segunda-feira, julho 04, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 11º CAPÍTULO

No capítulo anterior, o detetive Júlio tomou informações com o médico Ricardo, que é acusado de matar uma jovem, que segundo o que dissera, se aproximara dele com uma intenção possessiva, a ponto de persegui-lo até mesmo no trabalho. O detetive também ficou sabendo que ela abandonara um presumível namorado, chamado Paulo, um mecânico da cidade, o qual tentara agredir o médico, mas que acabara entendendo que ele não era o culpado da situação. Por outro lado, havia uma jovem chamada Ana, de aproximadamente 14 anos que sabia alguma coisa sobre o crime. Júlio Ramirez então, prossegue a sua investigação no 11º capítulo a seguir. Divirtam-se com o nosso folhetim policial.

CAPÍTULO 11

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/ponte-grade-água-rio-1038830/

Júlio voltou para o hotel. Quem diria que estaria novamente na ativa, depois de ter afirmado tantas vezes para si mesmo que este era um tempo passado. Depois do almoço, a tarde se alongava e ele precisava seguir a investigação. Detestava as tardes, detestava os dias que se prolongavam como os de hoje e só se sentia bem à noite. Esta sim, poderia levar mais tempo do que o normal, poderia se estender infinitamente.

Decidiu então dar uma volta perto do rio, quem sabe não descobriria algum fato novo, que a polícia não houvesse encontrado?

Pegou o carro e atravessou a cidade. Não demorou muito pela área limitada. Em seguida, passeava pelas margens do rio, que hoje parecia um pouco mais calmo. Um vento fino fazia parte do cenário. Olhou para a pequena ponte ao longe e percebeu que uma menina estava encostada no parapeito, falando ao celular. Aproximou-se e ficou por ali, pensando tratar-se de alguém conhecido. Quem sabe um parente de sua família. A menina parou de falar e o olhou, um pouco assustada.

– Você costuma andar por estas bandas? Não é perigoso? – Perguntou, mostrando-se confiável.

– Aqui todo mundo se conhece. – Ela respondeu, displicente. Olhava para longe, os olhos grandes fixos no nada. Ele insistiu:

– Mas eu por exemplo, cheguei agora na cidade.

– Eu sei quem é. O senhor é o detetive que nasceu aqui, não é?

Desta vez, ela o encarou com um sorriso irônico.

– Acho que você tem razão. todo mundo sabe tudo de todo mundo, nesta cidade.

– Isso é ruim?

– Tem os dois lados.

– Você então sabe o que aconteceu com a filha do farmacêutico.

– Sim, eu estava aqui quando ela deu um grito, depois desapareceu.

Júlio abriu mais os olhos, satisfeito e engatilhou a exclamação:

– Ah, foi você. Que coincidência!

– Não é não. Eu venho todos os dias aqui.

– Ah, sim.

– Gosto de ficar aqui. Daqui a pouco, meus amigos virão também.

– Então, você a ouviu gritar, pedir por socorro?

– Não, foi um grito de dor.

– E onde você estava naquele momento, quero dizer, bem aqui, na ponte?

– Não, estava do outro lado, na fronteira da cidade. Aqui é o quase o limite, sabia?

– E naquele momento, você viu alguém passar aqui, perto?

– Na hora do grito, não. Uns quinze minutos antes, eu vi um carro parar no outro lado do rio. Depois desceu um homem e caminhou por lá. Não demorou muito, porque não o vi mais.

– Você reconheceu este homem?

– Pelo carro, era o médico, o dr. Ricardo.

– Você o viu?

– Com certeza, não. Estava uma neblina forte. Naquela noite, era impossível identificar alguém. Até mesmo eu, se alguém me olhasse do outro lado da ponte, só veria um vulto.

– Poderia ser outra pessoa, a noite vinha caindo, estava com neblina, como você mesma diz, então como pode afirmar que era o médico?

– Não posso afirmar nada, mas sei que era ele, porque o carro era dele. Um conversível desses importados. Ninguém tem um carro desse porte aqui na cidade.

– Está bem, mas quer dizer que você ouviu o grito e a queda na água?

– Acho que sim. Na água não da pra ter certeza, era muito barulho, ali tem a correnteza, o senhor sabe.

–Alguns minutos mais tarde, você viu o corpo flutuar, é isso?

– Eu achei que era, mas ele sumiu, foi parar quase no outro distrito. Então corri pra pedir ajuda.

– Não viu alguém por perto?

– Sim, meus amigos que vinham chegando. Contei tudo para eles e fomos até o centro.

– Me diga uma coisa, quantos anos você tem?

–Vou fazer quinze.

– O que você faz com seus amigos neste lugar deserto, posso saber?

–O que o senhor acha que se pode fazer numa cidade que não acontece nada, que só tem velho?

– Eu imagino, mas quero ouvir de você… Afinal, há muito o que fazer, pensando bem…

– O senhor já fumou baseado?

Júlio calou-se. Estava respondido. Observou que Ana se afastava um pouco e averiguava uma mensagem do Whatsapp, provavelmente. Foi até a ponta da ponte e esperou o grupo que se aproximava. Largou a mochila no chão e voltou a encostar-se no parapeito.

Júlio decidiu voltar para o hotel. Na verdade, o seu interesse maior era seguir adiante, ir para o centro da cidade, procurar a oficina e tentar falar com Paulo, o namorado de Taís, a moça presumivelmente assassinada. Dirigiu pensativo, lembrando das palavras da menina. Afirmava com absoluta certeza de que era o médico que andava nas redondezas da ponte, mais precisamente do outro lado da margem do rio. Talvez tivesse um encontro com a morta, quem sabe seria o último, porque precisava acabar com aquela história de uma vez por todas, segundo o que informara. Para ele, aqueles encontros organizados por Taís não passavam de uma verdadeira perseguição. Mas havia muito a pensar sobre esta história toda. Havia mais um elemento, o tal namorado chamado Paulo que trabalhava numa oficina mecânica. Era com ele que devia falar e por isso, resolveu procura-lo, antes mesmo de chegar ao hotel. Não demorou muito e estava lá. Deixou o carro na frente do grande portão e entrou no ambiente meio escuro. Parecia um galpão velho.

Um homem barbudo aproximou-se.

– Seu carro está com problemas?

– Não. Ou melhor, ele anda engasgando sim. Não sei se é o frio desta cidade.

– Faz pouco que o senhor chegou aqui?

– Só três dias.

– Vamos dar uma olhada. Por favor, levanta o capô.

Júlio olhou a placa onde estava escrito “Oficina Silva”. Perguntou ao homem, enquanto abria o capô do carro.

– Você é o Silva?

–Sou um dos. Somos sócios e somos Silva os dois. E olhe que nem somos irmãos.

–Ah, é normal. Este sobrenome é muito comum. O seu sócio é o Paulo?

–O Paulo? Não, aquele é um pé de chinelo. É nosso ajudante, só.

–E ele não está?

– Não, precisou ir na capital. Vai ficar lá uns dois dias.

– E você sabe o que ele foi fazer lá?

O homem o olhou desconfiado. Júlio explicou-se.

– Desculpe, não me leve a mal. É que estou procurando pelo Paulo, preciso falar com ele e gostaria de saber se vai demorar.

– Como eu lhe disse, uns dois dias. Foi acertar uns documentos, coisas do tipo.

–Ah, que bom. E onde ele mora?

–Mora com a mãe, uma viúva. a mãe, ou amiga, sei lá. O caso dele é complicado. Fica no final da rua principal.

– Então é a rua do meu hotel. Mas por que você disse que o caso dele é complicado?

O barbudo não respondeu. Falava sobre o carro, como se quisesse livrar-se do cliente indesejado.

– Moço, não tem nada no seu carro. Deve ter sido o frio mesmo, agora tá tudo bem. A gasolina está passando direitinho.

–Ah, obrigado. Me diga, como é o nome da mãe do rapaz?

_ Rosa.

–Rosa, a maestrina? A moça da portaria do hotel?

– Olha aqui, meu amigo, não sei se é mãe, a gente chama assim, mas é problema dele. É melhor perguntar pra ele.

– Sim, claro, só queria saber se é a mesma mulher.

– Pode ter certeza de que é, mas como eu lhe disse, é problema deles, nem sei se é verdade o que dizem.

– E o que dizem?

– Não posso lhe dizer nada. Não é da minha conta. Como lhe disse, pergunte pra ele, quando voltar!

quinta-feira, junho 30, 2016

Países que acessaram o blog de 23/06 a 29/06/16

1º Estados Unidos

2º Brasil

3º França

4º Portugal

5º Alemanha

6º Polônia

7º Romênia

8º Rússia

9º Ucrânia

10º Uruguai

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/globus-mapa-dedo-terra-criança-1321796/

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 10º CAPÍTULO

No capítulo anterior, Júlio conversara com duas pessoas: Lucas, o farmacêutico que o procurara para acusar o médico Ricardo de que sua filha fora assassinada por ele. No dia seguinte, conversara com Sara, que dissera que os crimes foram elaborados pela maestrina Rosa. Apesar de ouvir as suas justificativas, Júlio estava decidido a conversar com o médico, primeiramente. Não podia sair acusando todo mundo e quanto à Rosa, mais lhe parecia um ciúme, por um motivo ainda obscuro, que ele ainda procuraria descobrir. Voltamos com o nosso folhetim policial e com o desenrolar da trama, saberemos quais são as justificativas de Rosa. A seguir o 10º capítulo de nossa história.

Júlio esforçou-se para conversar com Ricardo Silveira, o médico que passara de plantão toda a noite no hospital. Sabia que em dado momento, o encontraria, pois ele deveria sair alguma hora e ir para a casa. Aguardou-o até a hora do almoço, e logo que o viu dirigir-se à cantina do hospital, aproximou-se e o encontrou ao lado de um colega.

Apresentou-se e pediu para conversar com ele. Observou que o rapaz aparentava uns 30 anos, tinha cabelos castanhos e olhos muito perspicazes. Parecia sempre antenado em algum movimento na sala ou numa conversa no outro lado da mesa. Cabelos curtos e óculos pesados compunham a fisionomia, que apesar da pretensa curiosidade, revelava-se muito tranquila.

— Sei que é o seu horário de almoço e que em seguida terá muito trabalho com os pacientes, mas gostaria de agendar uma visita. Onde você quiser, quando quiser. Pode ser?

—Pode, é claro, só não estou entendendo a razão.

— É um assunto meio desagradável. Não gostaria de incomodá-lo agora.

— Desculpe perguntar, mas quem é o senhor mesmo?

— Bem, sou advogado e detetive particular aposentado.

— E sobre o que vamos conversar?

—Você poderia agendar uma hora? Pode ser num bar, no hotel onde estou hospedado ou até mesmo no seu consultório.

—Eu não tenho consultório, senhor… senhor?

—Júlio, Júlio Ramirez, às suas ordens. Olhe o meu cartão.

—Quer me vender alguma coisa?

— Não, de forma alguma. Se não se importa, pode ser no restaurante do meu hotel. À noite, eles servem apenas uns drinques.

—O senhor está no hotel, então deve ser o mesmo em que estou morando. Não há noutro na cidade.

— Ah, que bom. Assim fica mais fácil, então.

— Pode me adiantar alguma coisa?

—Bem, se insiste. É sobre a moça que foi assassinada ou se matou, não se sabe. O pai dela o acusa de sua morte!

—Aquele homem é um louco, um imbecil! Olhe aqui, eu não tenho nada com esse assunto. Nem tenho nada a discutir com o senhor nem com ninguém. Portanto, não me espere, porque não vou até o restaurante.

—Desculpe, Ricardo, eu não queria que você se irritasse. Sei que tem razão em ficar nervoso com esta história, afinal, é muito desagradável esta acusação e estes falatórios pela cidade. Mas, acho que está na hora de provar que você é inocente. Olhe, eu pessoalmente, acho que não há nada que o ligue à morte daquela moça.

—Então, por que está me procurando?

—Porque é meu trabalho de detetive e na minha profissão, não se pode descartar nada. Mas acho sinceramente, que este esclarecimento só vai ajudá-lo. Afinal, você tem um nome a preservar. Imagine se as pessoas da Capital fiquem na dúvida de sua honestidade? E os negócios que poderão ser anulados?

—O que quer dizer com isso?

—Meu caro, só digo o que ouço, mas você sabe muito melhor do que eu o que essa gente é capaz! Se eu fosse você, eu iria encontrar-se comigo. Acho muito melhor comigo do que com a polícia, porque vai acabar nisso, pelo que ouvi daquele homem. Vou deixar o meu cartão, meu número do celular. Até lá, você pensa e decide o que achar melhor, ok? Mas saiba que não estou contra você, até mesmo porque não costumo fazer julgamentos! Júlio afasta-se em direção ao jardim, saindo do refeitório onde o médico se encontra. Os colegas já estão se retirando para as suas tarefas. Quando está atravessando as vielas que o separam do portão para a rua, passando por uma pequena capela, percebe que alguém se aproxima rapidamente, em sua direção. É Ricardo, que o convida a entrar na capela.

A capela está na penumbra e não ninguém lá dentro. Sentam no último banco e o médico é o primeiro a falar.

—Acho melhor não encontrá-lo hotel. Vou dar muita bandeira.

—Você é quem sabe, meu rapaz. Apesar que você estando lá, ficaria até natural nos encontrarmos.

— Mas já que existe uma investigação, é melhor que saiba tudo e por mim.

—Ok, sou todo ouvidos. Você é um homem de bem, já percebi.

—Obrigado. É o seguinte: eu realmente estava namorando a Taís, se é que se pode chamar de namoro, alguns encontros em poucas semanas. Mas que seja. De todo modo, a verdade é que desde que cheguei aqui, ela não me deixou em paz, tinha verdadeira fixação por mim. Isso aconteceu há um ano atrás, quando estive aqui fazendo residência. Agora, há pouco, ela voltou a procurar-me, tentando reviver uma coisa que nunca aconteceu. Eu nunca me apaixonei como ela pretendia. Nós tivemos um caso, no passado, mas tudo não passou de encontros casuais, sem maiores compromissos, pelo menos para mim. Ela cismou que eu me apaixonaria, que ficaria ao seu lado, que jamais a deixaria, mesmo eu dizendo que tinha namorada na capital, que não queria nada com ela. Inclusive disse que abandonara um namorado por minha causa, era um cara que trabalhava na oficina, parece que se chamava Paulo, não importa. Mas o fato que até com isso, me incomodei, porque o cara passou alguns dias me perseguindo, até que decidiu me deixar em paz. Não vou negar que me senti atraído, mas inicialmente, eu não queria nada com ela. Ela não desgrudava de mim! Ela apenas estudava e de repente inventou de trabalhar no hospital, fazendo faxina. Não sei como conseguiu a vaga tão depressa, deve ter mexido os pauzinhos. Ela mudou a minha vida a partir daquele momento. Não me deixava respirar, se envolvia nas minhas coisas, mexia até no meu celular, quando eu menos imaginava. Até que aconteceu. Uma vez, nós transamos e eu decidi que ela deveria me deixar e desaparecer da minha vida. Nos encontramos algumas vezes, mesmo ela sabendo que logo que me estruturasse na cidade, traria a minha namorada para cá, e isso eu deixava bem claro para ela.

Depois da saraivada de acontecimentos e queixas, Júlio engendrou a primeira pergunta:

– Você passou a odiá-la?

Ele parecia não respirar por um momento. Quando respondeu, fazia-o num desabafo:

– No início, não. Eu até gostava dela, só detestava aquela insistência. Mas por fim, eu acabei odiando-a sim, porque voltou tudo como era antes. Ela passou a perseguir-me, a me procurar em todos os lugares, a viver na minha volta.

—Então, você tinha motivos para matá-la.

—Pelo amor de Deus, vou matar uma garota só porque me perseguia, que queria ficar comigo a qualquer custo! Era só uma cabeça-oca, uma infeliz, coitada. Sou um homem que salva vidas, detetive, não as tira!

— Você há de convir que preciso fazer todas as perguntas para observar as reações dos interrogados. Por outro lado, acho que não é motivo de tanto ódio. Bastava dar um chute nas intenções da moça e acabar por aí.

— É que o senhor não a conhecia. Hoje, passado algum tempo, acho que ela era uma psicótica. Não era normal a maneira como me tratava, como se eu fosse um objeto, um bem que não queria partilhar com ninguém. Taís era doente.

— Pensando bem, a sua reação foi bastante estranha.

— O senhor parece estar contra mim. Como pode pensar que eu faria uma coisa dessas? Eu jamais tive intenção de lhe fazer mal!

—Eu não pensei em nada, caro Ricardo. Mas, me diga, naquele entardecer cheio de neblina, você foi dar uma volta, próximo ao rio. Na mesma hora em que Taís foi assassinada ou se matou, não sabemos.

—Não, eu não fui.

—Não foi? E o que me diz da mensagem do celular dela em que marcara o horário de 8:30 para encontrá-lo lá, na beira do rio?

—Não, claro que não, dei uma volta pelo bosque, ali perto. Uma longa volta para esfriar a cabeça. Como lhe disse, ela era maluca, estava sempre me chamando.

— Por que você queria esfriar a cabeça?

—Sr. Júlio, um médico tem seus momentos de stress, de decepção. Naquele dia, eu perdera um paciente e estava muito nervoso.

—Então não tinha nada a ver com Taís e sim com a perda do seu paciente?

—Não, eu já disse que não!

—Então como explica a mensagem no celular da moça? Nega tê-la mandado?

Ricardo faz um pequeno silêncio. Sente-se perdido, como se a acusação contra ele ratificada a cada justificativa. Por isso, insiste em esclarecer o que sabe.

—Não, o senhor tem razão. Eu a enviei, sim. Taís me pediu que fosse encontrá-la e insistiu muito. Não sabia o que fazer, por isso escrevi a mensagem. Mas eu não fui. Achei melhor não ir. Pretendia ir a Porto Alegre no dia seguinte e preferi não falar com ela. Sei que errei e o que aconteceu com ela foi terrível. Nunca poderia imaginar que ela fosse capaz de tirar a própria vida! Eu me sentia culpado, não conseguia trabalhar.

—Então, mesmo não atendendo o pedido, você passeou próximo ao local, ou seja, no bosque próximo ao rio, o que há de convir, é uma certa incoerência.

—Eu já lhe expliquei isso. Além disso, costumo caminhar pelo bosque, não é um fato incomum. Levo os tênis na mochila, pego um abrigo e caminho por algumas horas.

—Sabe de alguém que o viu nesta caminhada?

—Acho que não, estava muito solitário. Poucas pessoas caminham a esta hora. Além disso, estava um entardecer muito sombrio, havia muita neblina.

Júlio perguntou se não havia nenhum fato importante que Ricardo gostaria de contar-lhe. Com a negativa, ele mesmo decidiu fazer-lhe mais uma pergunta.

— Você falou num tal de Paulo, um namorado antigo de Taís. O que aconteceu com ele?

—Como assim? Pelo que eu saiba, continua trabalhando na oficina. Me deixou em paz, graças a Deus, desde que tivemos uma conversa.

— Ah, tiveram uma conversa?

—Sim, um dia me enchi com aquela perseguição, ele me fechando no trânsito com a moto, mandando recados pelo celular, e decidi ir até a oficina falar com ele.

—E aí?

—Parece que entendeu a situação. Que a menina não queria mais nada com ele e que eu não tinha culpa. O problema era deles. A partir daí, ele nunca mais me procurou.

Júlio ouviu a conversa e prevendo que não haveria mais nada importante a ser dito, apertou-lhe calorosamente a mão e se afastou. Antes, persignou-se e ajoelhou-se por um minuto próximo à porta de saída da capela.

Enquanto fazia isso, Ricardo passou por ele rapidamente e desapareceu em direção ao hospital.

terça-feira, junho 28, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 9º CAPÍTULO

Capítulo 9

Júlio esperou algum tempo, após tocar a campainha do portão. O muro não era alto e podia ver a casa ao fundo, uma calçada de lajotas que perfilava um pequeno jardim e dois bancos instalados oportunamente sob uma árvore frondosa. Observou que a mulher que surgia à porta, parecia abatida e o atendia quase como uma obrigação, talvez por o ter chamado e agora não tinha como dispensá-lo. Ela apresentou-se, conduziu-o ao interior da casa , indicou-lhe uma poltrona para que sentasse, enquanto trazia um café. Ele recusou o café e insistiu que não entendera exatamente o que ela queria dizer no e-mail que lhe enviara.

—Vou lhe antecipar que sou um detetive particular, não tenho relação nenhuma com o setor policial.

— Caro detetive, eu quero a polícia longe de mim. Foi por isso que o chamei. Inclusive, por uma felicidade do destino, eu descobri que o senhor viria para cá, pois estava interessado em escrever um livro sobre a sua vida.

Júlio a olhava surpreso, imaginando como ela poderia saber de seu projeto. Ela percebendo o estranhamento do homem, decidiu esclarecer.

— Não leve a mal, é que meu filho costuma cantar no coral da igreja, sabe. Ele tem uma amiga que também trabalha no hotel. Parece que ela comentou alguma coisa.

— A senhora fala da mulher que trabalha na portaria?

— Essa mesma. Ela também é maestrina do coral e o seu nome é Rosa. Já conversou com ela, certamente. Se não me engano, ela trabalha três noites na portaria do hotel e mais duas manhãs nos dias que sobram.

— A senhora parece bem informada sobre ela.

Sara ficou em silêncio. Ajeitou-se na cadeira e retirou um pequeno folder com a ilustração do coral de uma apresentação passada. Mostrou a ele.

— Olhe, aqui ela escreveu à caneta os seus horários no hotel para facilitar o seu encontro, quando não está na igreja. Ela era professora, sabia?

— Não, dona Sara, eu não sei nada dessa senhora. Mas me diga uma coisa, como ela poderia saber sobre os meus planos, antes de eu vir para cá?

— Não sei de nada, a bem da verdade ela comentou isso com o meu filho. Provavelmente o senhor tenha dito alguma coisa, quando reservou o quarto.

Júlio então lembrou-se que comentara alguma coisa, como escrever um livro, que morava na cidade, que boca a sua, pensara. Mas agora isso não tinha qualquer relevância. Queria saber o motivo de ter sido chamado por aquela mulher.

— Não sei se deveria tê-lo chamado, Sr. Júlio, o meu filho chegará a qualquer momento. É que ele é o motivo de eu ter me comunicado consigo. Aliás, ele é motivo de minha preocupação.

— Mas então?

— Não sei se o senhor percebeu, mas estou muito nervosa. Meu filho é uma pessoa especial, um rapaz maravilhoso, mas anda meio problemático e isso já faz um bom tempo.

— Está bem, dona Sara, neste caso, a senhora me explique do início. Se o seu filho chegar, seremos o mais discretos possível. Quero que me esclareça porque pretendia que eu a ajudasse. Falou-me de serviços investigativos, mas não foi precisa no que queria.

— Está bem. Veja detetive, posso chamá-lo assim?

— A senhora já me chamou assim, quando cheguei e fiquei muito lisonjeado. Na verdade, estou meio enferrujado, mas ainda sou um detetive particular. O interessante, é que já me procuraram pela mesma razão.

— Sim?

— Mas, deixemos pra lá. Vamos ao que tem a me dizer, por favor.

— Quando eu mandei o e-mail, como lhe disse, houve este comentário que o senhor viria para cá. Eu já sabia de seus serviços como advogado e detetive. Não foi difícil fazer uma pequena pesquisa no google.

— Por isso me procurou. Mas qual é o motivo?

— Como lhe disse, eu estava muito preocupada com meu filho. Ele tinha uma namorada chamada Susi, com quem viveu por mais de dois anos, bem esta moça o abandonou e ele ficou muito depressivo, fazendo umas bobagens, inventando coisas meio absurdas.

— Não entendi como poderia ajudá-lo. A menos que estas bobagens a que a senhora se refere sejam atos ilícitos, contra a lei.

— Não, nada disso. Meu filho é um excelente rapaz. Eu me refiro ao fato de ele contar histórias que não condizem com a realidade. Ele falou que tentaram matá-lo.

— E como aconteceu isso?

— Bem, é uma história meio fantasiosa. Mas eu lhe explico em detalhes mais tarde. O problema, que junto a tudo isso, estão ocorrendo fatos extraordinários na cidade. Houve alguns assassinatos, não sei se o senhor soube.

— Sim, em sua maioria arquivados, com exceção do último, da filha do farmacêutico que dizem foi assassinada. Não há uma certeza absoluta.

— Eu soube do caso da filha do Seu Jairo, sim. Foi terrível.

— Mas a senhora me mandou o e-mail antes. Tem a ver com os crimes?

— Meu filho tem algumas suspeitas, mas eu não concordo com ele.

— Acho que preciso conversar com o seu filho.

Sara calou-se, ainda mais ansiosa. A respiração sôfrega, um ar de arrependimento pelo que dissera. Por fim, concluiu:

— Eu mandei o e-mail porque estou assustada sim, com o que está acontecendo. Mas é que tenho uma pessoa suspeita.

— A senhora se refere ao médico?

— O doutor Ricardo? Imagine, ele é um homem decente. Um ótimo médico. Quando chegou na cidade, eu até gostaria que morasse aqui, até arranjar um lugar para ficar, mas ele foi resistente. Acabou ficando no hotel mesmo. Acho que fizeram um acerto com ele, como um aluguel, entende? O coitado não achou nenhum apartamento que servisse até agora.

— Ouvi comentários de que o acusam do assassinato da moça.

— Esta gente fala o que não sabe. Todos aqui falam de todo mundo. São um bando de bisbilhoteiros, uma gente que não tem o que fazer! Só porque ele namorou a moça, inventaram esta história. Aliás, nem sei se ele teve algum envolvimento com ela, na verdade.

— Parece que a senhora está bem inteirada dos assuntos.

— Aqui, a gente fica sabendo de tudo, meu amigo.

— Me diga então, de quem a senhora suspeita?

— Eu deveria falar com a polícia, mas não tenho provas, é só uma intuição. De todo modo, o que vou lhe pedir que este assunto tem que ficar entre nós, não quero me envolver com esta gente! Tenho medo que alguma coisa me aconteça, entende?

— Sem dúvidas. Sigilo total.

— E depois, eu tentei falar com o senhor, principalmente, porque meu filho está neste coral há algum tempo, e sempre foi humilhado por esta mulher. Eu juntei as coisas e fiquei me perguntando se ela não teria alguma ligação com os crimes, não digo todos, mas os que se referem aos turistas… e agora, pensando bem, até mesmo em relação à jovem que morreu.

— De quem a senhora está falando?

— Da mulher sobre a qual conversamos ainda há pouco: de Rosa, a maestrina. A mesma mulher que trabalha no hotel onde o senhor está hospedado. A mesma que comentou sobre a sua vinda para cá. É sobre ela que me refiro. A mulher que tem interesse no meu filho.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/inspetor-homem-detetive-masculino-160143/

sexta-feira, junho 24, 2016

A avalanche de sons

Hugo acordou com um certo zunido nos ouvidos. Na verdade, nem sabia se o ruído vinha de fora ou era um som interno, que não conseguia identificar.

Aos poucos, diferentes sons eram ouvidos e tinha a impressão que várias pessoas falavam ao mesmo tempo, bem perto de si, além de outros barulhos.

As paredes estalavam, os cabos de luz produziam pequenas alternâncias de ruídos, como movendo-se levemente e até mesmo os plugues das tomadas emitiam sonoridades estranhas. Parece até que borboletas batiam asas próximas ao seu rosto e um cri-cri de grilos se alternava com zumbidos de mosquitos.

Estaria sonhando, pensou.

Levantou-se rápido e foi até a janela. Viu pequenos agrupamentos de pessoas na calçada e um burburinho intenso, como se estivessem à espera de algum acontecimento grandioso. Puxou os óculos da ponta do nariz e tentou enxergar no outro lado da rua.

As sacadas do prédio da frente estavam repletas de homens, mulheres e crianças, todos envolvidos numa balbúrdia animada. Até balões coloridos as crianças soltavam e por vezes, estouravam aumentando ainda mais o tumulto.

Hugo decidiu afastar-se da janela e tomar um banho. Faria as atividades habituais, como sempre.

Logo em seguida, iria ao Café Belém para o desjejum e jogar conversa fora com os amigos.

Não demorou muito, estava na rua, dirigindo-se ao Café, ouvindo cada vez mais forte o ruído que aumentava a cada pequena aglomeração que se formava na calçada.

Quem os visse de cima, observaria uma massa escura e uniforme que fazia e se desfazia em blocos, dividindo-se em alaridos desorganizados. Por sorte, a turba agitada e frenética vinha de outra esquina e ainda não tinha chegado às proximidades do Café com toda a sua extensão.

Finalmente, entrou no Café, no qual percebia poucas mesas vazias, na verdade, apenas duas, uma bem perto da tv gigante que ficava sempre ligada na Globo, o que o irritava profundamente e outra próxima à janela, que dava para a rua do lado.

Cumprimentou a moça da caixa, que sorriu, mas de modo estranho, pois não ouviu som algum. Parece que todos estavam calados e se falavam, era como um filme mudo.

No bar havia silêncio absoluto. Por um lado, Hugo deu graças a Deus, afinal, era tanto ruído, tanta loucura que o ideal era passar o dia no Café Belém.

O garçom, velho conhecido por trabalhar há bastante tempo na casa, aproximou-se e ele pediu o de sempre: café preto, um pão com manteiga e um pratinho com frutas. Podia ser mamão e um kivi cortado em rodelas.

O garçom sorriu, anotou o pedido e afastou-se sem dizer nada.

Que estaria havendo agora? Todos em silêncio.

Voltou-se para trás para ver se a tv estava ligada. Apenas uma imagem imóvel de um comercial de xampu, sem qualquer som.

Hugo começou a sentir um certo frio, talvez até temor pelo que estava acontecendo. Seria só com ele? Será que os demais se comunicavam e ouviam muito bem o que diziam? Será que estava enlouquecendo? Ele, um homem com tantas ideias muito bem articuladas sobre vários assuntos, um literato, um homem de cultura, engajado política e socialmente na sociedade e agora... o que estava ocorrendo no mundo, meu Deus?

Um ruga de preocupação marcava a testa de Hugo e seus olhos se voltavam para todos os lados, observando as paredes, o balcão de granito com seus vários bancos à espera de clientes, as mesas ao centro quase que completamente preenchidas, a não ser aquela próxima à tv. Hoje não haveria problema, pensou, afinal, a tv estava muda e não incomodaria ninguém. Poderia até sentar ali, na frente daquela imagem de mulher alisando os cabelos, patética, olhando o nada, a boca entreaberta querendo dizer algo que não se articulava.

Percebeu o garçom aproximar-se com o café e animou-se um pouco.

Agora poderia falar-lhe, perguntar por exemplo, sobre o futebol, ele que era um gremista fanático. Até tentou fazê-lo, mas o outro afastou-se em seguida, deixando na mesa o pedido, apenas exercendo um sorriso formal.

Hugo ainda perguntou, assistiu o jogo ontem?, mas o garçom voltou-se, apertou o seu pulso de modo consensual para dizer alguma coisa ou ser apenas gentil e afastou-se novamente em silêncio.

Hugo reclamou, que merda, que ninguém fala nada! Mas decidiu tomar o café e dedicar-se à leitura do jornal, que como sempre, o garçom, já na sua chegada, deixara sobre a mesa da qual ele se aproximava.

Hugo leu a notícia sobre Temer que criticava o Mercosul, o qual deveria ser repensado; fez um cara de repulsa e dobrou a página.

Antes de ler a crônica do Juremir Machado, deu uma passada de olhos pelas pessoas que estavam no local.

Numa das mesas havia dois homens conversando animados, um deles apontava para um tablet, mostrando algum post engraçado ou vídeo, não conseguia ver. Entretanto, nada se ouvia, como os demais, apenas aquele fechar e abrir de bocas, gestos espontâneos e empurrões em cadeiras em pleno silêncio. Só faltava ser em preto e branco para completar os quadros sequenciais, pensou Hugo.

Olhou para os demais, um casal e duas crianças noutra mesa. A menina que devia ser menor que o menino, chorava fazendo uma careta terrível, pedindo alguma coisa que os pais negavam. O homem parecia nervoso, mordia os lábios e a mulher falava, estabanada, movendo os braços e mãos como se combatesse os próprios gestos para evitar bater nas crianças. O menino estava entretido no celular e este sim, estava em silêncio, embora o ruído eletrônico do bichinho em suas mãos devia ser insuportável.

Numa outra mesa, havia um homem sozinho. Vestia terno e trazia consigo uma mochila que parecia pesada, pois escorregava a todo momento pela cadeira, caindo no chão. Devia ser muito desastrado, pois cada vez que retirava alguma coisa da mochila, como o celular ou a carteira do dinheiro, esta retomava o mesmo processo de cair. Tudo em absoluto silêncio.

Havia outros, muito mais, mas Hugo desistira deles e decidira tomar o café.

Estava delicioso, aquele pãozinho com mateiga derretendo sobre a massa esfarinhada lhe aguçava a saliva e o prazer.

Pediria outro certamente e mesmo que viesse em silêncio, mas assim daquele mesmo sabor, estava ótimo. Depois provaria as frutas em fatias perfeitas, como pedira. O pessoal do Café Belém conhecia o seu paladar.

Foi o que fez. Deixou o jornal de lado e partiu para o ataque naquele desjejum sóbrio e prazeroso.

Depois ficou observando o garçom, as atendentes que traziam as refeições, o pessoal da cozinha.

Todos pareciam muito corteses uns com os outros.

A moça da caixa também mostrava-se gentil com os que entravam ou saíam do estabelecimento.

Hugo procurou entre os seus pertences, uma caneta e um pedaço de papel. Elaborou um pequeno comentário que faria na Sociedade Literária, na qual participaria mais tarde.

Estava bem disposto, saudável e com muito ânimo para pôr em prática os seus projetos, por isso comporia um pequeno esquema do trabalho.

Sabia por onde começar e o faria por emitir posicionamento político em seus textos, embora soubesse de antemão que o grupo desaprovaria qualquer questão que não expressasse exclusivamente o sabor da brisa e o aroma das almas. Mas isso era irrelevante naquele momento.

Depois de guardar o papel e a caneta no bolso, levantou-se, deu um bom dia ao pessoal do balcão, que retribuiu com um aceno e alguns sorrisos.

Dirigiu-se à caixa, antes passando pelo garçom que se deslocava pelo corredor com um bule numa bandeja e despediu-se apenas com um aceno, porque sabia que receberia o mesmo.

Na caixa, passou o cartão na leitora, cumprimentou a moça com um sorriso e dirigiu-se à porta envidraçada.

Percebeu que nem o salto de seus sapatos faziam qualquer ruído.

Por um momento, observou pela vidraça, centenas de pessoas que transitavam de um lado para o outro, como se várias procissões andassem em sentido contrário.

Ainda olhou para trás para ver se as pessoas em suas mesas continuavam conversando e viu que o processo era o mesmo: muita conversa, muito sorriso, muitos gestos e muito silêncio.

Então, segurou firme a maçaneta e empurrou a porta com cuidado. Nisso, uma avalanche de sons, gritos, buzinas, estrondos de rojões, gritarias, ambulâncias, polícia e bombeiros, tudo misturado expandia em seus ouvidos, deixando-o zonzo e assustado.

Por isso, puxou-a com força, lacrando-a para sempre e correu para a sua mesa.

Ali, restava um silêncio absoluto.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/lego-boneca-o-por-anfiteatro-1044891/

quinta-feira, junho 23, 2016

CONHECIMENTO E EXPERIÊNCIA

Kant, fundamentado em seu modelo do Apriorismo, afirma que todo conhecimento tem sua origem na experiência, mas não exclusivamente isso, porque a experiência somente é estabelecida através do conhecimento tácito, preliminar do homem, pelo menos no sentido mais raso do termo, destituído de qualquer investigação mais minuciosa.

Na verdade, segundo ele, o conhecimento se inicia com a experiência, mas esta sentença, de certa forma é arbitrária e não prova que o conhecimento em sua plenitude se deriva exclusivamente dela.

Se não vejamos, esta interpretação suscita uma série de questionamentos.

É aquela velha história do ovo e da galinha. Ainda existe esta controvérsia? Afinal após a descoberta do DNA, foi comprovado que o ovo veio antes da galinha, ou melhor, a pobre da galinha não passava de um ovo.

Esta seria sua primeira forma de vida. Afinal, a famigerada ave é uma espécie inglória, uma ave que não voa, não canta, tem um aspecto parvo e dorme em cima dum poleiro.

Mas deixemos estas minúcias para os especialistas. Não é nossa seara, aliás, a nossa nem tem nada a ver com Kant, pelo menos na precisão e rigor filosófico.

Tem a ver com a escrita e tudo que se relaciona ao ajuntamento de letrinhas.

O que nos interessa, enquanto especuladores da filosofia kantiana, refere-se à dúvida incessante que nos atinge na plenitude do nosso conhecimento (plenitude?), visto que o conhecimento adquirido se dá através da experiência de nossos erros e acertos, de nossas reivindicações junto à existência, cuja natureza transforma a cada segundo nossas vidas.

Por outro lado, é de bom alvitre admitir que uma dose extra de conhecimento é transmitida por nossos antepassados, apreendido através da herança genética de neurônios elitizados, robustos, cheirando a leite materno do bom.

Toda esta aplicação científica nos induz à tese anteriormente citada e massacrada, relativa à herança genética da galinha. Ela é o próprio ovo, não tem essa de ser galinha antes ou ovo depois ou vice-versa.

Nós somos a própria experiência de nossos pais, avós, tataravós portugueses e demais colonizadores, ou escravos.

Mas verdade seja dita, este mesmo conhecimento não se deu ao acaso. Também eles tiveram a aprendizagem através de experiências adquiridas.

Ou não?

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 8º CAPÍTULO

CAPÍTULO 8


Depois desta conversa com Jairo, os dois se separaram e Júlio voltou para o hotel. Na portaria, deparou-se com outra pessoa. Certamente, não era o turno de Rosa.

No quarto, tomou um banho longo, vestiu um pijama e deitou-se um pouco. Adormecera talvez por meia hora ou mais. Estava com fome, aquela cachaça o deixara faminto. Ligou para a recepção, perguntando se serviam jantar. Não era hábito do hotel, até porque era um estabelecimento de pequeno porte, mas adiantariam o lanche da manhã para ele, com alguns ovos fritos e talvez, até acrescentassem um copo de vinho.

No restaurante do hotel, apenas algumas luzes foram acesas, iluminando principalmente a mesa onde Júlio se encontrava. Tomara o restante do vinho e observara a rua pela vidraça. Era uma avenida estreita, com pouquíssimas residências. Sabia que a alguns quilômetros apenas ficava o rio que dividia a cidade, mas cuja região mais desolada ficava após a ponte. Talvez meia hora dali. Recordou a sua infância, a vida pacata na pequena cidade, os pais trabalhadores rurais que com dificuldade lhe possibilitaram estudar e afastar-se em definitivo para a capital. Pouco os viu desde que saiu da região até que faleceram e desde então, nunca mais havia voltado.

Agora, entretanto, sentia falta dessa simplicidade em encarar os fatos de maneira tão objetiva e ao mesmo tempo estranha do povo da região. Praticamente todos se conheciam, falavam de tudo e de todos e um acontecimento trágico mexia com a comunidade. Talvez por isso, seu amigo Jairo e o próprio dono do bar estivessem tão envolvidos com o assunto do assassinato ou suicídio da filha do farmacêutico. Era razoável.

Estava tão entretido em seus pensamentos que nem percebera o garçom ao seu lado, perguntando se precisava de alguma coisa. Logo avisava que fechariam o restaurante para se preparem para o outro dia. Júlio percebera que devia retirar-se e se afastou, cumprimentando o rapaz e dirigindo-se ao elevador, porém foi obrigado a voltar, informado de que alguém o esperava no saguão. Surpreso, perguntou de quem se tratava. Seria o seu amigo Jairo? O garçom mostrava-se nervoso ao dizer a Júlio quem queria falar-lhe naquele momento. Júlio o olhava, intrigado. O outro, completou:

— Não, não é seu amigo Jairo, senhor, que quer falar-lhe. Trata-se de Golias. Desculpe, é como todo mundo chama o farmacêutico da cidade.

Farmacêutico? Então o pai da moça assassinada queria falar com ele. Mas não teria nada o que conversar. O que poderia querer… -– Nisso, o homem a quem o garçom se referia, irrompe na sala e dirige-se a Júlio revelando intensa ansiedade. – Por favor, preciso falar-lhe. Preciso da sua ajuda.

Júlio pensou em seguida que não poderia ajudá-lo em nada, mas ficou quieto. O homem insistiu:

– Sei que o senhor já morou nesta cidade, meu pai que era enfermeiro, conhecia muito bem a sua família. Se não se importa, eu gostaria de falar-lhe.

Como não tinha como recusar, Júlio pediu que o acompanhasse até o quarto.

Júlio abriu a porta com dificuldade. Sua mão tremia, mas não estava temeroso com a presença do homem. Já enfrentara centenas de casos difíceis, homens traídos, políticos presos em falcatruas, mulheres que investigavam a vida de maridos no auge do ódio doentio, mas estava especialmente confuso com aquela presença. Talvez não estivesse preparado para a visita, queria descansar, aproveitar a aposentadoria, escrever o seu livro, rever os poucos amigos da cidade, encontrar o ritmo há tanto esquecido daquele povo. Contudo, aquele homem parecia disposto a falar-lhe uma coisa muito importante. O que pretendia contar-lhe?

Ao entrar, ofereceu-lhe a poltrona próxima à cama. Sentou-se numa pequena cadeira ao lado da cômoda, em seguida.

—Então, o senhor queria falar comigo?

—Peço desculpas pelo adiantado da hora, aqui na cidade, a gente costuma dormir antes das dez.

– Quanto a isso, não se preocupe. Eu durmo muito tarde.

—Bem, o meu nome é Lucas, como o rapaz do hotel disse, sou o farmacêutico da cidade.

— Sim?

—Pois é. Por ironia, me chamam de Golias, veja você, com a minha baixa estatura, isso é até uma piada, além de ser bastante franzino.

Júlio fez uma pausa, como se medisse as palavras. Por fim, disparou:

– Mas o senhor não veio me procurar para me falar sobre a sua estatura, não?

O homem levantou-se, enquanto falava.

– Não, claro que não! – E se dirigiu a janela que dava para a frente do hotel. Olhava para baixo, um ar desolado. Os olhos miúdos, algumas rugas permanentes e as olheiras davam um ar de desamparo, como se houvesse passado muitas horas sem dormir, nem se alimentar.

Júlio ficou observando-o, na espera de que falasse alguma coisa. Penalizou-se com a figura que devia ser um resquício do homem que era, tão desconsolado e triste parecia. Não lhe saía da cabeça a tragédia da filha.

Neste momento, ele voltou da janela e correu ao seu encontro, quase gritando.

– Preciso da sua ajuda, Sr. Júlio, preciso da sua ajuda!

Júlio também levantou-se e tentou conduzi-lo à poltrona.

— Por favor, se acalme. Seja o que for que precisa de mim, tem que me contar com calma. Não se desespere.

O homem começou a chorar convulsivamente. Segurava a cabeça, em prantos. Júlio não interveio e esperou que se acalmasse.

Aos poucos, o homem se recompôs, respirando fundo, olhando para o nada.

—Quer beber alguma coisa?

— Tem um copo d’água?

Júlio entregou a água e voltou a sentar-se, desta vez, na própria cama.

—Desculpe o meu desabafo. Eu não poderia ter feito isso, foi um constrangimento enorme pra mim, mas estou muito nervoso, entende?

— Não se preocupe com isso, eu entendo que esteja passando por momentos difíceis.

—É sobre isso que vim lhe falar. O senhor sabe do assassinato de minha filha.

—Foi a primeira coisa que soube quando cheguei. Estava no bar conversando com um amigo meu e ele contou-me o ocorrido.

— Sim, Jairo, foi ele que me convenceu a falar com o senhor! Júlio irritou-se com o amigo. Como ele foi capaz de dar aquela sugestão infeliz ao homem. Agora compreendera, porque ele lhe contara a história com uma riqueza de detalhes, já estava com o objetivo formalizado.

—Bem, sei que é detetive, e que pode me ajudar.

— Eu sou aposentado.

—Melhor assim, tem mais experiência. Por favor, eu lhe suplico. A minha filha foi assassinada por aquele miserável, aquele médico maldito que veio só pra destruir a nossa família, a nossa vida! Um homem da cidade, cheio de salamaleques, cheio de bossa, minha filha se encantou e deu no que deu! Ela se apaixonou por ele, acabou fazendo o que não devia. Ele até prometeu casar com ela, ela acreditava nisso! Mas ele tinha outra na cidade, na capital. Ele tinha noiva ou namorada, não sei, só que estava decidido a acabar com tudo. Como ela insistiu, como disse que estava grávida e contaria para a noiva dele, ele acabou matando-a! Ele matou a minha filha!

O homem falou tudo de um supetão. Não havia como interromper, nem argumentar. Finalmente, quando conseguiu, Júlio perguntou:

– Mas me diga uma coisa, essa história de gravidez, eu não sabia. E depois, pelo que saiba eles se conheceram há pouco menos de um mês.

— Ela teve a triste ideia de inventar esta bobagem e o pior é que ele acreditou. Deu no que deu!

—Então este médico é um idiota, convenhamos! Não seria mais fácil ele abrir o jogo, dizer que não casaria, e depois contaria para a noiva, se fosse o caso? Afinal, nos dias de hoje, uma gravidez não é garantia de nenhum casamento. E depois, se era mentira…

— O problema todo é que a tal moça da cidade, a namorada é filha de um grande empresário no ramo hospitalar. Isto significa o futuro dele, entende? Por isso a matou, eu não tenho dúvidas!

— Após contar-lhe toda a história e descrever posteriormente em detalhes o que julgava o encontro do médico com a filha, ele perguntou se Júlio aceitava o caso.

Júlio experimentou uma certa euforia que costumava sentir em frente a um caso novo, quando estava na ativa. Por um momento, sentiu-se mais vivo do que nunca e muito produtivo. A biografia, o livro que ficasse para trás. Entretanto, havia um porém.

— Espere, Lucas, eu vim para cá com um objetivo. Na verdade, uma mulher chamada Sara quer falar comigo, quer me contratar para alguma coisa. Eu preciso saber antes do que se trata, entende? E depois, pode haver outra possibilidade em relação ao caso de sua filha.

—Como assim?

— Não lhe garanto, mas dependendo da situação, talvez eu aceite o seu caso, mas isso não quer dizer que você terá uma resposta satisfatória. Eu posso encontrar outro assassino, ou talvez, provar que foi apenas um suicídio.

—Isso não acontecerá, porque eu tenho certeza de que aquele canalha a matou! Você então aceita o caso?

Quando o homem retirou-se, Júlio elaborou um esquema dos procedimentos que teria a partir daquele dia. Não estava certo de que pegaria o caso, mas e se os outros crimes estivessem relacionados? E se Sara o havia chamado exatamente para falar sobre isso? Um dos primeiros passos, seria o que deveria ter feito desde o primeiro momento em que pisara na cidade, falar com a mulher que o chamara. Foi isso o que planejou para o dia seguinte.

quarta-feira, junho 22, 2016

O AMOR E A PIEDADE : sentimentos distintos


Há milhares de expressões que tentam expressar e explicar o que é o amor. Platão, ligando o amor à beleza e ao bem, dizia que o amor liberta o ser humano e o conduz à verdade. Para Santo Agostinho, o amor é o nexo que une as pessoas e as diviniza. Somente o amor é capaz de explicar a vida da alma e a sua possibilidade de se elevar ao conhecimento unitivo de Deus. Enquanto Platão se preocupava em conceber o amor como o elo, a ponte entre o corpóreo e o espiritual, entre o relativo e o Absoluto, entre o particular e o Universal, Santo Agostinho via o amor como o nexo entre o divino e as pessoas.

Mas há centenas de filósofos que dissertaram e tentaram explicar o amor, como Spinoza, Jean-jacques Rousseau, Friedrich Schleeirmacher, Aristófanes, Arthur Schopenhauer e tantos outros. Do mesmo modo, os poetas e compositores à sua maneira, cantaram e encantaram o amor em todas as suas nuances.

Eu não seria capaz de fazer uma explanação a respeito do tema com esta intensidade e conhecimento, muito menos buscar novas possibilidades de discussão deste sentimento, porém ouso argumentar sobre determinadas situações que podem identificar ou não o amor, seja em que especificidade se encontre: o amor filial, materno, paterno, fraterno, conjugal, etc.

Por exemplo, acredito que o sentimento do amor não implica ou não exige compaixão.

Não se deve acreditar que, ao se ter piedade por alguma pessoa, passaremos a amá-la, como condição inerente a este sentimento. Uma coisa não implica na existência da outra. Na verdade, tratam-se de emoções e sentimentos totalmente distintos.

O amor não depende de outro sentimento para se desenvolver, basta-se a si próprio, é intrínseco à capacidade de amar. Alimenta-se da admiração diária, do carinho efetivado, da troca de emoções que se estabelecem nos encontros.

Ama-se por vários motivos, pela beleza, pelo carinho, pela proximidade afetiva, por laços familiares, por admiração, mas jamais por compaixão. Nunca devemos realçar ou incentivar as características negativas de uma pessoa, transformá-la num pobre coitado, como se isso lhe possibilitasse o passaporte para almejar o amor. O que pode acontecer nesta presumível insistência é um sentimento oposto, uma aversão a tal pessoa.

Pessoas que se sentem inferiorizadas em seus relacionamentos ou enfrentamentos a situações cotidianas, costumam afirmar que a sua situação é muito mais difícil do que a de outros em casos semelhantes. Segundo elas, as outras pessoas com que se relacionam são os verdadeiros empecilhos. Elas nunca vencerão os obstáculos por este ou aquele motivo, como se através desta conduta recebessem como prêmio de consolação, a condição de serem amadas.

Pode-se ter compaixão, não amor.

Por outro lado, o indivíduo que passa a vida inteira suplicando amor, realçando as suas inaptidões, fato corrente, segundo a própria literatura científica, produz um afastamento cada vez maior do bem amado (seja este o marido, a esposa, o amigo, o parente próximo, o vizinho, o(a) amante).

Uma pessoa que demonstra amargura, numa luta constante contra a vida, que está em desconforto com a realidade e nada lhe é favorável, acaba afastando quem poderia descortinar um mundo em parceria, em união e agradável convivência. Entretanto, o que geralmente acontece é que o suposto candidato a amar sente-se obrigado a aturar tal sofrimento, em virtude da afeição que possui ou acaba definitivamente afastando-se.

Nunca devemos minimizar as qualidades de nossos filhos, exaltando as suas deficiências e transformando-o num coitadinho. Ele apenas colherá os frutos de ser considerado (e de se achar) o pior entre todos.

A criança, via de regra, acaba introjetando que é um ser inferior, incapaz de exercer seu domínio sobre as situações e de atingir seus objetivos. Acredita enfim que é um coitadinho, o que certamente gera um círculo vicioso, sentindo-se incapaz para a vida e tornando-se realmente um incompetente. A criança não consegue fugir da situação que lhe foi criada.

E apesar de toda carga de presumíveis deficiências que carregará pela vida, não receberá amor, nem carinho por isso, ou se receber, será de uma forma burocrática e social, para que não se sinta pior ou apenas para não desagradar os pais.

Piedade é o pior sentimento que uma pessoa deve despertar no outro. Não constrói nada, não o engrandece como ser humano, nem como cidadão.

Claro, que há momentos em que este sentimento de solidariedade é adequado, compreensível e necessário, mas não deve existir como regra no apequenamento intencional do caráter para atingir tal sentimento.

Não se deve creditar os defeitos dos filhos aos outros. Eles são criaturas normais, e tal como seres humanos que são, erram e possuem dificuldades como todos os outros, não são (nem devem ser considerados) santos.

Os chamados “outros”, tais como educadores, médicos, amigos, patrões, colegas ou familiares, não devem ser os únicos culpados pelos erros de nossos filhos.

Por vezes, estas pessoas podem ser culpadas, sim, de dificuldades imputadas ao filhos, e neste caso devemos lutar para esclarecer os fatos, tomando as medidas necessárias para que a justiça prevaleça. Devemos sim, ajudá-los, caso a situação exija a nossa interferência.

Por outro lado, devemos nos devotar na resolução dos problemas, examinando com clareza e imparcialidade todas as facetas da complexidade dos fatos, com a compreensão de que nem sempre nossos filhos estão com a razão.

Quando nossos filhos erram, somente crescerão internamente se enfrentarem (e aceitarem) os seus próprios erros e aprenderem com eles.

Não será apoiando indiscriminadamente as suas condutas, ou seja, passando a mão em suas cabeças ou acusando os “outros”, que os ajudaremos a crescer. Se a culpa de seus fracassos ou frustrações recair sempre noutras pessoas, pensarão que a vida lhes deve respostas imediatas, segundo as suas ideias preestabelecidas, alicerçadas em argumentos irredutíveis e nunca amadurecerão. Sempre haverá culpados para seus erros nas adversidades da vida. Não é assim que acontece.

Retomando, jamais se deve pensar que sendo coitadinhos, os filhos serão mais amados.

O amor é incondicional, não impõe regras, acordos, problemas ou adequações. O amor é íntegro. Ama-se sem quaisquer adereços de necessidade ou sofrimento. Ama-se porque o amor é intrínseco ao ser humano.

O homem cansa-se do sofrimento, da queixa, do estigma de pobrezinho. Cansa-se da necessidade de amar pela condição da falta, do problema, do impedimento, da deficiência, da covardia.

Amar não é sinônimo de dificuldade em se enfrentar a vida, ao contrário, de coragem e grandeza de coração.

Admira-se aquele que luta para vencer as adversidades, aquele que se esforça para atingir um ideal, aquele que se supera numa situação adversa ou que almeja tornar-se um ser íntegro e capaz de produzir desassombros pela vida.

É justo e normal sofrer infortúnios, o que não é justo nem normal é alimentar o sofrimento, sobreviver de modo medíocre através da dor, tendo enfim, a necessidade de ressaltar este sofrimento para obter deploráveis ganhos de origem afetiva.

Belo e dignificante é lutar até o fim, mesmo que não se atinja o ideal, que não se consiga a meta proposta, mas que se tenha vivido com dignidade e alcançado o mínimo do que se desejava para ser feliz.

E por fim, que não se tenha desistido no meio do caminho, tendo a certeza de que se acomodar na atribulação, não é mais inteligente do que ir à luta.

Coragem não é gritar aos quatro ventos o que se pensa, sem se ouvir os demais, coragem é permanecer na luta.

Coragem é transformar a sua vida numa escada, onde cada degrau é construído para uma vitória, mesmo que não seja a almejada, mas uma vitória interior, de maioridade emocional, de segurança própria, de sobrevivência digna.

Talvez a felicidade seja apenas isso: lutar, lutar e lutar.

E o amor, este não tem restrições. Este incide no belo, no feio, no afeto, na emoção do outro, na alegria, na paz, no que subtrai a alma através dos olhos. Admiração plena ou aversão pura são coisas distintas. Amar é outra coisa. Sem condições.

terça-feira, junho 21, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 7º CAPÍTULO


Júlio Ramirez era um detetive aposentado, como dissera à Rosa. Na verdade, nunca fora um profissional muito dedicado, muito menos com grandes vitórias no currículo, mas em alguns casos, fora especialmente primoroso. Às vezes, se dedicava até com paixão, mas precisava surgir um fato muito envolvente para levá-lo a este estado de eficiência.

Naquela noite, estava conversando num boteco da cidade, com um velho amigo, quando surgiu o assunto do assassinato de uma moça da região. Era mais um crime na pequena cidade, só que agora parece que estavam interessados em falar sobre o assunto. Tratava-se da filha do farmacêutico Lucas, velho conhecido nas redondezas.

Júlio, na verdade, queria tomar a sua cachaça batizada e preocupar-se com outras coisas mais interessantes, principalmente agora que estava sozinho, e cansara de não ter com quem conversar. Sabia, no entanto, que era um indício de que devia retomar a sua profissão, afinal, viera à cidade por um pedido que parecia ser de uma pessoa muito preocupada com os fatos. Jairo, o amigo, insistia no assunto mais falado na cidade.

– O Golias, sabe? – Assim chamavam o farmacêutico. – Está revoltado e não é pra menos. Veja você, numa cidadezinha dessas, no fim do mundo, quase uma vila, um cara aparece do nada e mata uma moça inocente!

— Jairo, cheguei hoje no hotel e não ouvi ninguém falar nada. Até mesmo a porteira, uma tal de Rosa, que fala pelos cotovelos, não comentou nada. Além disso, houve outros crimes nesta vila, como você diz…

— É verdade. Só que eram pessoas de fora. Dizem que eram turistas ou vieram aqui motivados por algum trabalho. Entretanto, até hoje, ninguém provou nada. Mas esta moça era conhecida de todos, certamente a sua amiga ainda não soubera da história.

– Mas descobriram o assassino?

– Não, mas o povo está desconfiado. Dizem por aí que foi um médico que se estabeleceu na cidade, há mais ou menos um mês. Gente que não quer ficar aqui, que detesta a cidade. E o que andam falando é que o miserável seduziu a moça!

– Meu caro, nos dias de hoje não existe mais isso de sedução. No nosso tempo, podia acontecer. As mulheres não trabalhavam, viviam na casa dos pais, sem saber de nada, sem se instruir, claro que falo em vilarejos que nem este.

– Mas uma moça fica iludida. Dizem que o homem prometeu casamento.

— Em tão curto tempo?

— Não sei, tudo é possível. Mas sabe-se lá, o povo fala demais, né?

— Como ela morreu?

— Abriram inquérito, porque oficialmente ela se suicidou. Desceu a ribanceira, caminhou pelas pedras e se atirou. Dizem que o corpo foi parar no outro distrito.

— Mas então?

— Ela foi assassinada, porque o perito que veio da Capital encontrou arranhões produzidos em seus braços, antes de ser morta. Eram arranhões que se alastravam pelos braços e pelas costas, assim como no pescoço, como se houvesse lutado. Para mim não há dúvidas que foi assassinada!

– Mas se ela escorregou nas pedras…

– Você vai contestar o perito?

– Não, de modo algum.

Nisso, Saraiva, o botequeiro entrara no assunto. Mostrava conhecer mais detalhes: – Mas o pai não pode fazer nada, não tem provas. Acusa o médico por causa do relacionamento dos dois. Júlio indagou como teriam a certeza de que a moça morrera mesmo naquela região.

Jairo argumentava que havia uma menina no dia da tragédia, ali por perto, e que prestara um depoimento.

– Uma menina?

– É o que dizem. Isto é, o que a polícia diz. – Acrescentou o dono do bar.

– E como esta menina soube do crime? O que ela viu? O que estava fazendo por aquelas bandas?

– Calma, Júlio, calma. Você parece que vai pegar o caso.

– Sou um detetive aposentado, você sabe. Tenho a minha profissão de advogado, na capital, que vou tocando devagarinho. Quero sombra e água fresca. E depois, vim aqui para falar com uma tal de Sara Soares. Você conhece?

— Acho que é a mulher que vive numa casa quase abandonada, no final da colina. Não é muito dada a se misturar com o povo.

—É, meu amigo, como lhe disse, quero sombra e água fresca.

– Por aqui, você não vai encontrar nada disso! – informava sorrindo, Saraiva.

Jairo já um pouco irritado com a intervenção do homem, combinara com Júlio a se retirarem para uma mesa mais distante do balcão. É o que fizeram, e o homem os seguira, perguntando que bebida preferiam.

– O mesmo que estamos bebendo, Saraiva. Traz a cachaça pra ele e uma cerveja pra mim. E estamos conversados, ok?

O homem afastou-se, fazendo uma careta de maus humores. Em seguida voltava com o pedido, e em silêncio esperava que pedissem mais alguma coisa. Por sorte, alguém chegara no bar em direção à caixa.

– Então me conta, Jairo, o que a menina estava fazendo lá?

– Eu não sei tudo, só o que o pessoal fala por aí. O nome dela é Ana, tem mais ou menos 14 anos e ouviu um grito que vinha da ribanceira do rio. Ela, pelo que me consta, estava pelas redondezas. Era tardinha e havia neblina. Muito curiosa, ficou observando, quando percebeu que alguma coisa estranha corria rio abaixo. Em seguida, se deu conta tratar-se de uma pessoa, então correu em busca de socorro. Ela achava que a moça havia se jogado na água.

– Mas então, por que as desconfianças de assassinato?

– Porque a vítima tinha escoriações pelo corpo e não foram produzidas pelas pedras, entende? Além disso, acharam seu celular.

–Sim, você me disse que ela tinha alguns arranhões pelo corpo. Mas onde estava o celular?

– Caído num barranco, bem próximo à água.

– E havia alguma coisa, alguma mensagem que sugerisse uma suspeita?

– Sim, uma mensagem do médico, pedindo que a esperasse na beira do rio. Ele a encontraria às 8:30h.

– Qual é o nome do médico?

– Ricardo Silveira. Está há pouco tempo aqui na cidade e parece não ser bem quisto.

Júlio calou-se. Percebeu que o amigo também não tinha mais nada a dizer. Tomou mais um gole de cachaça e preparou-se para voltar ao hotel. Jairo perguntou se ele pretendia ficar muito tempo na cidade.

– Pretendia ficar um mês mais ou menos, mas não sei se vou aguentar. Esta cidade é muito pequena, todo mundo é muito solitário por aqui. Sei como é, nasci aqui, você sabe.

– Veio pra descansar?

– Na verdade, vim para escrever um livro, uma autobiografia e para conversar com esta tal senhora, que me chamou até aqui. Acho também que está na hora de pesar a minha vida, o que fiz de bom, de ruim. Fui advogado, detetive particular, casei, não tive filhos. Mas acho que tenho muito a contar.

– Ué, você não disse que ainda é advogado?

– Como falei, vou tocando devagarinho. Deixei os grandes casos. Só trabalho pra não perder o hábito… ou pra não ser esquecido. – Fez uma pausa, pensativo. Em seguida, voltou-se para o amigo. – E você Jairo, o que faz da vida?

– Tenho uma pequena propriedade perto do rio, sempre trabalhei com madereira, mas agora, estou mudando de ramo. Quero fazer alguma coisa relacionada a camping. Acho que será onde moro mesmo, bem longe da civilização.

– Nem precisava ir muito longe, meu amigo. Esta cidade já parece longe de tudo.

fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/users/andygraham-2334502/

domingo, junho 19, 2016

A VISITA

Chegar a casa, percorrendo as ruas estreitas, de paralelepípedos irregulares, batida incerta no peito, olhos febris. Difícil saber o significado da visita, entender a expectativa da hora, o aperto de mão.

Minha mão na do meu pai, caminhando orgulhoso, torcendo os pés nas pedras incólumes. Tropeçando, olhos pairando nos céus, gestos hesitantes, braços indagando inquietos. Segui-o em tudo, até na incerteza.

Tinha de fazê-lo para chegar lá. Saber como o tal tio nos receberia e ter ao mesmo tempo a convicção do acolhimento sereno.

Muito se falava nele. Meu pai tinha orgulho da sabedoria, da linguagem precisa, do seu amor pelas letras e filosofia.

Eu divagava, mão apertada, coração aos saltos.

Via as sombras das pernas longas de meu pai no sol da calçada. Os pés grandes, apressados. Se soubesse o quão distante seria o caminho, talvez não me levasse.

Mas valia à pena o sacrifício para transmitir conceitos saudáveis que talvez eu apreendesse.

Agora sei que ele estava certo, porque muito daquela experiência alicercei na minha construção pessoal.

Só não entendia uma coisa: Por que consideravam o tal tio, um homem triste e solitário? Por que estados da alma banais o atingiam de maneira tão intensa, se era tão profundo o seu conhecimento humano?

Falavam da mulher que o abandonara há algum tempo. Era o que se manifestava para o senso comum. Não para mim. Na verdade, não que eu tivesse a perspicácia necessária para inferir tais coisas, mas pelo simples motivo de não me interessar pelo mundo peculiar dos adultos.

Talvez quando o conhecesse, até me decepcionasse e ele nem correspondesse aquilo tudo que se imaginava ou que meu pai queria transmitir.

Meu pai sim era um desbravador, gostava de despertar em mim sentimentos de justiça, de dever, de honra.

Se não tivesse aquele jeito desajeitado de me guiar, eu até justificaria todos os seus propósitos.

Não naquele dia, naquele momento. Minhas mãos suavam, o braço esticado doía. Acompanhá-lo não era fácil.

Quando dobrava a esquina, fugia um pouco do sol, escondia-se do calor e furava o céu devagarinho com o indicador, mostrando a chuva vindoura.

Se chovesse, talvez ele parasse e aliviasse a carga. Ou talvez desandasse a correr. Era imprevisível. Obstinado em suas idéias. Concluía o que dizia sempre com o olhar, desenhando na retina o desfecho da trama.

Eu sempre o entendia. Mesmo que inventasse histórias, eu sabia, que no fundo havia um quê de verdade, um objetivo que sinalizava um bem maior.

Quando chegássemos, logo que passassem por nós as casas antigas, solares abandonados de famílias falidas e fábricas empoeiradas, talvez os assuntos ficassem mais claros. De uma forma letrada, apoiada pelos livros, dicionários, enciclopédias, manuais, teses, jornais e revistas.

Tudo que se imaginasse. Tudo que fosse sonho, adentrado por nós, daqui a pouco, quem sabe tomando um suco de limão, antes da conversa, para refrescar, logo após o aperto de mão.

Se fosse por meu pai, já estaríamos lá, pelo menos, pelo seu desejo, não pela sua competência. Rua mal informada, bairro inexistente, referências estranhas.

Ele sempre se enganava em um detalhe qualquer, o boteco que existira um dia, a placa de néon do cinema da esquina e que apagada, não se tinha a certeza de que era a mesma. Faziam parte da epopéia dele estes constrangimentos, estes empecilhos.

De certa forma, isto produzia um certo colorido de fuga da rotina.

Por certo ouviria bem atento as histórias do tio, seus conhecimentos do mundo e a apreensão do mundo. Talvez semelhante ao dele, porém concebido daquela maneira prazerosa, precisa e convincente.

Chegaríamos lá, eu quase sem os dedos das mãos, ele, sem os cabelos, de tanto que os alisava para trás, ajeitando o que o vento estragava.

Um vento de corrupio nas folhas secas, que avançava rápido nas folhas que subiam em círculos, mas que logo arrefecia, deixando-as atracadas nos muros e nas paredes das casas. E nós entre as folhas caídas, cansados da viagem.

Pedi para sentar no banco mais próximo, no portal de uma casa, na beira da calçada, no muro da igreja.

Ele me olhou, sorriu e largou a minha mão. Abaixou-se, passou a mãos pesada pelos meus cabelos, quase desnucando o que restava de equilíbrio, ajeitando a gola da camisa e puxando o casaco.

Levantou-se em seguida. Segurou-me a mão e afirmou eufórico: —Chegamos!

Olhei para o alto e vi a casa cor de cimento, paredes irregulares, frisos que desciam, num estilo excêntrico.

A porta destoava um pouco do conjunto: tão forte e majestosa quanto a dos castelos. Aldrava pesada, que eu avistava por baixo.

O vento de outono retomava a ação.
Na porta, mão firme, batida constante e contínua.

Um homem magro e baixo, cabelos brancos, olhos claros. Sorriso tímido, jeito absorto, de quem não conhece a visita.

Foi só por um momento.

Depois, temas passados a limpo: a política, a família, a vida. Todos os pontos auscultados no coração aflito.

Olhares em volta, encontrando-se, às vezes.

Perguntas sobre idade, estudo, leituras. Atenção redobrada.

Livros empilhados, estantes abarrotadas, máquina de escrever, caneta tinteiro. Uma mão pequena, estendida, resvalando descuidada no tampo da mesa, dedos tamborilando, sugando o que podia de letras, frases, pequenos textos.

Batida tímida nas teclas.

Olhar enviesado, temeroso.

Um sorriso. Um suco de limão. Mesuras, satisfação sincera de reencontro. Conversa à solta.

O sol ampliava a atmosfera. Abria-se uma nesga de luz, invadindo a sala, entre as persianas, iluminando quadros, rios, cachoeiras, janelas abertas, roupas no varal.

Sentava-se a nossa frente. Poltrona macia, afundado, pequeno, as pernas juntas, os sentidos despertos. Ouvidos alertas. Boca quieta. Eu só ouvia.

Meu pai falava de vez em quando, dava palpites, iniciava assuntos.

Pouco lembravam o passado, só de passagem, um evento aqui, outro acolá, parceiros de brincadeiras, mesma idade.

Tanto tempo separados. Voltar ali, sabendo-se sozinho. Solitário e triste e nada comentar.

Era digno não falar. Apenas recobrar as horas passadas, lembrar o tempo sem solidão. Feliz.

O refresco acabara, olhei para o copo e mordi devagarinho a borda fininha de cristal. Frágil. Como ele, o tio, mas grandioso.

Só compreendera muito tempo depois.

E na hora, não entendera a despedida triste, aperto de mão demorado, pedido que se cuidasse, tomasse por cabresto o corpo, a mente, o coração, a vida.

Ficasse forte, cuidasse de si.

Meu pai falava tudo de súbito, temendo ofendê-lo. Não ousava falar na perda.

Caminhar mais lento, calçada à fora, atravessando ruas, paralelepípedos irregulares, eu ao seu lado, seguro, seguindo a nossa história.

Silêncio.

Sabia que nossa relação seria mais forte.

Eu tinha me tornado um pouco adulto, mesmo não me interessando muito pelos acontecimentos tristes. Sabia, entretanto, que compartilhávamos um segredo: a coragem do enfrentamento da vida e o resgate da amizade.

Partilhar da verdade. Voltar pelas ruas, sentindo o vento já frio nas pernas era realizar um novo caminho, com muito mais certeza de tudo ou pelo menos, a certeza de que não se sabe quase nada. Só uma alegria a mais, no coração.

Fonte da ilustração: Matthews, Rebecca. StillWorksImagery. https://pixabay.com/pt/recepção-livro-educação-escola-1375312/

quinta-feira, junho 16, 2016

A ARANHA

A crônica "A aranha" está na antologia "Outras águas" e foi vencedora na categoria, juntamente com a crônica "A palestra" publicada neste blog.


Fonte da ilustração: Westermann, Johannes do site https://pixabay.com/pt/users/Westi2605-2708584/

Quando acordei, pensei que o mundo houvesse acabado, tão grande a agonia que sentia. Coração aos saltos, lábios trêmulos, língua paralisada. Estaria eu no fim? De repente, um assobio que se finava ao longe indicava drasticamente que estava vivo. Não tão desperto, como imaginava.

Sentei-me devagar, com dificuldade, procurando os óculos sobre o baú, entre frascos de comprimidos, colírios e livros. Passei a mão, ainda perturbado, empurrando tudo que se opunha ao meu gesto. Até que o estalido no chão obrigou-me a dobrar a coluna para encontrar o objeto de minha dependência.

Deitei-me de bruços na cama, enfiei um pé entre os cobertores ainda quentes e espiei pelo lado oposto onde estava deitado.

Mergulhei a mão, enveredei por cantos obscuros do parquê e embaracei os dedos em teias de aranhas.

Tirei a mão irritado, sem ter atingido o objetivo, mas neste gesto, bati em alguma coisa metálica.

Eram eles que se instalaram a poucos centímetros de meu caminho de busca.

Organizei novamente a expedição e os puxei resoluto.

Quando os engatei no nariz, olhei o mundo num relance, tendo agora certeza absoluta de que ainda estava vivo.

Um pesadelo resgatava um mundo oculto, funesto, cheio de pequenas obsessões não ditas, doses de concupiscência não manifestada, traços de egoísmo não declarados e desejos jamais confessados.

Por isso, esta aflição, este jeito de enfrentar a realidade e a fantasia, colocando-as em mundos opostos, como fazemos no dia a dia, mas que por um pequeno espaço de tempo, ao acordarmos, pendemos mais para o lado do sonho, que talvez seja muito mais real do que imaginamos.

E ao nos darmos conta, caímos no mundo que pensamos como único, verdadeiro e concreto.

Em vista disso, essa dor nas costas, este resfolegar de mãos suadas, torcendo uma na outra, como querendo limpar a sujeira do subconsciente.

Agora, tento levantar-me, olhando de frente, ou de soslaio, se for sincero, o meu mundo insípido, neste quarto sujo de teias de aranha.

E vejo-as passear pelo piso, fazendo tiro-ao-alvo de suas redes, prendendo-as aos pés da cama, esperando insetos incautos que se atrevam a bisbilhotar suas vidas ou mesmo integrar o mesmo espaço que tomam como direito. O meu espaço.

Se pudesse, as eliminaria de minha vida, tal como as teias de aranha que ficam em minha mente nebulosa, assustada pelos direitos que me dou a ser tão lascivo, enquanto durmo, tão ousado em meus devaneios, tão despojado de qualquer sentimento de culpa.

Por que agora me sinto tão culpado, examinando seus passos, seus caminhos subterrâneos, suas gosmas viscosas que grudam a qualquer estrutura, menos a suas patas.

Sinto-me assim, grudado ao meu mundo real, tão longe daquele idealizado, no qual o destino me atinge com suas tramas, como aranhas gigantes, largando sobre mim as teias que me deixam alienado, preso ao chão rasteiro de minhas dúvidas e temores, enquanto suas patas saltam livres e prosseguem a sua jornada.

Se pudesse ao menos, me desgrudar de suas teias, e tramas tão fechadas que me prendem como mosca tonta na busca frenética do alimento.

Se pudesse alçar vôos mais altos, sem preocupar-me com a queda ou a apreensão dos cuidados, sem a censura dos descaminhos.

Ah, se pudesse provar deste alimento que a aranha me induz para caçar-me, me deixa livre para decidir, sem que possa saborear a fruta que escolhi e se o faço, me lança à rede implacável, me prende na gosma e me tolhe, de joelhos a bendizer a morte que vaticina.

Tenho medo da aranha, mas muito mais de minhas escolhas.

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 6º CAPÍTULO

Capítulo 6


Seu Domingues caminhava devagar, passos miúdos, quase estudados. Olhar absorto, absorvido no nada, quase infinito. Quase falando, quase sorrindo, quase vivendo. Sobreviver? Era esta a ideia? Pois estava ali para ultrapassar os parcos limites de sua existência. Ouvia vozes, sorrisos de crianças, farfalhar de folhas. Outono? Talvez. Ou qualquer estação que trouxesse um pouco de vida, aliada ao sol forte que lhe ardia a testa. Meio dia. Sol a pino. Quem sabe verão? Não. Impossível. Aquele friozinho que já lhe arrepiava os pelos dos braços. Outono chegava. Prenúncio de inverno. Forte, de geada. Crepusculando o mundo soturno do frio. Decadência. Sentou no banco da praça como fazia há quinze anos. Veria por acaso as mesmas pessoas, os mesmos velhos solitários como ele, ali, a jogar dama, espiar as pernas das moças inatingíveis, bisbilhotar a vida alheia. Vida intensa que segue. Pipocar um sorriso aqui, uma lágrima ali, uma vontade de nada, de não saber o quê.

Hoje não havia ninguém conhecido. Nem mesmo para dar a notícia fatal de algum amigo que já partira, como muitos. Agora estava realmente só.

Ele ficou assim, não sabe quanto tempo. Uma hora, duas, três. Uma eternidade. Até que o inusitado aconteceu.

Uma bicicleta do outro lado da rua. Uma moça bonita, da loja de conveniências. Marília.

Ela aproximou-se, naquele jeito fagueiro, atitude de quem tem a vida pela frente. Chegou célere. Sentou-se num pulo, ao seu lado. Sorriu. Uma lufada de vida, de ar, de dignidade. Encheu os pulmões, o coração. Sorriu também.

— O senhor não acha melhor voltar para a loja?

— Por que Marília? Está tão bom aqui. Veja este sol. Pelo menos um alento, para um velho como eu.

— Lá o senhor pode ler o seu jornal, tomar o seu café bem quente. Aqui está muito frio.

— Você acha Marília? Aqui, pelo menos, eu posso ficar um pouco sozinho.

— Então quer dizer que não gosta de nossa companhia?

— Não, Marília, é que chega um momento de nossa vida, que às vezes preferimos ficar sozinhos. Nada acontece, entende?

—Pois vou lhe contar uma novidade.

Ele a olhou intrigado, como se nada significasse alguma novidade para ele. Entretanto, ouviu-a com paciência.

— O senhor sabia que chegou um detetive na cidade?

— Um detetive? O que vai descobrir neste fim de mundo?

— Talvez alguém o tenha contratado. Ocorreram uns crimes por aqui, não foi?

— Eu não acredito nisso, Marília. E depois, tudo já foi solucionado e o que não foi, não descobrirão nunca.

— Por que o senhor pensa isso?

Calou-se por um momento. Refletiu e acrescentou meio displicente com o assunto.

— Não sei, deve ser porque já vivi demais e sei que nada acontece por acaso.

— Não entendi nada, Seu Domingues. Mas não importa, vou indo, porque tenho que pegar o meu filho na escolinha pra voltar à tarde pra loja. Um bom dia pra o senhor!

— Bom dia Marília.

Ele continuou sentado, com os olhos mais fixos do nunca no mais obscuro de sua mente. Parecia que as coisas ficavam de certo modo atordoadas e o incomodavam.

Quem seria aquele detetive? Quem o teria chamado? Por que Marília sempre lhe trazia uma novidade que não lhe dizia respeito. Deixou-se ficar por um tempo e sentiu um olhar pesado em suas costas. Voltou-se e percebeu que Rosa continuava parada na porta do hotel. Pensou, não tem o que fazer mesmo, um hotel vagabundo, uma cidade que não acontece nada e uma gente desocupada!

quarta-feira, junho 15, 2016

Breve análise das crônicas “A aranha”e “A palestra”do livro “Outras águas”

Estas duas crônicas foram vencedoras em 1º e 2º lugar do XXIII Concurso Internacional Literário das Edições Ag.

A crônica “A aranha” revela o homem moderno, num mundo em que tudo é permitido, no qual todas as escolhas são possíveis e, ao mesmo tempo, fica dividido, tornando-se desta forma, confuso em seus relacionamentos, na sua vida cotidiana e profissional.

Apesar de todas as possibilidades que o mundo oferece, o homem se vê preso a padrões que remetem ao senso comum, induzindo a todos experenciarem o modo de vida da mesma forma, agindo segundo regras pré-estabelecidas, sejam morais ou éticas.

Entretanto, talvez pela complexidade humana, o homem despe-se deste ser correto e adequado à sociedade.

Tal como Jung declarava, o homem usa a persona para mostrar-se ao mundo, mas deixa a sombra oculta nas mais distintas ocasiões, sem que se revele a sua verdade.

Usa subterfúgios e máscaras no seu dia a dia, porque o que aparenta na família, no trabalho ou nos seus relacionamentos pessoais é o que considera adequado à sociedade.

Por isso, a dificuldade do homem em mostrar a sua verdade mais íntima.

Há portanto, o temor de fazer as opções, por mais simples que sejam, pois desafiam a maioria ou questionam o pensamento geral, padronizado e aceito.

Como a mosca, ele fica preso à aranha, o grande emaranhado de normas, leis, preconceitos e mentiras que regem as condições de relacionamentos e experiências modernas. Daí o seu sofrimento e confusão.

Agora fugindo um pouco da análise da crônica, mas utilizando o viés proporcionado pelo tema, observamos que o ser humano precisa desapegar-se de determinados sentimentos que o deixam agastado e triste.

Por exemplo, a necessidade extrema de competir, em qualquer área, em qualquer seguimento, para que na vitória sinta-se empoderado, a partir de um novo avanço em suas percepções.

Consideramos, inclusive, que em determinado limite, esta competição é saudável, entretanto o fato de viver comparando-se com os demais acarreta sentimentos de frustação ou auto-estima que infla o ego e descarta sentimentos de viver em comunidade.

Um outro fator desencadeado por esta competição, que atualmente atinge o homem, é o descomprometimento com a sua realidade, com a comunidade em que vive e o seu mundo particular.

O homem vivencia os acontecimentos que atingem a Antuérpia e não olha para vizinho ao lado.

Por outro lado, o julgamento de qualquer situação tornou-se supérflua a ponto de embutir-se uma dose de punição antes do crime justificado, usando-se para isso a intolerância e a arrogância, esquecendo-se de observer os dois lados da situação.

Provavelmente isto ocorra, porque não enxergamos nossas próprias falhas e é muito mais fácil apontar no outro o que ocultamos em nós mesmos.

Cristo já provocava seus seguidores com a questão que bem denota o falamos: E por que vês tu a aresta no olho de teu irmão, e não vês a trave no teu olho?

Quando o homem souber se desapegar destes sentimentos e fazer uma autocrítica de todos as situações onde põe o seu jugo, certamente encontrará mais tempo para regozijar-se com a natureza, com a vida, com tudo que o cerca.

Enfim, terá a plenitude de entender-se a si próprio, percebendo que é persona, mas também sombra e que são aspectos que não existem separados.

Somente aceitando a personalidade como um todo, o homem terá a saúde psíquica plena e saberá utilizar com inteligência os aspectos que privilegiem determinado enfrentamento de um problema.

A segunda crônica “A palestra” talvez seja uma complementação bem humorada da primeira, A aranha.

Ela descreve este homem dos dias atuais, ansioso e confuso, que tenta vencer o tempo divergindo das prioridades e perdendo-se nos espaços vazios dos horários.

As dificuldades se estabelcem em virtude do trânsito, da correria das compras, do conciliar compromissos, inseridas num complexo de informações oriundas de qualquer suporte com ou sem necessidades.

A partir desta convergência de fatos contraditórios , o homem se insere nesta atmosfera de caos através de suas dificuldades pessoais, profissionais ou familiares.

Enfim, o homem que também precisa fazer suas escolhas e às vezes, se equivoca, perdido nesta seara de informações descontroladas e tempo exíguo.

Isso ocorreu na na palestra em que o orador não passava de um político prolixo e o ouvinte estava no lugar errado, com outros interesses que não aquele tema.

terça-feira, junho 14, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 5º CAPÍTULO

Capítulo 5


Rosa investigava distraída o celular, quando Ricardo deu uma pequena batidinha no balcão. Ela assustou-se e pediu desculpas pela displicência.

— Não se preocupe dona Rosa. É que estou com um pouco de pressa, esqueci uns documentos no quarto e preciso sair rapidamente.

— Ah, sim. Já lhe dou a chave. Doutor, gostaria de participar do nosso coral da igreja? Olhe, não precisa ser cantor, basta ter boa vontade.

— Dona Rosa, além de eu não ter o mínimo de talento, tenho muito pouco tempo. A senhora sabe, o hospital…

— É verdade, é que a gente sempre está precisando de novas vozes para o coral. Mas quando puder, apareça lá, veja os nossos ensaios. E assim que houver uma apresentação para o público, pode ter certeza que o convidarei. Sou também a maestrina, sabe?

— Ah, sim, muito obrigado.

Quando está se afastando, Rosa ainda pergunta:

— Doutor, é rapidinho. Tem alguma notícia de Raul?

— Raul Soares? A senhora o conhece?

— Sim, este mesmo. Ele é meu colega no coral, disse que iria se apresentar na reunião, mas soube que esteve doente. Ele é meio maluco, mas nunca soube que tinha diabete.

— Está bem, deve dar alta hoje mesmo.

Ricardo subiu ao quarto pensando nas palavras de Rosa. Todos pareciam se conhecer nesta cidade, inclusive a mulher da portaria do hotel era também colega de Raul no coral. No quarto pegou as suas coisas, olhou se estava tudo em ordem e desceu com a intenção de afastar-se logo dali. Entretanto, Rosa ainda tinha outras perguntas.

— Não gostaria de incomodá-lo, mas sabe, um dia desses, Raul esteve na minha casa e bem, andou fumando maconha, sem eu saber. Resumindo, drogou o meu cachorro. Queria saber se é possível isso ou aconteceu alguma outra coisa com o meu animalzinho.

— Ele ficou bem?

— Sim, no outro dia estava normal, alegre como sempre.

— Então pode ser – Dizendo isso, despediu-se e afastou-se, concluindo a conversa. Rosa ficou olhando-o, pensativa. Deixou o celular numa prateleira sob o tampo do balcão e dirigiu-se até a porta envidraçada, observando a rua. Não havia nada interessante, pensou. No entanto, um homem que se aproximava do hotel, chamou a sua atenção. Percebeu tratar-se de um provável hóspede, por isso, voltou ao balcão, sentou-se e esperou que ele abrisse a porta.

Apresentou um amplo sorriso, quando o homem alto e de terno escuro entrou. Esperou que ele se apresentasse e perguntou quantos dias ficaria hospedado.

— Pretendo ficar alguns dias, ainda não sei ao certo. Talvez uns dez dias, mais ou menos.

Ela o olhou intrigada, mas não comentou nada. Afinal, quem se dignaria a ficar dez dias naquela cidade no fim do mundo? O homem esclareceu:

— Vai depender de uns negócios que pretendo fazer. Mas eu lhe direi mais tarde com precisão.

— Qual é o seu nome, por favor?

— Júlio Ramirez. Sou advogado, mas atuo como detetive. Rosa observou pelo documento, que o homem era da Capital. Preencheu rapidamente os dados no computador, imprimiu uma ficha e pediu que assinasse.

— Vou chamar o rapaz para ajudá-lo a carregar a sua mala.

— Não se preocupe. É só uma mala pequena e uma mochila.

Rosa surpreendeu-se, como ele pretendia ficar tanto tempo, trazendo aquela mala minúscula, mas isso não lhe dizia respeito. Entregou a chave com o número 703. Por fim, informou era bem antigo, com uma grade que devia fechar para que funcionasse. Júlio sorriu e acrescentou, satisfeito:

— Estive há pouco numa cidade que tudo era meio ultrapassado. Não se preocupe. Eu também nunca pensei que voltaria à antiga profissão e estou de volta.

— O senhor é advogado?

— Aposentado. E detetive também aposentado. – Concluiu com um sorriso. – Mas agora, parece que voltei à ativa.

Rosa gostaria de perguntar em qual das duas profissões, mas preferiu calar-se. Não era de bom tom intrometer-se na vida dos hóspedes.

Já na porta do elevador, o homem se voltou para a portaria e perguntou:

— Por favor, a senhora, como é seu nome mesmo?

— Rosa.

— Muito bem, Dona Rosa, eu ia perguntar... – Ela o interrompeu, rápida. – Rosa, por favor, me chame de Rosa apenas. Este dona me deixa muito velha – acrescentou, sorrindo.

— Pois não, Rosa… Você por acaso conhece uma senhora chamada Sara Soares?

— Sara Soares?

Rosa tentou lembrar-se de alguém com este nome. Apesar de ser bem conhecida na cidade, ela mesma não costumava recordar o nome das pessoas. Talvez até a conhecesse.

— Não importa. Terei muito tempo para encontrá-la. Rosa então lembrou que Raul possuía este sobrenome. Talvez se tratasse de algum parente, por isso, alertou:

— Espere, eu conheço um rapaz do nosso coral que se chama Raul Soares. Pode ser que seja algum parente. Júlio interessou-se fechando a porta do elevador e dirigindo-se até o balcão onde Rosa estava.

— Ele é casado? Tem filhos?

— Não, imagina. Aquele maluco é um solitário. Teve uma namorada, uma tal de Susi, mas o deixou faz tempo. Certamente não aguentou aquele traste.

— A senhora está bem irritada com ele, não?

— Ah, acho que estou incomodando-o. Não quero atrapalhá-lo, o senhor está chegando e nem o deixei subir até o quarto.

—Rosa, não se preocupe com isso. Eu sou um homem que adora conversar. Depois que me aposentei e fiquei viúvo, sabe, as coisas mudaram muito. Fiquei talvez tão solitário quanto esse seu amigo aí. Por que a senhora acha que a moça não o suportava mais?

— Dona, senhora. O senhor continua com formalidades.

— Sou um homem às antigas, mas já vou me corrigir. Por que você chamou o rapaz de traste?

— Na verdade, eu até gostava muito dele, mas de uns tempos pra cá, ficou fazendo coisas estranhas, sabe? Um dia desses, entrou na minha casa e estava com a minha chave, até hoje não sei como conseguiu. O que sei é que troquei todas as fechaduras, por precaução, claro.

— E por que ele fez isso?

— Queria falar comigo, estava muito nervoso. Mas deixa pra lá, não quero incomodá-lo, como já disse, sobre as histórias de Raul. Mas o que acha sobre o sobrenome? Ele mora com a mãe. Se quiser, posso me informar qual o nome dela. Se for Sara, fechou.

— Muito obrigado, Rosa. Não sei como agradecer-lhe.

— Então, por favor suba e veja se gosta do quarto. Ele dá para a rua da frente do hotel, é bom que você tem a vista da cidade.

— Sim, tenho certeza de que vou gostar.

Afastou-se e desapareceu no elevador. Rosa se perguntava se não teria falado demais. Afinal, nem conhecia o hóspede a ponto de fazer-lhe confidências. Entretanto, procurou o nome de Raul no celular e verificou se havia um número de telefone fixo. Em seguida, decidiu fazer uma ligação. Por fim, certificou-se de que seu palpite estava certo.

Rosa dedicou-se a pesquisar músicas no google, com a expectativa de mais tarde contar a a novidade a Júlio. Era um homem apessoado, pensou. Devia ter seus cinquenta e poucos anos ou mesmo sessenta e parecia bem disposto com a vida. Que estaria ele fazendo ali, naquela cidade pequena, sem nenhuma projeção no Estado, a não ser alguns crimes que ultimamente haviam ocorrido.

Dissera que era um detetive, mas quem o teria chamado. Seria a mãe de Raul? Era bem estranho, pensou.

Deixou as pesquisas de lado e decidiu espiar um pouco a rua. Foi até a porta e reparou que Seu Domingues, um velho conhecido, sentava no banco da praça, como sempre. Como aquele velho podia suportar o frio que fazia, sempre no mesmo lugar, olhando para o nada, mesmo num dia ensolarado como o de hoje?

sexta-feira, junho 10, 2016

Postagem em destaque

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

PULICAÇÕES MAIS VISITADAS