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Caminhos traçados

"O homem que deve morrer" era uma novela dos anos setenta. Na abertura, não lembro bem se era dentro do tema musical ou em off, na voz de um locutor, ouvia-se a frase “ando por caminhos que nunca foram abertos”. Tudo induzia ao clima de suspense da história.

Aproveito este preâmbulo para deixar-me conduzir pelas memórias infantis que volta e meia surgem e via de regra, produzem uma sensação de boa melancolia. Nesta época, um amigo da escola e eu, tínhamos entre onze ou doze anos e costumávamos pegar um ônibus na volta da escola. Só que eram linhas opostas, enquanto o meu coletivo ia na direção do bairro Cidade Nova, o do meu amigo era no rumo do Santa Teresa.

Ao sair do colégio, dirigíamos pela rua 24 de maio até a praça Tamandaré. Atravessávamos as pequenas vielas entre os canteiros, repletos de uma espécie de lírios lilases. Eram flores com muitas folhas verdes e longas, perfazendo o contorno dos canteiros. Enquanto ele se afastava em direção à rua Silva Paes, atravessando a praça, por força de seu ponto de ônibus, eu me dirigia ao abrigo da Luiz Lorea.

E íamos quase correndo, comentando as peripécias da aula, o modo estabanado do Irmão Freitas, discorrendo sobre temas nada correlatos à disciplina, mas ricos em informações geográficas quase turísticas, que só interessava a ele e suas viagens.

Ríamos a bandeiras despregadas, como se dizia na época, do Professor Ambrósio, homem magro, que se vestia de preto e tinha na lapela do paletó, um cravo branco (símbolo de quê, nem desconfiávamos). Tinha o apelido de "ternudinho", por não dispensar jamais a fatiota. Tinha por hábito cheirar a ponta dos dedos, enquanto escrevia alguma coisa no quadro. Quando se voltava, nos encarava com certo espanto como se não acreditasse em nossa atenção na disciplina. Suas aulas eram um transtorno, talvez mais para ele, porque os temas contábeis, parece, não cabiam em sua atenção. Na metade do caminho, mandava fechar o livro e liberar os alunos, para preparar o tema para a próxima aula e assim, se arrastava a matéria.

Também havia a professora de Inglês que nos desfiava uma tonalidade que desafiava qualquer esmero linguístico. De repente, o idioma aprendido nas séries anteriores, voltava cheio de penduricalhos fonêmicos que não correspondiam à língua falada, por mais que nos esforçássemos em entender.

Mas não era momento para revolta ou desmotivação com a aprendizagem. Tudo era um grande circo que nos fazia rir. Talvez este caldo antropológico não significasse nada para nós, a não ser rir de nós mesmos. Havia bons professores que não se encaixavam nessas reproduções? Sem dúvida! Mas estes não tinham a menor graça!

Talvez por isso, atravessássemos diariamente a praça, insistindo em caminhos não usuais aos transeuntes e dizendo para nós mesmos, “ando por caminhos que nunca foram abertos”.

Fonte da ilustração: fotografia de Wilson Fonseca

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