domingo, outubro 11, 2015

A PALESTRA

Entrei inopinadamente na sala, pernas bambas, suor na testa, nas mãos, lábios trêmulos, vexado. Elaborei desculpas. Desviei das centenas de olhares que investigavam curiosos. Fazia calor e eu vestido da cabeça aos pés com agasalhos pesados, maleta na mão, celular no bolso, relógio descolando da pulseira. Investi até uma cadeira, abri a pasta, espalhei papéis, fiz barulhos estrondosos no silêncio absoluto.

O palestrante pigarreou, deu alguns passos, me olhou de soslaio, retomou o tema, irritado. Juntei o que pude, caído ao chão, esparsos documentos, entre fotografias, pregos, alfinetes, alicate de unhas, chaveiros. A cadeira rangeu, eu me abaixei devagarinho, mas empurrei os pés de metal, riscando o piso. Foi o suficiente para cessar a palestra. Ele me olhou novamente, e quase em súplica, exigiu silêncio, apenas com os olhos. Todos os demais viraram os pescoços, narizes, ventas e resmungos em minha direção. Retorci-me levantando a pilha de objetos do chão, fazendo movimentos de malabarista, temendo aumentar o ruído. Ajeitei-me na cadeira. Aquietei-me. Só por fora. Coração alertava, espaldando-se dentro do peito, batucando que nem índio em dia de festa. Estava pálido, acho que até os lábios embranqueceram. Era desafio grande ficar ali, atrasado, danoso, inoportuno.

O mestre recomeçou. Tentei prestar a atenção, mas os pensamentos se confundiam e se misturavam na minha mente, fazendo um entrelaçado de imagens que eu não conseguia sintonizar. Respirei fundo, imaginando o ar inspirado invadir o cérebro e limpar de vez as teias de aranha, há tempo engendradas, ocupando espaços indevidos. Expirei com força para fora, expelindo o negativo, numa nuvem preta, maciça, intensa. Foi um som tão forte e inesperado, até por mim, que o homem parou novamente, desta vez assustado, talvez pensando que eu estava passando mal. Pedi desculpas, expliquei que estava tentando relaxar, me concentrar para entender bem a palestra, mas o som saiu assim forte, assim intenso, assim inesperado que até eu me arrepiei. Parecia espírito do além.

O palestrante era baixinho, agora reparava bem. Foi bom falar, esvaziei um pouco a ansiedade. Tanto que pude observar as coisas, até o jeito dele. Nariz adunco, boca grande, lábios finos e olhos pequenos, salientes, caídos das órbitas sob uns óculos leves, na ponta do nariz. O cabelo, entradas enormes, clareiras imensas na floresta rala de pelos alinhados para trás. A voz era forte, gutural, enérgica. Falava em... em que mesmo? Ah, inserção de valores. Como assim? Natureza morta? Seria sobre arte, pintura, ecologia? Nada disso, o assunto versava sobre política, mas tudo é política. Até o ar que respiramos está atracado à política. A água, cada vez mais rara. E o tratado de Quioto?

Faltava-me ar, naquele momento. Pensar nisso me dava aflição. Até alergia. Pior, comecei a fungar. Fungar baixinho, pigarreando de leve, tentando conter o espirro. Parecia cacoete, mas sempre que alguma coisa me incomodava, vinha aquela cosquinha irritante na garganta, aquele arder nos olhos, uma tosse iniciante decidida a permanecer ou um monte de espirros magistrais, exagerados, exorbitantes. Respirei fundo novamente, mas desta vez, sem nenhuma técnica para não acordar a plateia. Mas alguma coisa me irritava, porque o nariz coçava, a tossesinha surgia no fundo da garganta, aparecendo desanimada no início. Eu, evitando o pior. Se me desse conta o que me fazia mal, cessava definitivamente a alergia. Mas eu ainda não sabia o que era. Olhei para alguns participantes que estavam mais próximos, eu na cadeira, no corredor do meio. Ao me lado, fileira de dois de um lado, e no outro, outras duas alas totalmente preenchidas. Um rapaz negro do meu lado, uma tarja na testa, segurando os cabelos. Olhar compenetrado, jeito estudado de intelectual, postura adequada, pernas esticadas, mãos nas coxas, como esperando a apoteose final, o confronto das ideias, o debate, a resposta definitiva. Ao seu lado, uma moça, cara de estudante, óculos pesados sobre o nariz arrebitado, boca entreaberta mastigando vez que outra um lápis com o qual devia fazer anotações. Cabelos castanhos, luzes, soltos sobre os ombros, mãos finas e pequenas, unhas pintadas de rosa. No chão uma mochila gorda, cheia de penduricalhos, inclusive um chaveiro com um ursinho na ponta.

Parei de examinar a plateia, porque ouvi um hã hã de censura, do senhor que estava ao meu lado, sentindo-se incomodado pela minha cabeça virada em sua direção, nariz quase colado no dele, o qual nem tinha percebido. Tinha um bigodão, desses de contornar lábios, quase se juntar na testa, olhar aguçado, perspicaz, interessado. No colo, um laptop, conectado à Internet. O reflexo não me deixava ver, mas eu jurava que era um chat em que participava, dissimulado, aparentemente anotando informações. Então resolvi perguntar: –quem é ele? – apontei para o palestrante.

O homem parecia ter sido atingido por um bombardeio no Líbano. Sacudiu o bigode, mexendo a boca, aflito. Olhou-me com censura. Foi falar alguma coisa. Mas espirrei. Espirrei uma, duas vezes, três, inúmeras vezes e um muco insistente corria-me do nariz à boca, misturando-se ao queixo e eu passando as costas da mão, desolado.

O orador interrompeu a palestra mais uma vez. Ia pedir para eu afastar-me, tentar melhorar lá fora, talvez depois voltar, mas não lhe dei o prazer de dizer-me tudo isso.

Levantei-me, fiz um gesto explicando a alergia, um aceno qualquer, nem precisava e ia afastar-me, empurrando a cadeira devagar. Nisso, o bigodudo afirmou: – é um candidato. Está fazendo campanha. Nós somos seus correligionários, entende?

Ele foi generoso e paciente. Talvez quisesse a minha aprovação. Mas agora, eu tinha entendido o motivo da minha alergia. Puxei a ponta da camisa e assoei o nariz, com náusea. E me fui.

MINHA APREENSÃO DA VIDA E A DOS OUTROS

Custou-me entender como se processam os pocionamentos e suas repercussões na mente das pessoas. Como enfim, acontece ou não o entendimento das discussões que colocamos em pauta, seja nas redes sociais, no grupos em que interagimos, nos encontros com amigos, etc. Custou-me perceber que as coisas não fluem com a delicadeza das flores da primavera, pelo menos, aquela de nossos sonhos. As coisas seguem o seu caminho muitas vezes tortuoso e árduo, de acordo com a experiência, conhecimento, tradição, cultura e apreensão da realidade de cada um.

Então, entendi que cada pessoa reage de acordo com a sua realidade interior, apreendida, assimilada e traduzida segundo os seus princípios e maneiras de pensar. Há muitas formas de expressar o que sentimos ou pensamos, mas para que haja a comunicação na íntegra, é preciso que os canais não sejam obstruídos por quaisquer ruídos. É preciso que o que pensamos ou sentimos não se manifeste apenas como um simples palpite ou uma opinião sem fundamento histórico, sem a compreensão de todos os aspectos que compõem o tema proposto. Precisamos estar bem embasados para expressar o pensamento. Nem sempre porém, o outro lado do canal possui esta mesma apreensão da ideia proposta. Ou mesmo, não possui conhecimento profundo sobre o tema, que o respalde para uma discussão fecunda. Pode ocorrer que tenha apenas um conhecimento superficial ou moldado na sua subjetividade, a partir de convicções enraizadas em sua cultura pessoal. Não se quer dizer que os ruídos produzidos sejam favoráveis (adequados ou melhores) de um lado (emissor) ou do outro (receptor). Os ruídos atrapalham a comunicação, entretanto, apesar dos ruídos com discordâncias pontuais, há que se levar em conta as discordâncias internas. Como modificar o outro, se pensa diferente? Como transformar o modo de pensar construído a partir de uma cultura enraizada desde a infância, ou passada por gerações e gerações? Como desconstruir toda uma história apreendida através de experiências pessoais e sociais que se manifestam sobrepondo a conceitos que não são aceitos por aquele grupo?

Claro que existe a evolução do pensamento, dos costumes, das ideias, para isso existem as vanguardas e as mudanças, muitas vezes paulatinas, mas firmes no andar da visão da humanidade. Mas nem tudo ocorre na urgência que queremos. Nem tudo é verdade absoluta. Nem tudo é criação única. Nem tudo é apropriação do bem comum ou do malefício estudado.

Custou-me entender a dificuldade em aceitar os meus preceitos, minhas ideias, meus pontos de vista por pessoas que possuem trajetórias tão semelhantes a minha. Mas, por fim, compreendi, que elas abstraíram o que a história familiar, a escola e princípios religiosos ou não-religiosos produziram na sua formação pessoal e lhes indicou conteúdos filosóficos que para eles representam o que seria o melhor para o planeta, para o país, para a cidade, para a comunidade, para a família, para o ser humano. Houve uma apreensão diferente da vida, tomando como em sentido amplo e geral do conhecimento adquirido, constituído de conhecimento acadêmico, empírico, valores familiares e princípios herdados. Entendi por fim, que todos tomamos os caminhos que consideramos os melhores para o país, para o bem estar humano, para a sociedade em que vivemos, para a nossa pequena comunidade social ou familiar e que nem sempre coincide com os caminhos escolhidos através de diferentes apreensões da realidade.

Deixando de lado os que somente dão palpites via de regra, embasados apenas em opiniões da mída ou os que exercem opiniões, porém sem o respaldo do conhecimento mais profundo, concentramos nossa atenção para os que se estabelecem uma relação de conhecimento profícuo e apreensão da realidade. Neste último caso, percebemos que pode ocorrer uma consonância e presumível identificação de ideias, desde que ocorra a reflexão e que cada um, a partir de suas apreensões pessoais da realidade, consiga fazer uma relação entre as suas opiniões próprias e as dos demais, embasados na apreensão mútua da especificidade do tema. Neste caso, descartam-se as paixões desenfreadas, tais como as disputas inócuas por futebol, pois cada um verá apenas as possibilidades de seu time, ou a discussão de dogmas religiosos, que jamais chegarão a um ponto de concordância. Por outro lado, nas considerações baseadas nos estudos sociais, na realidade que nos cerca, juntamente com as nossas realidades e culturas pessoais, pode ocorrer a sedimentação da sementes plantadas das discussões, cujos brotos vão robustecendo a democracia e aos poucos descortinando uma verdade que nos liberta. Aí, acontece a ruptura da lógica da arrogância, do preconceito, do conhecimento de uma só face, da verdade absoluta. Aí acontece a união de ideias.

Mas também me dei conta, que isso acontece em grupos muito pequenos. Grupos que divergem e que através de estudo e contemplação de paradigmas diferentes, aceitando ou discordando, mas interagindo através do raciocínio, do conhecimento e da percepção da realidade como ferramenta fundamental que possibilita uma tentativa de construção da verdade multifacetada. Nesta construção, deve ocorrer uma fenda que leve à libertação das amarras dos preconceitos, da arrogância, da visão única de pensar e de se bater numa única tecla, aquela que muitas vezes não pontua a frase final do ponto de vista.

Portanto, aprendi, que as nossas realidades e formas de registrá-las não devem ser impostas. Devem ser discutidas, analisadas, afagadas para que se desenvolvam numa concepção de ideia, no sentido de criar todas as perspectivas de realidade do mundo, numa intenção filosófica de como viver e vivenciar as situações que experienciamos. Entendi que cada um reage de acordo com suas convicções, sua compreensão da vida, seu caldo cultural construído desde a infância e sua história repassada por gerações, assim como eu que tenho a minha cultura formada pelo que apreendi. E que bom que seja assim, que todos tenhamos as nossas verdades, mas que não a queiramos impor a ninguém, a não ser que o nosso conhecimento adquirido induza à reflexão e opções de transformar a realidade de cada um. Se não pudermos fazer isso, ou por nossa incapacidade ou pela insuficiência do outro, que nos calemos.

Não posso impor ao outro que traz consigo todo um arsenal de experiências internas, a minha realidade política, os meus desejos políticos ou religiosos, as minhas ideologias. Posso sugerir, mas nunca impor. Posso tentar refletir, mas nunca manifestar apenas os aspectos inerentes a minha filosofia e não conceber a do outro. É na busca refratária de conhecimentos que se encontra o bordado capaz de tecer um mapa que sirva de bússola. Uma bússola somente. Sem ser guiada, porque possui os seus próprios paradigmas e seus próprios destinos. Pelo menos, aqueles que desafia a humanidade para que se torne melhor.

A MENSAGEM

Camilo tinha esta desagradável mania de não gostar do que tinha ou do que havia para fazer. Se levava merenda de casa, para a escola, preferia a comprada, de preferência a dos amigos. Se havia futebol, preferia jogar dama, num canto do pátio e para isso, incitava um de nós a ficar com ele, possessivo que era, fingindo sempre precisar de um amigo. Caso tivéssemos educação física, a malfadada ginástica, dava um jeito de investirmos num futebol de salão, convencendo o professor, seja em que pé estivessem os seus humores.

Mas ele era assim, alegre, persuasivo, companheiro. Gostávamos de andar juntos, dar boas risadas de tudo e de todos, imaginar a professora assustada, puxando a saia godê, ao passar na esquina, fugindo do vento insolente que insistia em desafiar a sua paciência. E agradar nossa fantasia.

Tínhamos prazer em assistir o filme que a escola proporcionava nos finais de semana, especialmente, nos domingos, como continuidade da educação religiosa, obrigando-nos desta forma a participar da missa.

Camilo, entretanto, além de extrovertido e alegre, era um pouco cínico. Ele sabia como agradar aos padres, às professoras, ao diretor da escola. Tinha um jeito especial de se comunicar e deixar tudo tranquilo, leve e solto para o seu lado. Eu, ao contrário, gostava das coisas todas no lugar, muito bem esclarecidas, apesar de que fazia das minhas, sem me importar contudo em agradar a ninguém. Temia ser descoberto, pego em flagrante, como nas diversas vezes em que fugíamos na hora do recreio, pelo simples prazer de fazermos um lanche num bar, fora da escola. Apenas comer um queque e tomarmos refrigerante. Voltar depois, sorrateiramente, coração assaltado, boca seca, passarmos pelo porteiro, escondidos sob a portinhola que separava o balcão de entrada e que conduzia ao pátio, para entrar na sala de aula, como se nada houvesse acontecido.

Na verdade, o porteiro fazia vistas grossas para nossas escapulidas, mas esta condição amistosa jamais nos vinha à tona, felizes que estávamos em nossa arrogância de enganar os superiores. Nada restituía nossa liberdade, nada a interrompia nem desempenhava qualquer atenuante para nossa felicidade, que nos enchia os corações e disso nem nos dávamos conta.

Nunca me deparara com o lado triste da vida. Nossa infância era povoada de sonhos e certezas absolutas, que nos deixavam tão cansados que nada víamos, à noite, a não ser dormir para acordar no dia seguinte e recomeçar tudo de novo. Novas risadas, novas estripulias, novas escapadelas, novos confrontos com o porteiro, novas explicações. E finalmente a saída triunfante de quem vence todo e qualquer obstáculo.

Mas naquele dia, nada disso aconteceu. A não ser uma mensagem em casa, um outro colega anunciando uma tragédia, uma coisa triste, palavra que não havia em nosso vocabulário. A morte chegara, assim de improviso, sem pedir licença ou antecipar a sua vinda com um presságio qualquer. Viera exclusivamente para Camilo, dotado de uma doença qualquer que levara consigo a alegria que sentíamos e da qual eu não dispunha de meios para me afastar. Por isso, olhei para o colega, elucidei como pude a mensagem, irritei-me com a riqueza de detalhes, bordados de curiosidade e desliguei a cena. Não fui ao enterro. Não vi Camilo pela última vez. Acovardei-me. Pelo menos, de Dona Agripina, eu vi os pés no meio do corredor da igreja, na missa de corpo presente. Foi a minha primeira e tênue visão da morte. Mas de Camilo, guardei o jeito alegre de se portar, de sorrir, de fingir-se solícito e brilhante, de ser o que era e o que queria ser. Não foi desta vez que enfrentei a morte. Deixei-a passar, covarde, sentido, dizendo para mim mesmo que tudo continuava como antes.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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