segunda-feira, setembro 05, 2016

Os pecados de Xavier

Se ocorresse nos dias atuais, do politicamente correto e do convervadorismo tacanho, por certo Xavier seria taxado de, no mínimo, irresponsável. Lá pelos anos 80, não havia tanta integração entre as pessoas, afinal, não havia internet, muito menos redes sociais. Quem se conhecia, o máximo que gravitava entre os bate-papos era o que se contava à amiúde. As fofocas do alto escalão se deixava às revistas especializadas.

Xavier era um cara divertido, no alto de seus quarenta e poucos, com mulher e filho, tinha alguns interesses que desapontavam os amigos mais chegados, mas produzia certa curiosidade em se descobrir os meandros em que os interesses se realizavam. Ele não costumava falar, mas quando encontrava um amigo, exagerava nos detalhes, nos momentos mais impetuosos, aguçando a lascividade intrínsica do ser humano.

Ninguém sabia ao certo o que fazia, como eram as suas noites de diversão, principalmente nos fins de semana. Ele, via de regra, voltava ao trabalho numa penúria de boêmio, revelando a segunda-feira o registro da ressaca espiritual e física.

Mas Xavier sabia o que fazia. Quando comentava algum detalhe, preenchia-o com tantas expectativas, que tornava o interlocutor um passivo ouvinte, quase no desespero de descobrir o que pouco era exposto.

Certa vez, Xavier resolveu abrir o bico. Só, que expert na área de levar vantagem, impunha uma condição, ao que os colegas se olhavam intrigados e até, insatisfeitos em ceder em alguma coisa. Não era uma coisa qualquer, era algo digno de transformação de todo o grupo de trabalho, a ponto de mudarem as lideranças ao descobrirem pecados inadmissíveis àquele bando.

Xavier tinha os seus caprichos e só contaria se fizessem como dissera. E o que queria ele?

O que de tão cabuloso fazia em suas noitadas festivas? E quais eram os pecados dos colegas?

Era exatamente isso que ele desejava: cada detalhe que contasse de sua vida desregrada seria recheado de minúcias da vida certinha ou não tanto, dos colegas.

Foi num happy hour que ele deu o veredicto. Ninguém acreditava no que dizia. Estavam juntos Márcio, o economista, Juarez, o relacões públicas, Manoel e Frederico, que chamavam de Fred, os funcionários do atendimento ao público e Rodrigo, o estagiário que era pau pra toda obra.

Entre um chop e outro, Xavier decidiu colocar as regras na mesa. Claro que todos arrepiaram. Olharam-se de vesgueio, intrigados. Mas que fazer? Por que não contar? E o que contar de suas vidas medíocres, tão iguais, tão insossas, tão diferentes da exuberante de Xavier?

Afinal, a bebida já os fazia abrir as golas das camisas e desabotoar os sentimentos. Estavam se livrando das amarras, aos poucos, não tanto quanto Xavier, porém quem sabe não seria este o momento?

E nesse meio de conversas e risadas cada vez mais frouxas, Xavier fez um comentário de um colega. Todos fizeram silêncio. Até que ele repetiu. Era sobre Juarez, o relações públicas da empresa. Ele saiu da pasmaceira e perguntou: — O que foi que você disse?

— Nada demais Juarez, mas muito engraçado. Eu vi que você leva um copo plástico pro mictório.

Os demais começaram a rir. Juarez interpelou, já irritado: — Não sei do que você ta falando.

— Mas você leva o copo, não vai dizer que não?

— Pra que, Juarez? Pra … – e Manoel faz um gesto obsceno, indicando masturbação – é pra isso mesmo?

— Cala a boca Manoel, deixa de ser ridículo - gritou o exarcebado Juarez.

— Desculpa aí, amigão, mas eu sei pra que você leva o copo — e Xavier prossegue, caindo na risada — tem uma utilidade aí. Você enche o copo dágua, derrama devagarinho no vaso e mija à vontade.

— E o que tem isso? Aprendi com um cara estrangeiro, dizia que ajudava - olha aqui, não devo explicações a vocês. Vãos se fuder!

Fred então saiu na defesa de Juarez.

Fred era um cara baixinho, de cabelo crespo, muito preto e barba cerrada. Olhou para os lados, encarou Xavier e disparou: — Sei que você tá tentando fugir da coisa. Não me engana Xavier, chamando a atenção pro problema do Juarez, você – foi interrompido com a reclamação de Juarez – não é problema! – e continuou – que seja, não é problema, o fato é que o Xavier se aproveitou disso pra não contar a sua vida de sacanagem.

— Ué, eu disse que cada um tinha que contar uma falha, um pecadinho. Tá todo mundo com auréola de santo aí. E você Fred, que tá reclamando, vai, conta o seu.

— A minha vida é calma como o rio que passa sob a ponte. Vocês sabem que sou casado há pouco e tudo que acontece é dentro das quatro paredes.

Xavier, parecendo saber de alguma coisa, pergunta, irônico: — Mas me diga, parece que vocês andaram meio assustados numa noite dessas. Não foi esta pasmaceira que você tá falando.

O outro sem graça, reclama: – Bobagem, nem sei do que ta falando.

— Da vizinha do quarto andar.

Juarez, agora mais relaxado, cai na risada – Então aí tem coisa. O que tem a vizinha do 4º andar?

— Vocês estão malucos? Não tem nada a ver.

— Claro que não – prossegue Xavier – mas ela andou espalhando umas coisas por aí. Não sei como soube, acho que pela sua mulher mesmo.

— Foi um sonho.

—Então explica. Fala pra nós, cara.

— Eo que esta vizinha enxerida falou?

— Ela acha que nao passou de uma brincadeira.

— Pois se você sabe, conta você Xavier. Você não é o alcoviteiro da vida de todo mundo?

— Aí não tem graça -concluiu Xavier. Manoel então insistiu: — O que aconteceu afinal, Fred?

—Ah, caras, uma história maluca. Mas neste caso, os pecados são da Mara, a minha mulher.

— O que foi que ela fez?

— Sei lá, era umas três horas da madrugada, ela ouviu ruídos fora do quarto. Levantou-se da cama sobressaltada e apavorada se encostou no meu ouvido, falando baixinho que o marido estava ali. Imagine, eu, claro que estava ali. Não entendi nada!

— Mas e daí? – fomenta ainda mais Xavier.

— Sem muito entender, me levantei enlouquecido, pulei pela janela só de cueca. Na queda, arrebentei o pequeno muro que separa o jardim da frente, do corredor e bati com a bunda nas pedras. Eu tava num transe, acho, tamanha era a minha ira. Mas, como se me acordasse de repente, pulei a janela de volta, ensandecido. Gritei irritado para Mara: – Sua louca, maluca, sua pirada. Olha como to, todo machucado, porra. Teu marido sou eu!

Fez uma pausa e prosseguiu com suspense: — Sabe o que ela me respondeu? Sabe o que ela teve a cara dura de responder?

Rodrigo, o estagiario concluiu: — Depois de mandar você procurar o marido que era você mesmo, nem sei o que pensar. O que ela respondeu?

— “Ah é pulou a janela porquê? Tá de consciência pesada?” Vê se não é maluca, mesmo?

Todos cairam na risada, uns diziam que era um sonho, ou um pesadelo. Mas ficava a dúvida, em que marido ela estava pensando, ou melhor sonhando? Será que ela achava que estava com o amante e que o marido havia chegado, ou seja, o próprio Fred?

Xavier por fim, vaticinou: — Vai ser duro de eu contar a minha história, porque meu amigo, aqui o pecador não foi você. – e olhando ao redor, perguntou exaltado – quem se habilita?

Ninguém abriu a boca. Olhavam para Fred com a pulga atrás da orelha.

domingo, setembro 04, 2016

O que vem na lancha?

Rogério atravessou o paço municipal com efetiva energia. Estava satisfeito consigo. Daqui a pouco, aquela casa seria sua. O mundo lhe renderia homenagens, as pessoas em geral falariam nele, a maioria pelos seus benefícios que faria à cidade. Uns invejosos falariam mal, mas que falassem. Não lhe interessava. Importava agora o pleito que estava por vir e ele como candidato, certamente seria o vencedor. Ninguém o tirava do páreo, de jeito nenhum.

Em seguida, estava no cais e parou por um momento, observando a lagoa. Na verdade, a laguna, um homem com a autoridade que teria, devia usar o termo correto. A laguna o encantava, às vezes, principalmente nestes dias de pouco sol, com alguma neblina, mas com um calor envolvente, prenúncio de alguma chuva. Podiam pensar que era loucura este pensamento, mas este rebuliço da natureza o envolvia completamente. Era como nas urnas e os efeitos nem sempre passivos, às vezes desvastadores.

Uma lancha se aproximava e ele decidiu sentar num dos bancos no espaço florido próximo ao cais. Ficou observando-a, vendo os passageiros ansiosos em descer, olhando para o nada, entretidos em suas vidas medíocres, habituados a repetir aquela mesma rotina enfadonha, enquanto ele ia ali para aliviar a alma. Ele podia fazer isso, diferente de todos os mortais.

Alguns pingos de chuva começaram a cair e já não era apenas a neblina, eram pingos que aumentavam em quantidade de gotas e velocidade. Uma chuva que não deixava respirar. Achou por bem afastar-se rapidamente em direção ao mercado.

Um pouco molhado, o paletó respingado e algumas gotas na camisa branca revelando os pelos do peito escondidos, sentiu-se um pouco como todos aqueles que faziam parte da comunidade do mercado público. Homens mal vestidos, cabelos desenvoltos, camisas regatas e moletons num dia de chuva e calor. Esqueceu-os, embora sempre aos sorrisos para um e para outro. Andou pelas bancas, observou as frutas, os queijos, os peixes, muitos peixes com centenas de aromas variados. Pensou em tomar um café. Aproximou-se de uma banca e como todos os que estavam por ali, pediu praticamente a mesma coisa: um café e um pastel bem refogado, com muita carne e queijo. Uma mulher gorda, de legging que revelava até as curvas da virilha se aproximou com o café e sorriu mostrando uma falha de dente inominável. Pediu açúcar. Adoçante era para os fracos. Mexeu com um colherinha de cabo torto e percebeu alguma coisa estranha no fundo da xícara. Uma mosca enorme jazia ali, morta, escrachada, esperando ser engolida. Por ele? Ele não era sapo pra comer mosca! Chamou a moça que coçou sem discrição a coxa, espichando um pouco a lycra da calça que devia incomodar. Não se preocupe, ela disse, eu trago outra pro senhor. Rogério já não queria outra. A visão da mosca gorda no fundo da xícara ainda lhe produzia uma náusea que não conseguia evitar. Pediu um refrigerante. Comeu o pastel. Deu mais uns sorrisos, levou uns tapinhas nas costas, deu outros e retirou-se do mercado.

Na rua, a chuva amainara e apenas uns pingos cá, outros lá anunciavam alguma água nas calçadas. Olhou para a laguna. Agora mais clara, sem neblina. Seguiu em frente, atravessou a hidroviária e passou para o outro lado da rua, pela Riachuelo. Caminhou agora sem muito entusiasmo, pelo menos, a euforia que possuia no início, quando atravessou o paço da prefeitura.

Sentiu-se um pouco cansado. Encostou-se na grade do porto e espiou para dentro, observando que alguns homens desenredavam uma enorme corda. Para que seria, pensou. Um pouco mais longe, vinha outra lancha. Ficou parado, observando-a e teve a impressão de que havia uma coisa estranha perto da popa. Não eram caixas de mantimentos, nem amontoados de mercadorias. Se tivesse um binóculo, saberia com certeza o que vinha naquela lancha. Um dos homens que mexiam com as cordas o encarou por um momento, talvez se perguntando o que ele fazia ali, parado.

Rogério decidiu voltar para a hidroviária. Tinha que saber o que traziam na lancha. Era uma caixa estranha, o que lhe produzia uma espécie de dor, uma nostalgia de alguma coisa inerte, que lhe incomodava, que lhe tirava o prazer de ser um candidato. Era como se lhe tirassem todo o poder e ele não pudesse mais ser o prefeito da cidade. Era como se o cassassem como vereador e lhe tirassem os direitos de elegibilidade. Como se houvesse morrido.

Deu alguns passos rápidos em direção ao cais onde a lancha pararia e ficou esperando, o coração soturno, agitado e impune.

As pessoas pareciam rezar ao redor da caixa, outras sorriam ou davam gargalhadas exageradas, gritando frases de efeito. A lancha dava umas guinadas como se escondesse o produto, vez que outra, parecendo voltar, como se retrocedesse e ele jamais pudesse adivinhar o que estava acontecendo. Sentiu um cheiro terrível de urina que vinha do banheiro da hidroviária. Parece que todos os odores ruins se revelavam cada vez mais fortes, instilando-se nos cantos, nas esquinas, nas águas que batiam nos degraus do cais.

Os meninos que estavam próximos se afastavam. As mulheres que passavam agora corriam e alguns policiais se apresentaram para mostrar a força da autoridade. Finalmente a lancha apareceu, porque aquela neblina que para Rogério parecia bonita, agora voltava escura, toldando todo o céu e escondendo a lancha, fazendo-a ligar os faróis. Mas ela surgia agora, de vez. Um pequeno povo que estava no mercado se apresentou e ficou observando a cena. Aquele mesmo que o abraçou, deu-lhe tapinhas nas costas e sorriu várias vezes. Até a mulher de legging se antecipou ao grupo e esperou ansiosa que a lancha chegasse. Duas que pareciam evangélicas, pelo penteado e a saia de jeans, com botinhas e meias, deram-se os braços e começaram a rir, satisfeitas.

A lancha largou as suas âncoras no cais. O povo se posicionou, quase em procissão, lá dentro, atrás do produto. Um padre se emocionou e abençou o povo que se aglomerava lá fora. Um deles, que parecia um juiz também mostrava-se sensibilizado, mas com uma certa alegria no olhar. Algumas senhoras rezavam agradecidas e vários homens tiravam o chapéu, o boné ou o que tinham na cabeça, se o tinham e faziam gestos de gratidão, alegria e ufanismo. Alguns até cantaram o hino nacional com muito patriotismo.

Rogério, candidato a prefeito da cidade, por fim compreendeu o que vinha na lancha e que chamava tanto a atenção. Era um caixão preto, com uma enorme coroa. Na frente, uma faixa com o nome democracia.

sábado, setembro 03, 2016

Sabrina

Sabrina desligou a tv analógica e ouviu ainda um ruído, que demorava a sumir. Talvez a tv estivesse úmida, pensou. Sempre que acontece uma chuva forte, tudo fica meio atrapalhado. Houve dias em que até o liquidificador parou de funcionar. Quando compraria uma tv digital? Era coisa que não podia pensar, neste momento.

Os meninos na escola, indo a pé, caminhando mais de 5 km e ela preocupada com a televisão. Mas deixa pra lá, melhor procurar os tais panos de prato, que passou o dia atabalhoada e os perdeu. Sabe que os guardou, tem certeza, mas onde estarão?

Precisava sair antes que os meninos voltassem para vendê-los no armazém de Seu Oliveira. Lá costumava deixá-los até que alguém os comprasse. Às vezes, ninguém adquiria nada, mas na feira sempre dava certo. Na feira era venda segura. Ou na igreja, mas na igreja não gostava de vender não. O padre pedia silêncio, porque o mulherio fazia um burburinho na porta da igreja até começar a missa. Ele andou proibindo que ela vendesse, até que se arrependeu e liberou novamente.

Mas e os meninos que não chegam? E os guardanapos que não aparecem? Guardanapos, panos de prato, toalhas, tudo bem bordado em pontos de cruz. Eram bonitos, com estampas que tirava das revistas ou ela mesma desenhava. Tinha esse atributo desde criança. Não podia desperdiçar. Procurou os óculos de perto pela mesa da cozinha, pois achava que os tinha deixado lá, quando vira a hora no celular. Estava assim absorvida, procurando-os, quando a porta se abriu de sopetão. Olhou assustada para a porta da cozinha.

Um homem entrou, olhos ensanguentados, boca entreaberta, uma barba mal feita e uns riscos no rosto, que mais pareciam cicatrizes. Não teve coragem de falar, mas ele se dirigiu a ela com muita aflição, quase desespero.

— Não se mexe moça, nao vou fazer nada com você, mas me deixe entrar e fique quieta. Vou me esconder no quarto. Quando a polícia chegar, você nao me viu. Se não te mato, ta ouvindo?

Sabrina ficou paralisada. Não sabia o que fazer. Concordava com um aceno de cabeça. Quando o homem passou por ela, sentiu uma náusea pelo odor que despertava, um misto de sujeira misturada com sangue. Percebeu que a mão sangrava, bem a mão que segurava a arma. Ainda a encostou no seu pescoço e repetiu: — Tá ouvindo?

Ficaria no seu quarto o dia todo? E se os meninos voltassem? E se o marido aparecesse de uma hora pra outra? Sabrina começou a chorar. Puxou a toalha da mesa e limpou os olhos e assoou com energia o nariz. Não sabia se arrastava pé. Ele podia voltar a qualquer momento.

Nisso, ouviu o barulho de um carro. Deu um passo e espiou pela janela. Um giroflex ligado e homens da polícia desciam correndo do camburão em direção a sua casa. Entraram de arma em punho. Gritaram que não se mexesse.

Ela queria falar, dizer que o homem estava lá dentro. Queria fugir, pedir socorro, ajuda, mas o que fez foi pegar a faca de pão que estava sobre a mesa, empunhou-a na direção do quarto para avisar em silêncio de que o bandido estava no quarto. Mas um tiro a silenciou. O sangue jorrou da boca, o corpo tonteou e Sabrina caiu sobre a mesa enfiando a cabeça na toalha de crochê.

A polícia então examinou o ambiente, verificou que a mulher estava morta e um deles fez sinal para que fossem embora. Não havia nada a fazer ali. Correram para o carro e saíram em disparada na investigação. Atravessaram cercas de arame farpado. Tudo observado pelo homem que voltava do quarto.

sexta-feira, agosto 26, 2016

As olimpíadas e as opiniões contraditórias

Há sete anos, "Chegou a nossa hora”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Copenhague, na Dinamarca, ao defender diante do Comitê Olímpico Internacional (COI) a candidatura do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016.

Muitas pessoas refutaram o discurso como absurdo e que o País não teria condições de arcar com um evento esportivo deste porte.

Talvez tivessem razão.

Durante sete anos, Dilma Rousseff

proporcionou condições para que o evento olímpico acontecesse no Brasil.

Muitos execraram a conduta da Presidente, achando que não era hora do País utilizar os seus recursos financeiros e humanos para este empreedimento.

Talvez tivessem razão.

Em 2016, as olimpíadas ocorreram no período transitório do temerário. Muitos ufânicos e patrióticos acreditaram que a Olimpíada foi um sucesso. Estes mesmos que foram contrários antes.

Talvez tenham razão (?)

Fonte da ilustração: http://misturaurbana.com/2011/07/rage_arte-e-ironia-pelas-ruas-de-sp/

quinta-feira, agosto 25, 2016

As diferenças e os preconceitos

Outro dia escrevi em meu blog sobre alteridade, que trata da condição do outro, as suas diferenças em relação as minhas e como as enxergo ou me vejo a apartir dos olhos alheios. Isto significa que há diferenças e que devemos respeitá-las em nossa convivência diária.

Pensando nisso, me veio à mente percepções de pessoas que julgava diferentes e por serem assim, não as compreendia e nem as aceitava e se o fizesse, apenas as tratava com educação formal. Agora, entendo o quanto isso era preconceituoso e prejudicial para a convivência e o quanto eu era vulnerável em meus sentimentos.

Isso acontece com a maioria das pessoas e nem percebem, como eu que seguia o senso comum. Por exemplo, quando lidava com uma pessoa que em suas atividades, necessitava de um tempo específico maior, mais programático, mais dogmático, diferente do meu; eu na minha ansiedade, já me afastava. Era mais agradável compartilhar as experiências com quem fosse parecido, embora, sabemos que jamais alguém é igual ao outro.

Imagina, no que se refere a preconceitos mais radicais, como o étnico, de orientação sexual, político e ideológico, xenofóbico, religioso ou mesmo ateu. Felizmente, não passei por estes processos mais conservadores, embora no que concerne à política, muitas vezes pus em julgamento toda uma conduta em função do pensar distinto.

Hoje em dia, vemos o quanto estes sentimentos influem nos relacionamentos e o quanto as pessoas desejam que todos partilhem os mesmos caminhos, de preferência, os que escolheu para a sua trajetória.

Mais aberto para a vida, hoje enfrento sem dificuldade as diferenças, pois elas não me causam mal, ao contrário, me enriquecem. Pena que o mundo parece andar em círculos e o que pensávamos como vanguarda no passado, está sendo ultrapassado por um conservadorismo constrangedor. Parece que a humanidade regride e a alteridade é rejeitada no âmago das condutas individuais.

sexta-feira, agosto 19, 2016

GEOCRUSOE: "O Retrato" de Nicolai Gogol

GEOCRUSOE: "O Retrato" de Nicolai Gogol

Achei muito enriquecedor o texto de Carlos Faria, a quem passei a seguir no twitter, sobre "O retrato"de Nicolai Gogol, por isso fiz uma hiperligação com o seu blog. Espero ter colaborado com a divulgação.

Minha mãe

Minha mãe. Aqui na foto estás serena, uma aparência de quem espera. Talvez tenhas esperado muito por mim, quando voltava tarde da Universidade ou do trabalho, ou mesmo das festas. Recriminava a tua atitude, mas agora sei, mãe o que sentias e porque o fazias dessa forma, porque de algum modo, também espero. Talvez com outro método, mas com os mesmos receios e as mesmas dúvidas.

Hoje seria o teu aniversário, dia 19 de agosto, por isso te lembro hoje, aqui, publicamente, embora pense em ti sempre. Este pensamento me leva a situações e condutas distantes, como o frisar da calça com perfeição para ir à escola (quando não se usava abrigo de malha, a não ser para o que chamávamos de educação física), o exigir o cuidado com a pasta de alcinha e duas dobradiças que deveriam ser fechadas com esmero (não se usava mochila), a merenda enrolada num pano de prato e envolta em papel de pão (raramente se comprava no bar) e o dinheiro para uma eventual necessidade. E quando voltava, sempre atenta com minhas redações, meus cadernos e principalmente com as notas. Exigias o que por obrigação eu deveria obter: o máximo. Não ecomizavas nos números, muito menos na disciplina.

Por certo, estes caminhos que me fizesses trilhar com firmeza, me levaram a outra trajetória, bem distante dos teus olhos: a disciplina com que experenciei em minha vida e procurei transmitir a minha filha. Claro, acima de tudo, o amor. Este, mãe, nem precisava falar, né?

quinta-feira, agosto 18, 2016

Estranha obsessão : um filme de muitas perguntas e poucas respostas

Estranha obsessão (2011), (pode haver alguns "spoilers") em francês “Le femme du Vème” ou em inglês “ The woman in the fifth” é uma produção franco-polonesa, dirigida por Pawet Pawlikowski. Ethan Hawke e Kristin Scott Thomas formam o estranho par romântico na trama de mistério.

O protagonista é Tom Richs (Ethan Hawke), um escritor norte-americano que se muda para Paris, para se aproximar de sua filha. Já em Paris, depois de ser roubado, se hospeda em um hotel barato. Numa livraria, é convidado para uma festa, onde conhece uma viúva de um escritor húngaro (Kristin Scott Thomas), tradutora de livros, com a qual mantém um romance. Por outro lado, mantém um romance no hotel, com uma linda polonesa (Joanna Kulig, atriz polonesa). Por fim, é acusado de suspeito por um crime, pois seu vizinho de quarto é assassinado. Para livrar-se da acusação, tem como álibi o encontro com a viúva, em sua casa, porém, a polícia descobre que a mulher havia cometido suicídio em 1991. Mas toda esta trama não passa de cenário para a sua procura desesperada pela filha, quer encontrá-la, levá-la consigo, mas é impedido pela mulher.

É um filme que tem causado polêmicas, não tanto pela crítica especializada, pelo que depreendi com minhas leituras, mas no âmbito dos espectadores. Há comentários na web de todas as categorias, desde as mais abalizadas até as mais canhestras, com dificuldade de entendimento ou falta de um aprofundamento melhor na trama e nos personagens.

Claro que o filme nos deixa alguns hiatos que causam um certo estranhamento, o que nos faz perguntar, o que está acontecendo com o protagonista? Aquela mulher que ele considera amante, a viúva do escritor húngaro existe realmente? E a jovem polonesa do bar que está apaixonada, afinal, de quem se trata? Na realidade, existe a mulher do dono do hotel e bar ou uma criação da mente do escritor obsecado pela filha? Ou seria a própria filha em sua imaginação psicótica, já que ele a trata com tanto carinho que se aproxima de um afeto paternal.

Por outro lado, a jovem polonesa recebe uma carta no final do filme que diz “com amor, papai”. E aquela menina perdida no bosque, que ele faz um link com a história que contava à filha, quando estavam juntos e quando tentava alertá-la de certo modo, que era um homem perigoso e que deveria ficar somente com a sua parte boa? Quem era o escritor na Paris desnudada e fria que procura obsessivamente a filha, fugindo da polícia, acusado pela esposa, que o quer ver longe? Tudo objeções.

Um estranhamento que não nos permite admitir para nós mesmos que o protagonista é mau, que matou a filha, que abusou dela (a mãe no início do filme, não deixando-o entrar no apartamento, dispara com terrível segurança “você não é normal”), que a amante não existe, que tudo não passa de criação de sua mente deturpada e doente, que a festa em que participou com outros artistas e mentores intelectuais não existiu.

Um mundo paralelo em sua imaginação febril?

Ou a realidade triste de um homem acuado por seu próprio passado? Pois esta estranheza é que nos seduz e encanta. Este estranhamento é que o torna um filme além da média, que revela uma criação artística.

Um filme que nos deixa muitas perguntas, mas uma única resposta da qual não podemos fugir: a vulnerabilidade da condição humana.

quinta-feira, agosto 11, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 20º CAPÍTULO (ÚLTIMO)

Capítulo 20 - último

Após a confissão desesperada de Paulo, fez-se um silêncio complacente. Nada se podia argumentar. A realidade dizia por si. Paulo chorava convulsamente. Seus soluços eram ouvidos do outro lado do vidro que separava as duas peças. Júlio observava e por sua experiência, sabia que ele ficaria mais tranquilo em seguida. Foi o que aconteceu. Paulo voltou a falar, compassado, entre lágrimas, porém um tanto aliviado.

– Rosa não admitia que ela gostasse de mim, que se atirasse daquele jeito sobre mim. Achava que ela era uma puta. E Rosa é muito religiosa, muito moralista. – interrompe-se um instante, como se temesse confessar mais alguma coisa que incriminasse Rosa, porém prossegue. Sabe que agora, precisa ir até o fim. – Pra falar a verdade, detetive, ela não é só a mãe que eu arranjei, entende? Ela é a mulher que me satisfaz na cama e eu faço o possível pra corresponder. Mas eu só vivo pensando em Taís, em mulheres como ela, foi por isso que fui lá e não me contive.

Júlio o ouve quieto. Paulo insiste em defender Rosa, mostrando-se culpado em acusá-la, mas por outro lado, sabe que deve contar tudo, até para atenuar a responsabilidade de Rosa no ato.

— Devo isso a ela, detetive, tudo. Rosa foi a primeira pessoa que me ajudou, a primeira e única. Todos me viraram a cara, mas ela ficou do meu lado, sempre.

Júlio então intervém: — Está bem, Paulo. Eu entendo a sua situação. Mas continue, como aconteceu o crime. Por que você acusou Rosa de ter matado Taís?

Paulo suspira fundo. Olha absorto para a vidraça e depois volta-se para Júlio, agora encarando-o com firmeza.

— Naquele dia, ela me seguiu, eu estava no carro do médico sim, havia tirado da oficina e resolvera dar uma volta, quando vi Taís atravessando a ponte. Logo atrás o grupo fazia aquela festa pervertida, chamando-a de tudo, palavras de baixo calão, mas Taís se divertia com isso. Tanto, que se juntava a eles e dividia com eles as drogas e as bebidas. Começou após muitos pedidos, fazer uma espécie de strip-tease. Foi aí, que me escondi dentro do carro, que estava um pouco atrás do arvoredo, do outro lado da margem. Eu tinha uma visão privilegiada, porque um emaranhado de galhos me protegia. Aquilo me deu muito tesão, e não resisti. foi neste momento que me masturbei. – levanta a voz, ansioso – Eu fiquei louco, detetive, completamente louco e a minha vontade era chegar até Tais, abraçá-la, tirá-la dali, daquele bando. Mas eles continuaram com a festa e ela foi se afastando em direção ao outro lado da cidade, ao contrário do centro, entende? Ela atravessou toda a ponte e o grupo ficou por ali, se divertindo, mexendo com ela, jogando umas roupas que ela havia deixado, pois estava indo só de calcinha e sutiã, dizendo que pretendia se jogar no rio. Mentira dela, era só farsa. Queria se divertir. Daqui a pouco pegaria as roupas e voltaria para casa. Foi neste momento, que vi Rosa se esgueirando pelo mato, às ocultas, sempre pela margem, seguindo-a. Eu estava do outro lado, mas desci rapidamente do carro, atravessei para a outra margem e a segui também. Foi difícil, estava cada vez mais escuro, com muita neblina e os galhos das árvores eram densos e atrapalhavam o caminho. Mas eu vi, no momento crucial, quando Tais estava encostada no parapeito no fim da ponte, fumando um baseado.Rosa chegou e lhe deu um tapa na cara com muita violência. Chamou-a por todos os palavrões que conhecia e sacudiu-a com força, arranhado-lhe os braços e para minha surpresa, sem mais nem menos, a empurrou na direção do rio, mas Taís não caiu, conseguiu segurar-se, apoiando-se na ponte. Então cheguei desesperado e tirei Rosa dali.Eu não podia abandoná-la naquele desespero. Supliquei que deixasse Taís em paz, que a esquecesse de uma vez por todas e fôssemos embora. Rosa parecia voltar a si, sair de um surto terrível e me obedeceu. Corremos em direção ao carro e ela entrou e se deitou no banco para que ninguém a visse. Então eu dei a partida e fomos embora. Ela então sugeriu que eu fosse para a Capital por uns dois dias.

— Mas o que aconteceu com a moça? Ela caiu, afinal?

— Eu acho que sim, não tinha muitas chances para ela. Rosa a matou, não há dúvida. No outro dia, tinha muito comentário que a moça estava toda arranhada e fora levada pela correnteza, rio abaixo.

— Então, você acha que ela não resistiu, talvez pelo estado fragilizado em que estava em virtude das drogas e tenha caído no rio.

— Sim, penso que sim.

– E agora está aliviado? Você não matou a moça, é inocente, apesar que pode ser considerado cúmplice, já que não fez nada para ajudá-la e ainda assistiu a cena.

– Rosa fez tudo por mim, pra me proteger, como sempre. Eu não devia ter contado isso.

— Não se preocupe, mais cedo ou mais tarde, isso apareceria. Rosa não ficaria impune. Além disso, há outras coisas que precisamos descobrir. Há outros crimes envolvidos.

Júlio acenou a cabeça, pesaroso. Abriu a porta para o policial e pediu que ele ouvisse a gravação. Quanto à Rosa, esta pagaria por seus crimes, naquela noite mesmo.

Nesta noite, Júlio fazia um retrospecto de todos os acontecimentos e percebia, insatisfeito que apesar do caso estar parcialmente resolvido, havia uma incongruência nos fatos que não se ajustavam de algum modo.

Paulo, o mecânico estava preso por assassinato e acabara confessando que a autora do crime era Rosa, tornando-se seu cúmplice, por ter abandonado Taís à própria sorte e ainda ter encoberto a verdadeira criminosa.

Por outro lado, Rosa cometera o crime porque julgava Taís uma indecente, que não se ajustava aos seus padrões morais e também porque amava o mecânico e a odiava por se intrometer em sua vida. Entretanto, Paulo não presenciara o desfecho. Ele viu Rosa empurrando a moça, mas ela ainda não havia caído no rio, se apoiava e poderia ser salva por alguém logo após ele e Rosa terem se afastado. Ou quem sabe, alguém a empurrou definitivamente. Como assegurar com precisão que Rosa fora a autora do crime?

Estava assim pensativo, quando o delegado Borba ligou para ele, quase intimando-o a segui-lo até a ponte. Estranho, pensara, o delegado não confiava em seus serviços e agora precisava de sua ajuda. A menos que a sua conclusão inocentando Paulo o tenha agradado a ponto de querer a sua presença. Mas o que teria acontecido para chamá-lo àquela hora ? Desceu rapidamente e pegou o carro no estacionamento correndo ao encontro do delegado. No caminho, imaginava que teriam encontrado alguma pista do crime, talvez alguma prova acusando ou inocentando Rosa. Mas como achariam alguma coisa depois de tanto tempo e o que isso mudaria? De todo modo, mesmo que achassem alguma coisa, não valeria como prova. Além disso, o delegado Borba não estaria ocupado àquela hora da noite, investigando se não houvesse acontecido alguma coisa muito grave. Ao chegar , percebeu próximo à ponte um carro da polícia com giroflex ligado e um policial, além do delegado. Olhavam para baixo, deslocando pelas margens do rio. Júlio aproximou-se e viu um foco de luz lá embaixo, na ribanceira, que chamava a atenção dos dois.

— Que aconteceu, delegado?

— Conhece aquela moça?

— Daqui não consigo ver nada, estou vendo que tem um corpo lá embaixo, mas...

— Trata-se de Ana, a menina que diz que ouviu Taís gritar no dia do crime.

— Meu Deus, pobre menina! Mas então?

— Mais um crime, detetive. Atiraram a moça da ponte também. Parece que preferem matar as mulheres por aqui.

— Foi semelhante ao de Taís? Ela foi empurrada também?

— Desta vez, acertaram com um tiro. Mas venha, vamos descer até lá. Quero mostrar-lhe uma coisa.

Júlio desceu com dificuldade, sendo ajudado às vezes pelo delegado Borba. Ao chegar bem perto, percebeu que a menina estava seminua e uma lagoa de sangue surgia por detrás do corpo. O tiro havia sido no peito, atravessando o corpo frágil da moça, provavelmente perfurando os pulmões. Júlio virou o rosto, angustiado. Poucos dias atrás havia conversado com Ana, inclusive tentara conseguir o seu depoimento, pois Rosa investira contra ela, ameaçando-a. Teria sido Rosa a culpada pelo delito?

O policial afirmou tratar-se de uma simulação de um assalto. Não havia celular, nem documentos, nada que identificasse a moça. O delegado Borba concordou e pediu que Júlio observasse minuciosamente a cena. Não havia nada que indicasse outra causa, apesar de haver associações muito fortes entre os dois crimes. Júlio pediu licença e subiu até a estrutura acima, na ponte. O delegado deu um sorriso e acrescentou, dirigindo-se ao policial: — Um frouxo. E depois quer dar uma de investigador.

Júlio deu uma volta pelos arredores. Dirigiu-se ao local na ponte de onde provavelmente Ana havia caído, ao ser alvejada. Em dado momento, encontrou alguma coisa numa ranhura da ponte, que parecia um cartão de memória. Pegou-o e levou-o consigo sem avisar a polícia. Despediu-se do delegado e partiu em seguida, em direção ao hotel. Ao chegar, Júlio inseriu o cartão num pendrive e tentou abri-lo no notebook. Entretanto, o arquivo não abria, havia uma senha que o protegia, a qual por mais que tentasse, nunca era a correta. Digitou Ana, rio, maconha, lual, tudo que pudesse lembrar de alguma forma a conduta da moça, mas nenhuma servia. Então, pensou Anderson, o garçom que o servia pela manhã e que às vezes, fazia o serviço de porteiro do hotel. Parecia um rapaz inteligente, quem sabe ele poderia ajudá-lo. Certamente, ficaria efetivo neste cargo, pensou.

— Boa noite, detetive. Parece que o senhor anda muito ocupado, ultimamente. Está sempre correndo.

— É verdade, Anderson. Inclusive vim aqui para pedir a sua ajuda.

— Pois não, detetive. Mas antes me diga, é verdade que Rosa é a assassina de Taís?

— Quem lhe disse isso, Anderson?

— Ah, parece que um policial comentou por aí, o senhor sabe, as coisas se espalham.

— É, tinha esquecido que todo mundo sabe de tudo, nesta cidade. Mas não gostaria de falar sobre isso, Anderson. Como lhe disse, preciso da sua ajuda.

Algum tempo depois e Júlio tinha a resposta que queria. Anderson sabia decifrar o programa em que o arquivo fora gravado e em alguns minutos, conseguiu abri-lo.

— Não sei o que o senhor quer saber, detetive, mas não vejo nada demais aqui. São contas, pode ver.

— Contas? Você tem razão. Olhe, cifras enormes, valores volumosos, não? Diga-me uma coisa, agora posso abrir no meu notebook? Será que não precisarei de alguma senha?

— Não, agora eu já criei uma senha própria. Coloquei "cidade". É só o senhor digitar a palavra.

Júlio no quarto, pode observar com mais atenção uma série de contas que percebia serem ligadas ao tráfico e alguns nomes, como o de Carlos, do filho do prefeito. Era de se esperar, pensou. Será que este arquivo estava em posse de Ana e por isso a mataram?

Júlio continuou a pesquisa. Quase ao fim do arquivo, um nome chamou-lhe a atenção, o que o deixou muito intrigado. Foi neste momento, que Anderson bateu a sua porta, dizendo que alguém queria falar-lhe. Ainda preocupado, abriu a porta ao amigo Jairo, que revelava-se extremamente nervoso. Antes de perguntar qualquer coisa, mandou uma mensagem para Anderson e guardou o celular em seguida, dirigindo-se a Jairo.

— Aconteceu alguma coisa grave, Jairo? Você vir aqui, a esta hora da noite.

— Eu vim aqui, porque preciso falar com você Júlio. Vim aqui, fazer-lhe um pedido, em nome de nossa amizade. E você só tem uma alternativa: atender-me.

Júlio afastou-se um pouco, em direção à janela e pediu que ele sentasse na poltrona, próxima à cama. Jairo não obedeceu. Olhava-o de um modo estranho, como se estivesse prestes a atacar ou ser atacado por um inimigo. Júlio então, perguntou, tranquilo: — Você quer que eu o atenda em quê? Me parece muito preocupado, Jairo. Volto a lhe perguntar, aconteceu alguma coisa?

Jairo levanta a voz, irritado.

— Não me venha com esta pedagogia de detetive, Júlio, pelo amor de Deus. Você veio aqui pra cidade, andou mexendo em coisa muito perigosa. Eu vim aqui lhe pedir que pare com isso. Pare com essa investigação. Já deu o que tinha que dar, os caras estão presos, o que você quer mais?

— Não estou entendendo Jairo, eu até lhe falei sobre os suspeitos, sobre as várias possibilidades de confrontamento e até de associações nos crimes. Inclusive pegaram o mecânico e agora estamos sabendo que Rosa está por detrás disso. Por que você está tão assustado?

— Eu não estou assustado. Quero que você acabe com isso!

— Por que?

Neste momento, Jairo tira pistola da cintura e a aponta a arma para Júlio que o olha surpreso e desconfiado.

— Se você não fizer o que lhe peço, eu vou matá-lo Júlio. Você não entende que eu não quero fazer isso?

— Você quer me matar por quê?

— Eu já lhe disse, você está mexendo num vespeiro e a coisa só piora.

— Então me fale, me diga o motivo. Você se refere ao crime da ponte?

— Eu me refiro ao meu negócio. Eu lhe falei que estou há três anos tentando fazer um camping, um negócio de lazer na cidade e o Ibama coloca mil impedimentos, por problemas ambientais e quando eles sinalizam para liberar, essa gentinha vem e corrompe o lugar, quem é que vai fazer turismo numa cidade que não respeita ninguém, que faz orgias à noite, no melhor ponto turístico. Você entende o que está acontecendo, Júlio?

— Não, não entendo.

— Então, eu vou lhe esclarecer. Você há pouco falou em Rosa. Pois saiba que nós nos unimos para acabar com esta canalhice e limpar a cidade.

— Como assim?

— Nós começamos a perseguir aquela gente, já que a polícia não fazia nada. Então, quando morreu a mulher do seu Domingues, que tinha diabete, e segundo diziam na época, por erro médico, tivemos uma ideia. Injetar insulina nos jovens que vinham para as festas organizadas pelo filho do prefeito. Deu certo, todos pensavam que eram turistas, mas na verdade, era gente que vinha só pra se divertir e fazer sacanagem nas nossas fuças. Isso era uma afronta. Como eles não tinham a doença, acabavam morrendo e ninguém descobria a causa. Tanto, que arquivaram todos os inquéritos.

— Mas como vocês faziam isso?

— Nós os atraíamos, Rosa alugava o seu apartamento e eu montava umas barracas não muito longe do lugar onde faziam as festas. Então nos preparávamos para o golpe. Quando voltavam na penúria, drogados e bêbados, tínhamos a ocasião perfeita que precisávamos para injetarmos a insulina.

— E o Paulo estava envolvido nisso?

— Aquele pateta? Claro que não. Ele não sabia de nada. Dizíamos que estávamos tentando ajudar aquela gente, um bando de drogados.

— Tem um rapaz, um tal de Raul que diz que foi injetado também. Desconfia de um pessoal do pet shop.

— Aquele é um maconheiro da pior espécie. Nem sabe o que diz. Na verdade, foi Rosa, por vingança e ele confundiu tudo. Acabou inventando outras histórias, é tudo delírio da cabeça dele.

— Mas e quanto a Taís? Foi a Rosa mesmo quem a matou?

— Claro, com a minha cobertura. Aquele idiota do Paulo é que estava no lugar errado e se meteu. A coisa ficou mais difícil e eu tive que acabar o serviço.

— E tudo isso pra quê, meu Deus?

— Não fui claro? Para limpar a cidade desta corja, para montar o meu negócio para gente de bem, turistas que viessem pra cá, para curtir a natureza, as belezas da cidade. Não dá pra entender isso, Júlio?

— Não, na minha lógica, não. E quanto à Ana? Vocês a mataram também?

— Aquela idiota estava se metendo, abrindo o bico. Ela roubou um cartão de memória que tinha os dados armazenados de todos os envolvidos no tráfico, gente de bem, inclusive Carlos, o filho do prefeito. Sem trocadilho, Júlio, mas foi queima de arquivo.

— Você fez tudo sozinho, Jairo?

— Tenho dois caras que trabalham comigo. Mas não achamos nada. Aquela vadia sumiu com o arquivo.

— Você fala disto aqui, no meu notebook?

— Como você achou? Por que está com você Júlio?

— Como você vê, Jairo, eu sou um investigador tão bom que você está aqui, me ameaçando. Nunca imaginei, porém que seu nome estaria entre eles. Quando o vi, fiquei muito surpreso. Essas contas são muito volumosas, não acha?

— Então Júlio, você também será queima de arquivo. Sinto muito meu amigo, mas você vai desta para melhor.

— Se eu fosse você, não faria isso, Jairo. Na portaria, há um computador com todos os dados copiados e Anderson está sabendo de tudo. Neste momento, ele já deve ter chamado o delegado Borba.

— Você está mentindo! Eu não sou idiota, Júlio!

Neste momento, a porta se abre e o delegado Borba surge, empunhando uma arma na direção de Jairo. Anderson espia da porta, satisfeito e conclui: — Saquei a mensagem, detetive.

Fonte de ilustração: www.pixbay.com

terça-feira, agosto 09, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 19º CAPÍTULO

Capítulo 19

Rosa depõe na polícia e confessa que tentara matar Ana porque achava que ela sabia que Paulo usara o carro do médico na noite do crime.

Para o delegado Borba, não há mais dúvidas de que o rapaz é o verdadeiro assassino de Taís, já que foi comprovado de que ele estava no local do crime e Rosa praticamente o acusou, na tentativa de defendê-lo.

Parece enfim, que todas as peças se encaixam e que o verdadeiro culpado é mesmo o mecânico. Afinal, ele era namorado de Taís, tinha muitos ciúmes e segundo a própria Rosa, certa vez, ele a tinha ameaçado de morte, após uma briga calorosa. Com o passar do tempo, no entanto, as coisas haviam se acalmado e cada um do seu lado, foi tocando a própria vida.

O problema, segundo Rosa, é que ele a havia encontrado algumas vezes e Taís, leviana que era, estava novamente tendo um caso com o antigo namorado.

Ela era muito ligada ao o grupo de Ana, onde conseguia as drogas que utilizava, embora a menina mais jovem fosse a mais arisca e não se envolvesse tanto com os demais. Não gostava da presença de Taís e seus encontros se davam apenas com os amigos mais chegados, que constituía um grupo de quatro pessoas.

Eram Miguel, o mais velho que devia ter uns 21 anos, Henrique, o ruivo, quase adolescente, Carlos, o filho do prefeito, que segundo os comentários era o que organizava os luais à beira do rio, com muita droga e verdadeiras orgias sexuais, festas estas em que Taís muitas vezes, participava, além de uma garota de programa que vinha de vez em quando da Capital para incrementar as festas. Todos na cidade sabiam, mas como eram de famílias importantes, faziam vistas grossas. Apenas Ana era uma desgarrada no mundo. Vivia praticamente sozinha, morando com um tio bêbado que nem sabia de sua existência.

No dia seguinte, quando Paulo chegou na rodoviária, a polícia já o esperava. Preso, ele só fazia negar o crime e chorar como uma criança.

Enfim, tudo estava resolvido. O crime da jovem Taís solucionado. Agora Júlio finalmente decidiria se permaneceria na cidade por mais algum tempo. Talvez retomasse as terras onde seus pais moravam, nos quais não havia mais nenhuma residência e o mato selvagem já tomava conta de tudo. Quem sabe construiria uma casa e moraria em definitivo na cidade. Escreveria a sua biografia ou não. Quem sabe criaria outras histórias de ficção ou descreveria casos que já passaram por suas mãos. Eram alternativas que poderia utilizar. Estava cheio de planos e isso era bom. Sentia-se feliz em estar de volta à ativa, o que liberava uma certa euforia em sua mente, dando-lhe vontade de fazer coisas novas, de tomar outros rumos.

Porém, as coisas estavam tão claras e se encaixavam tão adequadamente nos rumos do caso, que lhe despertavam algumas dúvidas.

Primeiramente, o pai sofrido, odiando o médico que enganara a sua filha, uma moça humilde de cidade pequena que fora iludida por um jovem esperto da cidade, que lhe oferecera mundos e fundos, apenas com a finalidade de seduzi-la. Isso era tão clichê que parecia coisa de novela de rádio dos anos 60.

Aos poucos, porém, foi se descobrindo que a menina tão recatada e simples, não passava de uma jovem que participava de festinhas regadas a drogas e muito sexo. Pelo menos, foi o que foi parar no depoimento do delegado e até agora ninguém decidiu desmentir, nem mesmo o pai, que se mantém em silêncio.

Em seguida, o contato foi com o médico, o suposto assassino, que havia namorado a moça e que decidira matá-la para não atrapalhar seus negócios com a família da noiva na capital.

Agora já era uma história meio dramalhão de tv, porém com uma história mais plausível, apesar de simplória demais. O povo daquela cidade tinha muita imaginação.

Com o interrogatório, percebeu-se que era um jovem assustado com a situação e que a moça que se dizia assediada, era ao contrário, quem o perseguia. Segundo ele, não lhe faria mal algum, mas a odiava, a ponto de não querer qualquer aproximação com ela. Tudo era possível, a partir dessa constatação.

A seguir, surgiu Ana, a menina que observava tudo, que ouvira o grito e presenciara alguma coisa surgir nas águas correntes do rio. Chamara ajuda dos amigos e descobrira que havia sido uma tragédia. Também vira o carro do médico pelas redondezas e por isso, o acusara e a história fora parar nas ruas até chegar às autoridades competentes. Azar para o médico Ricardo Silveira, que não tinha um álibi para não ser incriminado.

Mais tarde, foi a vez de Rosa, a mulher que tentava proteger o rapaz que mora em seu apartamento alugado, que para os habitantes da cidade, não passa de seu amante.

Um caso estranho de se entender. Tanto o quis proteger, que acabou acusando-o, pensando que Ana soubesse que ele estava com o carro do médico, na noite do crime, ali, pelas proximidades. Sendo assim, quem estava no carro que Ana vira, quem morria de ciúmes pela antiga namorada e que seria capaz de matá-la, era o mecânico.

Tudo então parecia ter chegado a um termo, à medida de que se descobrira quem era o assassino. O tal de Paulo.Na verdade, pouco se conhecia dele e o pouco que falava era para negar que a tivesse matado. Dizia-se inocente, mas todas as provas estavam contra ele, inclusive o depoimento de Rosa.

Júlio, insatisfeito com o desfecho da situação, dirigiu-se ao delegado Borba, tentando um encontro com Paulo, na prisão. A princípio, foi-lhe negado. Não havia motivo para interrogatório. A polícia já estava ciente de tudo e tinha feito a sua investigação completa. Mas, com certa habilidade, Júlio convenceu o delegado a fazer uma única visita, nada oficial, para que pudesse conversar com o homem.

Depois de algumas recusas, ocorreu finalmente a concessão ao pedido.

Paulo era um homem de estatura baixa, atarracada, com braços que aparentavam força e energia. Segundo os comentários, costumava exercer o trabalho exaustivo na oficina com esmero e muita disposição.

Tinha uma fisionomia apagada, um olhar parvo e desligado. A boca ficava entreaberta e suas mãos estavam sempre se contorcendo, como se precisasse aquecê-las ininterruptamente.

Júlio aproximou-se e sentou-se à mesa, a sua frente. Estavam sozinhos na sala, embora houvesse uma janela de vidro para a peça ao lado, de onde era possível observá-los.

O delegado Borba parecia enfadado. Aproveitou a conversa para retirar-se e fumar um cigarro à beira da calçada, observando os transeuntes.

Nenhum dos dois policiais que restavam interessou-se pela conversa e, ocupados em seus objetivos pessoais, nem passavam por ali. Para eles, o caso estava resolvido. Era só frescura de detetive particular, com mania de protagonista de filme policial. Nem se preocupavam com os demais casos de assassinatos por aplicação em dose errada de insulina, pois estavam arquivados e não havia mais nada a fazer.

Júlio tomou um copo de água e serviu outro para Paulo. Este aceitou e abaixou imediatamente a cabeça, pensativo. Vez que outra, levantava a cabeça e olhava enviesado para a vidraça, como se perguntasse a si mesmo o que estava fazendo ali. Júlio então, começou a interrogá-lo.

– Paulo, sei que a sua situação não é das melhores, mas há coisas que ainda não foram bem elucidadas. Me refiro a coisas que não ficaram bem claras, entende?

– Não, não entendo nada. Só sei que estão me acusando por um crime que não cometi. Eu sou inocente, delegado, não tenho nada a ver com isso.

– Olhe, me chame de detetive. Eu não sou delegado e nem trabalho aqui nesta delegacia.

— Mas então, por que está me interrogando? Eu não quero ficar aqui, quero que chame os policiais, quero ir pra minha cela.

— Espere, Paulo, se acalme. Eu sou um detetive particular contratado por Lucas, o pai de Taís e não estou aqui para julgar ninguém. Só quero a verdade. Eu não o acusei de nada, por enquanto.Talvez até com este interrogatório, eu o ajude. Você não acha que foi tudo muito rápido? A solução para o problema foi a sua acusação. Não estou dizendo que você é inocente, mas precisamos averiguar mais. Fazer mais investigações.

— Eu já lhe disse que sou inocente!

— Então, que tal conversarmos sobre isso. Você tem que ser absolutamente sincero comigo. Tem que me dizer a verdade, se quiser que eu o ajude.

— Mas o senhor não é meu advogado, eu nem tenho advogado. O senhor é contratado pelo farmacêutico, só quer me ferrar!

— Não é nada disso, Paulo. Eu quero a verdade. Mas não posso obrigá-lo. Se você não quiser se abrir comigo, não posso fazer nada. Você é quem decide, mas tenha certeza de uma coisa, não há muita chance para você. As coisas se ajustaram perfeitamente com a sua prisão.

Paulo o fita intrigado. Fica em silêncio alguns segundos, depois volta a abaixar a cabeça e resmunga: — O que o senhor quer de mim?

— Ótimo, Paulo. Fazer umas perguntas muito claras. Vamos começar do início. Me diga com sinceridade, qual é a sua relação com Rosa?

— Meu Deus, o que isso tem a ver com o que aconteceu?

— Aparentemente, nada. No fundo, tem muito a ver. Nós podemos fazer o perfil de uma pessoa através da estrutura de sua personalidade e descobrir, inclusive se ela é capaz de cometer um crime ou não. Um relacionamento afetivo, o envolvimento familiar atribuem traços à personalidade de uma pessoa. Você me entende?

Ele não responde, mas concorda com um aceno de cabeça.

– Pois então, para isso, é preciso que se conheça bem a pessoa. E olhe, eu não sou psicólogo, nada disso. Mas anos de experiência e alguns estudos periféricos me possibilitaram a conhecer bem o ser humano - faz uma pausa para que ele absorva tudo o que dissera, enquanto o observa detidamente. Paulo não levanta os olhos. Para de contorcer as mãos e deixa-as sobre a mesa, fixando-as, como se pudesse rever nelas o seu trabalho, a sua atividade, agora truncada. As unhas enegrecidas revelam a atividade descuidada.

Júlio continua - por isso, eu volto a perguntar: você tinha uma relação mais intima com Rosa?

Paulo suspira e ainda sem levantar os olhos, exclama de uma maneira quase infantil: — Rosa é a minha mãezinha! Ela me ajuda, me protege, me alimenta, me dá casa pra eu morar.

– Como assim? Você trabalha, paga aluguel pra ela, não é isso?

– Sim, mas é outra coisa. Eu procurei a minha vida inteira por minha mãe, sempre me disseram que ela era daqui, desta cidade, mas nunca a encontrei. Rosa então me apoiou, me ajudou a sobreviver.

– Só isso?

– E você acha pouco? Ela foi a única pessoa que me olhou como gente, que não se afastou quando eu procurei – e prossegue, emocionado – a única pessoa que ouviu e me entendeu.

— Fora isso, profissionalmente falando, ela aluga um quarto para você.

– Sim.

– E qual é o apoio que ela lhe dá? – tenta colocá-lo em conflito.

– Eu já disse, ela cuida das minhas coisas, ela me protege, me deu abrigo quando precisei, é isso! Não basta pra você? Não basta pra todo mundo? Ninguém entende, não é? Ninguém entende quando alguém faz um bem pra gente! - fica agitado, agora mexendo as mãos, passando-as pelo cabelo e cobrindo o rosto, quase em desespero.

Júlio dá uma leve batidinha em seu braço e pede que se acalme. Sorri amistoso e percebe que pela primeira vez, Paulo o encara. Por fim, respira com sofreguidão, mas aos poucos volta ao normal. Júlio aguarda um pouco que se restabeleça para voltar à carga.

– Eu entendo mais do que você imagina, Paulo. Sei o quanto esta mulher o ajudou e o quanto você a preza. Não fique molestado pelo que eu disse, apenas ouça e tente também entender as minhas perguntas. Como lhe disse, é preciso analisar o perfil das pessoas. É preciso entender as suas atitudes com profundidade, caso contrário não chegamos a lugar nenhum.

Um pouco mais calmo, Paulo pousa as mãos sobre as pernas, que se agitam intermitentes. Júlio prossegue o interrogatório, como se fizesse uma análise terapêutica.

– Então me diga, de acordo com o que você me descreveu sobre o seu reconhecimento do valor de Rosa, sobre o carinho que tem por ela, você seria capaz de fazer qualquer coisa para defendê-la, para ajudá-la. Afinal, ela é a sua protetora, a sua amiga, a sua – faz uma pausa providencial – como voce diz, a sua mãezinha.

–Sim, eu faria tudo por ela e ela por mim. Ela tentou me defender. Ela sabe que eu não matei ninguém.Ela só disse aquilo porque ficou puta da cara com a menina, que andou espalhando que eu estava com o carro do doutor, Claro que ia sobrar pra mim, não ia? A corda rebenta sempre na parte mais fraca, não é assim que acontece, detetive?

— Nem sempre, Paulo. Ao menos que a verdade não apareça. É preciso que haja justiça. Mas me explique, se Rosa o ajuda tanto, por que você está aqui? – a cartada que esperava.

Paulo entretanto possui outra lógica e responde rápido, embora um pouco confuso: — Porque ninguém acredita em mim, precisam de um culpado.

Júlio decide ser mais incisivo e argumenta: — Nem Rosa acreditou em você. Ela desconfiou tanto, que como você usou o carro do médico, ela pensou que você teria matado a moça para por a culpa no rapaz.
— Isso é o que tentaram atribuir a ela. eu já expliquei, que ela ficou furiosa com a Ana. Ela só pensou em me ajudar, em me defender - e fica se repetindo várias vezes. Júlio o interrompe, enérgico.

— Esta bem, não fique nervoso. Como você disse, você seria capaz de fazer tudo por ela.

— Eu já disse. tudo!Tudo! Quer me enlouquecer?

— Até matar?

— Eu não matei ninguém, foi uma cilada que vocês armaram.

—Mas você mataria por Rosa, pela mulher que você ama!

— Mataria!

— Então você confessa que a ama, Paulo.

— Você esta me confundindo, eu não quero mais esta conversa!

Tenta levantar-se, mas Júlio o impede, segurando-o firmemente pelo braço. Pede que sente, insiste em dizer-lhe que quer ajudá-lo, que precisa enfrentar a situação. Afinal, se é inocente, não perde nada em responder as suas perguntas, ao contrário, poderá haver uma saída, até uma possibilidade de atenuação da pena. Aos poucos, Paulo parece entender a proposta e volta a sentar-se. Júlio prossegue.

— Está bem, não vamos mais falar em Rosa. Fique tranquilo. Se é um assunto que o deixa chateado, não quero aumentar ainda mais o seu sofrimento. Mas preciso saber algumas coisas em relação à Taís, afinal ela foi sua namorada. Quero que você me fale do grupo que ela participava, com o qual fazia as festinhas na ponte. Você conhece esse pessoal?

Ele responde imediatamente, como se o tema sugerisse pessoas que ele detestava e por isso, tinha prazer em denunciá-los.

— Sim, são gente muito baixa, todos drogados, metidos com traficantes, vagabundos. A Rosa tinha horror daquela gente.

— O que sabe deles?

— Todos são uns marginais, uns pederastas, só se salva o ruivo…

— Ruivo?

— É, o Henrique, ele está sempre com medo de tudo, ele só vai porque não consegue sair do círculo vicioso, como traficou drogas, tem medo, eles podem acabar com ele. O cara é um adolescente, tá na pior.

— E acha que neste caso, eles podem ter culpa no cartório?

— Não sei, só sei que naquele dia, eles estavam numa festa muito grande, uma verdadeira orgia, ninguém era de ninguém, rolava droga, cocaína, crack, tudo que você possa imaginar, além de muito sexo!

—Como sabe? Por acaso, você os estava espiando do carro do médico? Agora todos já sabem, por que você não me conta?

Contar o quê, detetive? Em que enrascada o senhor quer me meter?

— Pelo contrário, quero que você saia da enrascada em que se meteu. Quero que me diga, que você assistiu a festa que tanto reprova, que você viu Tais participar, que eles a obrigaram a alguma coisa, não foi isso? Por que você não conta?

— Eu não sei, não sei de nada.

— Mas você pode se livrar da prisão se a gente imputar alguma suspeita a eles, se você contar o que eles fizeram. Eles mataram Taís, eles a obrigaram a ingerir drogas pesadas, a beber muito, a fazer sexo, você viu tudo, você talvez tenha até se masturbado…

— Pare com isso! Pelo amor de Deus, pare com isso! - neste momento, Paulo parecia no auge do desespero. Entretanto, não conseguia livrar-se das imagens que Júlio realçava, como se acontecessem ali, naquele momento, na frente de sua retina. Suas mãos tremem, seu corpo todo treme, sua voz falha.

— Então é verdade, você se masturbou dentro do carro.

— Eu já tinha saído. Eu não faria uma coisa dessas, não sou um depravado. Vivo com minha mãezinha, a mulher que me ajuda, que me consola, que me leva a igreja, uma mulher que professa a fé, que não suporta o pecado!

— Mas você se masturbou, Paulo. Encontramos esperma no carro do médico e fizemos o exame de DNA e consta como seu! Você não pode negar, Paulo. Isso depôs contra você. Não sei se você sabia, mas isso comprovou que você estava lá, não foi só a palavra de Rosa, foi a prova cabal de sua presença! Depois disso, foi um passo para a acusação, ainda mais com o depoimento de Rosa. Para a polícia, você se masturbou vendo a moça e como ela o repeliu, você a matou. Mas nós sabemos que você só presenciou a cena, não é mesmo?

— Por favor, eu não sou um louco, eu não queria assistir aquela atrocidade.

— Então eles mataram Tais? Eles a empurraram? Quem foi? MIguel, Henrique, Carlos, o filho do prefeito, a garota de programa que vinha ilustrar o lual ou a própria Ana? Quem a matou? Ou foram todos juntos?

— Não, não, não foram eles! Não foi ninguém! Não foi nenhum deles. Estavam drogados demais para fazerem qualquer coisa, não se sustentavam nem nas pernas. Não foram eles, eu juro!

— Então a acusação recai sobre você. Você é o assassino! Você matou uma moça indefesa, que foi sua namorada, uma moça frágil que foi empurrada covardemente para o fundo do rio. Que mal ela fez a você, afinal? Deixou-o por outro? Que importava isso? Há centenas de moças que gostariam de namorar você, de se apaixonarem por você. Por que você fez este ato covarde, Paulo?

— Ela era leviana, fraca, andava com todo mundo, ela me jogou na lama.

— Por isso a matou!Você matou uma pessoa inocente, uma jovem cheia de vida, que deixou um pai em sofrimento absoluto. Que deixou uma cidade toda odiando você! Você é um assassino, Paulo!

— Não fui eu! Não fui eu! Foi Rosa! Rosa!

sexta-feira, agosto 05, 2016

OS DEZ TEXTOS MAIS LIDOS NO MÊS DE JULHO/2016

1º - O cofre e as moedas

2º - A identidade subjetiva, a alteridade e as diferenças

3º - Um crime na cidade que sabia demais

4º - Morte lenta

5º - Moedas nas frestas

6º - Momentos e encontros

7º - Iolanda

8º- Por que temer a travessia?

9º - Metáforas cruéis: desqualificação das mulheres e negros

10º - A varsóvia que vi: suas peculiaridades, beleza, modernidade

quinta-feira, agosto 04, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - CAPÍTULO 18

Capítulo 18

Naquela noite, Júlio Ramirez não conseguia dormir. A cidade natal que cultivava em sua memória como um sonho de paz e felicidade se revelava um aglomerado de pessoas estranhas, com princípios totalmente diferentes dos seus. Nada era como imaginara, ao pensar até em voltar a morar ali. Entretanto, este tempo estava sendo de uma aprendizagem do ser humano, especialmente para o seu livro, que além de uma biografia, provavelmente seria um estudo sociológico. Havia muito a contar sobre àquela gente que costumava ser tão polida e ao mesmo tempo com segredos inconfessáveis. Provavelmente, eram iguais a todo o mundo, só que ali, o caldo cultural era muito expressivo, juntando todos com características muito peculiares.

Estava assim pensativo, quando tocou o celular quase ao seu ouvido e estremeceu, assustado. Estava ficando velho, pensou, qualquer ruído bastava para deixá-lo em estado de alerta. Devia ser uma mensagem qualquer, dessas de publicidade que acabam com a paz de cada um.

Entretanto, decidiu ver do que se tratava. Era uma mensagem de Ana, a menina que costumava fazer as suas festinhas no rio e que afirmara ter ouvido o grito por socorro de Taís. Custou-lhe abrir os olhos e encarar a luz azul do visor. Não conseguia entender, além disso, as letras eram pequenas e precisava de óculos. Agora sentia frio, por não ter se coberto, nem colocado um pijama. Procurou os óculos pela mesinha de cabeceira, achou-os no chão. Pegou-os esticando um braço, sentindo uma torção no músculo pela extensão involuntária e colocou-os imediatamente no rosto.

Leu a mensagem e ficou intrigado. “Por favor Dr. Júlio, venha aqui, na ponte, a mulher quer me matar, ela está desesperada. Acha que eu sei de tudo”.

A mensagem fora digitada há alguns segundos. Mas e se fosse uma cilada? Por que o queriam na ponte? Talvez quisessem acabar com ele para parar com a investigação que começava a incomodar muita gente. E se a polícia estivesse envolvida? Se tivessem matado a moça, por algum motivo relacionado ao tráfico de drogas?

Afinal, parece que havia uma turminha da pesada por ali. Sabia porém que precisava ir, tinha que atender o chamado. Não poderia deixar a menina à própria sorte. Mas por que diabo ela estava na ponte àquela hora. Será que esta garota não tem família?

Júlio então vestiu a roupa rapidamente e desceu até a portaria, onde deparou-se com Anderson, o garçom. Perguntou-lhe por Rosa.

— Pois é, eu estou fazendo o papel de porteiro, o senhor acredita? Aqui eu faço de tudo. Isso é que dá trabalhar em hotel pequeno, uma espelunca como essa.

— Você parece irritado, Anderson. Acalme-se rapaz.

— É que Rosa deveria estar aqui, hoje era dia dela. Faz uns plantões, sabia?

— Certamente aconteceu alguma coisa, mas me desculpe Anderson, estou com um pouco de pressa.

Afasta-se e corre para o estacionamento. No carro, fica o tempo todo revendo a cena em que Ana lhe contava sobre o que sabia do crime, ou o que imaginava, ao mesmo tempo que se mostrava transparente em seus objetivos. Não se importava em perguntar se ele já tinha fumado um baseado. Era lá que costumava encontrar os seus amigos, por isso voltava todos os dias ao lugar. Esta mensagem, no entanto o intrigava. Por que Ana o chamaria daquela maneira. Tudo estava muito estranho. Não demorou muito, porém, Júlio chegava à região em que a adolescente indicara, ficando um pouco afastado, à espreita. Escondeu-se atrás de um painel de publicidade, mas percebeu que havia duas mulheres na parte final da ponte e dali, apesar da pouca iluminação percebia que se tratava de Ana realmente. Não conseguia identificar a outra pessoa. Quem poderia ser, quem estaria ameaçando a menina e por que motivo? Era o que precisava descobrir. Aproximou-se um pouco, tentando esconder-se para não ser visto e tomar alguma atitude, caso fosse necessária. Foi aí que teve a grande surpresa: reconheceu a mulher que discutia com extrema agressividade. A mulher a quem Ana se referia era Rosa, a maestrina. Então era como pensava, Rosa estava envolvida de alguma forma com o crime. O que levaria uma mulher aparentemente segura e independente tomar aquela atitude com Ana? Se bem, que Rosa já apresentara nuances bem estranhas em sua personalidade.

Júlio ficou num ponto estratégico, sem que Rosa o visse, mas que poderia interceder no caso de uma tentativa de agressão mais perigosa. No fundo, considerava um exagero o fato de Ana pedir por socorro, aventando uma presumível tentativa de assassinato, mas mesmo assim, não custava prevenir. Esforçou-se para ouvir o diálogo exaltado.

–O que a senhora quer de mim? Eu já lhe disse que não sei de nada.

– Você não sabe de nada agora, mas andou dizendo coisas por ai, que deixou muita gente de cabelo em pé. Andou até vendo o carro do médico no dia do crime, você é uma vadia drogada, e eu sei que vai fazer tudo pra conseguir se safar da prisão.

Júlio não podia acreditar que Rosa estivesse tão desfigurada, como se tomada por uma fúria incontrolável. Revelava-se uma mulher violenta, capaz de cometer qualquer ato de vingança.

– Não seja idiota. Eu não tenho motivo para ser presa. Além disso, sou menor. E o que eu fiz pra senhora? O que tem a ver com o crime? Por acaso foi o seu amorzinho Paulo que matou a moça?

– Sua desgraçada, cale essa boca. Você não me fale do Paulo, que é um rapaz bom, direito. O que você tinha que dizer que viu o carro para o detetive, agora ele já sabe que não foi o médico que estava no carro, porque estava na oficina, naquele dia. Agora, ele já deve estar sabendo que o Paulo estava dirigindo o carro do médico, sua vaca!

– E o que ele fazia com o carro do doutor? Veio participar do nosso lual?

– Ele não usa as suas drogas, sua vagabunda! Você tem que sumir dessa cidade, já que não tem mãe, não tem família, vive com tio que não passa de um marginal!

– Então é verdade! Foi o Paulo que matou a Taís! Claro, ele era apaixonado por ela, estava morto de ciúmes. O seu amorzinho é o assassino! Pois fique sabendo que vou contar para o detetive e ele vai apodrecer na cadeia!

— Não vai não, isso eu tenho certeza de que não vai fazer, sua putinha, sabe por quê? Porque eu vou matar você! Vou fazer o mesmo que ele fez com Taís, a outra vagabunda , vou te atirar daqui. É isso o que você queria, não é?

Segura-a pelo pescoço, tentando arrastá-la para o meio da ponte. Neste momento, Júlio surge de seu esconderijo, gritando: – Parem. Parem onde estão. Parem ou eu atiro!

– Detetive! - exclama Rosa em absoluto desespero. Júlio continua apontando a arma, enquanto a acusa.

– Vou chamar a polícia, Rosa você será presa por tentativa de homicídio e o seu protegido por assassinato.

– Não, doutor, pelo amor de Deus, ele é inocente. Eu juro! Essa menina anda inventado coisas por aí.

– Mas foi você mesma quem afirmou que ele pegou o carro do médico que estava na oficina, certamente para incriminá-lo, para ele mesmo fazer o negócio. Foi um plano muito bem pensado, não é Rosa?

– Meu Deus, o que eu fui fazer - grita em desespero, sentido-se perdida - que desgraça, meu Deus! Paulo não pode sofrer uma fatalidade destas! Ele vai morrer, ele é muito fraco, doutor!

– Mas foi forte o suficiente para matar uma moça indefesa. Assim como você iria fazer! Agora fique quieta ai, que a polícia já vai chegar! E você, Ana, para onde vai?

– Vou embora, não tenho nada mais a fazer aqui.

– Tem sim. Você vai depor na polícia. E eles farão um mandado de busca a Paulo, que está na capital, pois que volte em seguida. Será preso.

– Eu não sei quase nada doutro, só o que lhe falei, que ouvi o grito de Taís, quando foi assassinada. Eu nem sabia que o idiota tinha pego o carro do doutor.

– Você sabe mais coisas, sim, Ana e terá de depor. Vamos. Não tente fugir.

Nisso,Ana foge, desaparecendo na escuridão da ponte, perdendo-se entre as ribanceiras e entrando no bosque, região que ela conhece muito bem. Júlio até dispara um tiro para assustá-la e impedir a fuga, mas é ineficiente. Rosa sorri com ironia, enquanto resmunga: – Sobrou pra mim, aqui, a velha que não tem nada a ver com isso.

terça-feira, agosto 02, 2016

Alfredo Martins: o homem ideal e as várias formas de amar

Todas as noites Alfredo Martins fechava a porta de ferro do velho cartório, sempre de maneira metódica, puxando-a devagar para não desengatar o trilho e agachando-se enquanto trazia até o chão, para finalmente engatilhar o trinco e o cadeado ao mesmo tempo. Era de praxe. Era o modelo deixado por seu pai. Era o correto.

Alfredo Martins era na vida pessoal, como agia em seu trabalho: um tabelião responsável e rígido. Tinha a pontualidade e a responsabilidade no trabalho como modelo indispensável para uma integridade ética e moral em suas relações profissionais. Casado, sem filhos e afeito a servir à comunidade através de missões filantrópicas de forte poder ético, o abonavam como um homem de qualidade familiar e social. Religioso e pacato em sua vida particular, Alfredo Martins tinha um único único hobbie, que era a pesca e o fazia apenas acompanhado da esposa, porque considerava de bom tom experienciar também os prazeres como um casal.

Naquela manhã porém, Alfredo Martins sentia que alguma coisa havia quebrado dentro de si, quando antes de abrir a cortina de ferro do cartório, retirou o cartaz de aviso fúnebre. Leu a frase, como se desconhecesse o conteúdo e depois dobrou-o, guardando o pedaço de papel no bolso. Em seguida, levantou a porta com cuidado, como de hábito, mas suas mãos tremiam. Seu corpo parecia debilitado e um suor frio escorria por sua coluna vertebral, invadindo além das costas, as nádegas, que agora, agachadas, sentiam o frio instalar-se como se estivesse molhado. Levantou-se com esforço.

Antes de abrir a porta de vidro, que ficava um pouco além da cortina levantada, parou um momento, observando o próprio rosto, parecendo um desconhecido. Acenou triste, a cabeça e abriu a segunda porta, dirigindo-se para o interior do cartório.

Levantou a portinhola do balcão e sentou-se em sua mesa, como de hábito.

Daqui a pouco, chegariam os cinco funcionários que trabalham consigo.

Jarbas, o mais velho de todos, que fora inclusive contratado por seu pai, nos anos 70 e que já deveria ter se aposentado.

Luís, um bonachão que aparentava quarenta anos, que dizia ser casado, mas passava as noites divertindo-se com mulheres e bebidas. Tinha um certo rancor por essas demonstrações de alegria e obscenidades que ele tanto desaprovava.

Nataliya deveria ser a mais nova, embora às vezes parecesse uma mulher tão velha quanto Eva, requisitando a todos, exigindo provas e justificativas, assoberbada como se estivesse prestes a ter um colapso nervoso. Raramente parecia calma e controlada. Será que Nataliya era casada? Nunca soubera de sua vida pessoal, a não ser o que um ou outro comentava, como por exemplo, que tinha vindo da Ucrânia e morava com uma mulher idosa que ajudara a cuidar. Diziam as más línguas que ela pretendia ficar com o apartamento da velha. Mas quem poderia afirmar tal coisa? Às vezes, vinha-lhe na mente o pensamento de que ela era lésbica e não podia evitar uma certa repulsa.

Depois deles, dois estagiários, uma jovem muito bonita, mas um tanto intrometida nos assuntos do cartório e segundo alguns, um tanto desfrutável. Por último, um rapagão de seus 18 anos, muito tímido, mas bem responsável.

Alguns dias atrás, também havia seu pai, que gostava de ficar algumas horas no lugar onde passara a vida trabalhando, tal como ele, um tabelião tão bem conceituado na cidade. Hoje porém, ele tirava o aviso fúnebre avisando que seu pai não viria mais. Era por isso a fisgada no peito, o suor destemperado, o tremor nas pernas. Alguma coisa se quebrava dentro de Alfredo Martins.

Tinha vontade de tomar um café, mas não iria na padaria da esquina. Não queria ver ninguém, muito menos conversar.

Olhou para o relógio e percebeu que ainda faltava uma hora para o início do expediente.

Não conseguira dormir toda a noite, ficara o tempo remoendo pensamentos confusos, situações que lhe vinham à mente, problemas que o perturbavam, mas dos quais não poderia tentar nenhuma solução. Ah, fora uma noite terrível.

Lá fora, agora começava a garoar. Tinha a ver com a atmosfera triste. Garoa e frio. Daqui a pouco, quem sabe, uma chuva torrencial.

Voltou-se para o velho relógio da parede, devia ter uns cem anos, no mínimo, afinal passara de geração a geração e continuava lá firme, badalando as horas, as meia-horas, o tempo passando. As pessoas vindo e saindo, vozerio lá fora, buzinas, apitos, roncos de carros, conversas animadas, brigas, violência. Tudo passava à frente de sua porta envidraçada.

Virou o rosto para a porta, tendo a impressão que ouvira uma batida fraca. Era verdade. Havia alguém na porta, um homem aparentando uns trinta anos, de casaco preto e bastante alto.

Tinha vontade de não atender, mas alguma coisa lhe dizia que devia fazê-lo.

Aproximou-se da porta e abriu uma folha, perguntando o que queria.

O homem o fitou longamente como se o conhecesse. Depois, num meio suspiro, fez-lhe um pedido: — Pode me emprestar o celular?

Alfredo emudeceu. Seria um assaltante àquela hora da manhã?

O outro prosseguiu, esclarecendo, ansioso, a voz falhava de vez enquanto, o olhar sempre fixo no de Alfredo, como se tentasse provar que não lhe faria mal.

— Desculpe, meu nome é Jean Marques. Tive um pequeno acidente na esquina aqui perto e fiquei sem bateria. Preciso falar com uma pessoa, mas como vê, a cidade está vazia. Então percebi que havia alguém aqui, no cartório e decidi pedir ajuda.

Alfredo fez um gesto apontando o telefone fixo.

Jean sorriu, com um comentário.

— Não tinha percebido que havia um. Que bom. Será bem rápido, está bem?

Alfredo levantou-se e encostou-se no balcão, olhando para a rua, enquanto o outro se aproximava do telefone na mesa próxima. De canto de olho observa a cena: o homem falando com uma ansiedade exarcebada. Percebeu que estava bem vestido, roupas de grife e parecia bem apessoado.

A ligação não demorou muito, mas parece que não teve um bom resultado, pois Jean se mostrava desanimado.

Desta vez, Alfredo interviu: — Aconteceu alguma coisa?

— Aconteceu. Quero dizer, não se preocupe. Eu vou dar um jeito, com certeza.

— Como foi o seu acidente? – completou, justificando-se – Desculpe, ouvi alguma coisa sobre isso...

— Na verdade, eu não bati em ninguém nem fui batido. O meu carro caiu num buraco, uma verdadeira cratera na esquina. Rebentou o pneu e o aro entortou. Agora terei que esperar o guincho para que tirem o carro de lá e perderei muito tempo.

— E como pretendia resolver a situação?

— Queria que um amigo me ajudasse tomando essa responsabilidade para si, mas não foi possível. O cara não me ajudou, sei lá, deu uma desculpa. É que não tenho ninguém na cidade, apenas ele, entende? Agora vou perder o meu compromisso.

— Não pode adiar para outro dia?

— Infelizmente não. Era uma entrevista de emprego. São três candidatos selecionados, eu era um deles, minha entrevista seria a segunda e não poderia perder de forma alguma.

— Acha que não dá mais tempo?

— Meu amigo, tenho 12 minutos para percorrer 50 quilômetros. Acabou. Perdi. – terminou a frase em total desamparo.

Alfredo o olhou intrigado. Pretendia perguntar alguma coisa, mas viu a decepção estampada no rosto do homem. Então, acrescentou que sentia muito. Se pudesse ajudá-lo, faria de bom grado.

— Não tem problema, isto é, problema tem e bem grande, mas agora não há o que fazer. Vou tentar ligar para uma oficina mecânica para levarem o carro. Não posso deixá-lo lá, abandonado.

Alfredo observou que a joalheria defronte começava a abrir as portas, então a hora do início do expediente não demoriaria muito. De certa forma, a proximidade do movimento do dia o incomodava, principalmente porque estava sendo inútil em sua atividade rotineira. Auxiliar aquele homem o perturbava, forçava-o a sair dos trilhos do trabalho.

Quando voltou-se para o homem, na expectativa de que se afastasse, percebeu que ele cambaleou um pouco, parecendo sentir alguma tonteira.

— Ei, está se sentindo mal?

— Só me faltava essa. Eu não to bem mesmo, acho que vou desmaiar.

— Espere aí, quem vai desmaiar não anuncia – mas ao terminar a frase, o homem foi amolecendo o corpo e segurando-se no balcão para não cair.

Alfredo correu ao seu encontro, tentando levá-lo para a parte traseira do cartório, onde ficava um pequeno refeitório e um quarto onde seu pai às vezes, costumava tirar uma soneca. Com muito esforço, segurou o rapaz pela cintura e foi carregando-o até o quarto, quase puxando-o pois seu corpo se transformava frágil e ao mesmo tempo muito pesado. Pedia que ele o ajudasse, que não se apagasse, que lutasse para ficar alerta, bem atento, mas quase não conseguia seu intento.

Felizmente, deu tempo para que o deitasse na cama. O homem não desmaiara e em dado momento, seu corpo ficou muito próximo ao de Alfredo, porque a coberta presa sob o corpo o impelia ao seu encontro.

Alfredo ainda tentou se afastar, sentindo os lábios do rapaz roçando os seus e teve um estremecimento, quase um abalo. Num salto, levantou-se, enquanto o homem se queixava de muito frio.

Alfredo foi até uma cômoda velha, retirou um cobertor de lã e cobriu o rapaz.

Afastou-se um pouco e o observou da porta, tendo uma sensação estranha que o incomodava.

Retirou-se rapidamente e dirigiu-se para a frente do cartório, acomodando-se no balcão.

Em seguida, os funcionários começaram a chegar. Alguns o cumprimentavam pela perda do pai, outros apenas acenavam a cabeça e se dirigiam ao cartão-ponto.

Alfredo reuniu-os num círculo e elaborou um pequeno discurso, pedindo que fizessem o trabalho como de hábito, como se seu pai estivesse ali. A vida continuava e ele tinha que tocar o negócio em frente.

Quando acabara a conversa, Jean que deixara o quarto e em passos firmes apareceu na porta.

Todos o olharam intrigados.

Alfredo, constrangido, tentou esclarecer o motivo daquela presença ali, em seu cartório. Embasbacou-se na explicação e exigiu que se afastassem e começassem as suas tarefas. O dia estava apenas começando, incentivou.

Jean aproximou-se de Alfredo, que o olhou enviesado, irritado por aquela aparição inadequada. Que dia, meu Deus, pensou, tudo acontecia ao mesmo tempo.

— Desculpe o incômodo, meu amigo. Mas acho que me restabeleci, foi uma tontura idiota, certamente pelo nervosimo da situação, mas estou bem agora e preciso resolver os meus problemas.

— Acho que tem razão.

— Gostaria de saber o seu nome. Afinal, você foi muito solidário comigo, jamais vou esquecer a sua atitude – e completou, com um olhar profundo, ao qual Alfredo evitou – muito obrigado.

— Todo mundo me conhece por aqui. Se você perguntar em qualquer esquina, descobriria o meu nome – respondeu ríspido. Em seguida, emendou – Alfredo Martins é o meu nome.

— Prazer Alfredo, mais uma vez quero agradecer pelo que fez por mim – estendeu-lhe a mão e ficou à espera de Alfredo, que demorou a estender a sua. Jean ainda completou: — Espero sinceramente que nos encontremos novamente. Em seguida, pegou a mochila que havia deixado numa cadeira e afastou-se ante o olhar de Alfredo e dos funcionários que da outra sala espiavam curiosos.

Um zum-zum se formou, a princípio um ruído moderado, mas logo se transformando numa algazarra de vozes e sorrisos. Alfredo, irritado, dispersou o grupo mandando que voltassem ao trabalho.

Entretanto, durante todo o dia, Alfredo tinha a sensação de que alguma coisa nova e desagradável interferia em seus pensamentos, de modo a tornar-se angustiado, como se o mundo andasse para trás.

Já não bastava a morte do pai, surgia uma ausência não conhecida, uma saudade de alguma coisa que não vivera, uma estranha melancolia.

Decidiu ir ao quarto, para verificar se estava tudo em ordem. Percebeu que a coberta estava dobrada sobre a cama estendida.

Sentou-se e fez um afago sentindo ainda o calor do corpo que ali estava. Retirou a mão, como se esta queimasse numa chama ardente.

Levantou-se, andou pelo aposento e de repente avistou um objeto no chão. Abaixou-se e pegou um pequeno cartão com o nome e o telefone de Jean Marques. Pensou em jogá-lo fora, na lixeira, mas num pequeno lapso de tempo, decidiu guardá-lo no bolso.

À noite, ao voltar para casa, a vida de Alfredo transcorria normal. Tudo como era antes, sem qualquer vestígio de sentimentos confusos, a não ser o luto natural pelo pai.

Jantou com a mulher, teceu alguns comentários sobre o trabalho, sobre o tempo injusto de garoa e frio ou sobre qualquer coisa que justificasse um comentário insignificante.

Também assistiu TV e fez críticas ferrenhas ao governo, mas só quando foi dormir que a coisa voltou.

No quarto escuro, a mulher dormindo ao seu lado, um tilintar de chuva no telhado, a persiana batendo com o vento e aquela sensação de abandono e dor.

A melancolia de um passado que não foi seu, de uma história não vivida e uma leve excitação o deixava ainda mais confuso.

A imagem do homem vinha ao seu encontro, o olhar profundo, a barba rala e o seu jeito de passar a mão leve pelos lábios, como se precisasse tocá-los para pensar no que diria, a voz grave e serena.

Além disso, aquele leve roçar de lábios, aquele gesto pecaminoso e devasso. Por que aquela imagem não lhe saía da cabeça?

Alfredo não conseguia dormir.

Levantou-se e dirigiu-se para a janela da sala. Olhou pela vidraça e a chuva se tornava cada vez mais insistente.

O mundo parecia desabar naquele momento.

Talvez o seu mundo interior também começasse a ruir.

Afastou-se da janela, foi ao banheiro para urinar e teve uma ereção.

Sentiu seu corpo tremer e de repente, como um adolescente, começou a masturbar-se e o fez com tanta intensidade e furor, que um jato intenso de esperma atingiu a parede, deixando-o com as pernas trêmulas e o coração assustado.

Abaixou a cabeça na pia, lavou o rosto com água fria e chorou.

Olhou-se no espelho e via Jean sorrindo, agradecendo a ajuda. Socou o espelho com raiva até ferir a mão e fazer um traço no vidro quebrado.

Voltou para a sala, pegou o celular e deixou-se ficar, mexendo a esmo nos aplicativos, como se assim, liberasse o sofrimento que o invadia. Mas nada o afastava de seus pensamentos, de sua aflição.

Sabia que alguma coisa havia mudado dentro de si ou talvez apenas houvesse um despertar de um desejo latente, que nunca fora liberado.

Deixou o celular sobre a mesa e voltou para o quarto. Precisava dormir porque no dia seguinte, tudo voltaria ao normal.

Alfredo Martins era na vida pessoal, como agia em seu trabalho: um tabelião responsável e rígido. Tinha a pontualidade e a responsabilidade no trabalho como modelo indispensável para uma integridade ética e moral em suas relações profissionais. Não destoava em nada a sua vida pessoal de homem bem casado e benemérito da sociedade.

Olhou mais uma vez para o relógio da parede que devia ter mais de cem anos, as badaladas nas horas certas, nas meia-horas, o tempo passando, o mundo girando, a vida assumindo o seu espaço e ele como o seu pai assistindo o passar das horas, dos dias, da vida.

No bolso, um cartão queimava-lhe os dedos.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/homem-solitário-parque-noite-1394395/

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - CAPÍTULO 17

No capítulo anterior o detetive Júlio Ramirez encontrou-se com o delegado Borba. A partir dessa conversa, teve novos planos e num encontro com o seu amigo Jairo, um madereiro que estava trocando de negócios, com a intenção de instalar um camping na cidade, decide falar sobre os suspeitos.

Capítulo 17


Júlio encontra o amigo Jairo no bar. Tomam uma cerveja e recordam os velhos tempos. Em seguida porém, o tema passa a ser os crimes não solucionados na cidade. Jairo pergunta a quanto anda a investigação do detetive.

— Bom, meu amigo, a passo de tartaruga, como tudo nessa cidade. Mas acho que estou no caminho certo.

— E o que se passou com o delegado?

— Como sabe que estive lá?

— Marília me contou. Ela viu quando você se dirigiu à delegacia.

— Aquela moça fala demais, não acha?

— Sabe de uma coisa, Júlio? Eu ouço e fico calado. Deixo que as pessoas expressem os seus sentimentos, as suas curiosidades e vou sabendo de tudo. É uma boa tática, acredito eu.

—Tenho certeza de que sim.

— Então esteve na delegacia mesmo?

— Estive sim, e a conversa com o delegado Borba a princípio não foi muito producente, mas com o passar do tempo, sei que incuti umas caraminholas na cabeça dele.

— E o que você queria?

— Ajuda. Queria que fizesse uns interrogatórios. Tenho alguns suspeitos, principalmente pelo crime da moça, mas pode haver alguma relação com os demais.

— Você pode me dizer alguma coisa sobre isso?

— Você é meu amigo e confio em você. Claro que sim, mas precisamos conversar com mais sigilo – e aproximando-se um pouco, no balcão onde estão lado a lado, Júlio prossegue em tom mais baixo – tenho alguns suspeitos sim.

— É gente importante?

—Digamos que é gente importante ou conhecida.

Jairo ri irônico, afirmando que todo mundo é conhecido na cidade. Júlio — Sim, mas veja bem. Há pessoas que são conhecidas pela sua atividade, outras porque tem um parentesco importante. A isso que me refiro.

— Aí a coisa muda de figura. Se falamos no prefeito, por exemplo...

— Você sabe de alguma coisa dele?

— Na verdade não, apenas o que todo mundo sabe, ou seja, que é um prefeito relapso. A cidade vive na penúria, faltando asfalto nas avenidas principais, a ponte está em estado precário, as praças em verdadeiro abandono. É meu amigo, votamos mal, muito mal. O sujeito que está aí não correspondeu às nossas expectativas.

— E quanto ao filho dele?

— Esse aí dizem que está envolvido com drogas. Mas é o que o povo diz. Não se tem certeza de nada.

— Pois eu acho que ele é um dos suspeitos – Júlio volta-se para os lados, para ver se há alguém nas redondezas, mas aliviado, percebe que o bar está praticamente vazio. Apenas um casal de namorados conversa animado numa mesa aos fundos, próxima à janela que dá para a esquina. Então, ele prossegue.

— Este rapaz é protegido pelo pai, como andei averiguando. Ele promove as festinhas à beira do rio, contrata prostitutas para abrilhantar as festas, consegue drogas e segundo me parece, é um cara violento. E além disso, meu caro, numa festa dessas onde acontece de tudo, pode acontecer um crime, porque estão desorientados, completamente.

— Sim, é bem provável.

— Mas há outros suspeitos, eu preciso chegar a um definidor comum.

— Como assim?

— Alguns tinham motivos para matar a moça, outros, como no caso do grupo do lual, provavelmente em virtude de drogas e do tráfico.

— E quais seriam os outros?

— Bem, temos o próprio médico, o doutor Ricardo Silveira. Segundo consta, a moça ficou completamente apaixonada por ele, queria que namorassem a todo custo. E o que ele me contou, é que tiveram alguns encontros casuais, sem qualquer compromisso, embora ela tenha confundido tudo. Para livrar-se do incômodo, ele a matou, afinal tem um nome a zelar, uma namorada com muito prestígio na capital.

— O senhor acha que ele a teria matado por isso?

— Tudo é possível, meu amigo. Nos dias atuais, não se sabe em quem confiar, mas particularmente, eu não acredito não. Vou lhe contar um segredo, pra mim, este médico é um bom sujeito. Ele não mataria ninguém. Para a polícia, entretanto, é o suspeito número um.

— É o que todo mundo fala.

— Aqui impera o senso comum.

—E os outros?

— Veja bem, tem um sujeito muito estranho, inclusive é amigo de Ricardo, o médico, embora eles não sejam muito chegados, na verdade.

Jairo coça o bigode, intrigado. Os olhos pequenos e brilhantes expressam uma curiosidade intensa, como se estivesse assistindo um filme de mistério. Aguarda paciente o resultado da lista de suspeitos. Júlio sorri, satisfeito, observando o interesse do amigo.

— Quem é esse cara?

— Raul Soares. Já ouviu falar? É o filho da mulher que me chamou até aqui, por incrível que pareça, a dona Sara Soares.

— Mas por que você acha que ele tem alguma coisa a ver com o crime?

— Não sei se diretamente, mas ele é um cara complicado. É um homem adulto, que foi deixado pela mulher e não se conforma. Vive fumando maconha como um adolescente em crise e se diz atacado por um pessoal da pet shop, que queria matá-lo.

— É verdade isso?

— É o que diz. E olhe como pretendiam matá-lo, injetando insulina no infeliz. A sorte dele é que é diabético.

— Como assim? Não entendi a conclusão.

— Porque segundo os especialistas, as pessoas saudáveis que forem injetadas com insulina podem morrer e o pior, não se descobre o motivo da morte com facilidade.

— Que coisa incrível!

— Pois é meu caro. E imagine você, que a mãe me contratou por um motivo muito especial que já lhe conto daqui a pouco. Na verdade, ela me falou dos assassinos deste tipo de crime, dos que usavam a insulina e principalmente em turistas. O filho diz que foi uma vítima, mas ela não acredita, considera tudo uma loucura da cabeça dele, porque anda muito depressivo por ter sido abandonado pela mulher. Quanto aos crimes, nada foi provado, inclusive o inquérito arquivado. Mas o mais absurdo de tudo isso é o motivo pelo qual me contratou. ela quer que eu investigue Rosa, a maestrina.

— A mulher que trabalha no hotel?

— Sim, ela atua em várias frentes, inclusive é professora aposentada, se não me engano.

— Acho que sim. Mas por que investigá-la?

— Segundo Sara, o filho, o tal de Raul está há muito tempo no coral e sempre foi humilhado pela maestrina. Ela acha que a mulher tem alguma coisa a ver com os crimes dos turistas e inclusive o assassinato de Taís. Para Sara, Rosa no fundo, tem interesse no seu filho.

— E só por isso, mataria todo mundo? É hilário, não acha?

— Não sei meu amigo, não sei. O que eu posso depreender dessa história é que Rosa é uma mulher carente, que precisa do afeto de alguém para sobreviver. Ela inicialmente teve um afeto muito grande por Raul, mas depois desentendeu-se e passou a humilhá-lo.

— Mas o que isso tem a ver com os crimes?

— O ser humano é muito complexo, meu caro. Rosa transferiu o seu afeto para outra pessoa e passou a odiar Taís, exatamente por esse motivo.

— Agora deu um nó na minha cabeça. Não to entendendo nada.

— Já vou lhe explicar. Taís tinha um namorado, um mecânico chamado Paulo.

— Sim, e daí?

— E daí que o Paulo é protegido de Rosa, inclusive quando ele chegou na cidade, ela o ajudou, concedendo-lhe o direito de morar num apartamento que aluga. Dizem que está perdidamente apaixonada pelo rapaz. Isso pode tê-la levado a cometer o crime, não concorda comigo?

— Pensando por esta lógica, sim, sem dúvida.

— Mas tem outro suspeito.

— Outro? Meu Deus, é um quebra-cabeça!

— Sim, o mecânico. Ele amava Taís e tinha muito ciúmes dela, a ponto de tomar satisfações com o médico. Ele pode ser o suspeito número um. Preciso investigá-lo, logo que volte à cidade.

— É meu amigo, você vai ter muito trabalho para desenredar esta trama.

— Você tem razão, até mesmo porque eu estou pensando noutra pessoa. Você conhece o veterinário da cidade? Ainda não sei o nome dele.

— Pois por incrível que pareça, este eu não conheço.

— Pois segundo minhas investigações, ele é um sujeito muito reservado e reacionário. Parece que é engajado num grupo de ultra-conservadores que pretende acabar com os avanços sociais e entre eles, o que ele considera ultrajante na sociedade.

— E que relação pode ter com os crimes?

— Se o cara é reacionário desta forma, um Bolsanaro da vida, quem pode afirmar que ele não lutou para acabar com o que considera imoral, como a própria Taís, que procurava drogas nas festinhas do rio, ou nos turistas que trazem novos costumes à cidade?

— Então, meu caro detetive, temos uma lista enorme de suspeitos.

— É que não lhe falei no seu Domingues.

— Seu Domingues? O velhinho que era dono do posto? Está brincando!

— Ele acusa o médico de negligência com a sua esposa, quando ainda era residente, aqui na cidade. Segundo ele, ela morreu numa crise diabética por erro médico. Será que ele não quer vingar a morte da esposa, provocando outras mortes? Temos que considerar todas as hipóteses, meu amigo. Todas.

— É uma loucura tudo isso. Jamais poderia imaginar que isso acontecesse em nossa cidade tão pacata.

— Mas falando em pacata, me diga como está o seu empreendimento do camping, que você quer construir poróximo ao rio, naquela região da ponte?

Jairo emudece. De repente, uma sombra passa por seus olhos e expressa uma preocupação latente.

— A coisa tá difícil. Não consegui levar adiante. Tem o problema do Ibama que não está liberando, além disso, essa série de acontecimentos está prejudicando o meu negócio. Não to conseguindo fazer uma boa publicidade para uma futura instalação do camping.

— Por causa dos crimes?

— Principalmente destas malditas festas que os jovens promovem. O povo quer um lugar tranquilo, não posso oferecer isso por enquanto.

— Quem sabe as coisas se acomodem, não?

— É o que eu espero. Mas tenho certeza de que de uma maneira ou outra, vou conseguir fazer o meu investimento na cidade. Você vai ver.

Os dois encerram a cerveja e Júlio convida o amigo para uma outra rodada. Este no entanto, parece subitamente apressado em retirar-se. Afasta-se em seguida e Júlio fica observando-o pela vidraça do bar, intrigado.

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