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A professora e a biblioteca (Pequeno trecho do romance A barca e a biblioteca)

Corria o ano de 66. O vento do outono alvoroçava o cabelo da professora. Quando lembro dela, imagino-a escrevendo, incessante, na sua casa cheia de livros, cadernos, apontamentos, canetas; a casa parecendo um imenso escritório. Talvez possuísse uma Remington, com as teclas brilhantes, bordando os dedos rápidos, em textos densos, pontuados de perguntas e respostas. Era o jeito dela. Por certo, escreveria assim, extraindo da máquina, além do som metálico, a sua concepção de mundo. Foi ela que me incentivou a visitar a biblioteca pela primeira vez. Certamente, mantinha alguma expectativa em relação ao meu gosto pela leitura, ou talvez, mais do que isso: apresentar-me o livro, como um ente próximo, um amigo, que devesse amar e preservar sua existência, como quem cuida de um ser vivo. Para ela, deveria ser o livro, no seu aspecto físico, o corpo, cujo conteúdo constituía a alma e que servisse de amparo em minhas questões da vida. Ela fora sutil. Conduziu-me como um pagão ao templo. O cenário era sagrado, e eu seria batizado no mundo das letras. Não me disse nada, a não ser poucas palavras sobre o hábito da leitura, o prazer em ler um bom livro, o vislumbrar de novas vivências e outros pontos de vista. Ao entrar na biblioteca, tinha comigo que tudo o que ela dizia se materializava plenamente. Um mapa com ilhas que se esculpiam a minha frente, pinturas se apresentavam vívidos como se as tintas frescas transbordassem das telas num desencadear de cores e movimento. Por vezes, se mesclavam noutras imagens, nas quais a ausência de matizes se configurava no negro das roupas e noites encardidas nos trens com destino aos campos de extermínio, onde o cotidiano é a perseguição e a morte. E tudo perpassava pelos grandes escritores que se desvendavam no textos. Meu coração batia forte, temeroso de não retornar àquele lugar sagrado, onde o conhecimento de Eva estava ali armazenado.

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