sexta-feira, julho 10, 2015

Crônica sobre o filme Mon Oncle

Esticando um olhar mais aprofundado sobre os hilários e às vezes, patéticos personagens de Meu tio, “Mon Oncle”, com a direção de Jacques Tati (1958), observa-se, numa análise, ainda que de forma despretensiosa, características marcantes de personagens que talvez servissem apenas de contraponto para o desenrolar da trama. Na verdade, todo o conteúdo e análise dos diferentes tipos que tecem a urdidura da história já foram exaustivamente explanados em muitos artigos espalhados na rede ou mesmo publicados em periódicos especializados. Fica-nos, portanto uma pequena abertura, um buraco na fechadura, que em algumas vezes passa desapercebido, mas que ao conduzirmos a linha do olhar até o horizonte, acompanha-se, por certo, a trajetória do fio que enverga e sustenta a pandorga no ar. Falo de Gérard, o filho do casal, que ao lado do tio considerado subversivo aos conceitos da sociedade burguesa, e alienado da comunidade familiar, descobre novos horizontes em sua vida rasteira. Ao reunir-se aos meninos do outro lado da cidade, da periferia, montando as varetas de bambu, soltando pandorgas, atravessando caminhos íngremes, atirando pedras, escondidos atrás das montanhas e rindo-se sem parar, ao perceber as pessoas distraídas pelas pedras ou pelos gritos, chocam-se com o poste que lhes servia de obstáculo à passagem. Trata-se de uma alegria genuína, inocente, verdadeira, distante das armadilhas da pseudo-tecnologia ultra moderna, do padronizado exercitar- se na casa, do inalterado programa de todas as manhãs e noites, seguindo como de praxe, o senso comum. O progresso como fonte principal de satisfação, a ostentação, o luxo, a hipocrisia, a frustração, a humilhação, a padronização de procedimentos, o resvalar na mediocridade cotidiana. E lambuzar-se dela. O tio, Senhor Hulot, por seu lado, conduzindo o menino, conduz a sua própria identidade, evitando ser aviltada pelo emprego oferecido pelo cunhado. Emociona-se com a elegante inocência da jovem andando de bicicleta, com o sorriso generoso do sobrinho e seu olhar arguto e perspicaz, com a vida que brota lá fora. Ao ingressar no mundo sectário, dividido sem partilhas, não se ajusta aos padrões identificados pela sociedade. Marginaliza-se, mas aquieta o coração, quando observa que o sobrinho aprendeu alguma coisa. Deixou a pele vibrar com uma lufada de vida, que lhe permitira aos poucos abrir o coração. Quem sabe não influenciará os da casa, desde que suas mentes e corações não se acovardem com o conforto aparente de quem se sente assim protegido e forte?

domingo, julho 05, 2015

OS TEXTOS MAIS LIDOS ENTRE 28/06/2015 a 05/07/2015

A seguir os textos mais lidos no período de
Em algumas postagens durante o mês, disponibilizarei aqui a relação dos textos mais lidos no período de uma semana ou mesmo no de um mês. Agradeço aos internautas o grande número de acessos que a cada dia aumenta mais a estatística. Fico feliz em saber reconhecido o meu trabalho e deixo aqui o convite para que comentem, na medida do possível, o texto que leram. Aceitarei com carinho as suas críticas.
1º lugar: Metáforas cruéis : desqualificação das mulheres e negros
2º lugar: Não estava lá
3º lugar: O professor e o golpe
4º lugar: Eu e os carros antigos
5º lugar: Desafio : salve as florestas
6º lugar: Então, me explica
7º lugar: Vida empalhada
8º lugar: Saco de plumas
9º lugar: Sorri
10º lugar: A rebeldia dos guris e gurias da LES

quinta-feira, julho 02, 2015

Não estava lá

Como não sai de casa, não tive dificuldade em abrir a garagem e me deparar com dezenas de carros impedindo minha saída. Nem chegar ao centro e nas cercanias do porto velho, tentar estacionar exaustivamente e acabar desistindo e ficando tão longe, que o melhor seria ficar em casa. Mas como não sai de casa, não tive a urgência em entrar em filas, pagar contas e ajustar os saldos para desembolsar quantias que talvez precisasse transferir a credores ou a contas de empresas que vendem produtos online. Nem deveria importar-me com as voltas que daria para chegar à padaria ou correr ao supermercado para fazer as últimas compras do dia. Ou quem sabe, me aborreceria alarmado com os preços, acostumado que estava a sorrir com a baixa inflação. Mas como não sai de casa, evitei tudo isso e talvez evitasse olhar para trás e sorrir para um amigo na fila ou mesmo acenar para um colega que me aparecesse na calçada, enquanto esperava o cruzamento das vias proibidas. Ou talvez fosse ao shopping e tomasse um café expresso, enquanto decidisse o que teria que comprar (ou fazer). Mas como não sai de casa, tudo isso ficou para outro dia. Ou talvez não. Pois como não sai de casa, nem vi as pessoas gritarem alto os seus protestos nem se manifestarem contra ou a favor deste ou daquele evento. E como não sai de casa, nem preocupei com o sol na moleira, com o protetor solar grudento, nem em vestir-me adequadamente para andar na rua. Como não sai de casa, não vi a algazarra dos vereadores, nem a polêmica formada pelo tema crucial da educação, nem mesmo os policiais que formaram uma barreira humana para impedir o acesso da população. Mas como não sai de casa, nem me preocupei com nada disso. Nem com propostas de educação, que para alguns significavam um retrocesso, nem o retrocesso que alguns significavam. Mas como não sai de casa, não vi nem a banda passar, porque não passou em minha janela. Se passou, foi por lá, entre os gritos e assobios, entre os xingamentos e as discussões, entre a luz e a sombra. Como não sai de casa, nem soube que o assunto havia sido discutido há um tempo atrás e os representantes do povo nem tinham percebido a sua importância e só se deram conta, no momento da votação. Nem vi que os mesmos que vociferavam contra as questões de gênero eram os mesmos que muitas vezes, se aproveitavam desta condição para se locupletarem em seus prazeres. Mas como não sai de casa, não me vesti de várias cores, nem fiquei entre os indecisos. Nem sei quem ficou em cima do muro, quem desceu ou o transpôs. Nem sei quem disse sim ou não. Como não sai de casa, não voltei indignado nem feliz, nem ouvi a música que entoa meus trajetos. Nem fiquei ansioso com o toque do celular, que me manda mensagens alucinadamente. Nem parei o carro para saber se havia alguma coisa importante para ser lida. Nem desviei da moto que se atravessou, bamboleando entre as filas que se agigantavam na avenida, nem me irritei com o motorista do ônibus, que ziguezagueava entrando e saindo do acostamento e investindo toda hora na fila engarrafada. Nem liguei os faróis, nem ouvi a rádio discutindo futebol ou amenidades, nem discussões mais acaloradas da comunidade. Nem mesmo soube do que acontecia, porque não estava lá. Nem perguntei também, se os que estiveram lá sabiam com profundidade o plano de educação que debatiam? Se haviam discutido com a sociedade os argumentos que eram levantados? Se não estavam somente preocupados com os votos que teriam nas próximas eleições? Não, não pude perguntar, porque não estava lá. Mas eles estavam.

quarta-feira, junho 24, 2015

Vida empalhada

Não sei se era noite de lua ou escuridão total, nem se as luzes artificiais da rua iluminavam as frestas das persianas. Sabia, no entanto, que suava frio e ouvia os escarros da velha, no quarto contíguo. Puxava um cigarro, certamente, ouvindo vozes, como de hábito. Doía-me sua solidão, suas horas contadas sem futuro. Mesmo que ouvisse suas histórias na infância, não me furtava em ouvi-la ainda hoje, embora desandasse em enfadonha canseira. Não tinha o que fazer com ela, a não ser esperar que se escoassem os dias, as noites, o tempo que lhe restava. Levantei-me devagar e espiei pela porta entreaberta. Estava como eu pensava, mascando aquele cigarro velho, babado, queimando os dedos, do que restava de chama. Aproximei-me, cauteloso, entre as aves empalhadas que simbolizavam a sua mais torpe herança. Avisto-a com pesar. Me parece aflita. Olhou-me por baixo dos olhos quase ocultos nas bolsas enegrecidas. Desviou-os rápido, como se quisesse esquecer de vez, a minha figura. Perguntei por que não dormia. Entoou a voz grave, de cordas vocais gastas, afirmando que nesta noite, seria a decisão.

Sempre me tratava de um modo distante, como se temesse qualquer aproximação. O nariz adunco, os cabelos ralos pendurados sobre os ombros. Alguns fiapos pretos. Às vezes, sentia um pouco de náusea. Talvez pela fragilidade que me incomodava, a dependência, o tempo escasso de viver. Mas estava curioso. De que decisão, ela se referia?

Me olhou desconfiada. Esboçou um leve sorriso. Respo0ndeu mansinho. –Nem eu entendo, moço.

Lembrei dos dias em que era forte, espera, arguta. Vidente, rezadeira, mulher de muitos saberes. Cobrava dia e noite o aluguel do quarto infame que me sugeriu como moradia. Agora mora comigo, como uma herança que não consigo dispensar, como um cão sarnento que temo abandonar e me venha lamber os pés. Eu sozinho, talvez tanto quanto ela. Também sem perspectivas, tão dependente. Por isso, me exaspera sua figura patética, esperando o fim dos dias. Às vezes, acho que a odeio. Mas não tenho onde ir, os míseros tostões que me sobram não dão pra me afastar daqui, para ter uma casa que seja realmente minha. Enfrento devagar a ojeriza. Paciente. Fico em silêncio. Daqui a pouco, ela começa a falar. Como de costume. Não foge do padrão.

– Esta casa foi muito grande. Protegeu famílias inteiras. Mas todos foram embora. – me olha de soslaio, por um segundo e pergunta: – tá ouvindo o vento? Tá fazendo corrupio, lá fora, levantando poeira. Sempre foi um sinal.

Sentei-me próximo, puxando uma cadeira de palha. Ela não levantou a cabeça, mas prosseguiu enfática, apesar da voz estremecida e falha.

– Tá chegando a hora e você precisa cumprir o destino. A minha vida não tem mais cuidado. Tá na hora de debandar.

– Como assim?

– Acabar com ela. Você tem esta missão.

Fiquei petrificado, mas a ideia não me era de todo estranha. Não havia mais tempo. De repente, ficava aí, feito figura de cera, imagem desmaiada de quem já dera as cartas, um dia. Quem sabe era uma oferta, um convite, como aquele que fazem às personalidades, às celebridades internacionais. E para elas cuja imagem sobrepuja qualquer outro aspecto humano, nada mais coerente do que a frase “o convite para virar estátua no Madame Tussauds lhe chegou em boa hora”. Tal como uma estátua do museu, talvez lhe permitisse a chance de permanecer como presença empalhada entre nós. Por que não seguir o seu conselho e transformá-la num daqueles seres embalsamados que preparava no porão da casa?

Mas como fazer o negócio? Não dava pra matar a velha, assim, com a cara limpa. Tinha que tomar alguma coisa forte. Tinha que me transformar.

Cães ladravam na noite escura. Ela tinha acessos de tosse. Depois parava, mas logo iniciava um som surdo, quase suspiro, na dificuldade em respirar. Devia tomar alguma atitude, pro bem ou pro mal. Foi quando bateram à porta de meu quarto. A velha ouviu e ficou quieta. Fui abrir e a luz escassa me deixava ver uns olhos escuros, que assim mesmo brilhavam. Não pareciam humanos. Bobagem. Precisava atender, ver o que queriam, naquele frio e lonjura danada! O homem tirou o chapéu e pediu para entrar. Perguntei o que queria. Era tarde. Trazer desassossego a uma casa quase deserta? Então, ele falou, se escondendo ainda mais na escuridão.

– Sou de tempo mais antigo que ela. Quando essa vida tinha outros ares. Quando tudo parecia não ter fim.

Por que se dirigia a mim, como ela? Era como se falasse através dela, feito ventríloquo. Não tive coragem de perguntar. Mas ele disse.

– Vim cumprir o destino.

– De que está falando? Não acredito em destino, disse isso à velha.

–É melhor se preparar. Fim da trilha.

– Sei o que pretende. Não me engana. Quer me matar.

– Matar é uma coisa que não faço. Vá pela casa, passeie pelos quartos, vá até a cozinha. Procure o quarto da velha.

Não entendia o que queria dizer, mas não havia como retrucar. Melhor obedecer do que morrer. Fiz o que mandou: andei pela casa toda. Examinei cada peça, cada quarto, fui até no banheiro. A casa estava em petição de miséria. Não tinha certeza, mas tinha a impressão de que estava sendo seguido. Uma sombra, um bafejo em meu ouvido. Um frio no estômago. Por fim, bati na porta do quarto. Precisava falar com a velha, quem sabe, já tinha acontecido. Quem sabe, teria morrido? Bati devagar, na primeira vez. Depois com mais força. Por fim, percebi que a porta estava aberta. Entrei, observando as paredes descascadas. Alguma poeira rolava pelo teto. No entanto, ela não estava lá. Havia uma cama desfeita, cobertas atiradas ao chão, a luz fraca do abajur piscando intermitente, alguns livros sobre a mesa de cabeceira. Então, assustado, voltei-me para a porta, que se fechava de súbito. Olhei para os lados, procurei a janela que dava para a rua, aquela janela em que a velha ficava espiando o mundo. Mas não havia janela, não havia rua. E o pior de tudo, aquele era o meu quarto. Por que entrara ali, no meu quarto? O que acontecera com a velha? Fiquei tão sozinho e desolado, que me deu uma estranha compulsão de sair correndo e fugir daquela casa que não era minha, mas que se parecia muito com a da infância, de minha vida atual. A velha não existia mais e o homem que estava à minha porta, também desaparecera. E esta solidão imensa que se intensificava. Aproximei-me da porta, com raiva. Não ficaria ali, nem mais um segundo. Nem que eu mesmo me transformasse em estátua de Madame Tussauds. Seria até melhor. Ficaria sempre com o mesmo sorriso, mostrando dias felizes, sem essa velha solidão que me consumia.

sábado, junho 20, 2015

Skinheads

Infelizmente, falar-se de skinheads no mundo atual, inclusive no Brasil, é deparar-se com uma maneira de pensar, que está cada dia mais presente nas nossas escolas, no bairro em que moramos, nas festas que comparecemos, até mesmo na própria família. Há endeusamento geral na internet, inclusive homenagens aos integralistas do passado. Os adeptos à ideologia neonazista se proliferam, sem que percebamos a sua presença. Mas basta que fiquemos atentos às investidas nos debates de alguns grupos, ou de pessoas que jamais imaginaríamos ter tais pensamentos reacionários e as surpresas se sucedem. O mundo parece que involuiu, os jovens em vez de avançarem, estão regredindo nos seus conceitos, com idéias cada vez mais retrógradas e conservadoras. Se não, lembremos do caso Geise, a moça de vestido curto que foi ameaçada na Universidade. Não nos cabe aqui julgar se ela queria mesmo ser assediada, se queria aparecer na mídia, se pretendia posar nua e tornar-se mais uma "celebridade" vazia e transitória dos dias pós-modernos. O problema consiste nesta retomada do conservadorismo, da forma disfaçada e hipócrita da sociedade em se relacionar. Os skinheads ampliaram o seu elenco de ódio, além dos judeus, homossexuais, negros, passaram a ser intolerantes a qualquer diferença, à miséria, à pobreza, aos imigrantes, aos nordestinos, enfim, aos que fogem do paradigma estruturado do senso comum de suas cabeças pouco pensantes. Eles estão aí, agredindo a todos e agredindo-se inconscientemente. Este tema é tratado no meu livro "o eclipse de Serguei", no qual faço o possível para demonstrar o sofrimento e o ódio de um candidato a skinhead, mostrando a sua tragetória e o perfil formado (e deformado) a partir de uma ideologia conservadora e intolerante

sábado, junho 13, 2015

O PROFESSOR E O GOLPE

O professor de filosofia observava a pequena multidão que se aglomerava em frente à prefeitura, naquele 31 de março de 64. Percebeu que na sacada, reuniam-se muitos representantes do partido trabalhista. Caixas de som ligadas, microfone instalado e discursos inflamados se seguiam. Havia um burburinho grande e vários carros estacionados próximos à praça. Um dos motoristas ouvia atento, a rádio nacional. As ondas curtas vinham e iam, produzindo ruídos na compreensão das notícias. O professor afastou-se de um grupo mais animado e aproximou-se do motorista que ouvia rádio, percebendo a dificuldade com que tentava assimilar o que ouvia. Mesmo assim, tentou saber se o que tinha apreendido das conversas itinerantes tinham algum fundamento. Conversaram alguns minutos. O assunto não podia ser outro. Brasília estava em pé de guerra e as notícias assinalavam que João Goulart seria deposto. Um dos políticos falava no microfone a altos brados. Parecia antecipar-se aos acontecimentos.

O professor encostou-se no carro e observou o cenário que de repente se descontruía a sua frente. As pessoas se olhavam e discutiam com a convicção de que não entendiam o que acontecia. Estavam confusas, desarmadas. O pequeno grupo que estava na sacada começou a dispersar-se. Em menos de cinco minutos, as caixas de som sumiram e o microfone calou-se. As informações que surgiam eram desencontradas, inclusive falavam em um presumível triunvirato de poder no Brasil, com as três forças armadas. O professor logo lembrou de Roma, que no ano de 59 a.C, Gaius Julius César, Pompeu e Marco Lucínio Crasso se uniram para governar Roma. A história estaria dando marcha à ré? Em seguida, o professor tal como os demais retirou-se de frente do paço municipal, despedindo-se do motorista e agradecendo as informações. Voltou para as suas aulas, para o seu trabalho, sua família.

À noite, a lua nova dava seus ares de despedindo, dando lugar à minguante para os próximos céus nublados. O mundo amanheceu cinzento. A cidade parecia outra, na qual se temia conversar nas esquinas, falar em política ou articular a palavra golpe. Na rádio, Brizola resistia com a campanha da legalidade, mas logo percebeu que seria um terrível derramento de sangue e desistiu. Alguns dias mais tarde, cassaram o prefeito. A imprensa salientou, garbosa, que a prefeitura não estava acéfala, pois assumira o vice. Não por muito tempo, pois renunciara e logo assumiu um capitão reformado do exército. Havia um interventor. Começava a operação limpeza. Muitas pessoas foram presas, levadas para o navio Canopus, um presídio improvisado, aclamado pela imprensa da época como belonave, abarrotado de líderes vermelhos e agitadores. Professores eram retirados da sala de aula, pais de família investigados e estudantes perseguidos; isso acontecia a quem pensasse diferente da força reacionária que surgia enfurecida pelo Brasil, ou que aos olhos do poder, expressasse alguma faceta que os contrariasse. Muito simples: é contra o regime, é vermelho, comunista. Deve ser punido. E tudo acontecia com as bençãos de várias instituições, inclusive da Igreja Católica, com excessão de algumas dissidências que honravam as palavras de Cristo. O professor de filosofia era um dos conspiradores do bem comum. Tanto, que foi taxado de terrorista e mal exemplo aos alunos e à sociedade.

Em dado momento, foi interrogado em sua casa, com a intenção clara de o prenderem. Seria mais um preso político jogado naquele navio, para aprender a ser um homem que não envergonhasse a nação. Nem percebiam que a nação chorava constrangida e mal conceituada pelo mundo afora.

Naquele momento, reuniram a família, a mulher e os filhos, citando todos os seus crimes contra o País, inclusive rechaçando o seu conhecimento científico e acadêmico, que para eles não valia nada. Deram voz de prisão, fizeram-no juntar seus pertences, ante o olhar apavorado dos parentes. Examinaram minuciosamente todos os objetos para se certificarem que estavam de acordo com as normas da prisão que estavam efetuando. Apenas uma muda de roupa, um par de sapatos sem cadarços, um barbeador elétrico, alguns objetos de higiene. Nisso, perceberam que havia um livro entre os pertences. Um deles, mais afoito, aproximou-se, abriu-o e estupefato, perguntou: – O senhor pretende levar este livro? Não se da conta que é uma confissão de que não passa de um comunista?

O segundo, que parecia mais calmo, aproximou-se, pegou o livro e largou-o sobre a mesa. Deu um leve sorriso, de quem não entendeu nada, mas concordou com o colega. Ainda ouviu a pergunta irônica do primeiro: – O que tu acha Aristides? O homem não tá encrencado?

Aristides concordou com um aceno de cabeça.

O professor, apesar da aparência amarga, ainda esboçou um sorriso pelo absurdo da pergunta. Asseverou que levaria o livro. Por fim, perguntou o motivo por que tanto ódio contra Machado de Assis. Nisto, o soldado deu dois passos para trás, como se iniciasse uma marcha, na qual daria meia volta. Mas não o fez: estancou e segurou o livro, abrindo-o na página do título. Começou a lê-lo, a princípio devagar, depois, releu palavra por palavra, quase declamando e para cada uma dava uma explicação.

– Memórias póstumas … Memórias, coisa de comunista! tu não acha Aristides?

Silêncio absoluto. Ele proseguu: — de Brás, isso é coisa de petrobrás, eletrobrás, monopólio, tu não acha Aristides?

O outro esboçou a primeira reação, tentando articular uma frase, talvez lembrando que a briga da petrobrás vinha desde o Getúlio, onde o Jango, como ministro na época não aceitava a interferência americana, mas nada disse, foi interrompido pelo soldado leitor, que exclamou vitorioso, os olhos muito vermelhos, a voz embargada de forçada nacionalidade — Cubas! Aqui não tem mais conversa, amigo! Comunista puro! Vermelho de merda! Tu tá lendo um livro que fala em Cuba!

Aristides, desta vez sorriu, franco. O amigo sabia o que dizia!

O professor foi preso, torturado e mais tarde exilado no Chile. Se fosse vivo, talvez fizesse um estudo sociológico, antropológico ou seja lá que viés percorresse para encontrar algum motivo, por menor que fosse, de que Memórias póstumas de Brás Cuba é um livro comunista. Ou enlouquecesse de vez!

quarta-feira, junho 10, 2015

Eu e os carros antigos

Tenho esta mania de fotografar carros antigos. Nem é interesse por determinados modelos ou por conhecimento de motores ou marcas importantes. Nem tenho qualquer coleção, mesmo porque é preciso demandar um bom dinheiro para este tipo de hobby. Entretanto, sempre que vou a Montevidéu e noutras cidades do interior do Uruguai, tento fotografar aqueles automóveis datados de épocas tão antigas e que parecem contar muito de seu passado. Fico talvez, na minha posição de escritor, inventando histórias. Mas histórias plausíveis, que talvez fossem tão verdadeiras como se as vivêssemos. Uma lembrança que me vem em momentos, como num déjà vu de algo que nao vivi. Há os que falam em universo paralelo para este tipo de evento, mas evitarei este tema, até por não ter certezas absolutas. Deixo para os pesquisadores e os escritores de ficção científica. Penso, porém naquele carro verde e pequeno da década de 50, que deve ter servido por muitos anos a uma família de imigrantes italianos, que veio se instalar em Montevidéu, uma cidade com tantos pizzaiolos e donos de restaurantes. Quem sabe ele levava o filho à escola, uma dificuldade para a época, porque não havia tantos funcionários para prover o negócio que começava, onde toda a família participava. Ou, quem sabe aquele carro bege ou amarelo claro que me parece um citroen, andando displicente pelas ruas de Punta del Este, fazendo furor, tendo atrás do volante uma morena de olhos grandes e lenço estampado, parando uma livraria e descendo garbosa com uma bolsa da da cor do sapato. Um escândalo para uma cidade cosmopolita, não só por ser uma mulher no volante, mos anos 40, como uma mulher tão espalhafatosa. Mas se dirigia a uma livraria, não ao botequim. Por outro lado, que pensar daquele sedã imenso, de cor preta, provavelmente dos anos 60, pilotado por um homem de óculos pesados e cabelos estiirados para trás, salientando as entradas reluzentes, com um cigarro fumegante nos lábios e um olhar conspirador. Que faria, estacionando em frente à intendência de montevidéu, levando consigo uma pasta preta, talvez conduzindo um dossiê e um olhar arrogante? E no Brasil, dá pra imaginar um homem magro, usando o seu eterno chapéu panamá amassado, a bordo de um automóvel inimaginável, até por ser o primeiro a ser usado em terras brasileiras? Passeava lentamente pelas ruas, talvez chegando a 20 ou 30 km por hora, levantando poeira, deixando as mulheres atônitas, os homens entusiasmados e as crianças eufóricas e assustadas com o bicho que andava sozinho. Certamente os mais velhos não aprovavam aquela máquina que provavelmente destruiria o mundo. Ficavam assustados e arredios. Mas ele passeava, fagueiro e sorridente, pois já tivera sonhos bem mais altos. Afinal, não passava do inventor do avião, Santos Dumont. Pois foi este gênio a trazer o primeiro automóvel de motor a explosão para o Brasil. Era um Peugeot. E ele foi o primeiro a reclamar do estado das ruas. Mas deixemos as histórias para o seu passado ou para a imaginação para recontar a vida de uma forma diferente, mas paradoxalmente, parecida. Daí a verossimilhança tão difundida na literatura. Por outro lado, tenho verdadeira fixação por estes carros, de qualquer marca ou ano, principalmente os de décadas bem atrás. Acho estranho que em países como o Uruguai e também em algumas cidades do interior da Argentina, continuem circulando pelas ruas e até por rodovias. Carros que aparentemente estão em péssimo estado, embora o seu motor possa estar tinindo. Ainda não fui a Cuba, que é o maior museu de carros antigos do mundo, principalmente das décadas de 40 e 50; lá teria muitos carros para fotografar, mas os que vejo por aqui, tão perto, já me bastam. Muito interessante visitar os museus de automóveis antigos, como o de Gramado, ou assistir o desfile de colecionadores. Entretanto, o que me impressiona mais são os que estão em franco estado de trabalho, ou seja, atravessando estradas e servindo seus donos por aí. Em cidades como Maldonado, Mello, Colônia do Sacramento, Chuy, Rochas, San Carlos(cidade irmã de Rio Grande, RS) e até em Punta del Este, além da própria Montevideu, pude ver carros deste tipo. Ricos em história e sonhos para os imaginativos. O interessante de tudo isso é que muitos dos carros que fotografei estavam parados a frente de suas casas, ou em garagens, cujos donos apareciam e os utilizavam como nós fazemos com nossos veículos atuais. Também vi motos muito antigas e com fios enjambrados, em atividade, e fico me perguntando, como é o relacionamento do trânsito com o policiamento rodoviário. Como são efetivadas as multas? Em todo o caso, o trânsito naquele país me parece muito disciplinado e o povo bastante tranquilo. Também vi carros antigos na cidade de São tomé, na Argentina, que faz fronteira com o Brasil, através da ponte da integração com São Borja. Uma cidade muito bonita, organizada e limpa. Colônia do Sacramento, entretanto, tem outras peculiaridades marcantes, além dos carros antigos. É separada de Buenos Aires pelo Rio de la Plata, onde pode-se atravessar por buquebus, num trajeto em torno de 50 km. Nela, pode-se admirar a memória viva, pois sua arquitetura original é de casas antigas e coloridas e seus velhos lampiões. É preservada e declarada pela Unesco como patrimônio da humanidade. Entre as suas ruas estreitas e de pedras irregulares, a mais conhecida chama-se Calle de los Suspiros, por acolher no passado os marinheiros que buscavam companhias antes de embarcarem. Atualmente, os turistas observam maravilhosos as casas baixas e gastas pelo tempo, embora muito bem conservadas. Sua origem portuguesa é visível na fortaleza fundada no fim do seculo XVII e os canhões que enfeitam as calçadas são os símbolos das disputas entre os portugueses e espanhóis, que por quase um século se alternaram no poder. Se por um lado, permaneceram as construções portuguesas de pedra do periodo colonial, por outro ficaram as casas de tijolos e com varanda, erguidas pelos espanhóis. Uma coisa interessante que ficou como lembrança destas disputas, foi a igreja em estilo espanhol, que esconde embaixo do reboco branco, uma igreja portuguesa feita de pedras, cujas paredes e colunas foram construídas pelos portugueses. Como no século posterior, os espanhóis deixaram a igreja lisa e branca, a de pedra ficou por dentro. Por outro lado, voltando ao nosso tema, percebemos que há um enorme quantidade de carros antigos circulando pelas ruas e que alguns, já desativados, servem como atração, a partir de adaptações para restaurantes ou floreiras que enfeitam a rua. Uma paixão que principalmente, a meu ver, os uruguaios possuem, mas uma paixão que também usufro ardentemente. Como disse, nada que eu conheça com propriedade os diversos modelos, suas origens, fábricas montadoras e países onde foram criados. São designs antigos, datados, mas que me dão a certeza de que o passado revive, não como atributos melancólicos, ou com intenções retrógradas. Não, ao contrário. Quero que tudo evolua, que o mundo cresça nos seus diferentes aspectos e neste, especialmente, da industrialização automotiva, que atinja inúmeros avanços, embora não deixando de reconhecer e adaptar os belos desenhos e performances de antigamente. Um carro é só um objeto. Mas as impressões que provocam, estas sim, podem levar a devaneios, sonhos, desejos inexplicaveis, emoções, especialmente porque a mão do homem está ali, embutida, e a união destes elementos transforma a realidade numa coisa elaborada e criativa. Os carros e sua memória. Uma memória que nao tive, que nao vivi, que pouco conheci no passado. Mas um memória que me cai bem, que me faz pensar e imaginar. Só na imaginação e no sonho, encontramos o sentido da vida, a vontade de vivermos coisas tão boas como aquelas passadas ou pelo menos, imaginadas. Quem sabe, um passeio no parque, um piquenique no campo, uma mirada na praia. Um olhar mais atento à nautreza. O despertar de uma nova história. E sempre partilhando a companhia daqueles velhos automóveis. Um bem sempre presente.

terça-feira, junho 09, 2015

METÁFORAS CRUÉIS : desqualificação das mulheres e negros


Certa vez, em uma disciplina de um curso de pós-graduação em linguística, avaliamos uma série de adjetivos ou substantivos adjetivados que soam lisonjeiros para os homens e ao contrário, para as mulheres produziam conotação pejorativa, pois a própria palavra utilizada possui juízo de valor, tanto para um lado quanto para o outro. Estas distorções linguísticas são foco de vários estudos de cursos de pós-graduação e muito bem explanadas em vários artigos. Sabe-se entretanto, que a língua é apenas um instrumento que é fruto da cultura dos cidadãos de um país.

Estes adjetivos constituem metáforas que desquafilicam o sujeito feminino e qualificam o masculino. Se não, vejamos alguns exemplos, que foram exaustivamente avaliados em vários trabalhos, mas que cabe aqui, identificá-lo en passant. O adjetivo vadia, para a mulher tem a ver com promiscuidade, assim como vagabunda. No caso do homem, o termo vagabundo ou vadio, tem a abordagem do trabalho, mas pode incluir também um significado positivo, como garanhão, altamente elogioso na nossa sociedade. No caso de se chamar um homem de cão, ou cachorrão, pode haver uma conotação negativa, mas nunca no aspecto sexual. Inclusive, ser um "cachorrão"", infere aspectos positivos, dependendo do contexto. Mulher chamada de cadela, no entanto é considerada uma prostituta. A desqualificação feminina se dá sempre no âmbito da sexualidade. Mulher aventureira, pistoleira, da vida ou galinha (puta). O homem aventureiro, que viaja, que arrisca, pistoleiro, um matador, homem da vida, que adquiriu sabedoria, o galo é aquele que tem um orgasmo rápido e certeiro. O adjetivo puto pode vir, além da conotação sexual, com vários significados como nervoso, irritado, bravo. Fulano está puto da vida. No caso feminino, esta última conotação é menos usada. Chamar um homem de cavalo, pode designar um indivíduo grosseiro, sem educação. No caso da mulher, chamá-la de égua, designa meretriz. O homem que é um touro, é aquele forte, bravo, fogoso e robusto. Uma mulher vaca é a mulher leviana, aquela que aceita qualquer homem. O homem chamado de lobo é o considerado sanguinário, a mulher loba é uma meretriz, o mesmo caso de mariposa. Piranha designa uma mulher de vida licenciosa, meretriz. Estas metáforas zoomórficas são destacadas por E. V. Leitão, em 1988, no livro " A mulher da língua do povo" (LEITÃO, E.V., 1988).

Mas esta desqualificação da mulher ocorre também em relação às pessoas de etnia negra (homens e mulheres), em virtude da cor, através de uma herança cultural que sempre marginalizou os negros. Para tanto, observa-se, não adjetivos, mas metáforas produzidas por expressões cotidianas que constroem um verdadeiro dicionário. Outro dia, li um texto de Setephanie Ribeiro, no site do Pragmatismo Político, que emumerava 13 expressões que ela considerava formadoras do racismo contemporâneo. Vou descrever algumas aqui, na tentativa de relacioná-las com a desqualificação feminina observada anteriormente. Umas delas, é "serviço de preto” expressão utilizada para associar a um trabalho desleixado. Remonta ao passado escravocrata, quando afirma que o negro era malandro, negligente e seu trabalho era ruim. Outra expressão é “morena, mulata“ seguidos de "tipo exportação”. Neste caso, embraquece-se a pessoa, transformando-a em morena ou mulata, e o pior "tipo exportação", no meu ver, seria sugerir uma aceitação da mulher negra pelo estrangeiro. Uma venda do material humano, como um objeto no mercado. Uma terceira expressão é aquela “não sou tuas negas”. Neste caso, a frase deixa explícito que com as negras, tudo é possível, e com as demais não se pode fazer o mesmo, lembrando o comportamento de assédio e estupros com as mulheres negras escravizadas. “Cabelo ruim, cabelo duro, etc.”para designar características do cabelo afro como algo pouco estético, fora dos padrões europeus. “Nasceu com o pé na cozinha”, neste caso, a expressão indica as origens das mulheres negras, associadas aos serviços domésticos, já que as escravas podiam ficar na cozinha e, inclusive, segundo a autora, dormiam ali mesmo.

Percebemos enfim, que vale a regra do poder reacionário, escravagista, machista e branco sobre as categorias analisadas. Tanto a mulher quanto a etnia negra, tem a desvantagem de apresentar estereótipos que os desqualificam como sujeitos. Não se pode dizer que há preconceito em relação à mulher, mas sim que todos os adjetivos são frutos de cultura machista e retrógrada que sempre privilegia o homem, principalmente no aspecto sexual, no qual a mulher é sempre inferiorizada. No caso das expressões que investem contra o negro, percebe-se aqui um franco racismo, muitas vezes disfarçado na terrível expressão “alma de branco”, que o autor também destaca. Para estes, lembro daquela música “alma não tem cor” de André Abujamra, cantada por Chico César, Zeca Baleiro, pelo grupo Perota Chingo, entre outros.

"Alma não tem cor

Porque eu sou branco?

Alma não tem cor

Porque eu sou preto?

Você conhece tudo

Você conhece o reggae

Você conhece tudo

Você só não se conhece”
Fonte: LEITÃO, E. V. A mulher da língua do povo. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.
PEREIRA, Edilene Machado; RODRIGUES, Vera. Amor não tem cor?! Gênero e raça/cor na seletividade afetiva de homens e mulheres negros(as) na Bahia e no Rio Grande do Sul. In: https://www.abpn.org.br/Revista/index.php/edicoes/article/viewArticle/87
RIBEIRO, Stephanie. 13 expressões racistas que precisam sair do seu vocabulário. In: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/05/13-expressoes-racistas-que-precisam-sair-do-seu-vocabulario.html
http://blogueirasnegras.org/author/stephanie/
ZAMPARONI, Valdemir D. Os estudos africanos no Brasil. In: Dhttp://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=522


quinta-feira, junho 04, 2015

Registros

Não sou de guardar muitas coisas. Um texto aqui, um chaveiro ali, uma fotografia lá. Há coisas que não se guarda, na verdade, se resguarda do extravio. Há outras que nos parecem uma espécie de registro, uma lembrança de um acontecimento importante em nossas vidas, uma informação do passado, uma memória. Guardo alguns recortes que nunca leio. Fotografias que dificilmente olho. Guardo textos antigos que jamais analiso. Um coisa, tenho certeza, guardo sim e com prazer: cartões do dia dos pais e outros homenageando a minha profissão dados por minha filha, afilhados e sobrinhos. Estes, de vez enquanto, espio agradecido. Observo as letrinhas desenhadas, o jeito despojado de oferecer carinho e mais do que tudo, a espontaneidade do momento. É muito bom. Outras lembranças burocráticas, nem tanto. Em todo caso, há que se guardar. Guardar é esperar que algum dia, se utilize dessas pequenas relíquias para compor uma memória organizada, quem sabe? Uma coisa, tenho certeza, as lembranças de encontros, de apertos de mãos, de despedidas, de afagos, esses sim, são sempre bem registrados e a todo momento, vem na lembrança com a euforia que lhes é peculiar ou a saudade que os constitui. Lembranças boas ou más sempre estão conosco. É preciso burilá-las e deixar que venham ao lume as que nos transmitem paz. Coisas de bibliotecário.

quarta-feira, junho 03, 2015

A política e os palpites

Às vezes, me pergunto o que dizer em relação aos inúmeros posts que vejo nas redes sociais, especialmente no facebook. Na verdade, não há muito o que dizer: há a verdade de uns e a verdade de outros. Principalmente, no que se refere à política, as pessoas escolhem seus artigos ou piadas, ou mensagens, de acordo com a sua ideologia política ou mesmo a falta dela. Infelizmente, não há um consenso na maneira de exporem os fatos. Claro que nao vá se esperar que se pense de forma padronizada, mas que se pense observando os dois lados, examinando os vários â
ngulos e as diversas hipóteses para os dados. E por fim, deve-se contextualizar o que se afirma. De todo modo, há divergências em todas as discussões, o que é sadio e natural. Entretanto, não se deveria apenas publicar temas que foram interpretados por outrem, manipulados de acordo com a ingerência do interesse pessoal ou institucional. Dever-se-ia pensar no bem comum, na realidade que abarcasse todos os pontos de vista ou pelo menos que contemplasse as visões de cada um moldadas na verdade, nos conceitos maturados e discutidos de determinado assunto. Esperemos que as coisas melhorem, que as pessoas analisem mais detidamente os temas que dão seus palpites e que não entrem na rotina dos manipuladores, seja de um lado, quanto de outro. Vamos esperar.

sábado, maio 30, 2015

PAREDES APARENTES

Morena, ainda percorro em infinitos passos, cada taco do corredor. Sei que imaginas, mas não sentes o que sinto, nem percebes a aflição. Toco nas paredes, como se me ouvissem, e às vezes, tenho a impressão de que não estão aqui, de verdade. Paredes aparentes que me oprimem, me sufocam como mãos que se torcem e me agarram a garganta. Morena, falta-me o ar. Queria ver-te, bem perto, nem que para apenas receber o beijo frio, molhar minha boca no teu veneno e corromper minhas vísceras. Quisera vender a mobília, cerrar as janelas, impedir o vento que rola as folhas em rodamoinhos de nossa paisagem. Quisera não sentir o bafejo na vidraça, molhando os olhos, nariz e boca no frio do vidro. Preferia fugir e pisar nos insetos que infestam nossas soleiras. Ouço tua voz, teu cheiro, tua presença. Ecoam tuas palavras, às vezes doces, outras, duras, frias, cruéis.

Moreno, arrisquei atravessar a lagoa, dei braçadas para vencer as marolas e não alcancei teu amor. Hoje, pra ti não sou nada, carta dobrada, que desfazes do baralho pra esconder o jogo. Fecha as janelas sim, deixa que a escuridão tome conta, sente meus dentes rangendo, minha boca estremecendo de raiva e torpor. Não sou nada, talvez a marca do adeus. Um adeus feito devagarinho, aos poucos, acalentado, pra não dar na conta. Meu destino é caminhar assim, desesperada, longe de casa, da tua vida, do lar. Quem sabe, o mapa que percorro não seja o mesmo das paredes falsas que construíste, mas que me dão guarida pra continuar.

Morena, saio na rua aos tropeços. Penso e repenso, nem sei se falo ou desisto, se grito ou alcanço com o som de minha voz fugaz dos que nem querem ouvir. Temo não te escutar jamais. Temo desviar nossos rumos, descarrilar nossos trens, afundarmos na lama fugidia que me cobre na chuva. Sei que fui omisso e não mais posso esperar que me ouças. Talvez nem pedir que me esperes, que examines com cuidado cirúrgico minhas passagens por teu corpo, teu ventre, teus seios, tua mente. Não, sei que me esqueces assim, de momento, para não mais sofreres. Agora, estou só, perdido neste vendaval que me tolhe os sentidos e os gestos. Encosto-me na parede, finjo que estou firme, ancorado, apoiado nas pernas finas que mal me cabem as calças. Sinto a dor da esperança e o olhar dos aflitos. Vejo-me na vidraça do bar, um rosto truncado, escondido em olhares sorrateiros, que não parecem os meus. Nariz adunco, avermelhado, os olhos fundos, congestão infinita. Entro no bar, me acerco de outros homens e mulheres que se esgueiram famintos na noite. Minhas mãos estremecem, assim como meu pés, imprecisos, solitários. Morena, dói-me o peso nos ombros, fardo que carrego sem querer. Dores que ferem e me afastam de mim. Morena, peço a bebida, que talvez aqueça a garganta e turve a alma.

Moreno, bebi da água pura que escorre sem dó, fria, entre minhas mãos ansiosas. Procuro o que não acho, vejo o que não encontro, desvio do que me atrai e me aproximo do que me atinge. Nem estou só, mas não me encontro entre os meus. Milhares de quilômetros nos separam, porque a distância interna é maior do que o mundo. Quisera sim estar ao teu lado, ouvir tuas queixas, assumir tuas dores, mas só soubeste golpear-me, assim de uma forma cruel e lenta para que a punição se tornasse comum e necessária. Quando te vi, nada mais restou a não ser a imagem da desilusão. Nem cansamos de nós, nem enfaramos de nossas vivências. Ao contrário, estávamos sedentos, um do outro. Mas a mulher de tua vida não pode ser apenas complemento do teu desejo. Vejo-te ainda ao lado dela e tão longe de mim. Minha mãe se acerca e pergunta qualquer coisa que não sei responder, ou nem sei decifrar. Como esfinge que me questiona, me perturba, me dilacera. Tenho olhos e ouvidos para aquela imagem que me fica guardada assim em multimídia, para não esquecer jamais. Respondo então o que devo e me vem à lembrança. Nada doce, nada suave, nada sensível. Estou só. Onde andarás, agora?

Morena, alguém se aproxima, sinto seus cotovelos próximos aos meus, no balcão de pedra. O garçom me olha de soslaio, triste, como se compartilhasse minha dor. No cotovelo, o retalho de couro, num casado antigo de lã, xadrez. Afasto-me um pouco, tento desviar os olhos para a porta de umbral redondo, cheia de vidraças coloridas; em cada uma vejo o teu sorriso, às vezes caramelo, às vezes, vermelho, às vezes, azul, às vezes sem cor. Teus dentes brancos sorrindo pra mim. Pareces um caleidoscópio. É bonito de se ver. O homem do casaco pergunta alguma coisa, vejo seu perfil e por um momento examino o rosto cravejado de espinhas, pequenas saliências que lhe agastam a fisionomia. Boca escondida num bigode tingido. Cabelos ao alto, circundado por extensas entradas. Olhos parados, finitos. Nada parece perturbá-lo, mas é só por um momento. Afasto o olhar e ele repete a pergunta. Me volto surpreso, porque nada me vem à mente, a não ser teus gestos brejeiros, tua voz sonora, límpida, teus olhos claros me dizendo coisas que não recusava ouvir. Carrega uma pasta estreita, uma espécie de guarda-tudo, talvez documentos, agendas, talvez fotos dos filhos. Não tivemos filhos, morena, nada nos sobrou a não ser o que nos vai na alma e o que lutas tanto para destruir. Ele insiste, puxa conversa. O barulho do bar fica quase insuportável, misturado ao som da tv que inicia um jogo de futebol. Um grupo se acomoda no meio do bar, espalhando-se entre as mesas, assim em pé, tentando torcer juntos, em uníssono, como pássaros em bando, conformados em viver um momento coletivo. Não é o meu caso, estou só, sem amigos, sem ti. Estás longe, morena. Tão longe que a distância até dói. Mas bastava um telefonema, uma mensagem pra começar o encontro. Foi o que ele falou, o homem do casaco com remendo de couro no cotovelo. Falou em encontro. – Não achas que tá na hora? Os homens deviam se encontrar mais, buscar em suas vidas, a paixão pelo encontro. Engoli a bebida destilada num gole. Olhei-o sem saber o que dizer. Ele pareceu entusiasmado com o meu espanto. Prosseguiu, enfático: – a paixão de se reunir. Não para assistir futebol, como fazem estes caras aí – quando terminava a frase, o nariz se erguia e uma troca rápida de olhares para a turma que já se acotovelava na galera - só tem por objetivo torcer por um time, mas não tem o sabor do encontro, da conversa fluída, da amizade intensa. Logo que acaba o jogo, cada um vai para suas casas, sem nunca mais se virem, a não ser no próximo jogo, ou na próxima beberagem. Acho que fiz um aceno afirmativo, mas quisera eu ter para onde ir, encontrar-te morena, me esperando, assim, de braços abertos. Teus cabelos caídos nos ombros, aquele cheirinho de sabonete de maçã, a boca pintada de vermelho, o olhar puro a me dizer todas aquelas coisas que eu sempre quisera ouvir. – Tu não achas que é um crime? Um crime com suas vidas, com suas ambições mais humanas, que deveria ser de integração, de procura e de encontro. O encontro máximo. Um com o outro. O garçom se aproximou, trouxe-me outra vodca, que ingeri sem gelo nem limão. Vi quando o homem abriu aquela maleta preta e esquisita e enfiou a mão com cuidado. Examinou-a de tal forma, que me pareceu haver mesmo alguma coisa muito perigosa ali dentro. Tirou um recorte de jornal, um cartão e me entregou sorrindo. Nem sei se li, morena, mas no recorte, eu via a tua imagem, tão linda, sorrindo, me dizendo coisas, aquelas em que eu sempre ajustava o ouvido com cuidado, pra não perder o matiz da trama bem urdida.

Moreno, nem devo pensar nos momentos que vivemos de bem, mas o bem que vivemos já não é o bem presente, que não é bem nem mal, apenas nada. Insosso. Sentimento puído, renda velha, desbotada. Traças que perfuram, impunes, a vida que se desenrola sem colorido. Minha mãe se atrapalha nas louças, nos talheres, se atrapalha nas pernas, se perde. Ajusto as costas, ergo o dorso, seguro-a com força. Penso em ti. Quisera estar do teu lado e esquecer a dor que causaste. Quisera sufocar também a dor que corrói meu coração. Ela está velha e doída. Talvez tenha sofrido assim,este desgaste, mas as costas não lhe doem como antes, porque se acostumou com a dor. Eu não. Sentou-se ofegante. Olhou-me nos olhos. Pensou em morrer. Disse-me coisas corajosas e até falou em ti. Estamos as duas tão só e nem nos fazemos companhia. Por uma estar se acabando na dor e a outra, a dor a acabou. Nossos mundos desiguais são apenas paralelos, mas ela sabe que só há um rumo em minha vida. Moreno, queria devolver-te a rosa, que não morreu jamais. Ela é símbolo da beleza que persiste. Minha mãe fala em perdão, porque teme não haver mais encontro, ela que já se desencontrou tanto nesta vida e nem achou seu rumo. Se achou, perdeu de vez, assim, cansada, tropeçando nas coisas, tendo raros momentos lúcidos, fugazes, que temo não encontrá-la jamais. A não ser, batendo-se nos móveis, perdendo-se em labirintos dos quais nao encontre a saída. Melhor ficar quieta e esperar.

Morena, ensaiei alguns passos, tentando afastar-me olhando a figura que mostrava teu sorriso tão franco, como se fosse me contar uma de tuas histórias. Mas o homem do casaco de remendo de couro me puxou pelo braço. Indicou o endereço, falou-me na igreja, o único ponto de encontro que julgava ter algum objetivo. Li o cartão ,agradeci e tentei afastar-me. Mas um sonoro não ecoou no recinto, tão forte que paralisei. Minhas pernas estremeceram, meus pés suaram encharcando as meias. Por um momento, os olhos e todos se desviaram da tv e se voltaram para nós. Para mim, porque de alguma forma, fazia parte do drama que para ele se agigantara entre todos, como se força descomunal tivesse. Abriu a mala preta, esquisita e retirou um revólver, apontado em seguida para a própria cabeça. Tentei falar-lhe. Me contive. Só ali tua imagem desapareceu, Morena. Uma cena tão forte, me fez temer pela vida, mas não entrei em pânico. Apenas ouvi. – Ninguém quer, ninguém pode, mas eis o encontro. Se não ouvirem a palavra, não se integrarão como devem. Eu já não posso! Não conseguia entender porque se mataria se pregava a união. Ele então, virou a maleta sobre o balcão de pedra, ante os olhos assustados do garçom. Uma mulher loira, cabelos presos ao alto se antecipara à cena, adentrando à porta e alguém a interceptara com um gesto. Como se tudo devesse ocorrer da forma esperada. Ou imaginada. No balcão, voaram papéis para todos os lados. Notas promissórias, contas, talões de cheques. Aproximei-me. Argumentei:– Se queres o encontro, como pretendes te matar? Ele gritou, exasperado: – Por isso mesmo, porque ninguém quer o encontro e eu me endividei! A Receita Federal está atrás de mim! O Banco Central me procura! O Ministério Público, a Polícia Federal me caça! Não se aproximem. Façam o que não fiz. Vão à igreja e ajudem o irmão. Não destruam o seu pastor! – e disparou um tiro na cabeça, despencando no chão. Algumas gotas de sangue respingam em meu rosto. Depois do estampido, um silêncio brutal. Foi só um segundo. O garçom quase saltou sobre o balcão, a mulher que chegara há pouco, gritou em desespero, pedindo socorro, os assíduos do futebol se afunilaram em volta do corpo. Dobrei-me sobre o homem, tentando descobrir se ainda havia vida. Mas nada. Abri o paletó de lã, xadrez, com o remendo de couro no cotovelo. Encontrei uma carteira, examinei as fotos, os documentos. Pastor da igreja evangélica. Levantei-me. Chamei o dono do bar para que tomasse alguma atitude em relação ao defunto. Afastei entre o grupo que se alinhava, atenção máxima na cena inusitada que se desenrolava ante seus olhos. O sangue brotava do ouvido, alagando o piso, do qual os pés descuidados se afastavam devagar. De repente, um gol sonoro na tv e todos os olhares e gestos e movimentos bruscos se efetuaram no mesmo instante. Aproveitei para afastar-me, Morena, acabrunhado, sem ter muito o que fazer a não ser enfrentar a chuva. O frio me fazia ranger os dentes. Quisera estar aí, do teu lado, acendendo algumas achas de nossa lareira imaginária, e sentir nas minhas mãos as tuas, percorrendo nossos corpos aquecidos. Só me resta, porém, divagar entre as calçadas irregulares, atravessando ruas enlameadas, buscando o nada, voltando para as paredes aparentes e sentindo-me mais perdido do que estou agora. Sem querer, vejo a luz do teu quarto, ao longe, um pequeno abajur que enfeita tuas noites de leitura, teu notebook abusado, amigo inseparável que me substitui a todo tempo. Quisera estar contigo, Morena, embora com ele ao lado dividindo nossos espaços. Esperando que tua mãe dormisse e esquecesse o passado onde reina rainha de um mundo desconhecido, só seu e de seus mortos. E assim ficaríamos abraçados, tomando vez que outra um vinho ao gosto, repetindo pra nós mesmos que o mundo se resumia nestes momentos, salvaguardo pela atenção, o carinho, o cuidado, o amor.

Moreno, da janela avisto um riscado cinza que ora aparece ante a luz de postes. Um riscado de água que escorre incólume pelas calçadas, inundando vielas, mergulhando as lágrimas dos que vivem ao relento, ou nas fachadas sonhadas de casas inexistentes de papelão. Sei que ficarei assim toda a noite, esperando que a vida passe, que o tempo se esgote, que minha mãe vislumbre uma cena real por alguns segundos e esqueça de vez dos vivos. Ai de mim. O tempo passa, Moreno, a mola- mestra da vida não tem fim. Melhor esquecer e não seres nada mais do que uma lembrança boa, manchada apenas pela traição. Melhor assim. Um homem qualquer, como tantos outros. Mas se surgisses nesta escuridão listrada, se vislumbrasse teu rosto molhado, teu corpo encharcado, teu pedido de perdão, talvez não soubesse dissimular, e perder de vez a vergonha, o orgulho, a auto-estima, a raiva, o ódio. Tal como as putas que te assediam. Sem vergonha, sem recato, sem princípios. Talvez não dissesse nada. Apenas abrisse a porta.

Morena, como atravessar os degraus, subir as escadas respingando nos patamares diáfanos, sujando o branco dos mármores, aviltar com minhas botas a pureza dos andares, o enfeitar dos verdes, ligeiramente escorrendo folhas pelos vasos floridos. Temo resfolegar, engolir em seco, mastigar as palavras incongruentes, construir sintagmas estranhos, inventar hipóteses absurdas. Minhas pernas tremem. Morena, meu cabelo ensopado de chuva e suor cai-me na testa, afugentando a imagem escondida, acabrunhada, meus olhos submersos em água e lágrima, mergulhados em que estão num vazio absurdo, meus ouvidos que somente ouvem o próprio som que me vem da alma, expressos numa única palavra: perdão. Mesmo com a mão trêmula, um pingo de coragem alicerçada na bebida destilada que me aquece a garganta, espalmo a mão desajeitada, encostando-me à porta impoluta, alimentado apenas pela esperança, tênue, rasa. A porta se abre devagarinho, adivinhando a investida. O olhar furtivo, a boca vermelha, o cabelo ondulado, caído nos ombros, a voz sonora e límpida.

Morena.

–Moreno.

Desaparecidos

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terça-feira, maio 26, 2015

A professora e a biblioteca (Pequeno trecho do romance A barca e a biblioteca)

Corria o ano de 66. O vento do outono alvoroçava o cabelo da professora. Quando lembro dela, imagino-a escrevendo, incessante, na sua casa cheia de livros, cadernos, apontamentos, canetas; a casa parecendo um imenso escritório. Talvez possuísse uma Remington, com as teclas brilhantes, bordando os dedos rápidos, em textos densos, pontuados de perguntas e respostas. Era o jeito dela. Por certo, escreveria assim, extraindo da máquina, além do som metálico, a sua concepção de mundo. Foi ela que me incentivou a visitar a biblioteca pela primeira vez. Certamente, mantinha alguma expectativa em relação ao meu gosto pela leitura, ou talvez, mais do que isso: apresentar-me o livro, como um ente próximo, um amigo, que devesse amar e preservar sua existência, como quem cuida de um ser vivo. Para ela, deveria ser o livro, no seu aspecto físico, o corpo, cujo conteúdo constituía a alma e que servisse de amparo em minhas questões da vida. Ela fora sutil. Conduziu-me como um pagão ao templo. O cenário era sagrado, e eu seria batizado no mundo das letras. Não me disse nada, a não ser poucas palavras sobre o hábito da leitura, o prazer em ler um bom livro, o vislumbrar de novas vivências e outros pontos de vista. Ao entrar na biblioteca, tinha comigo que tudo o que ela dizia se materializava plenamente. Um mapa com ilhas que se esculpiam a minha frente, pinturas se apresentavam vívidos como se as tintas frescas transbordassem das telas num desencadear de cores e movimento. Por vezes, se mesclavam noutras imagens, nas quais a ausência de matizes se configurava no negro das roupas e noites encardidas nos trens com destino aos campos de extermínio, onde o cotidiano é a perseguição e a morte. E tudo perpassava pelos grandes escritores que se desvendavam no textos. Meu coração batia forte, temeroso de não retornar àquele lugar sagrado, onde o conhecimento de Eva estava ali armazenado.

quinta-feira, maio 14, 2015

Joyce - Feminina (1980) - Completo/Full Album



http://kbimages.blogspot.com/url-code.jpg A música "Feminina" é citada como analogia em minha crônica sobre as mães. Cito a Joyce no texto "Então, me explica ..."

terça-feira, maio 12, 2015

Então, me explica...

Nem sempre me lembro de ti. Nem sempre me pergunto, porque te foste tão cedo. Nem sempre me envolvo nas histórias que contavas. Nem sempre me enfrento te olhando no espelho. Um espelho que parece muito comigo. Um espelho onde te imagino às vezes, caminhando ao nosso lado pelas ruas quase desertas da cidade, no feriado de Natal. Lembro-te de sapato preto, de verniz, bico de pato e salto fino. Do vestido azul e a bolsa de mão. Mas lembro mais do aconchego de tua mão na minha. Da alegria de meu pai ao teu lado, como um guia, um líder que nos levava à festa dos presentes. Lembro do guaraná, do quindim que sempre nos aguardava no imenso salão do clube. Lembro da expectativa dos prêmios. Dos palhaços, das músicas, dos mágicos. Lembro dos presentes. Uma boneca para minha irmã, um cavalo branco de gesso para mim. Mas lembro especialmente do brilho dos teus olhos, da emoção que passavas, que tornava nossos momentos intensos e felizes. Da alegria que sublinhavas com teu sorriso sincero. Tu eras assim, voltavas desenhando sonhos, torcendo o salto no paralelepípedo enquanto esperavas o táxi e visitavas as lojas enfeitadas para a festa. Por isso, pergunto, traçando um paralelo com a música “Feminina” de Joice , me apropriando de alguns versos, assim alterados: “Ó Deus, me explica, me ensina, me diz o que é ser mãe? Não é no vestir, no gesto, no olhar, é ser mãe em qualquer lugar. Então me ilumina, me diz como é que termina? Termina na hora de recomeçar. Costura o fio da vida só pra poder cortar. E este mistério estará sempre lá. “ Por certo, tens todas as respostas, pois Deus já te criou sabida. Agora no espelho não estás mais. Não te vejo em meus olhos, nem nos sonhos, nem nas ruas desertas de outrora. Teu lugar é tão íntimo, que não há como explicar. Ficas muito mais do que em minha memória. Fazes parte de minha vida. Do meu ser. Do me estar no mundo. Do homem que me tornei. Por isso mãe, às vezes, me pergunto o que somente tu sabes a resposta. Mas foste tão cedo.

sábado, abril 11, 2015

Análise dos poemas: “Poesia do momento” “Sentir" e “Realidade” da poeta Dalva Leal Martins

As poesias devem ser declamadas, interpretadas. Em geral, é o que se pensa. Pelo menos, eu tenho comigo que são muito mais expressivas as imagens, os sentimentos, as sensações que os versos transmitem, quando os mesmos são lidos em voz alta. Entretanto, há o outro lado, a literatura difundida nas expressões literárias, no sentimento profundo que estimula a imaginação e o pensamento e lendo-se com absoluta atenção, percebemos nas entrelinhas o quanto as sensações podem ser intensas. Os poemas são suaves, leves, atingem devagarinho as nossas percepções sem percebermos, às vezes, o grau de envolvimento. Aos poucos, estamos completamente submetidos à emoção. Assim, aconteceu com a leitura que estou fazendo do livro “Sentimentos da alma: poesias, crônicas, pensamentos”, da poeta Dalva Leal Martins. São histórias que nos transportam a experiências vividas ou imaginadas, a momentos de alegria ou solidão, a sentimentos de busca e encontro. Na “Poesia do Momento” (p.16), observamos, através dos versos bem delineados, que a autora identifica certa distinção nos sentimentos que a poesia atual expressa, aqui personificada, principalmente na sua perspectiva em relação ao passado. Um passado que a autora provavelmente tenha vivido. Na poesia do presente, revela-se a maturidade, talvez em virtude dos sofrimentos, dos percalços da vida, das esperanças frustradas e das experiências vividas. Percebemos esta mudança nos versos que dizem : ela (a poesia) tem a inspiração da alma sofrida de coração ansiado, do desejo de crer na alegria da vida. Para isso, propõe sentimentos ou sensações que se contrapõem em antíteses, como nos versos “tem luz e lume nos caminhos do amor, nas sombras noturnas, nos soturnos olhares”. Percebemos que embora os caminhos do amor sejam iluminados pela poesia, estas mesmas luzes são atingidas por olhares tristes e desesperançados. Por outro lado, a autora afirma que a poesia tem “lágrima e graça.” “Tem emoção sentida na fé que transcreve, no sentimento que fala da natureza ao redor, no olhar que espera…”. Aqui o poema revela que a alegria e o sofrimento tem guarida na esperança produzida pela fé. No último verso, ratificando o que foi afirmado sobre a mudança ocorrida na poesia, observamos uma ruptura da poesia anterior, com a poesia de agora. “Nada tem de outrora a poesia de agora!”. Ressalta-se aqui, um crescimento interior dos sentimentos da poeta, que apesar de acreditar em todas as expressões dos sentimentos da poesia de outrora, compreende que tudo isso faz parte de um passado do qual só restam lembranças (talvez boas recordações), mas que não se repetem mais (ou perderam a expectativa antiga de sua realização). A poesia já não é a mesma, talvez porque a vida também possui vieses distintos. A poesia acompanha a vida da autora, palmo a palmo, traduzindo a realidade de crescimento interior, pois a maturidade traz consigo a sabedoria e a mudança de perspectivas. Neste último verso, que é o ápice do poema, a poesia adquire o seu melhor momento. Aqui ocorre um lirismo intenso, consolidando o sentimento que a autora expressa desde o início. No poema “Sentir" (p.44), observa-se que a autora descreve com maestria os sentimentos que afloram em seu viver, através de um aura melancólica, mas sublimada pela força e poder da própria poesia. Para tanto, vejamos: “Sinto a chuva como lágrimas copiosas e os ventos como sopros de saudade”. Aqui, percebe-se a figura da chuva como a presumível melancolia, anunciada pelos ventos ( ou seja) experiências passadas que são revividas como suspiros de saudade (os sopros dos ventos). Por outro lado, vemos nos versos “Sinto na claridade dos relâmpagos, falsas esperanças despertadas”. Apesar da saudade, de vez enquanto, há luzes, clarões de esperanças, tão esparsas e velozes, quanto a velocidade dos relâmpagos. Segue, nas imagens da natureza, o seu estado de espírito: “Sinto nas manhãs frias estar abandonada… e no calor solar ter o mais doce aconchego.” As manhãs frias sugerem uma exclusão do mundo exterior, uma vontade de isolar-se e esconder-se entre as paredes do quarto, num abandono natural ( pelo frio, pelo medo, pela solidão) em contraponto às manhãs ensolaradas que nos estimulam a sair para a rua, a sentir o sol no rosto, nos ombros, acariciando a pele e a alma. A partir deste estágio, a poeta desperta na alegria esperançosa do cantar dos pássaros, afastando-se do sofrimento, da solidão. Desta forma, apropria-se da inspiração que jaz latente em si, como a explosão das ondas. O desafio da vida. E nesta experiência, torna-se novamente refém de si mesma, de seus sonhos, suas ilusões, seus sentimentos. Volta então, a viver plenamente, pois quando se sonha, se vive. E que valem os pesadelos, para quem tem a alma sonhadora? “A Natureza fala à minha alma, como a prece fala ao coração. Sinto-me refém de mim mesma, presa ao meus próprios sentimentos… rastreando sonhos e pesadelos!" No soneto “Realidade” (p.53), a autora utiliza a metáfora galope do tempo, para demonstrar a finitude da vida, transformando em segundos o presente em passado. E neste galope do tempo, nada é imutável, nada é eterno, nem o homem e a natureza da qual faz parte. Parece aqui, que só há um poder inabalável, um imperador que dita todas as ordens da condição humana. Neste caso, está muito claro a ideia de que tudo é perecível, e deste modo, a única forma de perpetuarmos os nossos valores é através da aceitação desta realidade e do desejo de harmonia. Somente assim, o homem não vê o tempo como um galope inexorável, mas como uma faculdade de nossa existência, que pode ser utilizada a nosso favor. Teria muito a falar, muito a descrever e pretendo fazê-las analisando de modo apenas baseado na sensibilidade de saber ler a poesia com os olhos mais afinados de um leitor que possui algum conhecimento de literatura (nada porém, que comprove em definitivo o que pensa realmente o autor). De todo modo, uso dos parcos conhecimentos que possuo, para fazer uma análise do livro que estou lendo. Fonte: MARTINS, Dalva Leal. Sentimentos da alma: poesias, crônicas, pensamentos. Rio Grande, Casa Letras, 2013.

sábado, março 21, 2015

PARA QUEM A PAZ DE CRISTO, NÃO PASSA DE UM CUMPRIMENTO SOCIAL

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A paz de Cristo é um cumprimento que ocorre na missa, no momento em que se transmite ao outro, ao fiel que está ao nosso lado, este sentimento de plenitude e paz que Nosso Senhor nos outorgou e que hoje repetimos nos rituais litúrgicos. É um momento lindo, de pureza e afeto, que nos une um pouquinho ao divino e nos deixa mais humanos, mais próximos do outro, mais ligados à fé. Entretanto, às vezes, nem sempre este ato beneplácito é usado de forma natural. Muitas vezes, o cumprimento não passa de uma atitude estereotipada, usada apenas no aspecto social, quase uma obrigação. Nestes momentos, penso que estas pessoas deviam passar longe da igreja, ou caso participem de alguma atividade religiosa, que o façam com dignidade. Se não gostam da pessoa, que permaneçam com seus rancores ocultos, que se afastem e se juntem aos seus pares, mas não utilizem as palavras de Cristo como um modelo artificial, apenas para demonstrar em público, uma educação (que em regra) não possuem. Acho que Cristo as compreenderia e por certo, saberia alertá-las de algum modo, dar-lhes uma saída, para que voltassem a serem sinceras. Afinal, pelo menos, não fariam sofrer com hipocrisia, os seus desafetos. É uma pena. Deveríamos refletir muito antes de qualquer gesto dentro dos rituais da missa. Deveríamos ser sinceros. Afinal, a paz de Cristo deve ser para todos. Não apenas para alguns. Deve ser irrestrita. Não seletiva. Deve ser franca, não evasiva. Na verdade, deveríamos reatar com a pessoa, antes do cumprimento, nem que fosse em oração, para termos a faculdade de oferecer a nossa paz, que assim, seria plena. Que tenhamos a paz de Cristo. Que a desejemos com alegria e sinceridade e se por acaso, ainda não estivermos aptos a aceitar o irmão que está ao nosso lado, não o cumprimentemos com falsa consideração. O que existe de pior para uma pessoa é perceber o quanto a tratamos socialmente, sem qualquer afeto sincero. Que a paz de Cristo seja para todos, inclusive para quem não a sabe distribuir

domingo, janeiro 18, 2015

SORRI



Quando passava rapidamente pelos sebos de revistas, livros e todas quinquilharias, gostava de procurar aqueles discos de vinil antigos principalmente os de coletâneas musicais. Às vezes, nem tão famosas, mas surpreendentes pela qualidade, embora ainda intactas nas caixas. Num desses passeios, percebia que as coisas mudavam de repente, que os vinis não me pareciam o antigo objeto de desejo, que havia outros motivos para os passeios, que nem sabia muito bem definir. Talvez o dia de sol em Porto Alegre, encontro com outros colecionadores e amantes de livros e discos, ou de quaisquer bugigangas que trouxessem um pouco de saudade. Nestes momentos, o mundo não parecia o mesmo, movia-se mais rápido. Com o tempo, percebia que, na verdade, procuramos muitas coisas e nossos desejos de felicidade estão bem escondidos, num lugar quase impenetrável e cada vez que os buscamos, o fosso se alarga e ela se espalha, como mercúrio do termômetro quebrado. Ágil, imperiosa. Às vezes, alegria transborda. Outras, a tristeza impera. Mas não há porque chorar, mas sim, sorrir. Juntar as gotas de mercúrio talvez seja impossível, mas há como sujar os dedos de pura substância. E o perigo está aí, em ser feliz. Porque a felicidade também dói, também causa ansiedade e medo. Mas então, devemos sorrir. Como naquela música que o Cauby Peixoto cantava magistralmente e também, mais tarde, num tom bem melancólico, a voz limpa e melodiosa de Djavan. Sorri ou Smile. “Sorri, quando a dor te torturar e a saudade atormentar os teus dias tristonhos, vazios.” Há momentos assim, que os dias se arrastam, que não se tem a dinâmica do processo do tempo nem a perspicácia para se descobrir um caminho novo, para mudar a situação. Às vezes, nem sempre é algo muito palpável. É uma tristeza de se querer ser triste, não se sabe como, mas quem sabe uma necessidade intrínseca do ser humano em querer sofrer. Que me perdoem os médicos e os psicanalistas, mas acho que o homem em determinados momentos, gosta de sofrer. Por vezes, o sentimento extrapola uma dor imaterial, sugerida por uma canção doída, que nos remete a sofrimentos, que nem são nossos, mas que os tomamos, como a dor de nossas vidas. Sempre que ouço a música “Pedaço de mim”, que fala exclusivamente da saudade, pra mim, surge uma imagem clara da dor de um pai ou mãe que perdem o filho e essa imagem me dói intensamente, mesmo sabendo que é uma metáfora forte para a dor da saudade, do abandono, da morte do amor. “Oh, pedaço de mim, oh, metade arrancada de mim, leva o vulto teu, que a saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto, do filho que já morreu”. E se sofremos por motivos diversos, isso de forma real e absoluta, também encolhemos essa dor, com medicamentos alienantes. Mas que fazer? Segurar a dor? Segurar a ansiedade? Não. Sorri, como diz a música. “Sorri, quando tudo terminar, quando nada mais restar do teu sonho encantador”. E quem não sonha sempre, em qualquer etapa da vida? Quando crianças, em conseguir aquele game famoso, de última geração. (Na verdade, nem todas as crianças tem estes sonhos, algumas no máximo, o de brincar nas ruas enlameadas em que vivem). E quando adolescentes, que o sonho maior talvez seja apenas a afirmação como ser humano, integrante no grupo, fazer parte da galera? É possível. Aí vem o sofrimento, a dor , a angústia. E quando adultos? O amor imaginado, a segurança do carinho certo, do encontro pleno, ou quem sabe, da profissão desejada, do emprego, da vocação? Há tantos sonhos para os jovens. E para os adultos, de qualquer idade? A viagem sonhada? A saúde? O projeto há tanto adiado? O reconhecimento dos amigos? O acolhimento da família? Que fazer, quando nem tudo ocorre como sonhamos? Sorri. “Sorri, quando o sol perder a luz e sentires uma cruz, nos teus ombros cansados, doridos, sorri”. E quem sabe, assim, com o passar do tempo, com o deflagrar das ilusões, com a tendência de sermos celebridades por momentos exíguos e expor as nossas vidas ao público das redes sociais, vivermos esse sonho virtual. Então: “Sorri, vai mentindo a tua dor, e ao notar que tu sorris, todo mundo irá supor que és feliz”.

quinta-feira, janeiro 08, 2015

O OUTRO

http://kbimages.blogspot.com/url-code.jpg Estava assim à procura do tempo e o avistei sozinho. Parado que se encontrava à porta da igreja. Barba longa, desleixo involuntário. Pele escura, encardido. Sol a pino, um boné velho, virado para o lado, uma gosma escorrendo no canto da boca entreaberta com dentes falhados, amarelos, mastigando levemente a vida. Nos olhos, uma fuga estranha, um olhar para dentro, um não sei o que faço, que assustava. Por um momento, senti uma certa náusea. Olhar aquele ser humano, e poder enxergar esta condição, me apavorava. Difícil para qualquer um entender. Difícil pensar no assunto e enfrentar a situação. Aproximei-me com moedas pesadas, ajustadas na palma da mão, mergulhadas que estavam no bolso, escorregadias no tilintar dos dedos. Acho que o assustei, porque me olhou de soslaio, meio apalermado, temendo talvez uma sacudida, um pedido que saísse, ou uma ordem de evacuação do espaço. Que nada. Sorriu ao ver o brilho das moedas, bem maior para os seus olhos. Segurou-as rápido e afagou a minha consciência, no beneplácito da ação. Senti-me culpado. Dar moedas, quando poderia oferecer qualquer coisa que me tornasse um pouco mais próximo, mais intimo, mais afetuoso. Quem sabe, uma pergunta, uma palavra qualquer. Um desejo inconsciente de relacionamento. Bobagem. Naquelas condições, o máximo que faria é esfregar o dorso da mão nos olhos, ante a minha figura emoldurada nos últimos vestígios de sol, que ainda iluminavam a praça. Na volta, pessoas caminhavam céleres, preocupadas consigo, temerosas de assaltos, envolvidas em suas pequenas paixões do dia, se as tivessem, sobressaindo talvez às mediocridades do cotidiano. Quem sabe viver plenamente era enfrentar estas contingências da civilização atual. Quem sabe este confronto não faz parte de nossas existências, para alicerçarmos nossos pequenos desafios, percorrer os degraus às vezes mais acima, outras bem inferiores, irregulares sempre. Talvez fosse assim este ato de coragem de enfrentar a vida, suas vicissitudes, seus vazios, suas perdas e monótonas contradições, seu dia a dia morno, estável e seguro. Que seguro? Se precisas fossem as armas que nos apontam. Se não fossem ainda miradas através de olhos humanos, de mãos frágeis, vagabundas, certamente poucos de nós restariam. Ou só eles, os fortes, os modificados geneticamente, os robôs, os clones, os desumanos. E seriamos então a constituição de todas estas raças artificiais. E nem armas, nem moedas, nem afetos nos trariam à vida. Certamente, tudo descambaria para a vala comum da insanidade. Mas ainda o vejo ali, estirado, uma perna esticada, mostrando os músculos danificados, através da calça rasgada até o joelho, sujo, escuro, fedorento. As mãos ensimesmadas uma na outra, esfregando-se, fingindo frio, fazendo tilintar as moedas que brilham nos bolsos. A cabeça encostada no canto da porta, à esquerda, pendente, pedindo socorro. Cabelos sebosos, amarfanhados, divididos na nuca no confronto da madeira. Por que continuo observando-o se nada tenho a oferecer. Talvez este olhar complacente, que raramente possuo. Talvez este jeito despojado, esta vontade esquisita de ir ao poço de mim mesmo e descobrir ali, um pedaço da humanidade, aí, repartida em mil cabeças, cada uma ruminando o seu destino, alijadas de um processo de cidadania que a poucos contempla. Talvez seja ele um protótipo de nossas insensatezes, de nossas precárias participações da comunidade, do nosso desejo fraco do coletivo. Afasto-me e temo encontrá-lo novamente. Por certo, tremerei o coração, mas não por ele. Recordo Hemingway, e entendo por quem os sinos dobram. Eles dobram também por ti. Meu coração estremece, solitário e doído, por mim.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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