quinta-feira, janeiro 10, 2019

O topo da montanha


Nem lembro como cheguei ao topo daquele morro, provavelmente na curiosidade inata de um adolescente. O mundo corria devagar lá embaixo, as borboletas sobrevoavam alto e eu tinha a impressão de que somente o som dos pássaros se ouvia. Acho que era verdade. Os sons eram quase que coordenados, havia tons mais fortes, mais agudos, mais graves e tons que sobreviviam ao silêncio e às distâncias fazendo eco.

Devia ser uma tarde de dia claro, muito claro, porque o anoitecer demorara muito, se bem que era verão. Olhava para baixo, para aquelas montanhas moduladas em azul esverdeado, ou ao contrário.

Lembro sim, como cheguei, só não sei para onde ia. Eu queria dar uma volta pela pequena cidade, ao passar a metade do caminho para casa, uns trezentos quilômetros. É, estava muito longe de casa e não me podia furtar àquele momento. Na alma, uma melancolia rara. Rara naquele ambiente, produzido por aquele cenário. Porque via de regra, eu tinha esses devaneios. A dor parecia me acompanhar, mesmo em dias felizes, ou momentos mais alegres.

Aquele, portanto, não era um dos mais alegres, mas era o que eu tinha e precisava para sobreviver. Olhei muito para baixo, sentei-me em algumas pedras e fiquei não sei quanto tempo.

Um friozinho leve, uma brisa, uma aragem que me envolvia aos poucos, avisava que era hora de sair. Quem sabe, me libertar da melancolia, embora a beleza ali contida. Deixei-me ficar um bom tempo, o suficiente para sair aos tropeços na escuridão reinante, sim, porque ficou escuro rapidamente.

As pequenas curvas, os caminhos tortuosos e inseguros, a distância da rodovia. Aos poucos, algumas luzes de faróis iluminavam pequenos flashes entre as montanhas e percebi que estava no caminho certo. Pelo menos, no de voltar para casa. O mundo andava igual, a vida se mantinha como sempre. Nada havia mudado, talvez a minha percepção das coisas profundas.

da imagem: fotógrafo e poeta Wilson Rosa da Fonseca.

segunda-feira, novembro 12, 2018

Ainda Clarice

Aquela velha frase de clarice, mas sempre justificada por seu discernimento e apego à verdadeira literatura: a vida é um soco no estômago.

Ela demonstra em sua postura em relação à vida sempre interagindo com a ficção, uma intrepidez, que não admite concessões. Nesta afirmação, ela levava às últimas consequências, porque a vida é traiçoeira e bruta, ela não admite retorno, nem suavidade. Ela dói, magoa e pune, porque é a verdade. A última verdade da vida, que tira o sujeito do prumo, como se fosse um soco e somente assim, pela palavra doída e verdadeira ela vai ficar no lugar de outra pessoa.

Desta forma, o autor se destaca e constrói a verdade com muito trabalho e dor. Para Clarice e para o mundo, existem dois pilares básicos da subjetividade, que segundo Freud, são o conteúdo e o afeto. O ser humano não possui apenas cognição, é também afeto, é dor, é sentimento. Ele precisa levar este soco, este susto para refletir sobre ele mesmo e sobre o mundo. É preciso haver o conflito consigo mesmo, caso contrário, de que adiantaria a literatura? Apenas uma história cor de rosa?

Clarice Lispector é uma autora que mergulha nos cantos muito escuros do indivíduo, nos pequenos espaços que tendemos a não confrontar. De certo modo, ela nos atrai com uma narrativa, às vezes irônica, fazendo um jogo com o leitor, construindo de uma maneira para desconstruir depois, o que para nós já estava organizado. Neste embate, ela nos mostra e nos reconstitui os recantos mais escondidos, as paixões negativas ou malditas. Traz à tona, o confronto do sujeito no mundo de maneira imprevista, quando acredita que tudo está sob controle. Neste momento, ela o tira do eixo e o coloca diante de seu íntimo mais incômodo e tudo acontece junto ao personagem que nos desperta este mal estar e nos impõe momentos de desequilíbrio.

A literatura tem esse papel de fazer uma reflexão, refletir sobre as coisas que nos incomodam que precisam deste processo

para alterá-las.

domingo, novembro 11, 2018

Alguma coisa sobre Clarice Lispector

Clarice disse certa vez que não fazia concessões. E realmente, observa-se pela sua obra, que a literatura ali transparece crua, verdadeira e até cruel, personificada na realidade e nos cenários nos quais os personagens orbitam.

Ela tem uma postura de enfrentamento, de destemor do que diz, do que passa ao leitor. A vida é que importa, porque segundo dizia, tudo que doía em si, era verdade, a vida para ela era como um soco que a tirava do prumo, do eixo e a transformava. Então, queria que doesse também no leitor.

Toda a transformação é sofrida, é difícil, de muito trabalho. Nada ocorre de maneira simples e suave. Ela era a “anti-ajuda”, no sentido de passar a mão na cabeça e sugerir que tudo vai passar, não, a ajuda dela se dá noutro nível, no nível do enfrentamento, do mostrar a realidade doída e verdadeira, da profundidade do sentimento, do fazer-se melhor através da mudança, tanto no aspecto do conteúdo quanto do afeto.

Na verdade, aquilo que toca, que faz doer, não é necessariamente na ordem do aprazível, nem na ordem do imaginário do bem.

Não somente o indivíduo , mas a sociedade, um embate em que há uma relação de você com você mesmo, você conflita com você. Qual seria a graça, se isso não acontecesse? Ninguém tem certezas absolutas, ao contrário, tem-se ambiguidades nas posições e procedimentos.

Clarice trabalha uma literatura soturna e ambígua, na própria enunciação, no próprio modo de dizer. Ela provoca o sentido e o não-sentido. Somente a verdade dura, ambígua e verdadeira ecoa no fundo.

terça-feira, outubro 30, 2018

A hóstia na boca e a arma na mão

Hoje, vinha pela ladeira e sentia que meus pés afundavam nas estruturas tortas de paralelepípedos da Riachuelo, a rua protegida pelo rei. Na verdade, a ladeira se produzia em meus pensamentos que sucumbiam em tortuosas reflexões.

Numa esquina, entre a conversa de um amigo, observei a cena de um grupo de homens que apontavam para dois rapazes que atravessavam a Benjamim, provavelmente em direção ao calçadão. Com olhares furiosos, exclamavam que vivíamos um novo tempo, em que todos os gays que se mostrassem afeminados, como aqueles, seriam gravados tendo o vídeo divulgado nas redes sociais, após levarem uma boa surra (usaram um termo pior). Afinal, tinham a permissão de um líder que os afiançava.

Quando voltei a andar, de pernas quase trôpegas, voltei-me para o acinzentado da laguna. Nem sei se o céu estava azul, mas as águas pairavam revoltas no cais. Olhei-as, ensimesmado e lembrei das últimas palavras de um moreno barbudo, que parecia realçar a sua “descendência ariana”, afirmando que se o tal gay fosse negro, aí sim, levava porrada. Então, me veio à mente a música “A carne”, interpretada por Elza Soares, que ouvi num show e tenho em meu Spotfy, a qual possui os versos mais pungentes que podemos ouvir:

“A carne mais barata do mercado é a carne negra

vai de graça pro presídio

e para debaixo de plástico

que vai de graça pro subemprego

e pros hospitais psiquiátricos”

Então, lembro que pessoas que fazem estas afirmações homofóbicas e racistas parecem gente de bem. São pais de família, religiosos e se destacam na sociedade. Sim, a hóstia na boca e a arma na mão, a bíblia aos olhos e os punhos cerrados de ódio. Não sei se peço ajuda aos santos, não são os mesmos a quem eles recorrem?

segunda-feira, outubro 22, 2018

O pássaro e a bandeira

Estava na sala de aula, observando um pássaro que insistia em pousar no muro, próximo à janela. O professor de português, um homem baixinho, de cabelos brancos e barba rala aproximou-se e perguntou, se não estava ouvindo o que ele dissera.

Na verdade, eu nem ouvira o que ele me perguntara, mas fiz uma observação sobre o pássaro, como se fosse a coisa mais importante a ser dita. Ele balançou a cabeça e balbuciou entre lábios, indicando-me um livro que abria com energia sobre a classe.

Olhei-o quieto e passei a ler o livro e esperar que se afastasse na direção de sua mesa ou do quadro. De lá, ele perguntou se eu sabia que naquele 1º de setembro, seria o primeiro dia do hasteamento da bandeira, atividade que se faria até o dia anterior ao desfile, no 7 de setembro. Afirmei rapidamente, junto com outras vozes dos colegas que confirmavam a atividade. O professor mais uma vez insistiu, se eu não lembrava que neste primeiro dia, eu havia sido sorteado. Eu sabia disso e como lhe afirmar mais uma vez, se todas aquelas vozes falavam juntas e ele parecia tão zangado.

Quando tentei justificar-me, ele me interrompeu, dizendo que eu ficasse olhando para o pássaro, pois seria trocado por outro aluno mais atento. Fiquei muito frustrado, afinal, havia sonhado com aquele momento. Era uma sorte, eu ter sido escolhido e ainda perdia a oportunidade por estar olhando para um pássaro na janela.

O professor prosseguiu a aula e na hora indicada, levou a turma, juntando-se às demais no pátio da escola. Olhei para a janela novamente, mas o pássaro havia sumido.

Então, resignado, fui até o cenário indicado e assisti um colega exercendo a função que seria minha. Um dos auxiliares colocou o disco e acompanhamos o hino nacional.

Voltando para a aula, o professor, como era de hábito, exigiu que fizéssemos uma redação. Todo o dia, precisávamos entregar uma pequena redação, para que ele avaliasse e comentasse no dia seguinte.

Então, lembrei do pássaro na janela e decidi descrevê-lo. Falei da beleza da plumagem e me detive nas cores das plumas de sua cabeça, de um azul luminoso e forte, o que me fez lembrar da bandeira do Brasil. Afinal, uma das cores estava ali tão bem representada naquele fragmento da natureza. Imaginei o pássaro dando alguns voos em busca de alimento e mais longe, quiçá, ensaiando pequenos passos sobre a grama verde, sendo acariciado pelo sol primaveril, retocando as cores e a vida.

Talvez, tudo expressasse aquele momento, no qual, nós como os pássaros, nos conectávamos com as cores, assim como a bandeira hasteada, presente em todos os seus matizes e símbolos. Sabíamos que seu dia era o de 19 de novembro e talvez, eu, tal como o pássaro que talvez voltasse ao muro, pudesse partilhar daquele momento futuro e hastear a bandeira, sentindo-me feliz e honrado.

O professor Martinez leu a redação, sorriu e fez a sua avaliação. Disse-me mais tarde, que não precisaria esperar até novembro e que participaria junto com outros colegas do hasteamento, já que havia decidido hastear a bandeira no próprio dia 7 de setembro, antes de sairmos da escola, embora houvesse o desfile.

Não sei se ele fez esta mudança por mim, pela redação ou por perceber que estava muito envolvido no evento. O que sei é que o pássaro de cabeça azul, pousado próximo à janela, tivera uma participação especial em minha imaginação.

quinta-feira, outubro 11, 2018

A primavera e o ódio

Talvez eu devesse falar na primavera, afinal ela está aí, já brotando flores e enfeitando árvores, apesar do frio que ainda persiste em acompanhá-la em seus dias.

Talvez eu devesse caminhar a esmo, de preferência pelas margens da laguna e observar a mudança gradativa dos ventos, das nuvens, dos novos cheiros e brisas.

Talvez devesse espiar as escolas, os adolescentes que na primavera, parecem explodir em sentimentos e lutas internas, como frutos, sementes e flores ressurgindo do nada, inspirados nos raios do sol e nos sussurros dos entardeceres.

Talvez eu devesse estudar novos rumos e pesquisar os trabalhadores que voltam às pressas para casa, envolvidos nas compras eventuais, nas contas a pagar, nas obrigações mensais. Talvez contem o dinheiro comezinho que lhes sobre, o tumulto do ônibus, as horas perdidas no trânsito, as horas inglórias da espera. Trabalhadores que perdem os seus direitos dia a dia, que quase sucumbem aos desmandos de um governo congelado numa depredação de patrimônio físico e humano.

Talvez, como o Severino de João Cabral de Melo Neto, venha a morrer de fome, de ódio, de bala, que segundo o irmão das almas, “mais garantido de bala, mais longe vara”. Sempre há uma bala voando desocupada.

Talvez eu devesse retornar, esquecer os tempos sombrios que se avizinham e pensar que o passado não está voltando. Que o retrocesso, o pior do século passado, já passou realmente.

Entretanto, há o temor de que o ódio persista e a humanidade pereça.

A esperança, porém é que talvez o círculo do tempo pare e uma força progressista se alastre e o mal se dissolva.

Porque há primavera e não há bala que a destrua.

Fonte da ilustração: MabelAmber in: www.pixbay.com

segunda-feira, setembro 24, 2018

Bentinho

Ele sempre chegava de mansinho. Tinha uma voz suave, expressando um tom sempre baixo e comedido e seu olhar parecia dizer muito mais do pensava. Era gordo e baixo, o cabelo grisalho e a pele morena. Trazia sempre consigo um acordeom e era incapaz de cometer qualquer impertinência ou abuso em sua permanência na casa. Certa vez, deu um barco feito à mão, um desses adornos para se colocar numa escrivaninha, ou num lugar mais reservado. Minha mãe ficara feliz com o presente e vez que outra, passava algum produto para que o mesmo permanecesse com a mesma aparência de quando ganhara.

Ele chegava sempre à noite, carregado de malas, mochilas e trazia, vez que outra, algum presente, que sempre eram oriundos da alimentação, como uma rapadura de amendoim, um saboroso pão caseiro ou mesmo algum tipo de carne defumada para servir no jantar.

Meu pai, cansado depois de um dia de serviço pesado, ficava um pouco incomodado com a presença, mas educado que era, não deixava esse sentimento transparecer. Aos poucos, ia se envolvendo com a conversa e acho, que na verdade, acabava gostando da visita.

Ele era uma pessoa que enchia a casa. Era alegre, divertido e mais do que isso: um eloquente orador, a ponto de ficar horas contando uma história, com fatos muito bem delineados e esclarecidos um a um, como se fosse necessário explicar quase didaticamente os fatos. Era convincente, persuasivo e tinha uma maneira expressiva de falar, que silenciava a plateia e a deixava instigada para o final, como se houvesse sempre uma surpresa a qual não se deveria perder.

Era antes de tudo, um vendedor, acho que um caixeiro-viajante, mas para nossa família era um amigo, não tanto almejado em suas visitas, mas pelo menos aceito quando aparecia, sem nunca avisar. Chegava se desculpando pelo adiantado da hora, pelo tempo que despenderia em nossa casa, e num pedido com muito cuidado e persuasão, acenava para uma provável estadia, que em geral durava aquela noite, mas às vezes, se estendia por dois dias.

As conversas eram sempre animadas e quando a comida estava à mesa, costumava fazer um agradecimento e mais conversa e mais histórias cheias de minúcias e tantas informações que nos prendiam, a ponto de não queremos dormir e ficar horas ouvindo-o. Não era o caso de meus pais, que logo que podiam dispensar-se de sua presença, enveredavam-se para o quarto, lembrando que a noite passaria rápido e teriam um novo dia pela frente.

Ele ainda ficava um pouco, um tanto silencioso, mas logo retomava a contar-nos qualquer coisa que lhe interessasse, de uma maneira bem mais tranquila, a voz doce, o olhar penetrante, embora convencido de que nós também deveríamos dormir. De certo modo, nos dispensava, porque ele também teria tarefas importantes no dia seguinte.

Ele era assim, chegava devagarinho e ia ficando. Não era nosso parente, um amigo de meus pais, talvez conhecido de outras épocas, mas que sempre nos procurava para, como dizia, pousar uma noite e seguir em frente.

Certa vez, trouxe o acordeom e tocou várias músicas, transformando a sala de minha mãe, num pequeno baile. Eles até dançaram, numa participação surpreendente, talvez fosse num fim de semana e não haveria a preocupação com o dia seguinte. Foi uma festa.

Ele era assim, às vezes metódico nas conversas, mas sempre preocupado em agradar os meus pais e a família, por outro lado, tinha seus interesses, como morava longe, lá pela zona rural de São José do Norte, achava por bem ficar em nossa casa e tocar seus negócios. Era uma troca. Quase sempre trazia alegria e assuntos divertidos ou surpreendentes para quem tinha uma cultura diferente, uma maneira diversa de ver a vida e de vivê-la, segundo os seus princípios.

Aos poucos, foi se afastando e com o passar do tempo, nunca mais o vi. Ficou no entanto, a música, o pequeno barco que fizera para minha mãe, as conversas intermináveis, a paciência que ele demonstrava e que às vezes, nos deixava ansiosos, as maneiras solícitas, a educação extrema. Este era Bentinho, um homem que foi chegando devagar e por um longo tempo participou de nossas vidas.

da ilustração: https://pixabay.com/pt/piso-velho-caminho-homem-bacl-rua-1775362/

quinta-feira, setembro 13, 2018

Pessoas simples são mais felizes?

Outro dia, estava no ônibus rumo a Porto Alegre e ouvi uma conversa no banco da frente. Tratava-se de um senhor de uns 60 anos e de um rapaz que aparentava 30 anos. Na verdade, a idade não importa muito para o que vou dizer, apenas qualifica a diversidade de pontos de vista, por serem de gerações diferentes. Falavam entusiasmados em futebol. E olha, que não se declinavam em regras ou presumíveis mudanças nas posições de jogadores, dos times dos quais falavam. Comentavam com uma ingenuidade assombrosa sobre o estilo de vida dos jogadores citados. Falavam do modo como encaravam a vida, do dinheiro que possuíam, das festas e viagens que participavam e mais do que isso, davam palpites em suas maneiras de organizar o orçamento e sua vida particular, como se fossem íntimos dos atletas. Concordavam com o salário milionário que recebiam e discutiam se fulano ou beltrano deveria ganhar mais.

Depois de algum silêncio, engataram outra conversa. Agora satisfeitos com o desenrolar do programa do Ratinho, que mostrava a performance de um candidato a um quadro de calouros, que apresentava uma música composta por ele em consonância com o figurino colorido, que finalizava com uns chifres que faziam a apoteose do quadro.

Neste momento, davam longas risadas e percebia-se que riam com sinceridade, achando muita graça no que contavam um ao outro.

Eu, por meu lado, fiquei pensando no que ouvira e tirando algumas conclusões que, de certo modo, me deixavam um tanto intrigado e até um pouco triste. Não por eles, que pareciam tão felizes com o pobre passatempo consumido.

Talvez tenha ficado triste por mim, como aquela eterna frase que Ernest Hemingway usou em seu maior livro, do poema do grande poeta inglês John Donne. Ele dizia que o homem não é uma ilha, cada partícula do continente, uma parte da terra. Enfim, que a morte de qualquer homem o diminui, porque faz parte do gênero humano. E por isso, a pergunta: por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

É provável que a tristeza que senti tenha respaldo nesta mesma observação. Os sinos dobram também por mim, mas neste caso específico dos meus companheiros do ônibus, eles parecem não ter essa noção mais profunda da realidade e da vida.

Fiquei me questionando, que pessoas como eles, que não possuem instrução acadêmica ou que não tenham adquirido o conhecimento empírico e cultural, capaz de os fazer refletir, pensar e agir, alcancem nessa condição a capacidade de serem mais felizes.

Elas não possuem filtros para as suas conversas, para o que lhes transmite alguma satisfação, como o tal quadro do programa do Ratinho. Sentem-se livres para rir e se divertir sem qualquer reflexão. Na verdade, seu conhecimento cultural não os permite diversificar o que lhes vem às mãos. Eles sonham através dos outros, dos jogadores, dos artistas, dos cantores. Servem-se da diversão por ela mesma, sem se preocuparem com isso.

Nós, ao contrário, absorvemos em nossa faculdade intelectual a disposição pela grandeza e profundidade dos acontecimentos, dos questionamentos da vida, das percepções da alma e do subconsciente, o que só nos permite sonhar quando o devaneio acontece de forma implícita e calcada em nossas experiências pessoais.

De certo modo, perdemos a espontaneidade, porque refletimos e não nos divertimos com qualquer esquete de raso de conteúdo.

Há pouco para rirmos e se o fazemos, precisamos de uma boa dose de liberdade de conceitos.

É difícil ser feliz, quando conhecemos o cerne das coisas, quando aprendemos um pouco mais de ciência, da arte e da condição humana, acompanhado via de regra pelo filtro ético e moral.

Por isso, o homem simples vive numa outra dimensão, em que ele se torna interlocutor de tudo que rege a vida cotidiana, desde os seus prazeres esportivos, até suas escolhas de diversão.

É primário, é simples, ingênuo, mas livre das conveniências e por certo, os sinos não dobram por ele, porque nem se dá conta. Acho que são mais felizes.

Fonte da ilustração: Trond Abrahamsen in: www.pixbay.com

sexta-feira, agosto 24, 2018

Alfredo Ferreira Rodrigues, um grande literato e historiador rio-grandino

Alfredo Ferreira Rodrigues, cuja qualidade intelectual foi grandemente propagada em sua obra, que registrou o seu fazer literário, o seu talento especial para as artes, revelando-o como um admirável historiador, além de escritor talentoso.

Alfredo Ferreira Rodrigues nasceu no distrito do Povo Novo e muito pequeno passou a residir em Pelotas, sendo que aos 16 anos, por sua elevada condição intelectual, começou a ministrar aulas de várias disciplinas. Trabalhou como revisor na Livraria Americana e mais tarde, passou a trabalhar em sua filial em Rio Grande, vindo a morar definitivamente em nossa cidade.

Dedicou-se a vários gêneros literários, tais como crônicas, ensaios, contos, relatos históricos e poesia. Sua intelectualidade o conduziu a ser historiador, poeta, ensaísta, biógrafo, charadista e professor.

Nascido a 12 de setembro de 1865, Alfredo Ferreira Rodrigues foi um homem de seu tempo, preocupado em divulgar ao público a história e características singulares do RS.

Interessou-se por toda a história nacional, mas especializou-se na história regional, divulgando-a aos seus compatriotas, principalmente a partir da organização do Almanaque Literário e Estatístico do Rio Grande Sul. Este Anuário foi publicado a partir de 1889 e prosseguiu até 1917. Aqui, eram publicados diversos textos de entretenimento e artigos culturais de autores gaúchos, assim como os seus próprios contos, ensaios e crônicas, que eram ansiosamente esperados pela sociedade da época e rapidamente esgotado nas bancas. Foi um vencedor. Além do bem sucedido Almanaque Literário, publicou livros, livretos e artigos em diversos periódicos.

Apesar das inúmeras dificuldades que enfrentou, principalmente em âmbito financeiro, tinha um sonho que era o de elaborar um grande relato da Revolução Farroupilha, um movimento no qual possuía um interesse especial. Sua literatura, neste particular, se dava sob a ótica positivista da época, preocupado com a reconstrução histórica da formação rio-grandense. Para tanto, esforçou-se em reunir documentos históricos em todo o Estado, bem como em diversos lugares do Brasil e do exterior, de modo que a história do Rio Grande do Sul fosse amplamente detalhada e divulgada a partir de seus registros.

Costumava também fazer traduções do inglês, alemão e, inclusive traduziu o clássico “O corvo” do escritor americano Edgar Alan Poe, publicando-o no Almanaque.

Foi homenageado por muitos Institutos, dos quais participava em seus quadros sociais, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco, da Bahia, de São Paulo, do Ceará, do RS, da Sociedade Geográfica de Lisboa, além de ser membro fundador da Academia Rio-Grandense de letras.

Na virada do século XIX para o XX, foi um dos articuladores do monumento-túmulo de Bento Gonçalves, situado na Praça Tamandaré.

Suas crônicas, contos, ensaios , relatos históricos, eram estruturados numa linguagem simples, econômica, mas ao mesmo tempo cheia de lirismo e intencionalidade política, quando o texto exigia e objetividade ao se tratar de uma informação mais técnica, o que o tornou um dos maiores intelectuais da época. Um rio-grandino, que amava a sua terra e que queria deixar um legado, um registro, do seu fazer literário através de sua vida dedicada à literatura, revelando-o um grande historiador.

Seu nome dá o título à Escola Pública Estadual no distrito de Povo Novo e designa uma rua no Balneário Cassino, em Rio Grande.

Este homem ilustre é o patrono da cadeira n° 3, a qual humildemente ocupo na Academia Rio-grandina de Letras.

quarta-feira, agosto 22, 2018

Os trilhos dos sonhos

Observei os trilhos da velha e desativada ferrovia. Os mourões corroídos, mostrando veios em suas entranhas, com pequenas lascas adormecidas, que aos poucos se desmanchavam sob o sol. Tudo aos poucos se consumia pela ação do tempo.

Quem dera, pudéssemos, num passe de mágica, reconstruir a malha ferroviária, restaurar os trilhos reluzentes e seus dormentes com a bitola adequada, permitindo que centenas de trens atravessassem a cidade, encontrando seus destinos e construindo outros, mais longínquos e eficazes. Mas a mágica é só uma ilusão e como tal, apenas ilustra nossos sonhos. .

Uma mulher de salto alto, caminha despreocupada por alguns dormentes restantes da velha derrocada. Talvez expresse intimamente a vontade de vivenciar uma história passada, um roteiro que fazia quando criança, ou um encontro que ousasse reviver. Caminha displicente e de vez em quando, se volta, oportunizando em meu olhar também um desejo de descoberta. .

O que procura aquela mulher num lugar quase abandonado, o que faz por ali, a não ser encontrar lembranças do passado ou experimentar, quem sabe, a ilusão de que a vida se desenrola da mesma forma, sem qualquer mudança ?

Agora ela parou, próxima a um tufo de ervas daninhas e parece esperar alguém. .

Mas quem passaria por ali, àquela hora, num cenário quase desértico? A não ser eu, que a vejo cada vez mais próxima, cada vez mais presente em minha realidade idealizada.

Decido aproximar-me também, pisando entre alguns dormentes apodrecidos, alguns pedaços de trilhos enferrujados e atirados a esmo, como se ali, fosse a lixeira da ferrovia. .

Talvez haja um embargo em meus sentimentos, porque, às vezes, não a vejo e fico procurando-a através de minhas lentes grossas de óculos de sol. Paro também e percebo que ela não está lá. Não há tantos barrotes como no início, nem o caminho me parece aprazível. A grama aumenta, alguns paralelepípedos avessos a passos mais decisivos, um olhar ao longe. .

Aos poucos, percebo que os apitos dos trens não sibilam em nossos ouvidos, nem as malas fazem parte do cenário à beira da plataforma, e os trens, estes estão há muito no passado, perdidos entre os desejos infantis e os sonhos de adultos. .

Quem era aquela mulher de vestido vermelho, linda, que atravessava os caminhos com passos displicentes, mas seguros, em busca de um destino que talvez nos indicasse a felicidade? Não sei. Talvez o desejo de ultrapassarmos com elegância e garra os obstáculos e enfrentarmos as reivindicações para que voltem as plataformas, os trens, as malas ao redor, os adeuses, os lenços brancos, as lágrimas nos olhos. .

Essa mulher de algum modo, indicará caminhos que não ousamos enfrentar. .

domingo, agosto 05, 2018

O hóspede

Chegou de mansinho e se instalou em minha casa. A princípio, estranhei e até evitei de me envolver em demasia, a não ser proferindo algumas palavras daqui, outras dali, apenas o necessário. Com o passar do tempo, foi ficando mais audacioso. Começara a tomar conta da cozinha, da sala de estar e até mesmo de meu quarto. E nem tinha pudores em se alojar no banheiro. Respirei fundo, avaliei a situação e olhei pela janela, tentando encontrar alguma pista que me desse a solução. Um ser que domina o ambiente e se espalha por tua vida, como o sapo que precisava conquistar a princesa, enlameado e cheio de pedidos esdrúxulos. O que fazer com aquela companhia? Observei pessoas apressadas dando e recebendo recados, falando sozinhas enquanto atravessavam ruas ou sentavam-se em parques, absortas, entretidas em seus contatos. Não seria melhor livrar-me imediatamente daquele peso? Não me tornar mais um zumbi, como elas? Quem sabe, dar um chega pra lá e esquecer de vez que esteve aqui, entre estas paredes, ouvindo-me até o arrastar dos chinelos.

Com o passar do tempo, entretanto, me sentia cada vez mais impotente. Limitava-me a encarar a sua presença, como uma necessidade perene. Talvez por isso, ele tenha ficado e aos poucos tomou conta de mim. Esforço-me em manter-me livre de sua influência, dizendo a mim mesmo que não preciso dele, mas cada vez que o vejo por perto, sinto que não há como evitar o contato. Afinal, onde vou parar? E se ele despencasse escada abaixo, transmutando o que era vida em ruína absoluta? Ou naufragasse numa enchente terrível, dessas que até as palafitas desaparecem ou se, por outro lado, o sol o queimasse, retorcendo a pele e transformando-o num ser inútil? Quem sabe, me livro dele para sempre. Entretanto, sei que haverá em meu coração uma mágoa, uma ansiedade difícil de controlar, uma vontade de substituí-lo por outro. Certamente, este será mais esperto, mais independente e capaz, até, de me dar ordens. Quem sabe!

Não queria ser assim, um amante passivo, cujo protagonista mande e desmande com seus caprichos. Mas sei que cada dia, dependo mais dele, de seus alertas, seus conselhos, seus avisos, suas notícias, seus jogos, suas mensagens, sua mania de sempre me chamar na hora inadequada. Às vezes, o amo, noutras, o odeio. Não sei qual será o nosso fim, mas por certo, nunca um longe do outro. Por mais que eu resiste, por mais que o dispense, sempre o terei ao meu lado. Como um vício, como uma dose a mais que desfruto em meu viver, como um carma, ratificado no verso da música do Chico Buarque, “meu amigo, se ajeite comigo e dê graças a Deus”.

Mas ele está aí e por mais que o atire do vigésimo andar, irá sobreviver. Na verdade, a vida não está nele, mas na minha procura, na minha ansiedade, na minha dependência. Quero-o longe de mim e o desejo tão perto. Freud talvez tivesse algum veredicto, algum prognóstico se o conhecesse naquele tempo e me avaliasse como sou agora. Eu, que o desprezo e apenas o usava quando realmente precisava! Mas sei que necessito dele a todo momento. Como se fosse onipotente, absoluto, quase um deus. Provavelmente, se livrar-me dele, algum dia, encontrarei outro com novas possibilidades e upgrade, porque eles se reproduzem como ratos e cada vez mais potentes e indestrutíveis.

Por certo, vou relaxar e esquecê-lo um pouco, não tão distante, a ponto de ouvi-lo chamar: apenas com um toque, com a música preferida, com o vídeo mais engraçado ou a mensagem mais emocionante. Ou quem sabe, procuro nele, os meus e-mails e descubro neste meio tempo a temperatura? Acho que ficará mais um tempo comigo!

Celular amado e odiado!

segunda-feira, julho 30, 2018

As sutilezas da felicidade

Os dias pareciam dissolver-se no anoitecer que se alongava. Ao voltar do trabalho, o seu hábito era tomar o chimarrão, enquanto ouvia o Repórter Esso. Após o jantar, costumava abrir o Correio do Povo para lê-lo na mesa. Era um ritual ao qual estávamos habituados e sempre interagíamos entre algum comentário ou mesmo sobre a dúvida de um vocábulo desconhecido. Olhávamos para meu pai e procurávamos descobrir a solução através de dicas que ele informava. Lembro de minha irmã e eu buscando métodos mais rápidos para chegarmos a algum resultado. Ela pegava os dicionários ou revistas nos quais houvesse palavras semelhantes. Também ele tinha por hábito pesquisar os atlas, cujos mapas mostravam centenas de países e cidades das quais nem imaginávamos a procedência. Até mesmo no Brasil, começávamos com as capitais, depois as cidades do interior e teríamos que procurar no mapa e ao acertarmos, ganhávamos um ponto. Tudo era considerado uma competição, na qual nos esforçávamos para chegar à vitória.

Naquela mesa de toalha branca e alguns ramos de flores bordados, eu o observava e, de algum modo, assinalava um tipo de felicidade, se é que felicidade possa ser classificada. Uma felicidade que eu jamais voltara a experienciar. Talvez, nem minha irmã. Era uma alegria genuína, que nos unia e transportava a lugares e objetos, como se fosse um jogo. Um jogo cujas regras meu pai delimitava com disciplina. Havia um tempo para cada um. Um espaço para que nós também procurássemos palavras no jornal e nos mapas, a saga era por cidades, países, rios ou picos elevados.

Tínhamos um tempo que era só nosso, ao seu lado. Um tempo em que a sua presença era tão importante, que nem nos dávamos conta, por ser uma circunstância natural.

Minha mãe passeava pela copa e vez que outra, surgia da cozinha para também exercer a sua presença com um palpite, mas logo se debruçava na costura, bem ali, ao lado e ouvíamos o som cadenciado do pedal da máquina.

Às vezes, lembro melancólico desse cenário familiar. Lembro de meu pai e ainda o vejo à mesa, com os cabelos negros caídos à testa e bem curtos atrás, as mangas arregaçadas e um sorriso nos lábios iluminado pela luz minguada que surgia pela janela ou talvez pela alegria de despertar-nos a curiosidade e o diálogo entre nós. Agora, resta a saudade, que dói e que aparece assim, de repente, sem pedir licença, a abraçar delicada os pensamentos.

Também recordo minha mãe, coadjuvante naquele momento, envolvida noutra tarefa, mas dando os palpites e de vez enquanto, levantando-se da cadeira, deixando o pedal da máquina de costura e aproximando-se da porta, como quem observa uma cena da qual é cúmplice e se despoja de sua opinião para que a ação prevalecesse. Lembro dela noutros momentos, em que era a protagonista, mas também aqui sinto saudades, porque sei que sua presença silenciosa nada mais era do que apoiar a nossa maneira de ser feliz.

Isso era felicidade? Acho que sim, nas suas sutilezas, nas circunstâncias em que a vida não pede nada, mas nos entrega de mão beijada.

Fonte da ilustração: Artsy Bee in: pixbay.com

quarta-feira, julho 11, 2018

Literatura aliada

A literatura é conceituada e avaliada em seus aspectos estilísticos, estéticos, filosóficos e sociais. Aqui, no entanto, falo da literatura como uma aliada, uma companheira que exerce um papel fundamental na vida das pessoas.

Mesmo que não percebamos, é através da literatura, que mostramos o que somos, o que queremos da vida, o que sonhamos. Sabemos que a literatura é uma manifestação artística e para muitos escritores, ela se esgota nesta proposta. Para outros, porém dos quais eu me incluo, a literatura deve ser um registro da realidade que recria, como uma tentativa constante de transformação do mundo em que vivemos.

Na minha opinião ela só tem verdadeira importância, se for crivada dos anseios de seu povo, se tiver um viés político. O mínimo que se espera é que haja, em alguma medida, o pensamento crítico sendo colocado em jogo, sendo trabalhado e compartilhado.

A arte da escrita não é puramente estética. A despeito do que escrevemos, haverá sempre a intencionalidade do autor com a conexão do mundo real, da sociedade e também com o seu mundo interior, moldado em suas experiências e apreensão da vida. Faz-se política em qualquer gesto e tenho comigo que este brado deve corresponder ao clamor das minorias, dos excluídos, dos que não tem os privilégios, dos trabalhadores invisíveis.

Acho que o homem é o algoz do próprio homem e a literatura está aí, para redimir esta sequela humana, para transformar o bruto, no belo, no artístico, no lírico, no imponderável, mas acima de tudo, mostrar que o rústico, o pobre, o ausente das benesses é tão intenso e dramático e pertencem ao mesmo mundo em que vivemos. Basta olhar para o lado.

Não me interessa uma literatura calada, amordaçada, padronizada no senso comum, amarrada apenas à lógica literária e aos padrões estilísticos e de gênero. Interessa-me a literatura que não se cala às adversidades, aos desmandos, às ditaduras, à mídia manipulada e manipuladora.

Interessa-me uma literatura que mostra o seu povo, que enaltece a sua linguagem e que acima de tudo, produza a reflexão. E que por fim, seja, além de tudo puramente literatura, na qual a emoção e o sonho se completem no lirismo e na beleza. Acho, inclusive que o autor é um ser dividido e complexo, como todo ser humano, mas que ao refletir sobre isso, extravasa sua emoção e sentimentos no seu ofício e talvez sofra com essa dicotomia.

O poema “Traduzir-se” de Ferreira Gullar, musicado por Chico Buarque, exemplifica bem esta singularidade do escritor, quando diz:

“Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão.

Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira.

Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem.

Traduzir-se uma parte na outra parte – que é uma questão de vida ou morte – será arte?”

Fonte: Kalsgirl do link: https://pixabay.com/pt/users/kasgirl-1427481/

quarta-feira, junho 20, 2018

Uma tentativa de análise do texto poético da canção “A noite do meu bem” de Dolores Duran

A noite do meu bem é uma canção composta e interpretada por Dolores Duran e também representada por centenas de cantores. É uma verdadeira poesia com um eu-lírico desenhado em sua estrutura à espera da noite perfeita com seu amado. Tentei aqui desmembrar a letra, procurando decifrar de algum modo a intenção poética da autora. No entanto, ela, em poucas palavras, mostrou um mundo de sentimentos profundos e intensos. Eu tentarei em alguns parágrafos esmiuçar esta habilidade de jogar com as palavras e seus conteúdos, com tanta habilidade e talento.

A imagem da “rosa mais linda que houver”, mostrada na música/poesia composta e cantada por Dolores Duran, têm-se de imediato a beleza da flor ainda sob o orvalho da manhã, cujas pétalas tenras e o perfume ainda envolvem o ambiente. Tudo incide num processo onde partículas de cores, perfumes e sons nos remetem à virtude das cores e o arrebatamento do momento.

A seguir, ela persegue a beleza nos versos que se referem à “primeira estrela que vier”, o que nos parece sugerir uma espera pela longa noite, cujo encantamento do poeta preenche de pontos luzidios o nosso olhar que se perde e o sonho parece absorver em definitivo, o pensamento.

No decorrer da canção, “ a paz de criança dormindo” a autora reproduz a cena como uma metáfora de confiança representada no ser frágil cuja plenitude de entrega cumpre como garantia, o conforto, o carinho e o cuidado.

Já “na alegria do barco voltando”, a imagem propõe um quadro, cujos movimentos e matizes de luzes e sons, deduzem que o retorno é o encontro idealizado na comunhão do comandante com os que estão em terra. Mar e terra se completam e se tornam uma coisa só, onde a liberdade dos mares navegados se confunde e se integra às amarras dos barcos ancorados.

Em seguida, no verso “a ternura de mãos se encontrando”, ocorre aqui a conclusão lírica de que as mãos se encontram para perpetuarem alguma lembrança boa, um sentimento que une e consola, um carinho que se alonga, uma lembrança, um afeto que transborda e absorve a mensagem. Sempre uma busca e um encontro. Carinho afeição e perdão.

Quando praticamente chega no clímax, “ o amor mais profundo” representa o encontro consolidado, permitindo a plenitude do encantamento através do sentimento mútuo e da afeição que perdura. Aí ocorre “toda a beleza do mundo”, transborda a emoção e a certeza da felicidade fortalecida e perene.

Entretanto, nem sempre o sonho se realiza e quando a espera é longa, não prevalece no olhar o brilho da certeza, a pureza da esperança, a convicção de que o amor existe assim mitificado, assim poético, sentimental e romântico. Talvez pereça a integridade do amor, pois já não resiste ao sonho, já que a fantasia não se conclui na realidade. Por vezes, o olhar acena a uma certa ambiguidade, uma opacidade que embaça o cristal translúcido, então, como esperar e ao mesmo tempo possuir o mesmo amor para entregar se ele também se transformou?

quinta-feira, maio 31, 2018

Carta a uma amiga, preocupada porque eu disse que Lula era um preso político


Minha amiga, entendo a tua preocupação. Olha, na verdade, eu nem sei se Lula é totalmente inocente, mas tenho certeza absoluta que não houve uma prova concreta, apenas convicções, como eles dizem. O Jucá tentava persuadir seu colega a participar do golpe (tudo gravado). E diz mais ou menos assim: “é necessário que a gente tire eles porque eles não vão impedir a investigação de corrupção; para estancar a sangria, temos de dar o golpe”. E conclui dizendo: “Com o Supremo Tribunal Federal e com tudo”.

O Lula no centro de todo o crime cometido na operação Lava a Jato e, perguntado pela imprensa – essa imprensa que julga e condena – “quais são as provas contra Lula, senhor procurador”, ele respondeu: “não tenho provas, tenho convicções”.

Aqui, nós já vemos que a justiça é seletiva. Com provas, não há acusações, nem prisões, com convicção e delações, muitas vezes com interesses pessoais (na maioria das vezes), há condenação.

“Mas o problema é que o apartamento não é propriedade dele, não está registrado em nome dele num cartório de imóveis, ele não tem a posse, nunca morou lá. E aí se descobre que este apartamento que lhe foi atribuído foi usado pela empresa proprietária como garantia de um empréstimo bancário. Como a empresa não pagou o empréstimo, uma juíza levou o apartamento a leilão. Como, então, este apartamento pode ser do Lula? Mas, como diz o juiz do processo, isto não vem ao caso.”

Além disso, a grande reforma alardeada por Moro, nunca existiu, tanto que o movimento dos Sem-teto invadiram o apartamento e mostraram todo o seu interior, com nenhuma benfeitoria. Era tudo mentira!

Outro fato:

Em fevereiro de 2016, o STF mudou o entendimento sobre a Constituição, de forma estranha, porque o tribunal não tem este poder, além do Congresso, e passou a aceitar um mecanismo que se chama prisão provisória, antes do trânsito em julgado. É prisão de qualquer jeito. Rasgam a Constituição a cada dia.

Outro fato: “No Brasil, a exclusão se combina com o privilégio. A forma de controle violento não é visível porque atinge os de baixo. Da classe média para cima, não há um nível de violência e de controle relevante. Quem são os presos no Brasil? São os jovens negros. As mulheres que sofrem mais violência são as mulheres negras. Marielle é o símbolo de uma mulher que assumiu a sua condição, que foi capaz de desenvolver uma política e, mais do que isso, denunciou tanto o privilégio como a exclusão social. A face do excluído no Brasil é criança, é mulher, é negro, vive na periferia das grandes cidades, e no Norte e no Nordeste. São estes os milhões de brasileiros que durante o governo tão odiado do PT tiveram acesso a serviços públicos e a renda. “A casa grande não admite que a senzala evolua socialmente, essa é a verdade!”

A maior corrupção foi a crise de 2008, que não nasceu aqui. A manipulação do crédito de risco e a crise financeira foi o caminho. A lavagem de dinheiro ocorre na Suíça, portanto, onde começa a corrupção? Claro, que aqui se beneficiaram desse procedimento.

O Aécio agora tem mais 60 dias para discutir a acusação. E há provas tangíveis, inclusive ele ameaçou de morte um dos parceiros (tudo gravado).

É por isso, a minha revolta.

Mas fica tranquila, amiga. Eu só ponho a mão no fogo pelos verdadeiros amigos como tu. Quero que o Brasil supere esta crise e que vá mais longe, com pessoas alcançando patamares que nunca conseguiram no âmbito social e financeiro. Quero que as crianças tenham liberdade, que o mundo evolua, que o povo não seja manipulado pela mídia, que a gente volte a sorrir.

Grande abraço!

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/balanças-espada-mulher-2374886/

Quem sabe?

A flor na pele

a pele da flor

Se a flor floresce

a esperança ressurge

a dor desaparece

nada perece

Prospera o amor



À flor da pele

Em carne viva

Tudo perece

Vida sem cor

Quem luta compete

Quem fica fenece

Que luta, só dor!



Diálogo, luta, justiça

Quem sabe mais o que fazer?

Se não esperar ou perecer?


Fonte:https://pixabay.com/pt/rosa-natureza-flor-flores-174817/

segunda-feira, maio 28, 2018

Conversando sobre a crônica “Tênue limite”

A Revolução Farroupilha sempre foi contada pelos historiadores oficialistas e pela mídia atual, pela ótica dos vencedores, ou seja, dos gaúchos que lutaram com bravura e fidalguia para alcançarem a vitória. Mesmo não havendo vencedores de nenhum dos lados, já que houve um grande acordo que semeou a paz.

Na crônica “Tênue limite”, publicado neste blog, eu procuro dar vida ao outro lado do povo gaúcho, aquele que talvez seja herdeiro dos que apenas lutaram sem serem reconhecidos e para os quais, nem a vitória, muito menos a fortuna prevaleceu.

De todo modo, esclareço que não sou contra a Revolução Farroupilha como a criação de uma mitologia em torno dos homens dos séculos XIX, que lutaram no Rio Grande do Sul, como a honradez, a fidalguia, a virilidade e a valentia. Tudo isso faz parte de nossa tradição e cultura, incorporado em nosso imaginário gaúcho.

Entretanto, não posso ficar alheio à outra parte da história, que foi escondida pelos historiadores oficialistas ( não me refiro aos historiadores atuais, mas aqueles que faziam uma descrição apenas dos fatos considerados históricos e gloriosos para a nossa terra, ou que elaboravam suas pesquisas de acordo com as ordens governamentais). Refiro-me à história dos não tão dignificantes episódios, como as intrigas entre os chefes, os desmandos, os erros estratégicos e a terrível traição de Porongos, quando os negros combatentes ficaram desarmados e entregues à morte.

Acho que é preciso repensar o passado. Acho também que o povo que vive no interior de nosso Rio Grande não possui essa pujança e orgulho para demonstrar um sucesso da Revolução, pois foi na verdade um conflito regional entre grandes estanceiros e o Governo Imperial, não foi uma revolução do povo gaúcho em sua totalidade.

Amo a cultura do Rio Grande, de seu folclore, sua luta em se manter dignos frente às circunstâncias mais inóspitas, mas não posso ficar indiferente a esse povo campeiro que também deve ter orgulho de seus ancestrais e conhecer a sua verdadeira história, não aquela emoldurada pela mídia.

Houve um povo derrotado que não recebeu as benesses da Revolução, mas este povo também faz parte de nossa história e possui a mesma cultura, a mesma fidalguia e valentia dos vencedores.

Acredito que, como dizia o escritor Ricardo Piglia, que “nada pode ser pior para um derrotado do que ler, anos mais tarde, a história contada pelo viés atrofiado dos vencedores.”

Então, segundo o que penso, que foge um pouco do senso comum, que também deve-se falar deste campeiro, deste peão, deste gaúcho do campo que não se situa como um herói e nem conhece a sua história.

Por isso, elaborei a minha crônica, que mostra um tênue limite entre a galhardia e todas as glórias do gaúcho enaltecido pelo poder e sua história humilde. É a este que me refiro. Acho que ele faz parte do nosso Rio Grande.

Ilustração:https://pixabay.com/pt/users/cocoparisienne-127419/

sexta-feira, abril 27, 2018

Tênue limite

José cavalga pelo estreito caminho de terra vermelha. Nas bochechas, o ardente do dia, a boca seca, com um fiapo de grama no canto. Um olhar perdido no horizonte. Campos, campos e mais campos. Nos pés, chinelos de dedo arranhando a barriga do cavalo.

Quem o olhasse de perto, pensaria que tem a vida decidida. Conduta perfeita. Atitude positiva.

Na verdade, não. Ele nem sabe o que fazer além do que faz todo o dia. Busca os animais. Estão quase escondidos, próximos a um quiosque, perto da propriedade dos vizinhos e não muito longe da rodovia. Mas tem que ir.

Quem o visse, diria, que gaúcho guapo. Falta só as esporas, a bota, a bombacha.

Que nada. Está de calça rasgada no joelho e muito suja. Não é porque gostaria, mas porque não pode sujar a roupa no trabalho. Tem que trazer o gado, como faz sempre. Não são muitos, nem passam de uma dúzia. Mas também não são dele, nem de sua família. É apenas um peão, que mora numa cabana, quase casebre.

Os ventos mudam de direção, mas não ele. Quem sabe volta a estudar e aprende a ler alguma coisa. Não é tão difícil. Poderá ser chamado de gaúcho guapo, participar da Semana Farroupilha, exaltar os farrapos e comer churrasco em homenagem.

Ele é como um nômade, um pária, porque não é urbano, nem rural. Ele é ele mesmo. Como ele, milhares de gaúchos que vivem nas beiradas dos cofres alheios, tentando pegar algumas moedas.

Mas o povo levanta bandeiras, dá vivas à revolução e acredita que o Rio Grande é um país à parte.

Ele não, está neste liame, neste tênue limite, no qual não se permite a galhardia, a ousadia e a macheza do gaúcho. Aquele que vem uma vez ao campo, se veste à caráter, rompe estradas com seu 4x4 e dança nas mateadas. Este aparece na mídia.

Talvez ele seja um guasca, um índio do mato, uma mistura das três raças, nem sabe.

Negro tinha na família e índio era o avô.

Mas deixa pra lá. Melhor é caminhar quase sem rumo e seguir a vida.

Quem construiu a nação gaúcha, não foi ele. Foram os livros. E antes deles, os historiadores. Eles não mentem.

Fonte: www.pixbay.com

quinta-feira, abril 26, 2018

DE MINHA NATUREZA


(Do livro Anti-heróis que reúne contos selecionados para o II Concurso Literário da Metamorfose Cursos. Enfoca o anti-herói e enceta um diálogo importante com a tradição literária, mas sem perder de vista a contemporaneidade.)

Quando Ramiro desceu do ônibus, percebeu uma certa bruma que há muito não via na cidade. Era como se o inverno rapidamente avançasse e a umidade tomasse conta das casas desprotegidas. Mas o outono ainda estava no berço e pouco mais de calor preservava as suas costas suadas e seu olhar abalroado pela dúvida. Dirigiu-se ao cais e a neblina aumentava, como naqueles filmes de Stephen King, nos quais sempre havia uma atmosfera estranha para qualquer época do ano. Sentou-se à beira do cais, quase desconhecendo a cidade do outro lado do canal. Pouco a via, a não ser as torres da matriz, a única parte que ficava a descoberto da neblina. Devia ser um aviso para seus pecados. Uma ameaça, talvez.

Mesmo assim, ele desenrolou um cigarro de maconha lentamente, afinal, naquela bruma toda, nem o veriam. Fumou de morado por longos e infinitos minutos. Depois olhou a nuvem que fazia com sua própria fumaça e sorriu. Estava colaborando para o caos.

Ficou ali, não sabe quanto tempo, pensando na mulher que ficara em casa, nas contas que deixara sobre a mesa, nos boletos, nos cartões de crédito, no financiamento da casa. Mas aos poucos, foi esquecendo-os tal como a neblina que avançava mais e mais. O céu se juntava no canal, numa coisa só, indefi- nida. Os barcos sumiam, quanto mais os navios, que passavam bem mais longe. Parece que o caos aumentava e não via ninguém a sua volta. A maconha o deixava leve, cabeça encostada num poste, as pernas no gelado do cais. O mundo, para ele, riscava num fósforo de churrasco, que se acendia e apagava, numa chama tépida e sem graça. A vida dava ré e ele regurgitava em raiva, das coisas que não lhe pertenciam ou que lhe tinham tirado: o direito à moradia decente, à liberdade de andar na rua sem ser assaltado, ao término da faculdade pela falta de dinheiro, o tempo perdido num trabalho monótono.

Uma menina com a roupa enxovalhada se aproximou e ficou observando-o, ali, sentado, como se avistasse o Buda ou uma alma iluminada. A mãe estaqueou um pouco distante. Sentiu uma lágrima correr na face encardida do sol. Deixou que se aproximasse, deu-lhe todos os trocados que possuía. Mais do que isso, a beijou no rosto. A mãe do outro lado, se aproximou assustada pelo afeto inadequado. Não importava, ele amava as crianças e odiava a situação nefasta em que o mundo tinha se transformado pelos políticos e ilegítimas autoridades.

Elas se foram e de longe observou as duas sombras comprarem o que supunha ser um lanche. Suspirou aliviado. A noite e o nevoeiro compartilhavam o tempo e a intensidade. O silêncio ficou quase absoluto. Nada, nem ninguém por perto. Só o som ritmado das fracas ondas da lagoa e o ruído de um carro distante do outro lado da biblioteca pública.

A não ser Bruno, seu amigo de infância que se aproximava, talvez o único vivente àquela hora e com a tal neblina, sentiu uma espécie de epifania, uma alegria de algo que se revelava e restaurava a sua criatividade. Com ele, poderia utilizar toda a produção elaborada de se fazer entender a qualquer preço. Bruno era burro, um imbecil, na verdade, mas ele estava ali, ao seu lado e por certo, ficaria um bom tempo.

Lembrou por um segundo da mulher, das contas, do cartão de crédito, até da lista torpe do supermercado e sentiu uma fisgada no peito. Via o rosário sobre a bíblia e a mulher se ajoelhando como uma beata. Podia ter acabado com tudo, naquele momento, mas o ônibus não esperava e ele tinha de ir ao encalço dos seus limites.

Bruno chegou, fez aquele gesto característico de quem imita os negros americanos, batendo com as mãos e dando uma sacudidinha no corpo, cheio de promessas para si mesmo, pensando que os demais compartilhavam os seus trejeitos ultrapassados.

Em seguida, sentou-se ao seu lado e perguntou:

– E aí, tu deixou a vaca?

Bruno parecia seu pai. O velho era grosseiro, como ele, tanto que não sabia argumentar e por isso, batia muito. Não somente nele, mas na mãe, na irmã, na família toda. E se drogava, o desgraçado.

Ramiro sempre comparava o amigo ao pai. Ele tinha dessas coisas, de falar o que não devia nas horas inadequadas. Depois de muitas tragadas, muitas histórias sem sentido, a euforia os auxiliava a transpor os limites do bom senso.

Em dado momento, Ramiro começou a caminhar sobre o cais, muito perto da lagoa. A noite se enfeitava de pontos amarelos dos postes e a neblina camuflava algum barco que se aproximava.

Numa dessas loucuras, entre risos desenfreados e questões não respondidas, Ramiro resbalou o tênis velho e caiu na água.

No início, Bruno deu boas risadas, vendo o amigo mergulhar, desaparecer e vir à tona. Em seguida, viu-o afastar-se em direção às ilhas, talvez em virtude da escuridão que aumentava, apesar de ser exímio nadador. Com esforço, utilizava toda a resistência para praticar a volta ao cais, mas cada vez mais se afastava da cidade.

Bruno, então, apesar de demorar a entender que ele perdera a direção, percebeu que o amigo estava em perigo.

Decidiu atirar-se ao mar, embora nadasse como um prego. Apesar do frio, retirou a camisa e os sapatos para ficar mais leve. Deu algumas braçadas, tomando água, esforçando-se para chegar até o outro, gritando para que o esperasse, que voltasse e não se dispersasse rumo às ilhas, pois se afastaria cada vez mais do cais.

Ramiro, entretanto não o ouvia e se intrigava ao ver o companheiro superar-se, na tentativa de salvá-lo. O que esperava ele, transformar-se num herói, ele que nunca soubera tomar um banho com água acima da cintura. Seu amigo era mesmo um idiota, mesmo porque as ondas pareciam se tornar mais fortes e intensas.

Mas Bruno não desistia, segurava-se num barco não muito distante do cais, descansava alguns minutos para tomar fôlego e o chamava desesperado. A bruma era densa.

Ramiro ria, sem perceber que se afastava, guiando-se apenas pelas luzes da cidadezinha que ficava na outra margem.

Também estava cansado e por isso, apoiou-se numa boia, escondendo-se do amigo e rindo de sua odisseia.

Bruno, entretanto, insistia na labuta de encontrá-lo, e por isso, nadava de qualquer jeito ou da melhor maneira que conseguisse chegar até ele. Sentia perder as forças e a exaustão o deixava apavora- do, mas num ímpeto de sobrevivência, avançava em piruetas, alcançando uma poita e prendendo-se numa rede clandestina.

Tentava desvencilhar-se, enquanto gritava por Ramiro, que apático, observava o movimento nebuloso.

Um suor escorria pelo corpo de Bruno, que num ato de desespero, retirara os pés presos no entrelaçado, ferindo-se a brotar sangue. Finalmente, conseguiu dar um impulso, aproximando-se em seguida de Ramiro, resfolegando, a ponto de não conseguir falar. Por fim, tentou acender o isqueiro que trazia no bolso das calças, mas suas mãos tremiam e ele perdera o equilíbrio, quase afundando. Ramiro pegou o isqueiro e o acendeu, enquanto Bruno, assustado, o alertava da direção errada, ao mesmo tempo que o segurava com firmeza, tentando levá-lo para a margem.

Ramiro obedeceu e seus olhos brilhavam como se um caos se estabelecesse em definitivo. Sorriu para o amigo, e em vez de segui-lo, ele é quem o conduziu com facilidade, e os dois dirigiram-se ao cais, obedecendo a chama precária do isqueiro.

Bruno queria dizer alguma coisa, mas não evitava a água que quase o afogava. Ramiro desabonava a estupidez do amigo, apenas obedecia a chama, em silêncio. Juntos chegaram próximos ao cais, mas Ramiro o impediu de aproximar-se e segurar-se num ancoradouro. Bruno surpreendeu-se e quase em pânico, perguntou:

– O que aconteceu? Me deixa segurar, tenho que sair daqui.

Ramiro entretanto, enlaçou o seu pescoço com carinho e o mergulhou com firmeza. Bruno sentiu-se desfalecer e emergiu desesperado, quando a mão forte de Ramiro o libertara.

– Por que fez isso? Me larga, pelo amor de Deus! Eu não sei nadar, tu sabe!

Ramiro o olhava com certa ternura e o abraçava novamente, impedindo-o que se apoiasse no cais. Respondeu com tom afável :

– Nao posso te largar. Tenho que te matar.

– Por que? Eu fui te salvar, não fui? Por que então?

– Porque é de minha natureza. Tal como o escorpião da fábula, não posso. Eu preciso. Todos que se atravessam no meu caminho, na minha vida, todos que dão palpites, que me dão conselhos, todos... eu tenho que matar, entendes?

Ao terminar de falar, empurrou-o novamente para o fundo da lagoa. Viu o olhar do amigo num desespero quase poético, desaparecer sob as águas. Quando tentava emergir, ele o impeliu mais uma vez. Esperou um pouco. Alguns segundos apenas e desta vez, ele não voltara mais.

Ramiro suspirou fundo. Sorriu e esperou. O corpo viria à tona e ele o abraçaria com ternura. Sabia que tivera compaixão, quase amor.

A neblina aos poucos se dissipava.

domingo, abril 22, 2018

Condutas da vida

Fonte da ilustração: Pexels in: pixbay

De repente, o tempo de calor intenso muda e parece que uma nova estação surge do nada. Para um escritor, falar do tempo soa como clichê, mas o que acontece é que, às vezes, este estado de mudança atmosférica parece intimamente ligado a nossas emoções, acompanhando situações e condutas de nossa vida.

Olhei para a rua ainda com as beiradas das calçadas com algum resquício de água, mas os paralelepípedos já brilhavam secos, pelo vento que soprava folhas ou a poeira instalada nas bordas, esvaziando o cenário. Tudo expressava renovação, talvez não com os auspícios de dias floridos da primavera, mas com ares de outono hibernal, que aos poucos vai dando mostras de sua força. Um friozinho que se instala entre as persianas, um vento que ruge de quando em vez, varrendo qualquer possibilidade de fuligem ou folhagens como pequenas sombras desgarradas na noite de poucas luzes. Uma limpeza que a natureza se propõe. Pena que nem sempre o nosso eu interior possui essa possibilidade de limpeza, ele que se expõe aos fracassos, às frustrações, aos desejos inomináveis, aos medos e carências. Impossível transfigurar a alma e transformar as emoções, impossível lutar internamente, impulsionado pela natureza que se distrai, límpida numa noite que extrapola luzes e sombras. No homem, mais sombras do que luzes, menos vida e mais poeira incrustada nos meandros do cérebro, nos neurônios enredados em teias de aranha, amarfanhadas de modo a impedir qualquer saída para a verdade absoluta.

Que fazer, se não esperar que a natureza nos mostre o caminho? Um caminho drástico de limpeza geral, e nós quando muito, extrapolamos o limite, o vínculo que nos liga à interação com o outro, cujo liame quando partido, se dilacera e não se recompõe. Mas quem sabe, amanhã, a calçada mais limpa, o ar mais puro, a temperatura mais fria e os primórdios de uma revolução pessoal. Só aquela, bem íntima, porque a coletiva, a ideológica, esta já está por demais engessada, quase mutilada e pobre. Pobre do homem que não se refaz como a natureza e muito menos se apropria de seu País.

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