domingo, outubro 04, 2015

REFUGIADOS EM SEUS SONHOS

Nem que se diga, que lhes faltou o peito, nem que a fome durou;
nem que se saiba que a vida é árdua e a escola seja talvez o único acesso à dignidade.

Nem que os pais não lhes provejam o amor ou que o abandono se torne perene.

As crianças deveriam sempre vencer as dificuldades, sobreviver e se tornarem homens e mulheres mais fortes e guerreiros.

No entanto, às vezes, o homem no seu poder canhestro e torpe, investe na vida dos povos, interferindo em sua trajetória. E o poder se revela na intolerância religiosa, na ganância dos modelos econômicos, no imperialismo dos governos.

Gostaria de falar de nossas crianças em seu dia, de seus sorrisos, suas procuras pelo abraço e carinho, seus encontros e descobertas.

Mas como esquecer as que aparecem em nossos monitores diariamente, pedindo socorro ou registrando a sua falência. Como esquecer entre tantas, a menina praticante de Candomblé que foi agredida na escola, vítima de preconceito religioso, por outras de sua idade, que também são vítimas, pois repetem a norma do preconceito arraigado de uma sociedade em decomposição moral? Pensei nos pais dessa menina.

Como esquecer o menino sírio Ailan Kurdi, cujo corpo apareceu numa praia da Turquia, em setembro. Seu corpinho frágil registrando o sectarismo grotesco da humanidade, destoante dos melhores sentimentos fraternos. Como esquecer o irmão de 5 anos anos que se perdeu no mar e morrera como tantos outros.

Pensei nas crianças do Brasil. Pensei nas crianças do mundo.

Pensei no pai do menino, que na tentativa de fugir da Síria, imaginava um futuro para a família. Lembrei então da música “Cantiga de ninar” de Raul Seixas, cuja última estrofe enfatiza o que meu coração doído expressa:

"Fiz meu rumo por essa terra

Entre o fogo que o amor consome

Eu lutei mas perdi a guerra

Eu só posso te dar meu nome”.

O pai sírio que lutou para chegar à ilha de Kos na Turquia, perdeu a guerra. Nada mais lhe restou, nem a mulher, nem os filhos. Apenas lhes deu o nome. O nome de refugiado. Refugiados são todas as crianças, cujo direito de viver a infância lhes é tolhido, quando a intolerância, o racismo, o ódio, a esquizofrenia sexual de alguns, a violência e a incompetência das instituições impedem que sejam realmente crianças e se tornem apenas uma trajetetória interrompida. Uma ruptura da lógica infantil. São refugiados em seus próprios sonhos.

quinta-feira, outubro 01, 2015

Que venhas logo

"Elaborei este poema antes que ela viesse. Agora já está por aí, meio parecendo outra."

Quero esta mulher perto de mim, ouriçando meus cabelos

Sentindo seu bafejo próximo, tão próximo que o aroma arrepia-me os pelos

Quero-a mais próxima, levando tudo por diante

Não a quero calma, pacata, silenciosa

Quero-a guerreira, firme e enérgica

Quero que espalhe a luz, que empurre as folhas, que vergue os troncos

Quero-a resistente, alvissareira e alegre.

Quero-a, sobretudo num clima ameno, que antecipe o verão.

Quero que passe o inverno e que chegues rápido, primavera!

quarta-feira, setembro 30, 2015

OS DEZ TEXTOS MAIS LIDOS NO MÊS DE SETEMBRO DE 2015

Agradeço aos amigos do blog pelo sucesso dos textos. Muito obrigado.

1º lugar : Vida de gado

2º lugar: As rádios locais e as tvs regionais : os sonhos e as mudanças culturais

3º lugar : A lua, a Apollo 11 e minha avó

4º lugar: Para quem "a paz de Cristo”, não passa de um cumprimento social

5º lugar: Como se desenvolve a criação

6º lugar: Desenhos, história e castigo

7º lugar : Um natal distante

8º lugar: Metáforas cruéis : desqualificação das mulheres e negros

9º lugar: A fuga de meu cão

10º lugar: Noite eterna

sábado, setembro 19, 2015

PARA QUEM "A PAZ DE CRISTO", NÃO PASSA DE UM CUMPRIMENTO SOCIAL

A paz de Cristo é um cumprimento que ocorre na missa, no momento em que se transmite ao outro, ao fiel que está ao nosso lado, este sentimento de plenitude e paz que Nosso Senhor nos outorgou e que hoje repetimos nos rituais litúrgicos. É um momento lindo, de pureza e afeto, que nos une um pouquinho ao divino e nos deixa mais humanos, mais próximos do outro, mais ligados à fé. Entretanto, às vezes, nem sempre este ato beneplácito é usado de forma natural. Muitas vezes, o cumprimento não passa de uma atitude estereotipada, usada apenas no aspecto social, quase uma obrigação. Nestes momentos, penso que estas pessoas deviam passar longe da igreja, ou caso participem de alguma atividade religiosa, que o façam com dignidade. Se não gostam da pessoa, que permaneçam com seus rancores ocultos, que se afastem e se juntem aos seus pares, mas não utilizem as palavras de Cristo como um modelo artificial, apenas para demonstrar em público, uma educação (que em regra) não possuem. Acho que Cristo as compreenderia e por certo, saberia alertá-las de algum modo, dar-lhes uma saída, para que voltassem a ser sinceras. Afinal, pelo menos, não fariam sofrer com hipocrisia, os seus desafetos. 
É uma pena. Deveríamos refletir muito antes de qualquer gesto dentro dos rituais da missa. Deveríamos ser sinceros. Afinal, a paz de Cristo deve ser para todos. Não apenas para alguns. Deve ser irrestrita. Não seletiva. Deve ser franca, não evasiva. Na verdade, deveríamos reatar com a pessoa, antes do cumprimento, nem que fosse em oração, para termos a faculdade de oferecer a nossa paz, que assim, seria plena. 
Que tenhamos a paz de Cristo. Que a desejemos com alegria e sinceridade e se por acaso, ainda não estivermos aptos a aceitar o irmão que está ao nosso lado, não o cumprimentemos com falsa consideração. O que existe de pior para uma pessoa é perceber o quanto a tratamos socialmente, sem qualquer afeto sincero. Que a paz de Cristo seja para todos, inclusive para quem não a sabe distribuir.

Noite eterna

Com tantas palavras inúteis, tantas acusações e tiros pra todos os lados, fiz este poema. Espero que a lei maior, a nossa Constituição legitime o povo grávido de verdade.

Se a noite gira ad eternum
e os homens brilham ao luar
por que se encantar com as luzes
se nada podem provar?

mentiras que saem dos termos
dos que proclamam a luz
só trazem contornos enfermos
do apelo que a ti seduz

nao temer as verdades obtusas
nem ferver as entranhas nas febres
por certo é viver às escusas

da lei maior que entoa
do povo que vive prenhe
de um mundo que clama à toa

quinta-feira, setembro 17, 2015

Minha avó e a Apollo 11

Havia um clima de angústia e alguma agitação na casa. Foi no dia do casamento dos dois.

Minha avó estava deitada em seu quarto. Eu tinha a impressão de que ela observava a minha mãe com um olhar de súplica e até um pouco de desconfiança. Talvez imaginasse que aquele casamento pudesse curar a sua doença, ou pelo menos, não a matasse de vez.

Minha mãe, ao contrário, por mais que evitasse demonstrar, apresentava uma inquietação em cada movimento ou conversa. No fundo, ela sabia que a morte era inevitável. Apenas, desejava que a mãe não sofresse tanto!

E aquela falta de ar que não passava, aquela angustiosa espera de que alguma coisa acontecesse e por um milagre, ela voltasse a conversar normalmente, a respirar com fluidez, voltar a sorrir.

Minha mãe chorava pelos cantos, mas na frente dela, sorria e dava esperanças.

Meu avô parecia não entender bem aquela história, mas aceitava pacificamente a ideia do casamento. Não sabia porque a filha inventara um casamento religioso, tanto tempo depois, velhos e cansados, que diferença fazia? Mas se é o que se devia fazer, que se cumprisse.

Naquela época, o homem estava prestes a ir à lua. Era uma esperança para a humanidade, a certeza de que muitas coisas mudariam, talvez doenças fossem curadas, ou em consequência dessas viagens espaciais, até se descobrisse alguma forma de vida. Não se conhecia muito do assunto, mas tínhamos certeza de que alguma coisa boa viria daquelas viagens interplanetárias. O homem riscando os céus, descobrindo novos mundos, enfrentando o espaço. Havia slogans na TV, na rádio, nos jornais. Todo mundo falava na era espacial.

Eu ficava dividido entre estes dois mundos. O mundo imaginário, com um quê de realidade, bastava que o homem pisasse na lua para tudo ficar real e decisivo. Por outro lado, havia o meu mundo pequeno, real, no qual as noites eram intermináveis, em de algum modo, participava das dificuldades de meus pais, na tentativa de uma melhora de minha avó, na busca por médicos, por remédios especializados ou uma provável hospitalização.

Até que marcaram o dia em que a Apolo 11 rasgaria o céu em direção ao astro tão almejado, no caso o satélite natural da terra.

No meu mundo particular, marcaram a data do casamento. Era uma noite fria de maio. Um maio que se arrastava em suas derradeiras noites, porque nas noites as coisas aconteciam, nas noites em que minha avó gravitava como um pêndulo, numa falta de ar que ia e vinha, sem tempo da oscilação parar. Um maio quase junho parecendo persistir no frio. Um vento que também oscilava lá fora.

O Padre Costa chegou e aproximou-se dos dois, sorrindo. Meu avô o olhava desconfiado, sentado ao lado da cama.

De meus olhos de criança, observei a cena, através de uma janela que dava para uma área lateral. O cenário pronto, os protagonistas aptos e os personagens em volta.

Com a presença do padre, minha avó parecia ter melhorado da falta de ar. Uma tia de olhar intrigado afastava-se do quarto, em direção à cozinha. Não acreditava que nada mudasse. Para ela, tudo não passava de crendices. Minha mãe nada argumentava. Ela sabia que a esperança era quase nula, mas por que não levá-los ao encontro com o sacramento, por que morrerem sem esta oportunidade?(No fundo, era o que pensava).

O padre realizou a cerimônia. Eles, sentados e encostados na cabeceira da cama. O ritual consolidado. Cumprimentos. Sorrisos.

Quando o padre foi embora, houve um certo alívio para a tia descrente e parece que tudo se aquietou.

O maio terminou. Junho chegou rápido e foi um dos meses mais frios do ano.

Em 20 de julho de 1969, o homem pisou na lua pela primeira vez. Minha avó ainda resistiu um tempo, até para descrer daquela façanha. E numa noite de julho, dois anos depois, ela também se foi. Foi uma noite fria, tão fria quanto àquela.

O dia? Foi cinzento.

domingo, setembro 13, 2015

VIDA DE GADO

VIDA DE GADO

Desci do ônibus enfrentando aquela pequena multidão envolta na bruma. Vestiam roupas pretas. Esfregavam as mãos, tiritavam de frio. Uns fumavam, absortos, aquecidos na garganta pelo poder da chama. Pigarreavam às vezes. Meu pai puxava-me o braço, ansioso. Não se sentia bem entre eles. Parecia querer fugir do lugar. Ouvi as badaladas ao longe. Seria hora da missa? Senti a mão pesada de meu pai em minha cabeça. Que queria ele? Abrigar-me da cerração, proteger-me do frio, apressar-me o passo?

Caminhamos rápidos, pela rua pavimentada em cinzas de carvão. Ele, passos largos, pernas compridas. Eu, aos tropeços, pernas curtas. A pequena multidão já se desfazia ao longe. Quase não os víamos e já nem sabia se era noite ou tempo ruim. O frio congelava o nariz. Dei mais uma volta na manta, ajeitei o casaco nos ombros, puxei a gorra para os olhos. Meu pai também acertou o chapéu, que custava-lhe ficar à cabeça. Minhas botinas estavam gastas. Sentia na planta dos pés, os pedregulhos da rua, me espetando. Olhei para os pés enormes de meu pai. Não tinha problemas. Aqueles coturnos deviam ser herança de guerra, tão reforçados estavam. Se houvesse qualquer ser vivo por ali, ele esmagava impunemente. Não tinha o hábito de olhar para o chão. Principalmente, quando estava ansioso, como agora.

Na primeira esquina, guarnecida por casas maiores, ele parou, olhou para os lados e disse aliviado: – é ali.

Tentei ficar feliz, mas não estava. Não queria ficar naquela casa antiga, cheia de lembranças dos mortos, sempre citados por tia Clotilde. Só a viagem me interessava. Entrar naquele ônibus velho, atravessando os campos, vendo as luzes da cidade se apagando aos poucos ante meus olhos. Isso me bastava. Por que será que ele viajara sem minha mãe? Ainda lembro seus olhos brilhantes, querendo dizer qualquer coisa que não se atrevia. Talvez tivesse chorado. Agora estávamos ali, os dois, como dois homens, enfrentando as lembranças de tia Clotilde.

Quando chegamos, a escuridão era quase absoluta, não fosse a luz fraca do lampião de querosene, cuja chama se via pela janela. Ela chegou, apertou a mão de meu pai, que sorriu polidamente, sem muito entusiasmo. Em seguida, ela o abraçou, chorando e ele quase não retribuiu o abraço. Ficou assim, meio parado, sem saber o que fazer com as mãos e percebi que ele olhava para mim, como se pedisse socorro. Ela o deixou, abaixou-se até mim e apertou-me com força as bochechas, já recuperada pelo desafogo. Franzi a testa de dor. Ela sorria, satisfeita. Mandou que entrássemos, apresentou três amigas que estavam junto à mesa, quase às escuras. Elas mal levantaram os olhos, quando muito as sobrancelhas. Não arredaram pé. Ficaram mexendo em rendas, linhas, agulhas. Parece que costuravam. Tia Clotilde sentou entre elas. Pediu que nos acomodássemos a sua frente. Foi até o fogão de lenha, trouxe a chaleira tisnada e serviu um café aguado, sem perguntar se queríamos. Na cesta de vime, bolachas duras. As três mulheres nem olharam para o café. Continuaram na labuta e pelo que pude ver melhor, já com o olhar acostumado, desenredavam fios. Ou quem sabe, faziam novelos? Meu pai serviu-se de açúcar mascavo, gosto de rapadura. Olhei para tia Clotilde e vi que ela ensopava a bolacha no café. Depois, sorvia o mingau, fazendo um barulho estranho, um chiado, quase um assobio.

Bati no braço de meu pai, querendo falar alguma coisa. Estava apertado. Precisava ir ao banheiro, mas temia falar na frente daquela gente toda. Meu pai empurrou-me o braço e perguntou: – como vão as coisas?

Antes que ela respondesse, puxei a manga da camisa, pedindo ajuda. Ele não respondeu, continuou o assunto. Depois, explicou porque viera. Ela o interrompeu, rápida. – Não me diga, não me diga. Eu sei porque veio e ainda não sei, não sei se quero fazer isso.

Depois, como se uma luz a iluminasse a mente, chamou a atenção de meu pai. – Escuta o menino. Vai ver que quer se aliviar. Aliviar? Bem que ela tinha razão, se não fosse agora, tudo iria por água abaixo. Literalmente. Quando ele perguntou o eu queria, já tinha levantado da cadeira de palha.

Ele me seguiu. Saímos para a rua. Nem cheguei ao banheiro que ficava lá fora. Fiz o que precisava ali mesmo, próximo à soleira da porta, vendo meu pai encobrindo-a quase que completamente com o corpo. Ao longe, avistava movimentos escuros de vacas que pastavam, pacientes. Perguntei: – aqui não tem pia?

– Não faz perguntas. Entra.

Voltamos para o café. As três já não estavam à mesa. Espalhavam-se pela casa. Uma varrendo a cozinha, outra empilhando as louças, guardando-as com cuidado. A outra ronronava pelos cantos, atirada num sofá velho. Esta tinha uma berruga bem na ponta do queixo e eu jurava que vi uns chumaços de pelos pendurados do nariz.

Os dois, meu pai e tia Clotilde sentaram-se novamente, frente a frente. Eu, do seu lado, enchi o café com aquele açúcar escuro e da calda, lambi a ponta da colher. Ouvi os dois conversando, mas não prestava a atenção. Procurava encontrar as outras que passavam pra cá e pra lá como baratas tontas, seguindo a intuição. Só uma ficara abandonada, deixando-se embeber de tédio.

Levantei-me da mesa, limpei a boca com o dorso da mão e aproximei desta. Cheguei bem perto, mas pouco via, pela luminosidade fraca do ambiente. Pela janela, distinguia a lua, triunfal, mexendo-se como elas, de um lado para o outro. Cada vez que eu olhava, achava que ela se mudava de lugar. Era possível isso? Ou eram as nuvens? Que importava agora? Quando desisti da mulher, ela me segurou pelo braço, firme. Estremeci. Senti um arrepio instantâneo. Forcei a mão, tentando me soltar, mas ela era forte e decidida. – Quem é você?


Tia Clotilde me salvou desta vez, chamando a atenção da mulher. Eram criaturas estranhas. Percebi um certo sorriso na fisionomia de meu pai.

Afastei-me um pouco, olhando para o nada que cada vez ficava mais escuro, um negrume. Se é que o nada tem cor. Ouvia sem dar muita atenção a conversa dos dois. Tia Clotilde comentava: – o Osvaldo, osso duro de roer. Mas se foi.

Meu pai indagava: – e o Sandoval? O alemão forte como um touro?

– Esse aí? também osso duro de roer, mas se foi como os outros.

Pequeno silêncio e meu pai comentou, taciturno: – do Horácio, eu soube.

Tia Clotilde levantou as sobrancelhas e posso jurar que uma lágrima correu rápida, pelos olhos. Assoou o nariz vermelho. Resmungou: – esse inventou de protestar, os milico levaram. A tal da ditadura.

E ela foi enumerando todas as faltas, todos os vazios, todos os homens fortes da terras, provavelmente irmãos, cunhados, marido, o filho. Parece que não restara nenhum. Ossos que ruíram. E concluía, resignada:– só eu to ficando, velha, encarquilhada, esquecida no mundo.

Procurei não encará-la. A chama do lampião lambia os cantos do vidro e fazia figuras no teto, bordado em picumã. Imaginava os tios, lá em cima, pairando curiosos, indagando sobre a gente. A velha do sofá esticou as pernas na minha direção, como se com eles fizesse uma forquilha para me prender. Sentia que a minha presença a irritava.

Voltei para a mesa e afundei a cabeça num travesseiro de banha. A da vassoura atravessava a sala na penumbra, sem desviar de qualquer obstáculo, já que parecia conhecer os quatro cantos. Eu não. Afastei-me depressa e sentei-me assustado, perto de meu pai. Percebi que tia Clotilde se ressentia com alguma coisa e agucei rápido os ouvidos. – Já lhe disse que agradeço a visita, mas to bem aqui.

É só para descansar um pouco.

Ela reagiu, assustada. – Não quero ficar maluca com aquela gente. Lá, não tem direito de nada. Polícia de todo o lado.

Meu pai retrucava que ela se referia ao exército, que era comum em dias de ditadura. Que ela poderia ficar tranquila. Mas pelo jeito, ela já tinha decidido tudo em sua cabeça, antes mesmo que ele perguntasse. Uma baforada bem perto do meu ouvido. A que empilhava a louça, parou um pouco afastada, ouvindo a história, não tão longe que seu cigarro não ocupasse o nosso oxigênio. Fumava e sacudia os quadris pra lá e pra cá. Balançava-se e fumava. Os dois silenciaram, acho que pela presença da fumante. Olharam ao mesmo tempo para ela, mas foi só um segundo. Meu pai quebrou o silêncio. Amanhã voltaríamos.

Então, passei a imaginar a volta, sentado ao lado da janela, observando tudo que passaria por mim. Meu pai bateu no meu ombro, exigindo que me levantasse, iríamos para o quarto. Dormir? Já? Antes de levantar, perguntei: – que é ditadura?


Meu pai abriu a boca, faltaram palavras. Calou-se. A velha concluiu: – é ir pra cidade.


A do sofá começou a dormir. Babava despudorada. A da vassoura voltou a varrer, ensandecida. E a fumante, parou, um pouco, pensando, extraordinariamente calma.


No quarto, quem desabafou foi ele: – v

ida de gado.

sábado, setembro 12, 2015

As rádios locais e as tvs regionais, os sonhos e as mudanças culturais

Quando crianças, via de regra, temos um mundo interno muito rico, e um tanto dissonante com a realidade. As crianças vivem num mundo imaginário e interagem de acordo com a interpretação que estabelecem para si mesmas. Para os dias de hoje, é absurdo se pensar que alguém, até mesmo uma criança, possa imaginar que uma rádio local possa ter um elenco refinado de artistas, cantores, atores e atrizes que lá permancem para executar suas obras, fazer suas perfomances e encantar os ouvintes. Sabe-se que atualmente, tudo é gravado e a maioria dos programas vem dos grandes centros, principalmente do eixo Rio-São-Paulo onde a dramaturgia e os grandes shows musicais acontecem. Onde a música tem realmente importância comercial e os grandes artistas se salientam a partir destas “trincheiras" de arte e marketing. Por essa cultura dos grandes centros, as crianças de hoje e as pessoas em geral, sabem que a maioria dos sucessos vem de lá, que a arte regional é praticamente esquecida, com raríssimas excessões. As crianças, na verdade, nem pensam nisso. Elas assimilam esta situação, bem como os adultos em geral, que procuram nas páginas de seus jornais locais, notícias e fofocas de celebridades das grandes emissoras do centro do País, sem contar os sites que as popularizam e transformam em celebridades, pessoas que tem muito pouco ou nada a oferecer em termos de arte e cultura.

Mas, antigamente, muito antigamente, pelos idos dos 60 e 70, as coisas eram um pouco diferentes. A cultura regional era diversificada e havia programas regionais nas rádios locais e estaduais com muita audiência. A própria tv da capital tinha a sua programação regional nos horários nobres. A TV Gaúcha, por exemplo tinha uma programação de shows depois da novela das oito (novela que não era apenas da Globo, mas de outras emissoras, como a Excelsior, até se formar a sinistra rede nacional, onde se perdeu a criatividade regional e o povo brasileiro se padronizou conforme a ideologia doutrinária da emissora). Aliás, a TV Excelsior é um capítulo à parte na história da TV brasileira, pois foi banida do cenário televisivo porque seus administradores se opunham à ditadura. Mas isto, pode ser tema de outra crônica. Outras emissoras, como a TV Piratini, produzia peças teatrais com atores locais e shows aos sábados e domingos em horários que hoje são preenchidos pela programação das grandes redes, incluindo os programas religiosos aviltantes, uma troca fabulosa de benefícios financeiros.

Voltando à TV Piratini, que foi pioneira no Rio Grande do Sul, nos anos 60, ela apresentava uma programação regional extensa, incluindo o Repórter Esso, que era transitido em Porto Alegre por Ênio Rockenbach. Também havia o programa sobre futebol, chamado em "Mangas de Camisa”. Na culinária, o programa de Mimi Moro, além de outros programas populares, como o ‘Clube do Guri”, "TV Samba", com Sayão Lobado, "Grande Show Wallig", um programa realizado ao vivo, nos domingos, com astros da música local e até internacional, acompanhados de uma orquestra.
Na década de 70, havia o programa feminino "Elas por elas”, apresentado de segunda à sexta às tardes, cuja abertura trazia o tema “Un homme et une femme” de Paul Mauriat, do filme com o mesmo título. . Aliado à programação regional, havia a programação nacional através da TV Tupi. Por outro lado, a TV Gaúcha (atual RBS), trazia atrações ao vivo, como o Show do Gordo, com Ivan de Castro, GR show, com Glênio Reis, o show de luta livre, aos domingos, o programa Cidades frente a frente, na qual Rio Grande concorreu com Canoas e muitos outros programas. Na Tv Difusora (atual Band), entre outros, se destacava o "Programa Júlio Rosemberg", com atrações locais e nacionais, “bem como alguns programas infantis, como o "Recreio", apresentado pela Tia Bita e o menino Fabiano ” e mais tarde, o Carrossel Bandeirantes, apresentado pelo mágico Tio Tony. À noite, um programa de reportagens, chamado Camera 10 e ao meio-dia, um programa que ficou muito conhecido, chamado Portovisão que concorria diretamente com o Jornal do Almoço da TV Gaúcha.

Embora houvesse muita participação popular, as rádios locais também tinham a sua programação bem estruturada e com sucesso, inclusive oferencendo dramaturgia, que na época, era ao vivo. Na Rádio Minuano, havia uma peça teatral apresentada aos domingos, que se destacava na programação e os atores eram rio-grandinos. Havia programas de auditório, com calouros, nos quais se apresentavam muitos cantores da cidade e outros até seguiam em frente na carreira. Na rádio Cultura Riograndina, um dos seus maiores sucessos era o “Cafezinho telefone”, no qual fazendo juz ao título, a comunidade interagia pelo telefone, solicitando músicas. A característica músical, como se dizia na época, a música que identificava a abertura do programa era “”Os milionários”, dos Incríveis. Era um programa no qual o apresentador conversava tranquilamente com os ouvintes, que solicitavam músicas e entre uma e outra, ele fazia os anúncios de praxe, os ditos reclames (propagandas) e comentava curiosidades relacionadas à música ou alguma notícia. Também havia um programa muito ouvido pela comunidade lusitana, cuja pauta era de músicas portuguesas, principalmente o fado, com muitos comentários do apresentador que também falava com sotaque. Outro programa tradicional e muito ouvido no interior do Município era o “Alô Zona Sul”, que informava as notícias através de anúncios pagos pelos ouvintes, como convites para missas, enterros, casamentos, etc.

Além disso, havia a programação esportiva das duas rádios locais da época, que tinha grande força na região. Tudo aos poucos foi se modificando, a partir das primícias oriundas das programações nacionais, seja por influência dos patrocinadores, seja pela falta de audiência local, o que obrigava aos programadores trazer as novidades dos grandes centros. De todo modo, as rádios locais sempre pautaram pelo jornalismo durante todo o dia e pela programação musical, bem como o jornalismo esportivo, especialmente, o relacionado ao futebol. Entretanto, percebe-se, que apesar dos esforços de muitos produtores de rádio e jornalistas envolvidos nas transmissões, há uma decadência gritante, em virtude das inúmeras mídias que atualmente se tem em mãos, mas principalmente, pela fuga indiscrimida que ocorreu a partir do final da década de 70 para a grande mídia nacional, que monopolizou toda a programação das emissoras, tanto de rádio, quanto tv, seja no fator econômico e mercadológico, seja no fator de supremacia da cultura da região central do país em detrimento das culturas locais. O mundo foi mudando e até esta cultura está debilitada, porque agora, há muito mais oportunidades de acesso, a partir de paradigmas internacionais, com a internet e as tvs pagas.

Mas, voltando ao passado, sabia-se o quanto eram importantes as rádios para as crianças da época, talvez não propriamente pela programação exibida, mas pelo fato de acompanharem diariamente com os pais, de uma forma ou de outra, mesmo envolvidos em outras atividades. Em consequência, estabeleciam ao rádio uma dimensão, que os tornava participante de suas vidas, o que para os dias atuais, seria um absurdo. Lembro de uma colega de escola que ao passar pela Cultura Riograndina, na Silva Paes, dizia ter curiosidade em subir as escadas para encontrar algum cantor ou artista da rádio. Era uma ilusão infantil, quase inconcebível, mas o sonho só foi abalado, quando ela precisou pagar um aviso para o programa do meio-dia, em virtude do falecimento de sua avó. Subiu rapidamente as escadas e se deparou com um guichê vazio, onde uma presumível secretária apareceria a qualquer momento. Próximo à parede, um sofá antigo, surrado. Alguns homens conversavam nos bastidores, sendo que se ouvia a voz de um dos locutores famosos e as conversas desandavam para o mais banal e simplório do cotidiano. Quando a secretária chegou, pediu o tradicional anúncio, feito à mão para datilografar em sua escrivaninha. Cobrou e dispensou minha amiga com a indiferença dos que estão cumprindo uma tarefa rotineira e desgastante. Minha amiga até olhou para trás, na esperança de assistir uma conversa mais alvissareira, com vozes impostadas e conversas inteligentes. Quem sabe um cenário luminoso, onde houvesse pessoas discutindo os grande anseios da humanidade, a chegada do homem à lua ou a nulidade do processo civilizatório? Nada disso acontecia. Não havia glamour, nem elegância, muito menos alguma deferência aos visitantes. O sonho acabara. Como na vida virtual de hoje, o sonho só se concretizava ali, pertinho do alto-falante, a cabeça próxima ao rádio, ouvindo aquelas vozes aveludadas e temas românticos ou intelectualizados. Mas assim era a vida. Talvez com o tempo, ela tenha entendido, que eles eram tão iguais quanto ela, gente do povo, gente que sonha também, que tem seus ídolos e suas paixões, seus aborrecimentos, suas iras, suas esperanças. Que bom que as pessoas percebessem nos dias atuais, que as celebridades e os atores eloquentes em suas falas são tão iguais ou piores que todos nós. Em geral, os espectadores são semelhantes àquela menina dos anos 70 e vêem nos ídolos dos dias de hoje, apenas as qualidades que enxergam. O personagem criado para vender discos, shows, fazer sucesso em novelas, teatro, etc. O estereótipo do homem. O que todos veem, mas que na realidade, na sua intimidade, somente o próprio conhece. Mas assim era a rádio e a TV. E assim a vida segue até hoje. Só mudaram os formatos. O mundo gira igual. E as ilusões… bem, estas, talvez mais pueris.

segunda-feira, setembro 07, 2015

A FUGA DE MEU CÃO

Chamava-se Chacrinha. Nem sei por que cargas d’água dei este nome ao cachorro. Era um cusco preto, com uma pata branca, destoando das demais, meio peludo. Tinha um olhar atilado, uma boca enorme que se mantinha presa a trapos que eu puxava, segurando-o, levantando para o ar, dentes presos, respiração ofegante, peito saltando, olhar atento ao pano pendurado, sem descuidar para não perder a presa. Estava sempre assim, ao nosso lado. Corria comigo pelas ruas, enveredava por esquinas, metia-se em becos, quintais, ladrava com altivez e fugia no momento certo.

Num destes dias, em que as coisas acontecem sem que tenhamos qualquer intervenção ou pressentimento, fui à aula, pela manhã, com a pasta embaixo do braço, uniforme limpo, calças azul-marinho, frisadas, um lanche para o intervalo. Estava no horário de rotina à espera do coletivo que me levava até à escola, quando inesperadamente despontou na esquina, à toda velocidade, Chacrinha, correndo ao meu encontro, sem que eu pudesse detê-lo.

O ônibus dava sinais de estacionar e eu o expulsava em absoluto desespero, que para maior desgraça, ele parecia entender ao contrário, fazendo festa, pulando em minha roupa asseada, querendo participar como sempre de minha vida. Entrei no ônibus, na esperança que ele voltasse, desaparecendo na esquina, entretido com outras mensagens que pudessem surgir no momento, talvez uma cachorrinha alegre que despertasse interesse ou o cachorro imenso do vizinho, que latia como um trovão, afugentado-o em definitivo. Nada disso aconteceu. Quando sentei-me num banco, logo após à cadeira do cobrador, ele saltou para dentro do veículo, acomodando-se exatamente embaixo, junto a meus pés. Algumas pessoas brincavam que ele deveria pagar a passagem, outros olhavam de soslaio, desconfortados com o animal, assim alojado no mesmo ambiente. O cobrador já se inquietava em seu lugar, mexendo os quadris, adequando-se para solicitar a passagem para a frente, já que se esgotavam rapidamente as acomodações. Vez que outra, olhava para trás, na tentativa de enxergar o animal que se aninhava, encolhido, sem se mexer. Chacrinha, às vezes, observava atento, para o alto, aliviado, como se entendesse que estava no seu direito. Em seguida, baixava a cabeça, sisudo, conformado em apenas proteger-me. O cobrador, por sua vez, encarava-me com ar de censura, mas não tinha mais tempo de fazer qualquer reprimenda, porque as pessoas já se acotovelavam no corredor, centenas de meninos que iam para a escola em seus uniformes coloridos, outros tantos operários, comerciários, comerciantes, bancários, professores, enfim, o povo que se juntava na mesma hora para chegar a seus locais de trabalho. O pior de tudo é que se alguém se aproximava, o cão rosnava, com uma empáfia e coragem, como se me defendesse. Eu suava frio, imaginando que a qualquer momento, ele morderia alguém, ou mesmo que o colocariam para fora, na próxima parada.

Meu tormento durou mais ou menos 30 minutos. Desci um quarteirão antes da escola, aflito para me ver livre daquela inquietação. Desci contrito, coração apertado, culpado, por ter abandonado o meu cachorro, fingindo que não era meu, às pressas, quase fugindo do veículo. Mas na verdade, ele me seguiu, esgueirando-se por entre as pernas, sapatos, botas, alpargatas, torcendo o corpo lustroso e atingindo os degraus rapidamente, chegando em seguida ao meu encontro. Nada porém, me consolava. Afinal, ele estava ali e eu não poderia mandá-lo embora. Como voltaria, como encontraria rastros, cheiros, faro, se havia vindo de ônibus. Meu cão seria abandonado em plena via pública e não voltaria jamais para casa.

Deixei que entrasse na escola e subi rapidamente as escadas em direção à sala de aula. Ele se perdeu de mim, mas logo encontrou diversão, correndo no pátio através dos meninos que chegavam e se permitiam na algazarra, divertindo-se, nas horas iniciais, anteriores ao toque da sineta. Chacrinha corroborava para esta festa. Eu, lá de cima, a tudo observava, triste, temendo deixá-lo sozinho e perdê-lo para sempre, principalmente porque o inspetor da escola o enxotou, imediatamente, ao sinal da campainha. Não fiz nenhum gesto para ajudá-lo, defendê-lo, salvá-lo do desconhecido, das ruas estranhas onde não deixara faro, das diversidades, dos automóveis, dos homens que talvez o chutassem, correndo-o de suas casas ou dos outros cães, maiores e mais ardilosos, capazes de expulsá-lo de seus reservados.

Com este sentimento, entrei na sala de aula. Não me concentrava em nenhum assunto, nenhuma conversa entre os colegas ou qualquer ensinamento dos professores. Só via a imagem de Chacrinha, perdido nas ruas da cidade.

Voltei para casa, taciturno, com a pasta em desalinho, tal como meus pensamentos. Papéis se juntavam amarfanhados a cadernos dobrados, lápis misturados a canetas, borrachas e transferidores. A desorganização imperava. Meus pensamentos divagavam e as ruas me pareciam extensas demais e o caminho extremamente longo e o tempo quase eterno. Da esquina, avistei minha casa. Tudo parecia em ordem. As árvores não se mexiam, pelo contrário, desenhavam tacitamente sombras na calçada, elaborando uma tarde que se aproximava devagarinho, provavelmente vistosa, num dia de primavera. Em minha alma, entretanto, o inverno enregelava os sentimentos.

Tirei a chave do bolso, na tentativa de abrir o portão de ferro, esperando que as expressões tristes da família. Mas, eis que um som surdo e abafado, como se um corpo se debatesse me despertou a atenção. Por um momento, pensei que estivesse sonhando e que meu cachorro houvesse voltado para casa. Quando abri, a certeza se solidificou. Ali estava ele, feliz, lambendo-me as mãos, batendo as patas em minha pasta, sujando minha roupa. Havia voltado, nem sei como. Minha mãe dissera, que por volta das dez horas ele aparecera, esbaforido, língua pra fora, extenuado. Então se confirmara que ele não voltara de ônibus.

sábado, setembro 05, 2015

UM NATAL DISTANTE

Há quem se lembre dos natais da infância e são estes os que realmente preenchem a nossa memória, trazendo de volta a fantasia, a alegria e a recordação da família naqueles momentos intensos. Tenho comigo que os natais são todos bons, a menos que tenhamos tido algum sofrimento marcante e as coisas, aí, trilhem caminhos mais estreitos e tortuosos. Lembro de muitos natais da infância e acho que na maioria foram muito felizes.

Entretanto, há um em especial, em que eu não era criança, nem adolescente, nem vivenciava aqueles momentos de encantamento em que somos pais com filhos pequenos. Tinha meus 20 e poucos anos e o Natal se resumia a um pequeno encontro de família, com os pais e irmãs, a missa do galo e no máximo, alguma festa maior à noite, em que houvesse danças e namoricos. Nada que se compare às baladas explosivas de hoje em dia.

E este natal começou muito cedo. Na véspera, numa tarde de sábado. Um desses sábados à tarde em que as pessoas já fizeram as suas compras ou ainda permanecem comprando os últimos presentes que faltaram. Nas ruas, um pouco distante do centro comercial, a cidade parecia completamente deserta. Era uma avenida arborizada, com grandes canteiros centrais e árvores gigantescas que davam um ar de nostalgia para a véspera de natal, que já por conta de todos os envolvimentos emocionais, o Natal em si, já é nostálgico para mim. Uma data em que lembramos de entes queridos que já não se encontram em nosso meio ou, porque as famílias já se dissolveram e vivem em lugares distantes , ou porque, sei lá, temos uma dificuldade interna de sermos felizes quando todos assim parecem.

Pois, antes de chegar nesta avenida arborizada, eu resolvi visitar o asilo de pobres. Era uma experiência nova para mim, não que eu não tivesse ido até lá em outras oportunidades, ao contrário, já participara de outros encontros e dedicado alguns momentos que foram talvez bons para eles, mas muito produtivos para mim.

De todo modo, a experiência a que me refiro, se chama véspera de natal. Na véspera de natal, os idosos parecem ter a obrigação de serem felizes. Os cuidadores riem, esforçam-se para incentivá-los e não admitem quaisquer reclamações ou tristezas. Alguns filhos os visitam, trazem os netos e outros parentes. Às vezes, até os levam para casa. Eu conversei com alguns idosos e havia lhes trazido presentes. Na verdade, guloseimas, porque o que interessa para um idoso? Ganhar uma camisa nova ou uma blusa de rendas? Para onde eles vão? Com que se divertem? Como vestir roupas novas, se o seu destino inevitável é o quarto onde deitam suas dores? Então foi o que fiz. Presenteei-os com chocolates, biscoitos, cookies, balas e todos os tipos de guloseimas que pudessem adoçar-lhes a boca e o coração.

Uns conversaram mais do que os outros. Uns se fecharam em si mesmos, embora agradecessem os presentes, mesmo que momentaneamente, decididos a se afastarem, habituados a ficarem sozinhos. Houve os que contaram histórias, verdadeiras ou fantasia, mas que preenchiam suas memórias de maneira intensa, mesmo que por alguns momentos. Talvez, o encontro tenha durado uma hora.

Dali sai satisfeito e angustiado. Satisfeito por ter realizado o meu objetivo que era o de levar aquelas pequenas lembranças e angustiado, talvez por que outro objetivo não tenha sido alcançado, que seria o encontro. Acho que não houve o encontro entre nós. Não houve interatividade. Não houve partilha de sentimentos, de emoções, de troca de experiências. Houve apenas um encontro social, onde alguns fragmentos de sentimentos vieram à tona. De todo modo, fiz o que me propus e pensei que no próximo ano seria melhor. Depois, pensei melhor e me perguntei, por que no próximo ano? Por que não na próxima semana, no próximo mês, no forte calor de janeiro, no imenso frio do inverno? Há tanto momentos para serem compartilhados. Há tantos dias a serem preenchidos. E pensando desta forma, retirei-me, entre os cumprimentos e desejos de feliz natal e anseios de um bom ano novo.

Por um momento, lembrei de nosso trabalho no hospital psiquiátrico e o comparei com o asilo. Na verdade, a solidão e a fantasia eram as únicas coisas que os uniam. E talvez as únicas que realmente tinham alguma importância. Mas desviei o olhar, tentando não ver aquelas paredes escuras, cujas luzes pareciam focalizar apenas olhos assustados e ouvidos desatentos. Procurei não pensar e esquecer de vez esta visita. Muito menos divagar, fazendo comparações, cujas conclusões poderiam argumentar uma tese. Afinal, o asilo já tinha preenchido bastante aquela tarde.

Afastei-me devagar. Não estava tranquilo. Mas não devia me deter muito nisso. Teria mais tempo e mais angústias, que por certo aflorariam.

Dirigi-me a algumas casas, onde deixaria cartões sob as portas ou os entregaria pessoalmente. Nesta época, não havia cartões virtuais, nem redes sociais, nem comunicações online. Tudo era concreto. Tão concreto, quanto a calçada da avenida que eu, agora, após a entrega dos cartões natalinos, me dispunha a caminhar.

Observei que o sol já se punha, devagar, bem lentamente. É um sol de verão e portanto, demora mais a se esconder. Entretanto, a noite se aproximava e devia me antecipar, porque havia muito mais a percorrer.

Do outro lado da avenida, havia a igreja e nem uma pessoa na rua. Um silêncio sepulcral, como se todos houvessem abandonado a cidade. Um silêncio bom, que me deixava refletir, inclusive sobre a calma que a natureza despertava. O sol ao longe, se pondo, jogando seus raios por entre as árvores da avenida, a rua que se alongava em direção à saída da cidade, o silêncio intenso, tudo produzia uma paz que nem sabia explicar. Nem tentava, só absorvia.

Por outro lado, estava satisfeito, porque a maioria dos cartões natalinos foram entregues.

Pensei comigo que esta tranquilidade contempla a condição de nos sentirmos plenos, inteiros em nossa caminhada. Atravessei a avenida e aproximei-me da igreja, agora já um pouco às escuras, pois o lusco-fusco aumentava, em virtude das luminárias serem acesas, amiúde, e por momentos, via-se apenas a luz natural.

Foi neste momento, ouvi um voz firme e forte, me chamando. Olhei para os lados e não vi ninguém. A voz insistiu, pedindo que o olhasse, com a convicção implícita de que o atenderia.

Um pouco aturdido, voltei-me e avistei um homem encostado na porta da igreja, meio escondido, pois embora fechada, a porta fica um pouco para dentro, como um nicho. Percebi tratar-se de um senhor idoso, do qual não conseguia avaliar a idade que aparentava. Usava um terno escuro e vestia um colarinho de padre. Os sapatos pretos me pareciam de verniz. Aproximei-me, mais calmo, apertei sua mão com firmeza e sorri, quando disse: — tinha certeza de que conversarias comigo. Hoje em dia, todos estão muito apressados, mas tu já fizeste com calma o que te propuseste. Visitaste o asilo de pobres, entregaste os cartões natalinos e agora parasses para conversar comigo. Eu sabia que farias isso.

Respondi com determinação , que não havia motivo para não parar e ouvi-lo. Não entendi bem como ele sabia sobre o que eu havia feito, mas, de qualquer modo, tudo me parecia muito natural. Naquele momento, não achei que este detalhe tivesse alguma importância.

Ele então, concluiu: — és um bom rapaz. Foi por isso, que parasses para conversar comigo. Sei que sempre evitas contar as tragédias que tens conhecimento pela tv, jornais ou por outras pessoas, para os teus familiares. Achas que não vale à pena incomodar teus pais com estas histórias tristes, até mesmo, porque tu não gostas de repetir estas coisas. Não acrescentam nada.

Concordei com ele. Então, fez uma pequena revelação: – a partir de hoje, véspera do Natal, ficarei aqui, nesta igreja, até o Ano Novo. Se quiseres me ver novamente, conversar comigo, eu estarei aqui, te esperando. Agora, vai, te esperam em tua casa.

Apertei-lhe a mão e afastei-me ainda mais contente do que estava antes.

Passou o tempo, esqueci do ocorrido. Naquela época, havia o cinema Lido, que ficava próximo à Igreja. Na véspera do ano novo, eu e minha irmã decidimos assistir um filme, lembro que se tratava de um musical com Barbra Streisand.

Ao sair do cinema, passamos pela frente da igreja e, para minha surpresa, ele estava lá, sorrindo e me chamando para conversarmos. Avisei a minha irmã da pessoa que havia encontrado naquele mesmo lugar, na véspera do natal, da qual havia comentado anteriormente.

Para minha surpresa, ela ficou em verdadeiro pânico, correndo em absoluta velocidade, em direção à esquina, sem parar um segundo, muito menos atender aos meus chamados.

Ainda, antes de me afastar por completo, voltei-me e olhei para o homem que sorria e me acenava. As pessoas passavam rápidas, saindo do cinema e provavelmente conversando sobre o filme. Ele continuava lá, e nem sei se o viam, tal como eu.

De todo modo, nunca mais o vi, embora, provavelmente tenha ficado até o dia primeiro do ano novo, tal como anunciara. Nunca mais o vi, nem tenho certeza de que a mensagem que deixara, fora apenas uma invenção de sua mente. De todo modo, ratificou a ideia de que devemos sempre fazer o melhor em quaisquer circunstâncias. Que devemos perseverar em nossa missão e observar a natureza, experenciando sem pressa os momentos em que partilhamos a plenitude da vida. Seja cumprindo uma missão, seja interagindo com o próximo

. Isso é o que podemos chamar de momentos de felicidade. Provavelmente, seja este o significado maior do Natal.

sexta-feira, setembro 04, 2015

DESENHOS, HISTÓRIA E CASTIGO

As horas passavam lentamente, naquela manhã. Meu espírito irônico se evidenciava nas pequenas coisas, nas orelhas de abano do colega ao lado, na boca imensa e dentes desaparelhados do que ficava na fileira à direita, no cabelo sempre envolto em um generoso laço rosa da menina da frente e principalmente, cansava-me a atitude enfadonha da professora a conjugar os verbos interminavelmente. Estava na quarta serie primária, no tempo em que obedecíamos regiamente aos professores, pais, diretores, enfim, quaisquer pessoas superiores em hierarquia e em idade a nós. No entanto, havia uma pequena brecha que surgia a cada momento em nossas mentes, onde a ocupávamos com imaginação ou brincadeira, para atenuar a rigidez que nos era imposta. Nem o sabíamos, mas fazíamos de forma inconsciente, embora não raras vezes sofrêssemos as consequências.

Naquela manhã, não conseguia ouvir uma palavra do que a professora dizia, mas observava o seu jeito engraçado, a sua voz rouca, o seu olhar instigante, como se a todo momento, fizesse acusações irreparáveis. Estava vestida com uma blusa de gola alta, num vermelho forte, que lhe acentuava a pele clara, emoldurada nuns olhos negros e grandes. O cabelo, invariavelmente, preso para trás, num meio-coque, que aumentava-lhe ainda mais a testa, que me parecia interminável. Por cima da blusa, um casaco meio curto, acinturado, tecido assemelhado a lã, pontuado de pequenas pintas mais claras,compondo com a saia justa, que lhe vinha até os joelhos, na verdade, um pouco abaixo. As pernas meio finas, ajustadas em meias de náilon, com uma risca de costura atrás, como se usava na época, compondo com o sapato de verniz, salto alto, desenhando imagens no chão enquanto passava de lá para cá. Tudo que eu via, colocava no papel, grosseiramente, através de desenhos que tinham por motivo a professora, os colegas, as meninas da frente e assim, mostrava a todo momento, para os mais próximos, imaginando que jamais seria pego em tal gracejo. Todos riam sem cessar, revelando aos grupos mais afastados que a história era boa.

Quando acabou a aula, saímos a resfolegar, batendo os cotovelos, correndo como um bando de pássaros soltos da gaiola, chocando-se sem rumo, quando ouvi o meu nome, de forma sonora e altiva. Parei, lívido. Não era o momento de ser chamado, muito menos por ela, naquele jeito tão solene, pondo-me os olhos esticados, como se analisasse cada veia de meus braços. Dei alguns passos, meio atrás da turma, que já desaparecia no pátio. Ela encostou-se na porta e esperou que eu me aproximasse. Pediu, não, na verdade, exigiu que eu voltasse para a classe. Voltar? Mas era hora do recreio, como dizíamos. Não, já passara a aula. Agora, eu era livre. Pois ela insistiu, categórica: – volta para a tua escrivaninha e traze (ela usava o imperativo de forma perfeita) os desenhos que fizeste.

Estremeci. Minhas pernas finas bambolearam nos sapatos. As meias alargaram, caindo nos calcanhares. Minha boca se tornava seca, a voz não saía. Os cotovelos se enrijeciam e a professora tornava-se naquele momento, uma figura descomunal, extraordinária. Ela repetiu a frase, então dei alguns passos para trás, meio que me afastando, olhando de soslaio, vendo pelas janelas uma nuvem colorida de meninos que corriam para todas as direções, numa agilidade em que eu gostaria de estar incluído. Doía-me a alma. Na porta, algumas meninas se cutucavam, observando de longe, a cena. Uma delas, aquela do laço rosa, como se adivinhasse que eu a desenhara também, olhava-me com ar de censura. Dei mais alguns passos e passei por minha mesa. Voltei, abaixei-me e peguei da gaveta, que ficava mais embaixo, as folhas de desenho. Minhas mãos tal como minhas pernas tremiam. Então tive uma idéia genial. Talvez desse certo, não sabia. Mas não havia outra saída. Juntei as folhas, uma após a outra, e as levei com cuidado, ante o olhar intransigente da professora. Tinha a impressão de que quilômetros nos separavam, tal era a dificuldade de chegar até ela. Podia contar as lajotas coloridas, seus triângulos e outras figuras geométricas, simetricamente compostas. Quando cheguei, ela esticou a mão cheia de unhas vermelhas.

Mas antes de entregar-lhe, disse, com a mais disfarçada sinceridade: – fiz o que a senhora pediu na aula passada.

– O que eu pedi? – questionou, indignada.

– Uma crônica da turma, só que através de charges. Quer ver?

Ela me encarou de um jeito tão estranho, que pensei que fosse me pegar pelo pescoço, segurar-me junto à parede e levantar-me pela gola branco-anil da camisa. Depois, desviou o olhar e com displicência segurou as folhas. Examinou a primeira, a segunda, a terceira, na qual pude esticar o olho e ver que se tratava do esboço dela. Foi aí que ela parou por um segundo. Em seguida, me perguntou: – é assim que tu me vês?

Nem sei muito bem o que falei, ou se realmente disse alguma coisa. Acho que balbuciei e meus olhos revelaram tudo de uma vez, naquela mistura de medo e vergonha. Logo retomou às demais folhas e no que parecia uma avaliação, sentenciou, precisa: – Então está bem. É uma crônica, pois quero que faças mais do que isto. Quero a aula de hoje explicada por estes personagens. Eu arregalei ainda mais os olhos, eufórico, mas antes que eu fizesse qualquer gesto de aceitação, ela prosseguiu: – Mas agora, no intervalo. E tem mais uma coisa, tens que desenhar a ti e tu vais ministrar a aula.

Tentei arguir que estava com fome, que precisava descansar no intervalo, que devia pensar no que ela havia explicado na aula, para poder por em prática e se finalmente, sugeri fazer o trabalho em casa. Não havia alternativa. Era ficar no intervalo e obedecer ou ir para casa e voltar no dia seguinte com a mãe a tiracolo. Optei pela primeira. Inventei uma história de verbos, que não tive tempo de acabar. Meus colegas prosseguiam no alarido lá fora. As meninas se afastaram e conversavam em grupo. Uma que outra espiava pela janela. A professora também saíra e eu ficara ali, fazendo uma história que não sabia muito bem o enredo. Mas o que teria chamado a atenção na figura que eu fizera dela? Será que era...ah, devia ser, mas quem saberá algum dia? Quando todos voltaram, a aula prosseguiu e ela parecia ter-me esquecido. Fiquei com os desenhos, a história e o castigo.

domingo, agosto 30, 2015

AS VÍRGULAS DE ANTÔNIA

Para que servem as vírgulas. Se nos detivermos com atenção nas minúcias, observamos que há dezenas de usos, nos quais extraímos da mente, como apêndices desnecessários da linguagem, a não ser para respirarmos com mais tranquilidade. Entretanto, gramaticalmente, poderíamos falar em intercalações, tais como as do adjunto adverbial, da conjunção, ou de expressões explicativas, bem como nos apostos ou no uso após o vocativo, e o que é mais corriqueiro, nas enumerações. E aqui elas se fazem valer, altivas, imponentes, revelando aos incautos a força de seus significados e significantes, mostrando o porquê de suas inserções.

Mas na verdade, estas funções gramaticais não despertam curiosidade em nosso discurso cotidiano, ao contrário, nem percebemos a sua localização, seu uso adequado ou indiscriminado. Via de regra, respiramos saciados, no linguajar afoito de quem, quase sempre, tem pressa absoluta. E lá vai vírgula. Ao menos que sejamos especialistas em linguística, damos conta de suas funções e qualificamos suas determinações. A nós, pobres mortais, interessa-nos, quando muito, o conteúdo, o texto subjacente ou o ponto final. Este último, absoluto, austero, próprio, poderoso. Deixando pra trás qualquer vírgula ou interrogação mais arguta. Encerrando o que nos parece enfadonho, perigoso ou impróprio. Talvez porque não nos atenhamos às indagações que a vida nos dirige e passamos o rodo de graça nos momentos mais simples, mesmo que recheados de novidades e reflexões. Queremos o ponto final e com ele outros pontos, outras procuras, outros caminhos, sempre atentos ao fim, ao “the end”, “se fini”, ao encerramento, ao fim propriamente dito para começar tudo de novo. Esta é a angústia atual do homem, o homem que consome o tempo sem viver, que reclama das horas escoarem-lhe pelas mãos, como mercúrio de termômetro quebrado. Não percebe a plenitude dos acontecimentos mais puros, mais sensíveis e íntimos de sua existência. Talvez precise parar apenas, desapegar-se dos compromissos fugazes e desnecessários (ou apenas convenientes ao padrão inspirado por uma sociedade consumista e falsa de valores) e projetar seu pensamento e todo o seu coração nas coisas mais simples e proveitosas, essenciais e menos pontuais. Quem sabe, devesse o homem absorver-se do lazer e encontrar prazer em acontecimentos simples do cotidiano, sem deixar-se levar no lodaçal poluído da mídia, padronizando mentes pelo senso comum, produzido para rotular e criar necessidades alicerçadas em valores mercadológicos. Um mundo avesso ao passo amiúde dos velhos, às mãos integradas dos que oram, à mente livre dos que param e meditam, à fragilidade dos meninos de rua, à loucura dos famintos. Talvez pessoas que não se deixem seduzir apenas pelos grandes acontecimentos, mas que extravasem seus sentimentos nos cantos dos pássaros, no grito insistente e intenso do bem-te-vi, no gorjear esquisito da alma de gato em seus contatos diários no amanhecer do dia. Talvez estas não pontuem acontecimentos transitórios, mas cultivem o sabor dos presentes que a natureza via de regra oferece a quem faz parte dela. Apenas.

Tal como as vírgulas e suas pequenas interrupções, que nos instigam a ver nas palavras, mais do que seus signos representam, mas desvendar seus mistérios, desencadear significados, encontrar no contexto a vontade prenhe de saber, de descobrir, de vivenciar o que o outro apresenta. O que nos diz. Não apenas o ponto final, não apenas o encerramento, mas linha por linha, descrevendo cada sensação, cada matiz novo, quase tonalidade, como sons musicais e cores tingindo o mundo diverso que se apresenta no texto.

Quem sabe o seu uso amoroso, delicado, exacerbado como uma paixão fulminante e arrebatadora. As vírgulas de Antonia. Assim ela veste as palavras e anotações e títulos e autores e as remete ao contexto, bem como ao leitor do produto que está acessando. Ela gosta das vírgulas, mas gosta mais ainda dos acessos, das maneiras sutis de informar, do jeito delicado e suave de integrá-las ao contexto, usando e abusando de suas qualificações, sentindo-as como parte integrante da amostra, sem restrição, mas ampliando o conhecimento da informação.

Talvez mostrem o seu frisar a vida com calma e cuidado, o seu passar cauteloso e preciso, alcançando a plenitude do encontro, da interação com o outro, muito mais do que simples considerações técnicas. Para que servem as vírgulas de Antônia? Para chamar a atenção, para mesclar sentimentos, para adocicar as regras. Tal como o cajado sonhado do Caminho de Santiago de Compostela, ela as usa como efeito agregador e até enfeite. Um adorno útil no caminho que vira ponte. Um sorriso aqui, um piada ali, um caso do passado e a história se desenrola recheada de vírgulas, sem pontos, a não ser reticências para um novo recomeço. Sem ponto final, somente vírgulas. As vírgulas de Antônia.

Que importam os apostos, vocativos, advérbios? São as vírgulas que absorvem delicadamente o grande mundo da informação e o fazem com cuidado, esmero, atenção. Afinal, as vírgulas estão aí, para as pequenas coisas, separando e juntando acessos, intercalando assuntos, mesclando títulos, identificando autores. São as vírgulas de Antonia. Não pontos finais. Pontos? Só os de acesso.

(Crônica que tenta metaforizar o nosso relacionamento com o mundo e o outro, alicerçado em apreender as coisas simples, para viver intensamente. Para tanto, lembramos das vírgulas, como ponto de intercalações e de encontros. No curso Capacitação e Gestão da Qualidade em Bibliotecas, cujo módulo Representação Descritiva pelo AACR2 , tivemos a honra de ter como ministrante a Profa. Antônia Motta de Castro Memória, as vírgulas foram “contestadas” em tom espirituoso, em vista do sentido gramatical, nada que devesse ser revisto, porque estavam em absoluto acordo com as regras do código. Mas a tal “discussão” das vírgulas me levou a imaginar esta crônica.)

sábado, agosto 22, 2015

Na fazenda

Ajeitou os documentos velhos e ficou olhando pela janela, perdendo os olhos nas montanhas, observando os cascos dos animais, mastigando os campos sem vida. Melhor fugir da fazenda e desaparecer pra sempre das lidas rotineiras. Bambaleando pernas, perseguindo alemoas nos salões de outono, pisoteando as terras vermelhas rachadas pelo vento. Pudera varrer consigo as lembranças, os pequenos achaques nas contas do bar, os muitos acessos de cólera na imensidão das noites vazias. Melhor seria escolher apenas as estrelas pintadas no céu, descobrir as vida faceira nos açudes de banhos gelados, afujentando a saudade sem dor, abrilhantando o que sobrara de ar. Mas não, as lidas na fazenda, o velho passeio de botas engolindo bombachas, o peitoril amassado da janela esperando conserto, o fustigar dos cavalos nos açoites  de mãos violentas. Deveria persistir na mesma ladainha dos tempos idos, do despertar na cidade e amanhecer no campo. Tal como na época em que pensara crescer dentro de si a força e virilidade do macho erguendo o império. Um império que hoje se iguala ao braseiro apagado, acalentado pelo assopro frágil do velho simplório, que se vangloria do churrasco ardendo e das costelas doendo, dos quadris emperrados, dos joelhos dobrados na frente dos anos. Melhor seria viver a vida simples, sem o chafurdar dos "jipes", batizados nas lamas represadas em dias de temporal, avalizado por amigos endinheirados, vestidos de couro e camisetas rolê, sorrindo dentes brancos recém produzidos e mastigando a grama que lhes suga nos cantos da boca. Ou então beber do uísque os últimos sinais de lucidez e voltar molhado pra casa, pra beira do abismo, sentindo o frio coçar de leve as costas e não ter ninguém para amenizar a dor, a não ser o lençol elétrico. Mas que fazer se a vida no campo não corresponde mais à placidez do olhar, a natureza da criação, o fascínio das luzes e sonoridades do dia? Não assim, perto da alma, quando estavam juntos e pensavam arregimentar a vida a partir de suas escolhas. Que nada, tudo caiu no vazio, na falta de sentido, no alvorecer de amigos de todas as searas desfrutando apenas o consumo de seus desejos. Pudera voltar à solidez dos  sentidos, à veracidade das palavras ditas e dos dizeres ouvidos, das amenidades das lembranças e das buscas no futuro, do viver junto e solitário, sem mistério ou mentira. Só que nunca vivenciou o que pensa e a fazenda ou a estância como seu pai dizia, não passara de um subterfúgio da vida fácil e fabricada, sem grandes objetivos a não ser dispor dos prazeres do poder e estar, sempre olhado, sempre vigiado, sempre apoiado, sempre servido, construindo e destruindo o império. O físico e o interno, aquele que somente sua alma podia edificar.    

sábado, agosto 15, 2015

PEQUENA CRÍTICA SOBRE O FILME A VIDA NO PARAÍSO (Så som i himmelen)

Certamente há centenas de críticas e resenhas sobre o filme “A vida no paraíso”, dirigido pelo sueco Kay Pollak, mas há sempre um aspecto a explorar e nunca é demasiado se falar de um bom filme. A vida no paraíso é um destes filmes em que os personagens são envolvidos na trama existencial de suas vidas, tão pacatas, mas borbulhantes de problemas e confrontos numa sociedade machista da pequena cidade em que vivem. É para lá, que o maestro famoso volta, Daniel, o protagonista, retomando uma busca que sempre se propusera, talvez de forma inconsciente. Uma retomada ao passado, à vida simples e também cheia de contradições desse lugarejo, aliás, o lugar onde nascera. Lá vivera os primeiros anos de sua vida e logo se mudara para a cidade grande, para tornar-se um grande maestro. Após uma transformação física e espiritual, volta à cidade natal, aos costumes, aos velhos conflitos. Não há nada aqui relatado que possa tirar a surpresa do filme, pois logo no início da película, surge a causa principal de seu retorno à cidadezinha, o qual não foi aqui explicitado. De todo modo, resta-nos ressaltar este retorno como um ajuste de contas pessoal, uma constatação que as coisas permanecem como eram e que as pessoas não mudaram, nem mesmo ele. Apenas assumira uma qualidade intelectual que talvez a maioria ainda não alcançara. Percebera que o amigo de infância continuava tão agressivo e truculento, e que certamente todos prosseguiam com suas singularidades internas, sem grandes avanços. No decorrer da história, organizando o coral em que as pessoas do lugarejo participam, a sua presença vai influenciando na vida de cada uma, cuja possibilidade de mudança se torna mais próxima a partir de suas ideias. Na verdade a mudança interior já está imbuída em suas mentes, dái o conflito interno, a tensão exterior, o desejo de enfrentar novos rumos e finalmente os avanços. Essas possiblidades tranformam a fisionomia da cidade, a trajetória de cada cidadão que se conhece e participa daquele clubinho outrora fechado. É um filme lindo, sensível, capaz de emocionar e de fazer-nos refletir na capacidade de crescimento que temos a nossa frente e muitas vezes, ou na maioria da vezes, precisamos de alguém para apontar-nos o caminho. Para mim, aí está a maior qualidade do filme. O protagonista de A vida no paraíso é interpretado por Michael Nyqvis, um grande ator, que já havia trabalhado na comédia Bem-vindos. Outros autores que participam com especial competência são Frida Hallgren, Lennart Jähkel, Ingela Olsson e Niklas Falk. É um filme, como citado, sueco, do ano de 2004 e foi indicado como melhor filme estrangeiro em 2005. Vale à pena embrenhar-se pelos meandros da sensibilidade e do afeto verdadeiro, onde pessoas comuns transformam a sua realidade e a dos demais.

terça-feira, agosto 11, 2015

APONTAMENTOS NO SÓTÃO

Passei a noite descobrindo coisas novas. Percorri o corredor imenso da casa, subi as escadas e parei no sótão. Como toda peça meio escondida, não passa de um buraco com teias de aranha. Queria achar um livro antigo, de meu pai, um tipo de atlas, mas que tenho certeza, além de mapas, havia anotações lá. São elas que procuro. Anotações provavelmente a lápis, meio apagadas, rasgando a folha do outro lado, amarelada e fina, puída ou furada por traças. Sei que devo achá-las. Anotações. Anotações que contam histórias, talvez muito mais profundas dos que as contadas nos livros. Verdadeiros registros, quase certidões de nascimento. As anotações de meu pai. Mas as horas escoam rapidamente e minhas pernas estão cansadas. Por que não coloquei as malditas meias elásticas. Por certo, teria pelo menos duas horas sem as terríveis dores da circulação. Pernas que envelhecem, que incomodam e impedem meus gestos. Mas nada me fará desistir, nem esta cãibra que insiste em retorcer os dedos do pé. Numa pausa, levantarei deste emaranhado de papéis e farei alguns movimentos. Vou até a janelinha pequena que dá para a frente da casa. Espiarei as pessoas lá embaixo. Certamente não serão muitas. Mais certo que o deserto humano predomine pelo adiantado da hora. Pelo menos, descansarei. Darei meia volta, investigarei objetos guardados há tanto tempo e que para mim não tem valor nenhum, muito menos, emocional. Quando voltar, investirei nas caixas de documentos. Muitos papéis, contas antigas, além de fotografias. Meu pai costumava guardar os retratos, como dizia, nestas pequenas caixas. Se eu me deter um pouco nelas, certamente acharei algumas fotos de minha infância. Nem sei se as quero ver. Estou tão diferente agora! Fazem parte de um passado de inocência que já não existe. Mas vou adiante. Me instalo na janelinha. E o que vejo? A luz amarela do poste. Um cachorro que se arroja entre a fonte sem água e o banco de pedra abandonado. Está frio e ele se encolhe, o rabo abaixado, o focinho rastejando o chão. É um vira-lata preto. Não, não está sozinho como pensava. Um vulto se esgueira sob a marquise, visível pela chama do cigarro. Parece tranquilo, sem se mover, acostumando-se provavelmente com o frio que aumenta. Talvez espere alguém. Um destes pederastas que aluga homem para realizar suas fantasias obscenas. Homens sem Deus. Ou apenas um marginal, esperando o comparsa para arquitetar um crime. A calçada brilha na luz amarela e pingos de chuva se espalham intermitentes. Pingos grossos com tempo certo para se espalharem. O homem agora, movimenta-se em direção à esquina. Estranho que pare onde não há proteção. Examina alguma mensagem no celular e aproxima-se do prédio da farmácia. No ultimo andar, uma luz fosca se acende. Alguém aproxima-se da janela, espiando através da cortina. Talvez tenha perdido o sono ou algum barulho o alertou. Talvez seja o tal vadio que o espera. O homem do cigarro se encosta no prédio, sem chegar à farmácia fechada, apesar do cartaz de 24 horas. De vez enquanto, olha para cima, como se procurasse alguém do último andar. O vira-lata levanta a cabeça desconfiado de alguma coisa, mas logo, volta a se espichar, deitando-se na lajota. Uma pata traseira estremece, como se sonhasse. O visor do celular do homem brilha. Ele abaixa a cabeça, parece não se importar com o alerta. Guarda-o no bolso. Estica o tórax e olha para cima, provavelmente para o néon da farmácia. A luz fosca do último andar se apaga. Eu que ainda continuo nesta inércia, meio perdido, sem saber se continuo a minha busca. Às vezes, tenho vontade de desistir. O mais lógico seria encontrar as anotações nas caixas de documentos, mas meu pai jamais faria isso. Sei que devo investigar, decifrar um perfeito quebra-cabeças. Coisas do velho. Preciso pensar com a lógica dele. Mas de qualquer modo as coisas não são como parecem, nem pra ele, nem pra mim. Passava horas efetuando cálculos. Tinha consigo que a vida era um teorema matemático. Para tudo, havia uma estatística, um percentual que justificasse o fato, uma conta de chegada. Nada escapava de sua elucubração, não somente quando se tratava das contas do dia a dia, o que seria natural, mas até mesmo o rendimento escolar, a mudança do clima, a evolução dos costumes. Usava expressões como: “70% do descarte do lixo vai parar na lagoa”, mesmo que não correspondesse à realidade, ou “já lhe disse, Homero (falando com seu irmão), 25 % do mecanismo do carro depende da máquina, o resto é só com o motorista”, ou “a estatística diz que o homem só envelhece quando começa a perder os dentes e não se importar com isso”. É, ele tinha dessas coisas. Tudo se resumia a percentuais e estatísticas. Acho que até o carinho que dispensava a nós. Particularmente, achamos que tudo a que se referia tinha um fundo de verdade ou estava absolutamente correto. Com o passar do tempo, também este percentual foi caindo e percebemos que não passavam de expressões vazias, expletivas, para dar veracidade aos conceitos. Meu pai era assim, um homem estranho, mas extraordinário. Conseguia em poucas linhas descrever o que levaríamos páginas para explicar. Além das estatísticas, dispunha de um recurso de sinopse muito eficiente. Quase um recurso estilístico. Ah, se encontrasse as anotações, por certo, entenderia bem melhor o que pretendia dizer. Se bem, que isto pouco importa, hoje. Ele não está entre nós, deixou-nos por herança essa complexidade de ideias, fazendo-nos percorrer caminhos que não levam a nada. Talvez, em alguma lugar, em alguma dimensão, esteja rindo, observando nossas buscas vãs. O homem não está mais encostado no prédio da farmácia. O cachorro também sumiu e a chuva parou. Até o frio amainou um pouco. Não sei se ainda terei tempo para procurar. Daqui a pouco, começa a amanhecer e eu terei que sair. Não quero ficar mais um dia nesta casa. Estou cansado destas paredes velhas, deste quarto escuro, escondido no fundo do corredor, deste sótão que não passa de um buraco de teias de aranhas. Às vezes, me sinto perdido. As pernas estremecem e meu coração tamborila. Nem sei se estou doente, ou só angustiado. O que sei é que preciso sair o quanto antes deste labirinto. Um labirinto que me acolheu por tantos anos, mas que agora me parece sem saída. Quantas vezes, a chegada era melhor que o ponto de partida, uma vitória, conforto da alma. Havia muitas portas e muitas descobertas, muitos sóis para brilhar e luas para encantar. Hoje, apenas um túnel escuro. As árvores foram crescendo em torno, raízes destruindo os caminhos, os muros se fechando e as brechas cada vez mais estreitas. Por vezes, me esgueiro entre estas paredes vazias, mas sinto que elas se aproximam de meu corpo magro e restringem meus movimentos. Se meu pai estivesse aqui ou se encontrasse as malditas anotações, por certo teria de volta o conforto que perdi, a paz, a tranquilidade. O labirinto se libertaria das amarras, das raízes, do abafamento sufocante e eu seria livre para a descoberta. Mas cada vez me afundo mais nesta busca vã. Não sei qual será o meu fim. Batem à porta e meu coração estremece de novo. A ansiedade limita meus movimentos. Quem viria, a esta hora? O que procuram em minha casa, esta casa que foi de meu pai, de minha família, que tem tantos segredos. Quem me procurará? Subo as escadas correndo, falseio o pé no último degrau, mas não desisto. No sótão, posso espiar sem que me vejam. Quem sabe identifico quem bate à minha porta? Espicho-me através da vidraça, empurro o postigo com o braço esquerdo e curvo meu dorso para frente, tentando ver a figura lá embaixo. Batem novamente. Não sei o que sinto, se é aflição, medo ou curiosidade. Meu coração alucina. Alguém lá embaixo, apontado pelo azul do visor do celular. Parece que usa boné ou uma boina. Preciso descer, não admitiria esta indecisão. Por certo, decretaria uma frase definitiva sobre o tema: “80% dos homens não toma as atitudes corretas na vida”. Fecho a janela devagar e desço rapidamente, esquecido da dor no pé. Sei que devo agir de modo severo. A vida não arrefece o coração de ninguém, ao contrário, torna-os duros e cruéis. Aproximo-me da porta da frente. Ali o presumível inimigo, mas se não abrir, nunca terei certeza de nada. — Procura alguém? — Conforme o combinado — aponta um número bem grande no visor do celular. — Não sei, não me lembro. — Como não se lembra? Não foi tu que ligou? De quem é este número? — Meu, sim, este número é meu. — Pois então, cara, posso entrar? Já voltou a pingar. — Tu tava embaixo da marquise? —Claro, tava ligando pra ti, mas deixa pra lá, vamos esquecer esta história. Sabes pra que eu vim, né — esboça um sorriso cúmplice. Fico estupefato, mas deixo que entre. Quem sabe esclareço que ainda não encontrei nada? Entra, à vontade e senta-se na numa poltrona. Esparrama-se como se estivesse em casa. Livra-se num salto da jaqueta e em seguida da camiseta regatas, muito justa. Olha-me de um modo estranho, quase indecente, como se tentasse me seduzir. — Por que faz isso? — Tens que ver o material. Gostasse do meu corpo tanquinho? — Por favor, não sei do que tu falando? — titubeio, afastando-me, balançando os braços ainda atônito. Uma leve tontura me atinge e tenho a impressão de que o labirinto aumenta e suas paredes me sugam. Ele se aproxima decidido e me pega os braços com cuidado, sorrindo. Num ímpeto, empurro-o contra a parede. Seu rosto fica transtornado, as veias do pescoço se tingem de vermelho. Parece não entender o que está acontecendo, tanto quanto eu. — Escuta aqui, cara, tu não me chamou? Que tá havendo? É um joguinho novo que desconheço? — dá uma risada maliciosa e complementa — mas eu posso aprender, basta tu me ensiná. Sou bom nisso! — enquanto fala, passeia pela sala, sempre me encarando. Seus olhos brilham, sua boca entreaberta, meio sorriso. — Não tem nada de joguinho ou sei lá o que que tu tá falando. Sou casado, tenho família. Eu só vim aqui pra… — a memória interrompe a minha fala. Ele complementa, atrevido: — Pra transar comigo! É isso que tu quer, não é? — e se aproxima, enquanto me afasto, negando. — Não, não, não. Tu não entendeu nada! — Entendi muito bem, entendi que tu se arrependeu, pois se é assim, me paga o que me deve. Quinhentos pau, aqui na minha mão — estende a mão cheia de anéis e uma pulseira dourada, que oscila perigosa. Veste a camiseta e a jaqueta, enquanto discursa, conformado. —Tudo bem, isso já aconteceu comigo, tem gente que na hora agá fica com medo de se entregá, se é o teu caso, sem problemas, desde que me pague o que me deve. E pode ficar tranquilo, tudo no sigilo. Sou bem pago pra isso! — Eu só vim aqui procurar as anotações de meu pai, me lembrei. Era isso, o verdadeiro motivo por que estou aqui. Ele diria que 70% das pessoas costumam ter este tipo de reação quando desconcertadas. – Nem me importo com o que teu pai diz, só quero o que é meu. Se liga, cara, não vem com caô pro meu lado! Pode passar a grana, vamo lá, meu parceiro. Preciso acalmar-me. Nada me fará pensar diferente. Meu pai tinha razão quando dizia que a gente tem que manter a mente 90% ocupada, os dez por cento restantes ficam para o lapso da memória. É preciso relaxar e esperar. Somente assim temos o poder da segurança. Quando calamos, eles se calam também. Preciso conduzi-lo ao meu objetivo. — Não vamos fazer uma tempestade num copo dágua, rapaz. Sugiro que bebas alguma coisa e te acalmes. Nós somos pessoas sociais, educadas. —Ah, to entendendo a tua. Tu gosta de conversar. Tudo bem, se foi pra isso que me chamou. Tem caras carentes, que precisam se desabafar com alguém, então contratam um michê — percebe a minha dúvida e esclarece — um profissional do sexo, entende? Foi ai que tive a ideia redentora. Meu coração dispara, feliz. Meu pai tem a resposta. Sim, lá no sótão acharei a saída, destravarei os caminhos do labirinto. Não preciso de muito, mas se encontrar as anotações, a verdade virá fatalmente. Vou até a escada e, por um instante, volto-me em sua direção. Está em pé e me espera. – Tu não me ofereceu uma bebida? Tá na hora. — Suba. Levo um uísque com gelo. — Lá em cima? — Do lugar, onde te vi. É no sótão. Lá, podemos conversar. — Pra mim, tudo bem. Mas já to te avisando, se passar do meu tempo, paga o dobro, tá ligado? Com um meio sorriso, concordo. Quando chego, ele está agachado mexendo nos livros. Deve ter revirado as caixas, buscando algo. Talvez, tenha me espionado, para descobrir a verdadeira face de meu pai, tudo o que procurei durante toda a vida! Faço barulho, para que me veja, ele se volta e sorri, sem constrangimento. Sente-se à vontade naquele ambiente, muito mais do que eu. Perguntei, de imediato: —Que está fazendo? –Nada. Dando uma olhada nestes trecos aqui. Estes livros são tudo de religião? –Não, são de meu pai. Por favor, não mexe nestas coisas. Eram dele, só ele tinha acesso. —Tudo bem, não tenho a menor queda pra religião. — Eles são repletos de anotações. Meu pai costumava fazer verdadeiros tratados nos livros que lia. Estou procurando-os há muito tempo. —Só vi coisas de religião. Teu pai era pastor? —Ele fazia anotações. Tu achaste alguma? ele costumava contar fatos de sua vida, apontar-me caminhos corretos. Ele jamais receberia alguém assim… em plena noite. Ele se aproxima sorrindo. Sinto o cheiro cítrico da loção pós-barba. Tento afastar-me, mas as pernas pesam e meu corpo todo estremece. Meu coração acompanha o compasso de minha confusão mental. Ele debocha, dissimulado: — Teu pai não receberia alguém assim… como eu? — toca-me suave no rosto, sempre sorrindo — mas tu gosta, né? Uma sensação estranha me envolve, sinto-me fraquejar e meu corpo se abala, sentindo a respiração forte circulando meu pescoço, minhas costas, um resfolegar na nuca, na orelha, seus lábios próximos, muito próximos, sua voz ofegante. Meu sexo se agita, intumescido. 80% dos puros de coração caem em desgraça, na frente dos ímpios, quando sua fé é insuficiente. Então, o empurro em direção à vidraça, derrubando uma pilha de livros. Ele se desequilibra e se segura como pode, no parapeito. Grita com fúria e penso que vai me agredir. Mas se contém. Sabe que deve ir embora, mas pretende alguma coisa, por certo, vingar-se de minha recusa. — Tu procura um livro que teu pai escreveu nos cantos das páginas. — Sim, eu o procurei o tempo todo. Eu não encontrei este livro. — Um destes aí, o sem capa — aponta para a pilha desandada de livros sob a janela. Não tenho coragem de me aproximar, de pegar o livro, de encontrar os apontamentos. Ele me conhece e ridiculariza esta dificuldade. Às vezes, penso que meu próprio pai está ali, também me acusando. Logo, a realidade nojenta de nossa vida mundana se escancara a minha frente. — Aí só fala em pecado, morte, temor a Deus. Me explica, tu que é crente, como é que pode amar um Deus que se tem medo? Mas deixa pra lá, o fato é que entendi tudo, malandro, a letra do livro é tua, tu escreveu essa merda. Não tem nada a ver com teu pai. Eu peguei a tua agenda lá embaixo, queria verificar se tinhas o meu número, é a mesma letra. —Cala a boca! Não diz bobagem! Eu só queria constatar o que meu pai escreveu. Ele estava certo. Ele temia a Deus! — grito em absoluto desespero. Meu coração está revolto em dor. A noite fica escura em minha mente e meus olhos tingem de sangue, como se todas as veias fossem explodir. Sinto um calor que me envolve a nuca e o pescoço e o suor gelado goteja o tórax e as costas. Ele prossegue, com raiva: — Péra ai, eu te conheço, cara. Volto para a janela, empurrando os livros com os pés e, quase sem querer, desvio o olhar para a vidraça. Vejo algumas rajadas no céu, muito leves, uma certa brisa balança as árvores já visíveis. O dia já vai clareando. A pessoa do último andar fecha a janela. Provavelmente, se prepara para o trabalho. Uma pessoa decente. De Deus. Por um momento, sinto um ódio sinistro por este cara que está aqui, no sótão de meu pai, dando palpites sobre suas anotações, como se conhecesse a minha vida. Mastigo a dor que me consome e me afasto da janela. Dobro os joelhos para pegar o tal livro que ele indicou, abro-o e fico folheando-o, mas não vejo nada, nenhum apontamento. Sei que mente como o inimigo. Ele bebe e saboreia o uísque devagar como se fosse o último de sua vida. Mexe indelicado, com os dedos, o gelo no copo. Age assim para me agredir. — Tenho um amigo que se converteu por tua causa. Tu mudou a vida dele, tirou ele do vício, deixou até de ser garoto de programa. Levou ele pra igreja e depois se tornou teu amante! Agora me lembro, sim, tu é pastor! Tu inventa esta história de anotação de teu pai, porque tu não tem coragem de assumir, quer a aprovação dos outros. Evito responder. Minha vida é limpa como a fonte e expressa a verdade absoluta. Mas sua mente é deturpada e o desvia do verdadeiro caminho. — Vai embora, por favor. — Tu tem vida dupla, cara. Queria transá comigo, mas abomina tal coisa. O pior de tudo é que tu dá testemunho. Então se arrependeu. Caralho, o que tu quer afinal? —Sai daqui, eu não posso, eu não posso, eu não quero! Ouço a voz de meu pai, seus ensinamentos! Sou um pastor, um homem de bem. Foi ele que escreveu tudo, que ditou as regras, eu só obedeço! Ele se aproxima, quer o dinheiro, eu sei, pois que seja pago pelo mal que cometeu. Que se afaste de mim. Por que está tão próximo, sinto seu perfume quente e enjoado, e um ardor que me percorre a barriga, que me atinge as pernas, que me bamboleia a mente. Por que esta intimidade lasciva e intrigante? Por que este abraço que me acolhe, me aconchega. Por que o diabo me tenta? Afasta-me com arrogância. Vejo seus olhos ávidos por violência. Uma garra prende minha cabeça, que é batida uma única vez contra a vidraça. Caio numa poça de sangue, a janela estilhaçada. O nariz entope e a visão turva. — Pastor filho da puta, me dá o meu dinheiro, se não tu vai morrê, agora mesmo! Vou te jogar por esta janela e tu nunca mais vai bisbilhotar a vida de ninguém! Peço que pegue a minha carteira, no bolso de trás da calça, não consigo levantar-me. Ele obedece rápido, tira mais do que devia. Afasta-se praguejando, descendo a escada e batendo a porta. Estico meu corpo sobre os livros e pego o exemplar sem capa. Agora tenho certeza de é o de meu pai, suas anotações estão ali, finalmente as encontrei! "100% das atrações físicas entre homens é produzida por uma reação involuntária.” Uma luz tênue envolve o sótão.

sexta-feira, agosto 07, 2015

José: um homem de fé


Quisera ser como tu, José. Tiveste a vida devassada pela sociedade patriarcal e machista da época. Carpinteiro que eras, carregaste pedra, para sobreviver. Lutaste contra as injúrias, o preconceito, o ciúme, a dor. Lutaste contra teus sonhos. Mas tua integridade justificou-se no amor por Deus. Um homem de fé. Um homem que superou os preconceitos e derrubou a maledicência. Que honrou a mulher. Que soube ser fiel, quando todos o julgavam, quando ele mesmo temia e a incerteza rondava seus pensamentos; quando a morte da dúvida avassalava seu ser. Um homem de fé. Que soube vencer os medos e discernir entre o que a sociedade lhe tirava e o que a vida lhe entregava de galardão.

Mas como enfrentar tudo isso, se não pelo amor?

Tu amaste, José. E por este amor, sobrepujaste qualquer temor, qualquer discórdia em teu coração. Quantas vezes choraste, José. Turbulências na vida, somente aplacadas pelo anjo a ti enviado. Até que a calma chegou e a mansidão de tua alma alternou a dor com a alegria. Tua sobriedade e honradez te tornaram o pai amoroso que lutou pela vida do filho amado. O medo, as traições te perseguiam, a ponto de precisares fugir para salvar teu filho. E foram tantos os dissabores, que precisaste superar! Por certo, soubeste ensiná-lo! Soubeste transmitir-lhe a sabedoria da paz, da tolerância, do momento certo de agir. Afinal, ficaste quatro anos no Egito para voltares à terra natal. E haja paciência para aguardar o tempo que já não era teu. E quando tudo parecia acomodado e tranquilo, teu filho se sobressaía entre os doutores da lei. Ali perto, à sombra, humilde o procuravas, orgulhoso talvez de o vires tão bem relacionado. Teu coração ordeiro e sábio, no íntimo sabia que ele voaria alto e que o Espírito justificaria em plenitude sua jornada. Por certo, José, não conhecias o futuro, mas teu coração garantia a tua parcela de protagonismo, mesmo ali, apenas na espera de teu rebento. É muito difícil ser como tu, José. Um homem onde a dúvida é aplacada pela fé.

domingo, agosto 02, 2015

QUAL SERIA O ACONTECIMENTO MAIS IMPORTANTE DA SEMANA?

Qual seria o acontecimento mais importante da semana? Talvez escolhêssemos no campo político, na economia, ou na área das ciências, da cultura ou mesmo nos assuntos cotidianos mais banais. Acho mesmo que aí está a resposta a nossa pergunta. Os assuntos banais, corriqueiros, comezinhos, que fazem parte de nosso dia a dia, sem grandes brilhos, oscilar das bolsas ou vultosos negócios. É ali, na nossa rotina que acontecem os grandes temas, as grandes manifestações de sentimentos, de sensações, de usufruir o que chamamos vida, existência, o estar no mundo. E estar é muito mais do que apenas viver, sobreviver, mastigar o dia pelas pontas, levando em conta as tarefas de roldão, sem pensar nelas, sem refletir os próprios comandos ou atividades. Faz-se tudo burocrático, organizado, produzindo caminhos iguais, onde trilhemos com segurança e precisão. Sentimos então o tempo passar rapidamente, porque nos acomodamos aos grandes acontecimentos, nos detemos nas grandes realizações e estas não ocorrem todo o dia, ou para todos. Até mesmo, as chamadas celebridades inventam fatos extravagantes para sobreviverem, para continuarem “celebridades”. É preciso, então, vivenciar as pequenas coisas, maturar o que está ao nosso encalço, sem muita preocupação com o produzir intermitente. Quem sabe observar mais, falar menos, ver no outro e ver em nós mesmos muito mais do que a nossa capacidade visual nos permite. Outras possibilidades, outros objetivos. Ver além. Examinar a beleza das coisas nos detalhes, nos meandros, nos desenhos das figuras que se formam, nas pessoas, nas plantas, nos céus riscados de vermelho ou nos pingos de chuva e frio que nos oprimem. Ver além. Ver apenas com os olhos mais puros do espírito. Parar para ver. Vasculhar menos as páginas policiais e ter mais afã nas páginas de cultura ou de diversão. Ter um olhar enviesado, obliquo, quase dissimulado para as coisas que não aproveitam o nosso espírito. Procurar trajetórias não tão retilíneas, não tão planas, tão diretas, tão cercadas de cuidados. Negligenciar um pouco nos caminhos, para ver o que nossos olhos esquecem, olhando para dentro, centrados em contas, compromissos, inseguranças. Ver o mundo com um olhar mais atento, mais apurado, sem medo e alargar horizontes, encontrar os meios de erigir outras raízes, colher outras frutas, ouvir outros falares, outros matizes. Viver assim, sem compromisso, a não ser com as coisas pequenas, mas que nos dizem muito. Vez que outra, pesquisar as demais, sem renunciar à realidade, mas principalmente concentrarmos nossas energias nos pequenos prazeres, para não perturbar a alma e saber assim, entender o mundo. Viver desta forma, o tempo não passará tão depressa, porque passaremos a ter mais contato conosco, usufruindo o que trazemos de dentro e não nos enchendo de conceitos, imagens e argumentos de fora.

domingo, julho 26, 2015

O invisível e suas previsões





Chamavam-no Capitão. Era alto e magro, usava calças abanando ao vento, revelando os ossos que lhe sustentavam o corpo, mãos grandes, calejadas. Tinha um olhar estranho, enviesado e costumava ficar muito tempo no banco da praça. Alguém perguntou-lhe qual era a atividade que tomava conta. Sorria, os dentes amarelados mastigavam a saliva, engolia em seco e geralmente respondia com outra pergunta. Por que não me deixam em paz? Falava vários idiomas, segundo alguns. 

As pessoas que passavam por ele, pouco percebiam seu jeito displicente, sentado no banco, fazendo companhia às pombas que pululavam, se reproduzindo em quantidade extrema.

Um dia, reparei que estava do outro lado da rua, distante alguns metros do largo onde costumava ficar. Vi que se aproximava de uma banca de revistas e examinava detidamente as capas, como se pesquisasse algum assunto interessante. Ficou ali, parado, algum tempo. Logo aborreceu-se, porque afastou-se um pouco, olhando para o chão, mão esquerda dobrada no queixo, a outra estendida alisando a coxa magra, como se refletisse o que havia lido. Voltou em seguida e deparou-se com a revista que me parecia estar mais interessado.

Encostei-me numa vitrine, sob a marquise da loja, porque começava a cair uns pingos finos e procurei abrigar-me. Não conseguia desviar o olhar da cena. Capitão parecia muito interessado. Percebi que chamou a atenção do vendedor, que nem se dignou a responder, entretido em que estava na faina de organizar uma leva de revistas que chegara. Capitão insistiu, mas nisto chegou um outro freguês, que comprou recarga de celular. Atendeu-o e retomou a atividade anterior. Capitão tornava-se ansioso. A saliva brotava-lhe dos lábios, os olhos fixos, com um brilho alucinado. Até que o homem perguntou, negligente, o que queria.

A chuva aumentou, fazendo com que me abrigasse dentro da loja. Ainda prossegui observando Capitão, do outro lado da vitrine. Um balconista me interrompeu, imaginando que deveria vender-me alguma coisa. Mostrou-me calçados, falou-me em bolsas, cintos ou carteiras. Já não o ouvia, tentando explicar-lhe que estava apenas me abrigando da chuva e logo que amainasse um pouco, sairia. Ele se afastou um pouco, mas ficou por perto, talvez temendo que eu não fosse apenas um transeunte atrapalhado pela chuva. Ainda comentei sobre o Capitão, personagem conhecido da cidade, na sua tentativa de comunicar-se com o dono da banca. O rapaz olhou pela vitrine, mas não deu muita importância ao fato. A chuva batia forte no vidro, embaçando a visão.

Do outro lado da rua, a cena se desenrolava sem qualquer avanço, pois Capitão colocava as mãos na cabeça, enquanto a chuva lavava seu corpo mirrado. Afastou-se alguns metros, voltou decidido, parando na frente da banca. Foi só por um minuto, pois desapareceu logo na enxurrada que levava carros e pessoas à tona, em busca de abrigo e fuga do lamaçal.

O dono da banca de jornais, baixou a porta pela metade, impedindo que a chuva molhasse as revistas e talvez temendo que Capitão voltasse. Resmungava sozinho, juntava o que podia rapidamente e espalhava plásticos , envolvendo jornais, revistas e outros objetos que faziam parte do negócio. Olhei em torno, a loja estava cheia de clientes e os funcionários andavam às voltas com o atendimento. Apenas o rapaz que me perguntara, fingia arrumar alguns calçados na vitrine, para cuidar as minhas atitudes.

Resolvi afastar-me, correndo por debaixo de marquises e entrando imediatamente no primeiro bar que encontrara. A tarde já anunciava seus últimos reflexos sobre as lajotas encharcadas, antecipando uma noite escura que surgia entre os prédios, perdidos na chuva que não amainava. Sentia um certo frio, talvez em virtude dos braços molhados e do peito, anteparo para o restante do corpo, enquanto corria em direção ao bar.

Pedi um café expresso, à beira do balcão. Homens conversavam afoitos, falando via de regra em futebol ou nos últimos acontecimentos políticos que estimulavam a frustração da cidade. O vendedor bateu com o copo no granito do balcão, mostrando que eu estava servido. Talvez estivesse distraído, ainda pensando em Capitão, pois tive um leve estremecimento. Olhei-o meio que censurando, mas não disse nada. Tomei o café em alguns goles, aquecendo o corpo. Fiquei ali, algum tempo, encostado no balcão, sentindo o gelo da pedra nas minhas costas.

Um homem aproximou-se e largou uma maleta bem ao meu lado. Parecia preocupado com o horário, pois examinava o relógio, confirmava com o do celular, perguntou-me as horas e respirou aliviado, certificando-se que o seu estava correto. Pediu um café também, mas solicitou algumas gotas de conhaque, que misturaria no líquido, para aquecer a garganta. Mostrava-se ansioso. Os olhos, vez que outra, se grudavam na porta, como à espera de alguém que encontraria numa emergência. Outro atendente trouxe a bebida, desta vez não era o que me servira. Era um menino ruivo, topete nos olhos, cheio de pintas no rosto. Mostrava-se ser muito conhecido dos frequentadores, pois fazia pilhérias a todo momento com um ou outro, exaltando o time pelo qual torcia e desmerecendo o dos demais. O que me atendera o olhava de soslaio, um tanto irritado. Devia ser o dono do bar e não lhe agradava aquela manifestação, que poderia prejudicar o atendimento. Mas nada dizia, já habituado com as manobras futebolísticas do rapaz. O homem que estava ao meu lado, confessou, em dado momento, quase num desabafo. – Deixei de fumar, faz um mês. Mas, hoje, especialmente, não sei se vou suportar ficar sem nenhum. –Mas se faz um mês, é melhor persistir. Quem sabe, esta aflição passa.

          

Ele me olhou como se estivesse a sua frente um alienígena. Suas mãos Tremiam  e o anel vermelho tilintava no granito. Resolveu pedir um conhaque, agora sem o café, um copo cheio. Olhei de esguelha e me aquietei. A chuva já estava parando e estava na hora de voltar para casa, investir nas ruas alagadas até a estação do metrô. Virei-me no balcão para pedir a nota do café e descuidado, derrubei a maleta ao meu lado. Levantei-a rapidamente, pedindo desculpas. Era pesada, a impressão que tinha é que havia um corpo esquartejado e dobrado lá dentro. Imaginação de escritor, pensei. Mas não pude evitar surpreender-me com a ansiedade do homem que a segurou com as duas mãos, como se quisesse protegê-la de um invasor, no caso, eu. Sua voz soou, gutural, metálica. _ Eu precisava tanto dele, e não veio. Deve ser pela chuva.

Não entendi nada, mas concordei com um aceno. Ele continuava a segurar a maleta, enquanto eu contava as moedas que juntava às notas de reais, para fazer o troco. Pedi um drops e voltei-me instintivamente para a porta. Parece que todos faziam o mesmo gesto, comungando da mesma surpresa. Capitão surgiu à porta do bar, cabelos espichados, pingando nos olhos, olhar caído, de cachorro pedinte, a camisa meio aberta, deixando surgir uns pelos ralos no umbigo escondido, as calças meio arreadas, de pés descalços. O dono do bar gritou, exigindo que saísse imediatamente, mas o meu companheiro da maleta, o impediu com um gesto, levantando o braço em sua direção, quase numa súplica. _Não, preciso dele.
Todos os olhares se fixaram em uníssono naquele homem aflito, que segurava a maleta ao meu lado. Quase perguntei o motivo, mas não é que todos fariam de imediato? Não, houve um silêncio geral. O mundo parou, o relógio juntou os ponteiros, indefinindo o horário, o rapaz ruivo encostou os cotovelos no balcão de pedra, ensismesmado, o dono abriu e fechou a boca, mordendo os lábios sem saber o que dizer. Capitão ficou na porta, como chegara, assim, calado, mas ofegante, respirando fundo, tentando cumprir uma tarefa que lhe tinham encarregado. O homem correu ao seu encontro. Perguntou, afetuoso. _Fez o que lhe pedi?
Uma mulher chegou alvoroçada, esgueirando-se entre a porta e Capitão, temendo encostar-se naquele corpo mirrado e sujo. Quebrou o silêncio, pedindo um refrigerante. Mas logo calou-se também. Esperou o resultado da cena, que se desenrolava.
Capitão explicou em voz sumida, que o dono da banca não lhe vendera a revista, que lhe mostrara o dinheiro, que suplicara, mas nada. Mas a tradução estava ali, na sua mão. O texto todo em mandarim.
O grupo que se acotovelava mais adiante, no outro extremo do bar, comentou, quase unânime: _Chinês? Mandarim?
A mulher examinou Capitão e questionou ao rapaz ruivo porque estavam perdendo tempo com aquele mendigo. O guri não soube responder. Riu um riso forçado, para evitar mais conversa e perder o desfecho.
O homem suspirou aliviado, quando o capitão tirou do bolso uma folha de papel toda molhada e com cuidado, tentou não rasgá-la, detendo-se nos símbolos que a enfeitavam. Antes de guardá-la na bolsa, ainda perguntou: _Mas o que você queria na banca, homem?
_Uma revista. Uma revista pra não molhar o papel. Sabia que ia chover.
A chuva cessara por completo. Capitão sabia o que dizia.


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