas mesas, outras cantavam os clientes.

De súbito, o homem voltou-se pra mim o que me obrigou a fitá-lo, tenso. A voz soou como trovoada longínqua, mas forte, anunciando tempestade.

— Você não é o Gomes?

Balbuciei qualquer coisa, desconfiado.

Ele nem me ouviu. Prosseguiu, inquieto:

— Não é o Gomes, o detetive? Disseram que tu tinha morrido, rapaz. – E antes que eu refutasse a informação, gritou – Pessoal, o Gomes está aqui. Disseram que tinha virado comida de turbarão, mas é mentira.

— Não, não sou o Gomes.

A música mudou para um funk entrecortado. Vozes se misturavam, batidas isoladas. Marinheiros se mexiam nos cantos, ruminando as toadas, conduzindo os corpos em movimentos dublando cantores.

O homem se afastou para um grupo maior, seguido pelo que estava próximo ao balcão. Num círculo, gritou em tom alto:

— Pessoal, hoje a gente paga pro Gomes. Quem diria que o cara está vivo, não é?

Voltei-me para a mulher, afirmando-lhe que não era o Gomes, mas ela parecia apenas acompanhar o movimento dos meus lábios, sem traduzi-los. Repetia, satisfeita:

— Que bom Gomes, que bom que você está aqui. Lembra daquela furada que você me salvou? Jamais vou esquecer, cara.

Tentei argumentar, afastar-me, mas minhas pernas bambolearam.

O banco estremeceu, quase desandando no chão. A mulher o segurou rapidamente. Em seguida, abraçou-me, enquanto dezenas de frequentadores se aproximavam, puxando conversa, narrando casos, aventuras, noitadas, nas quais eu era sempre o protagonista. Não eu, ele, o Gomes.

A bebida rolava no balcão. Até um cigarro de maconha me ofereceram.

—Sei que tu é da lei e não destas coisas, homem. Mas não quer experimentar? Hoje é dia de festa!

Então gritei com raiva, não, não, não queria nada. Eu não era o Gomes. Minha voz, antes indecisa, imprecisa, vibrou uniforme e grave.

Um silêncio sepulcral se fez no ambiente. Até o funk parou.

Entretanto, o homem de bigodes interrompeu e gritou, destemperado. Suava aos borbotões. Eu e ele.

— Pessoal, bota um pagode, que o Gomes quer pregar mais uma das suas peças na gente. Ele é o Gomes! – E um deles gritou, acompanhado nas risadas de muitos: — Gomes, agora tu vai dançar o pagode, cara. E a Marielsa vai te acompanhar. É o seu carma, não tem jeito.

Então, ingeri o restante do copo. E mais enchiam, mais tomava.

O grupo fez um círculo em torno de mim e da mulher, que estava ao meu lado. Devia ser a tal Marielsa, porque ria sem cessar. Reparei que tinha uma falha de dente e o olho esquerdo piscava a cada segundo, fechando de um jeito estranho.

Fiquei paralisado no meio da roda.

O disco tocou, numa voz alucinada, parecendo transbordar de sentimento, num mundo homogêneo de alegria e cumplicidade.

Marielsa aprumava o corpo, seguia o embalo da melodia e se enroscava como uma serpente, tão rápida, que me cegava. A bunda rebolava, sacudindo como gelatina no prato. Minha mão trêmula segurava a gelatina, afastando-se devagar para a cintura fina, mas ela a conduzia para baixo, derreando a mão, seguindo o contorcionismo do corpo.

Fiz alguns gestos, meus pés se espalhavam no chão, desajeitados, filhos pródigos de um pai atencioso.

Minha alma extrapolava o corpo e regurgitava os efeitos do álcool.

Meu cérebro detonava a canção. Ouvia Tom Jobim, Agostinho Santos, “a noite é só nossa, no mundo não há mais ninguém”, Elis Regina, Maysa, meu Deus, “meu mundo caiu”.

Eu estava na bossa nova e eles no pagode, e em seguida, no bonde do tigrão, na Tati Quebra Barraco, boladona, boladona, tapinha nada, me chama de cachorra.

E a acrobacia cada vez mais criativa, nos trejeitos, nos gestos, nos tapinhas na bunda.

E o povo gritava, vai Gomes, vai Gomes, vaaaiiiii.

Então, investi-me no personagem: eu era o Gomes.

O Gomes alegre, folgazão, esperto, ágil, machão e machista. O Gomes do pedaço.

Comecei a abraçar Marielsa, a beijá-la, sentir o seu corpo colado ao meu, até entontecer no bolero da Ângela Maria, “a luz do cabaré já se apagou em mim, o tango na vitrola, também chegou ao fim”.

Comecei a fumar junto à bebida, uma mistura estranha, que me amaciava a alma.

Os amigos do peito se achegavam, contavam casos, se ofereciam a amparar-me em qualquer situação, até insistiam para contar como me livrei do afogamento.

Então, me aventurei pela imaginação, criei desde Melville a Júlio Verne e todos me ouviam quase com fervor literário.

Silêncio absoluto. Só minha voz metálica tilintava no ambiente.

O círculo se fechava a minha volta. Eu, cada vez mais solto e seguro.

De repente, ouviu-se o ruído do vai-e-vem da porta e um homem alto e magro, com uma cicatriz próxima à boca surgiu, como nos filmes de faroeste, apossando-se do saloon. Ensaiou dois ou três passos em minha direção.

Eu parei, ousado. Até sorri.

Ele colocou uma mão na cintura, indicando uma arma.

Todos se afastaram um pouco. Marielsa correu para o balcão, seguida pelo homem do bigode. Percebi que enchiam os copos e observavam apreensivos.

Eu segurei-me impávido.

O homem vestia-se todo em couro: calças, jaqueta, botas. Perguntou, retumbante, bem mais forte do que a de trovão do outro. Raio riscando o céu, faiscando os bambus no charco, enchendo de chamas o mar escuro:

— Você é o Gomes?

Confirmei, firme, quase arrogante:

— Sim, sou o Gomes.

Puxou a arma disparou dois tiros. Um pegou bem no ombro esquerdo. Ainda o vi se afastando e confirmando a sentença:

— Paguei a minha dívida.

As pernas fraquejaram.

Marielsa correu ao meu encontro. Segurou-me nos braços, como a Virgem. Os outros como pinguins em bando, me acercaram.

Pensei que cruzava a margem oposta do cais, mergulhando os pés na lama junto aos bambus, espiando as corujas examinarem o mundo e logo baterem asas, produzindo um som abafado acordando a noite.

Adentrar mato, inalar o cheiro da terra, esconder-me do vento nas touceiras, conviver com espectros solitários. Saberiam por certo, que não era o Gomes.

terça-feira, outubro 11, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 10

No nono capítulo, Sandoval decidiu fazer a revelação numa reunião em que não estivessem presentes Santa e Linda, por isso Santa pediu à empregada, que se escondesse na biblioteca e ouvisse tudo, quando ocorresse a reunião da família. Naquela mesma noite, Santa foi surpreendida por uma pessoa estranha no jardim, que fugira em seguida. Linda encontrara um cartão jogado pela janela e Santa percebera que se tratava da mensagem que dera ao bispo Martim. A seguir, o décimo capítulo de nosso folhetim dramático.

Capítulo 10

Santa aproximou-se da janela, pensativa. Seu olhar perdia-se ao longe. De repente, ficava na dúvida se o seu plano em relação à família era uma atitude correta. Afinal, o que sonhara e que imaginara ser o correto para atender à Virgem e transformar a sua vida, poderia não surtir o efeito desejado.

De repente, poria tudo a perder e a paz que imaginava se transformasse num caos. Na verdade, depois das mensagens e da reunião, as coisas pareciam desandar e a paz imaginada estava se transformando num martírio. Cada dia, uma situação nova a deixava mais preocupada e por mais que se esforçasse em acreditar que haveria uma mudança positiva, sua intuição a condenava a um pensamento cada vez mais pessimista.

A noite passada havia sido terrível, o homem que entrara em seu jardim, o cartão jogado pela janela, o anúncio taciturno que rondava sua vida.

Além disso, aconteceria a tal reunião organizada por Sandoval, que parecia muito estimulado e até otimista, o que a deixava ainda mais assustada. Afinal, seu marido tinha muito a esconder e certamente, o seu passado não entraria na pauta, de modo algum.

Santa sabia que somente Linda estava ao seu lado, neste capítulo embaraçoso de sua missão.

Quando a empregada lhe trouxe o chá, perguntou-lhe sobre a presença dos filhos.

— Daqui a pouco, chegarão, dona Santa. Não se preocupe.

— Sabe, Linda, não sei se quero estar em casa, quando eles chegarem. Ficarão me fazendo perguntas e me questionando o porquê de minha ausência. Acho que devo me afastar.

— Acho que a senhora tem razão, dona Santa. Se eu fosse a senhora, iria até a igreja.

Santa tem um arrepio. Veio-lhe à mente, a imagem do cartão com a mensagem deixada ao bispo. Por que o jogaram pela sua janela e daquela maneira estúpida?

— Em que está pensando, dona Santa ?

—Você me conhece, Linda, não precisamos nem falar nada, não é mesmo?

Linda concorda, satisfeita:

— Sei, sim. Eu percebo quando a senhora está em dúvida, quando está sofrendo. Mas acho, dona Santa, que deve ficar tranquila. Afinal, na igreja, ninguém vai lhe fazer mal.

O argumento produz um arrepio em Santa, cuja confiança já havia perdido. Deixa a xícara sobre a mesa e se aproxima da criada, tentando falar-lhe em tom mais baixo, para que ninguém as ouça.

— Você tem razão, Linda, você sempre tem razão. Mas preciso saber se você está segura para fazer o que prometeu.

— Estou com um pouco de medo, mas não vou fugir, não se preocupe.

— Me preocupo, sim, quero que tudo dê certo, que você consiga o seu objetivo. Esta é a nossa salvação.

Linda tenta tranquilizar a patroa. Em seguida, afasta-se para chamar o motorista que a conduzirá até a igreja. Ainda da janela, a vê afastar-se e acena, resignada. Depois, dá alguns passos decidida, com sorriso um tanto arrogante. Talvez se Santa observasse agora, não conseguisse interpretar o o objeto de sua satisfação.

****

Alfredo, como da reunião anterior, foi o primeiro a entrar na biblioteca. Desta vez, limitou-se a sentar-se, exausto. Vinham-lhe à mente as horas que passara no trânsito, que estava tumultuado em virtude das chuvas, tornando os engarrafamentos insuportáveis. Além disso, não estava preparado para aquela reunião, principalmente sem a presença da mãe e por mais que Sandoval se esforçasse para esclarecê-la, ele não conseguia admitir aquela situação.

O pai mostrava-se ansioso e com uma intimidade que o incomodava. Fazia-lhe perguntas sobre o seu trabalho, oferecia-lhe bebidas, como se fosse uma visita de prestígio e o elogiava a todo momento. A impressão que tinha é que ele pretendia conquistá-lo de alguma maneira, não sabia muito bem o porquê.

Deixou-se ficar numa das poltronas, cabisbaixo. Nem Letícia o acordaria do entorpecimento dos sentidos em que se encontrava. Ainda martelavam em seus ouvidos os resquícios das revelações daquele malfadado encontro, no qual dissera coisas tão íntimas que hoje já não achava que fossem tão importantes, nem necessárias para os demais da tribo familiar.

Na verdade, estava arrependido: tudo o que dissera fora no calor da discussão, no emaranhado de ideias que jorravam com a presença altiva da mãe e do seu interesse em unir a família em torno de sentimentos que já não existiam entre eles. Mas agora, tudo parecia demasiado.

Quando Letícia e Ricardo entraram na biblioteca, ele apenas levantou os olhos, num cumprimento distraído. Ela, entretanto, não permitiu aquela desatenção.

— Que está acontecendo, Alfredo? Você está doente? Por que não me cumprimentou decentemente, afinal, não nos vemos desde àquela fatídica reunião com mamãe.

— Desculpe, Letícia, não leve a mal. Estou com uma enxaqueca terrível, hoje. Mas se sintam cumprimentados, os dois, você e seu marido.

Ricardo estava mais preocupado com o teor da reunião. Foi logo perguntando:

— Você está sabendo do que se trata, Alfredo?

— Nada, sei tanto quanto vocês.

— Esta história de mamãe não participar, está me deixando zonza. Qual é o motivo de tanta asneira?

Alfredo não responde. Letícia então se volta para o pai, que entra e sai na biblioteca, olhando as horas, perguntando por Tavinho.

— Papai, mais importante do que a presença de Tavinho, é a ausência de mamãe nesta reunião absurda. Eu quero saber porque ela não está aqui esta noite.

— Por favor, minha filha, não se exaspere antes da hora. Eu e sua mãe concordamos que não era o momento dela estar aqui. Mas, muito mais do que a ausência dela é a proposta que farei a vocês, isto é que deve nos unir, que deve ser refletido com carinho para a verdadeira união da família.

— Do que se trata?

— Olhe, Tavinho vem chegando – exclama Sandoval, satisfeito – graças a Deus! Agora, poderemos levar em frente o meu projeto!

Tavinho entra e abraça o pai. Aos olhos de todos, parece muito mais afetuoso do que na última vez que o encotraram.

Ricardo olha para Letícia, intrigado. Afinal, ele conhece muito bem o humor ácido do cunhado, para vê-lo tão paciente. Aproxima-se e estende-lhe a mão.

Sandoval vai até a porta e a fecha com cuidado, antes observando o imenso corredor para ter certeza de que o mesmo se enconta vazio. Silêncio absoluto. Encosta-se na porta, sorri.

Atrás das cortinas, próxima à velha estante de madeira, que liga-se ao teto, Linda impede um suspiro cortado. Suas pernas tremem e sua boca está seca. Sente que a sua hora chegou.

Sandoval fecha a porta e aproxima-se da poltrona atrás da escrivaninha. Pede a todos que se acomodem. Está ansioso, mas uma energia nova parece injetar-lhe grande dose de ânimo. Seus olhos brilham, perscrutando a todos, numa expectativa que não é só sua.

Todos fazem silêncio, inclusive Letícia que pretende saber onde a mãe se encontra. Espera, entretanto, que o pai defina o motivo da reunião.

Sandoval inicia com um pequeno discurso, como se fosse um politico experiente no palanque, pronto a convencer seus eleitores.

— Bem, meus filhos, meu genro… – E emocionado – Família, acho que todos estão muito curiosos, afinal, a última reunião foi cheia de surpresas, e diga-se de passagem, até com algumas situações inusitadas, mas não se preocupem. A intenção é resgatar aquilo que se quebrou, naquela reunião fatídica organizada por Santa.

— Papai, não estou entendendo nada. Quero antes de tudo saber onde está mamãe.

— Letícia, ela foi à igreja, pelo que me consta, muito adequado, por sinal.

— Ah, é? Foi à igreja, simples assim? Mamãe jamais declinaria de liderar uma reunião, muito menos depois de tudo que aconteceu.

— Mas foi bem assim. Minha filha, tudo está bem, sua mãe e eu concordamos que ela não deveria participar, ela por um motivo bobo e eu... bem, porque quero abrir os olhos de vocês, quero estabilizar a nossa família.

— E os demais, por que não vieram? O bispo Martin estava muito engraçado naquela reunião. Seria divertidíssimo se ele estivesse aqui.

— Tavinho, não faça bricandeiras, por favor. O assunto é sério.

— Ele tem razão, sogro. Mas mais engraçado do que o bispo era a presença de Linda. Ela estava patética.

Linda torce as mãos, nervosa, temendo ser descoberta, ali, tão próxima. Um calor envolve-lhe o corpo, associado ao desconforto do lugar e a sensação interior que a toma por completo. Mas sabe que não deve recuar, muito menos agora, que não há mais volta.

— Não me falem nessa gente. Vocês estão disvirtuando o que tenho a falar.

— Mas o senhor não acha que ela tinha uma grande revelação para fazer? Foi hilário.

— Pessoal, não viemos aqui para brincar. Eu estou com dor de cabeça, com enxaqueca e quero acabar com isso de uma vez. Deixem papai falar e parem com gracinhas.

— Oh, Alfredo, você está sem senso de humor. Desde que chegou ficou aí, acabrunhado, num canto. Que aconteceu com você?

— Não aconteceu nada, Ricardo! Estou cansado desta palhaçada toda!

— Está bem, pessoal, está bem, não vamos ficar nos agredindo. Meus filhos, precisamos nos acalmar e discutir a situação.

— Mas que situação papai?

— Já que é assim, vou direto ao assunto. Tenho uma coisa terrível para lhes contar, uma coisa que pode mudar o rumo dos acontecimentos em relação à Santa e tudo que ela está tentando fazer com a gente.

— Como assim? Que coisa terrível está acontecendo com mamãe? Ela está doente?

— Alfredo, é com coração alarmado e triste que eu digo para vocês que... é difícil falar, mas não tem outra maneira: sua mãe está louca.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/janela-ainda-life-cortina-580982/Esther Merbt

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