Este blog pretende expressar a literatura em suas distintas modalidades, de modo a representar a liberdade na arte de criar, aliada à criatividade muitas vezes absurda da sociedade em que vivemos. Por outro lado, pretende mostrar o cotidiano, a política, a discussão sobre cinema e filmes favoritos, bem como qualquer assunto referente à cultura.
sexta-feira, julho 17, 2015
A dor
quinta-feira, julho 16, 2015
A vida, de volta, por favor
Encontrei-a dobrada em dois, na mesa, braços cruzados, nariz enfiado no livro. Quando levantou a cabeça, pude ver-lhe os olhos e nem percebi que havia uma gota de desilusão pelo que tinha lido. Nem uma lágrima mais pousaria tão rápido no papel, quanto aquela sentida, que nem parecia humana. Aproximei-me e sentei ao seu lado. Não compreendia o peso do infortúnio que parecia suportar aquela mulher, já ida nos anos. Girei o salto do sapato no ladrilho irregular e falei desprevenido.
_Não pensei que este livro traria tantas recordações, e que tristes, me parecem.
Levantou a cabeça sem jeito, mas examinou no olhar todas as intenções que tentava ocultar. A voz era sonora e forte. Os modos de quem viu neste mundo, o que não encontrava no outro.
_Pois não, meu senhor, é que tenho que ficar assim, depois de quatro séculos. Se me pedissem para amolecer, não acreditaria. Mas o que a menina ia fazer, se não se aproveitar de uma velha ama para abandoná-la mais tarde? Dizem que a primeira onda feminista começou no século IXX, mas ouso vos assegurar que Julinha foi a responsável pelo primeiro movimento feminista no mundo! E em Verona! A menina foi pioneira em transgredir as regras. Misturou o belo no feio. Nunca me ouviu e se me ouviu, fez o que queria e não o que devia. Aliás, me fez de boba.
_Entretanto, ela cresceu à tua imagem e semelhança – tirei uma caneta do bolso e um pequeno bloco. Anotei algumas coisas, enquanto falava.
_Todavia lutou pela classe dela. Caí aqui, por acaso. Talvez porque minha linguagem é normal, como a de qualquer cristão. Nada de epitalâmio – e falava torcendo a boca, afundando os sulcos e fazendo covinha no queixo – elegia, rapsódia, essas coisas de nobres. Julieta também as tinha. Eu falava de coração aberto. Por isso, estou aqui. Quem se aventuraria nos dias atuais, proferir tais versos, disparar o linguajar poético na hora do almoço, arremessando mucos sobre o bufê? Quanto mais, nessa epidemia de gripe, os vírus se acumulariam em desespero na boca prolixa dos nobres!
_ É verdade — assenti, olhando discreto a janela que se abria numa ponta de sol. Ela prosseguia, emblemática. Tinha consigo que conhecia mais do mundo do que qualquer navegante aventureiro.
_Podeis imaginar o Conde Páris, falando ao celular, usando verso alexandrino? Qual vivente ia suportar tal palavreado? Eu, ao contrário, respeitam o que digo.
_Parece que aprendeste a língua dos nobres.
_É claro, meu senhor, pois de bibliotecária à freira, e de freira à ama, passei por todas as culturas. E depois, vindo a esta nação dos trópicos, qual a língua que tem mais valor do que a dos magistrados. Longa vida às CPIs!
_Sei, sei, já me contaste isso um milhão de vezes. Mas Julieta, em sua beleza, seria uma perfeita top model, por exemplo — provoquei.
_ Creio que não, meu senhor. Veja a cena: a menina, arfante, ao lado do seu amado, mastigando monossílabos amorosos no aparelho de dentes, ah, porque neste mundo de loucos, não há quem não use celular, não aplique aparelho dentário e abuse da Internet. Estas coisas modernas!
_Seria terrível. Nada romântico — pontuei desolado. Tive a impressão que o homem de branco atravessou a sala, mas foi só impressão: estávamos sós, naquela cela fria. E ela nem percebia minhas conjecturas.
_Temos a Senhora Capuleto, mandando email para filha, em soneto Petrarca! Que desastre!
_Pensando bem, tens razão.
_Pois não tenho? Haveis de assentir que sou a pessoa indicada para adentrar nestes tempos presentes e aceitar o que se passa. Não vejo qual de meus contemporâneos teria o dom de camaleão, como eu. Bem sabeis, que posso me virar dum jeito ou do outro. Posso entender o que se passa no senado, na câmara, nos grandes duelos mundiais. Já imaginastes o quanto vi, não? Nada do que acontece hoje em dia, me impressiona.
_Disso não tenho dúvidas, mas uma coisa, não podes esconder de mim. Vi uma lágrima no teu olho. Ainda sofres pela pequena – incitei-a, maldoso.
_Naturalmente, pois eu a induzi ao encontro com o amado. Para ela, a morte significava o rompimento com maneira passiva de agir e pensar. No nosso tempo, a mulher não se dava a esses luxos! Entretanto, ela não foi companheira.
_Como assim?
_Sois bem lento, não? Já não te disse que a menina lutava pelas mulheres, para que elas tivessem o seu papel no mundo.
_Papo furado.
_Ninguém acredita. Tanto tempo passado e ninguém ainda acredita. Não é nada surpreendente aos seus conterrâneos, também não acreditaram na odisseia do trono. Há mais de 30 anos que o rei faz o que faz e somente agora é que se deram conta. Mas deixa pra lá.
_ Falas do Senado?
Escondeu um sorriso irônico e prosseguiu, na defensiva. Larguei a caneta e cruzei os braços, intrigado. Ela prosseguiu, enfática.
_Eu era uma delas, estava lá, precisava de uma companheira, alguém que lutasse pelos meus direitos também, que levantasse a bandeira das amas, das criadas, mas ela só pensou nas mulheres de sua estirpe. Uma nobre! – faz uma pausa e suspira — Afinal, até a Sra. Capuleto confirmava que sempre fui uma criada confiável, confidente e amiga. Julinha devia me agradecer, mas qual, se afastou de mim, irritada com meu zelo.
_Estás certa que foi por isso?
_Sim, para mim, ela se mostrava inteira, seus sentimentos à flor da pele, seus desejos mais íntimos. Houve um tempo em que ela seguiu outro caminho, que renegou meus conselhos. Nós éramos diferentes. Cada um que lutasse na sua própria classe.
_Mas ela tinha consciência disso?
_E eu tinha? Só muito intimamente, porém meu coração dizia o que era certo e o que era errado. Pelo menos, o que era conveniente para o momento. Ou para a situação. Ela foi boba. Por isso, não escapou do destino. Nenhum deles. Eu sim.
_Quer dizer que o que te salvou foi a língua.
_Foi o que sempre disseram. Que eu tinha língua grande. O amigo do Sr. Romeu, me chamava de alcoviteira e o Sr. Capuleto, certa vez, pôs-me a alcunha de “dona prudência”, puro escárnio. Disse-me bem assim: “guardai na boca a língua sabe-tudo. Ide ensinar vossas comadres”.
_Me refiro à maneira de falares — confirmei num meio sorriso.
_Não sei. Agora que me deleito neste livro, percebo que o bardo foi bondoso comigo. Quis me salvar, por isso, me purificou com o verso branco. Acho que o bardo me livrou dessa.
_Mas e depois?
_Depois nada. Figuração pura! Além disso, quem poderia querer prêmio maior. Alguém cujo nome quase não fora pronunciado! O Cavalheiro sabe o nome de algum lixeiro, coveiro, camareira ou coisa do gênero? Somos tão invisíveis quanto a poeira dos poderes! Ela encobre tudo e ninguém a vê!
Tentei falar alguma coisa, mas ela interrompeu, rápida: “Ama. Alguém que é só Ama pode querer alguma coisa mais da vida? Eu sou tão secundária que nem perceberam o meu desaparecimento!”
_Mas e daí? Que poderias mudar na trama?
_Na verdade, não sei o que mudaria, mas sei o que ainda posso fazer.
_Por exemplo?
_Que quereis que eu diga, num mundo no qual as pessoas continuam tão intolerantes quanto antes. Em todo o caso, em vosso país, ainda ama, não passo de ama dos livros – mais um silêncio proposital, um muxoxo e uma explicação rápida — que fazer se não apenas zelar pelos livros, já que não posso decidir seu destino? Num país em que os professores são iletrados, a bibliotecária não passa de uma ama, que serve para cuidar, guardar e empilhar no lugar certo.
_E que pretendes fazer?
_Até agora, nada. Mas como Julieta, quem sabe lutar pela classe. Fica difícil, pensar sozinha.
Pretendia pedir-lhe silêncio. Não era bom ser tão enfática na política, pois quando o fazia, o homem de branco se aproximava, e trazia consigo uma infinidade de medicamentos. Melhor não arriscar. Então, dourei a pílula: _Pelo que me consta, ela agiu intuitivamente, preocupada com o coração, apenas._E deu no que deu. Caso pensasse mais longe, teria frutos melhores. Mas deixemos a ovelhinha no lugar que lhe cabe. Nunca deixei de amá-la, afinal eu a criei como filha! Quanto a mim, quero mais é apreender os novos rumos.
_Achas que pode dar certo?
_Se não der, um litro de silicone em cada mama, resolve.
Fiquei quieto, me eximindo de emitir opinião. Aproximei-me e a vi no contorno da cortina. Da vidraça do postigo, observava seus olhos argutos, assinalando alguma coisa obscura na mente. De repente, voltou-se e prosseguiu, eufórica.
_Se voltar algum dia, me chamem apenas de Angélica. Depois dessa, acho que mereço, né? Se ele assim designou, que o use.
_Não temes ofendê-lo com teus resmungos?
_Se me criou com este caráter, sabe-o muito bem como aguentar-me. De todo modo, convém me manter neutra e seguir a vida.
Antecipo-me em perguntar-lhe se não considera a hipótese de voltar ao passado. Não responde. Fica pensativa, olhando o nada. Em seguida, levanta-se, larga o livro, pega o chapéu e ensaia alguns passos em direção à porta. Volta-se e pergunta: “Não achais perigoso?”
Fiquei quieto. Seria mais sensato não responder. Ela se afastou, então balbuciei baixinho: “Morrer duas vezes, é indigno. Que seja apenas um Romeu dos trópicos”. A porta se fechou e a janela foi ficando bem maior, mostrando um horizonte amplo, variado. Pela porta, espiava um baile à fantasia, uma avalanche de Marcos Polo, Napoleão Bonaparte, Cleópatra, Helena de Troia e tantos mais. Não vi nenhum brasileiro, apenas o homem de branco que pretendia acabar com a festa. Aproximou-se de minha mesa, puxou-me com cuidado a cabeça que estava enfiada no livro e olhou-me nos olhos dos quais não perceberia uma gota de desilusão do que havia lido. Acho que queria perguntar-me pela Ama. Só voltei-me quando repetiu amiúde: Romeu, Romeu...
quarta-feira, julho 15, 2015
MEU CARRASCO INTERIOR
Este texto foi produzido para um desafio de uma oficina literária. A ideia era descrever conflitos similares aos do romance "O ateneu" de Raul Pompeia, ao conto, nos dias de hoje.
Estava ofegante. Pudera, estava atrasado.Tentei passar pela hall sem ser notado, afinal, àquela hora, o Seu Miguel já teria abandonado o posto, para desfrutar do cigarro à porta do bar e jogar conversa fora com as atendentes. Empurrei com o tênis sujo a portinhola, atravessando a portaria em direção às salas de aula e meu coração se colocou em posição de defesa. Seu Miguel estava ali, patético, me observando dos pés a cabeça. Ao contrário do que imaginava, estava no seu devido lugar, às 8:30h cumprindo o seu dever de impedir a entrada dos retardatários.
— O pirralho tá querendo me enganar, é? – e disparou um palavreado padrão que dispensava desculpa. Exigiu que eu sentasse na poltrona ao lado do balcão. Deu uma olhada na tela do monitor que registrava os corredores e salas de aula e informou que chamaria o diretor. Eu teria de esperar pela próxima aula e não poderia, sob hipótese alguma, me afastar.
Fiquei ali, roendo as unhas, mais preocupado com a pesquisa de Filosofia do que propriamente com a reprimenda do diretor. Quando o diretor dispensou-me com um carimbo de atraso na agenda, já se havia iniciado o intervalo. Esforcei-me em entrar na sala, ultrapassado pelos que se afastavam em marcha de guerra em direção ao pátio. Corria contra a corrente, sentindo o cheiro abafado dos humores que se agitavam em seus corpos ansiosos pela liberdade que corria lá fora. Uns questionavam a minha ausência, outros me premiavam com safanões, abrindo caminho, considerando que o obstáculo os incomodava. Alguns se aproximavam e cheiravam minha boca, perguntando o que eu tinha bebido. Eu é que me sentia nauseado pelo hálito putrefato das bactérias acomodadas, que ora se contorciam em suas bocas famintas, pululando na saliva acordada.
As gurias se juntavam em grupos, pequenas garças se entrincheirando, dando bicadas desenfreadas, procurando vermes desconhecidos para devorar. Não tinham o menor interesse em mim, a não ser no que dizia respeito aos trabalhos escolares. Era considerado nerd. Uma que outra, se aproximava, para mostrar-se catedrática em todos assuntos. Eram astutas e bobas.
Larguei a mochila, desanimado, e voltei para o pátio. Como era proibido permanecer na sala, eu ficaria à espreita, se possível, fugindo dos maus tratos ou das piadas grosseiras dos desafetos. Via de regra, eu me sentia pouco à vontade. Aliás, não ficava bem dentro da carcaça que era o meu corpo: franzino, pernas finas, olhos grandes num rosto pintado de espinhas.
Os guris não se preocupavam muito comigo, naquele momento. A não ser Tiago, um espécime estranho. Era desajustado ao meio, como eu, além de possuir um traço peculiar, que me induzia a afastar-me dele. Era um tolo. Obedecia passivo aos mandos e desmandos dos demais. Sua fisionomia era deprimente: alto, nariz comprido, pescoço vermelho, onde as veias desenhavam variações de fios azulados. A boca grande, os dentes desaparelhados, uma penugem etérea sobre os lábios e um olhar perdido de boi no pasto ralo. Diziam que tinha o hábito de masturbar-se ouvindo músicas sombrias, do estilo emo, que grassava entre pequenos bandos. Na verdade, eu temia ser comparado a ele. Receava juntar-me a um cara tão esquisito, com jeito de tarado e além de tudo, um parvo, um idiota completo. No meu mundo obscuro, entretanto, martelava uma dose dissimulada de culpa por me achar superior.
Do outro lado, próximo ao bar, estava Jura, esgueirando-se por entre um corredor polonês, fingindo que desfilava. Para todos, não passava de um veado exibicionista, que se imaginava mulher. Mas ele tinha alguns amigos, que nem ligavam para as suas preferências, ao contrário de mim, que tinha o estigma da timidez, do medo da aproximação, do rancor pela solidão provocada. Embora levasse encontrões de um que outro mais homofóbico, o Jura tinha lá os seus predicados. Era muito querido entre os professores, tinha a faculdade de organizar grupos e distribuir tarefas e interagia muito bem com as gurias. Além de tudo, a sua auto-estima era alicerçada num corpo forte e numa mente aparentemente resolvida.
Do meu ponto estratégico, podia observar os grupos que se formavam aqui, acolá, de acordo com as preferências ou a necessidade do encontro. As meninas se esforçavam em mostrar os dotes particulares, sacudindo os cabelos e bamboleando o corpo enquanto falavam. No pescoço, nas mãos e nos pulsos, inúmeros badulaques participavam dos movimentos, atiçando olhares, aguçando a curiosidade e a aproximação dos meninos. Michele era uma daquelas audaciosas. Tinha por hábito mascar chicletes, enquanto falava, e gesticulava em demasiado. Mascar não era o problema, o curioso é que o fazia com o aparelho dentário, que a deixava em maus lençóis, quando a engrenagem enguiçava com a goma. Nada demais para os meninos, habituados ao seu jeito ousado de se portar, como beijar de leve no rosto ruborizado, expressando coisas obscenas. Um que outro, mais arrojado tascava um beijo demorado, correspondido como poucos, servindo de modelo à turma.
Eu me surpreendia com tanta facilidade nas demonstrações de afeto e um estreito sentimento de raiva se apoderava aos poucos de mim. Passava, então, a odiar a todos, sem exceção, mesmo aqueles poucos que me dirigiam a palavra e que não zombavam de minhas atitudes. Estava tão absorvido em minhas mágoas, que não reparei a presença inoportuna de Jonas, um dos líderes dos movimentos de demonstração de força. Caminhava em minha direção, naquele modo pretensioso de quem tem a certeza de tudo, gingando o corpo malhado, fazendo estilo e publicidade. A proximidade daquela figura me causava estremecimento, até arrepios de temor, pois não tinha boas recordações do truculento. Tinha a impressão de que estava sempre me testando, havia no olhar, na postura e em toda a sua gesticulação ostensiva uma ameaça latente, uma acusação baseada numa dúvida interna que fazia questão de expressar. Costumava dar umas batidinhas em meu rosto, logo após um estranho gesto de afeto, alisando-me a pele, como se dissesse, “não te aproveita cara, eu sou macho!”Ele sempre deixava claro que duvidava de minha masculinidade e dessa forma, se aproveitava para me agredir.
Algumas meninas espiavam, entre comentários e risadas exageradas, a performance estudada de Jonas. Eu pairava como um galho seco, encolhido na sombra da parede do bar, que fazia um ele na calçada deserta de árvores. Me escondia da turba alegre, que fazia coro com as novidades da manhã, do dia, dos cotidianos férteis. Se eu pudesse, teria um livro na mão, naquele momento. Mas seria expulso do recinto. Jonas, por uma tragédia do destino, continuava ao meu encalço. Seus dentes salientes, atarraxados pelo aparelho lhe produziam um ar de ser interplanetário. Por que chegava daquela maneira rompante, de caçador que já tinha decidido o destino da presa? Examinou-me, assinalou qualquer coisa no meu pé e espetou minha barriga com o indicador, o que me deu uma fisgada intensa nas entranhas. Depois, deu as rituais alisadas no meu rosto e as batidas rotineiras.
— E aí, beleza?
— Beleza – respondi, acabrunhado.
— Por que tu não veio na hora combinada?
— Que hora?
–A hora do desafio. Nerd pensa demais, depois destrambelha. Agora ta decidido, tu vai fazer o trabalho, to avisando.
— Que trabalho?
— Qual é, comeu capim no café da manhã? To falando da Marina.
—Tu falas da professora?
— Não, da tua mãe. É claro, cara, da tia. Ela já sacaneou o suficiente, tu não achas?
— Sei lá cara. Acho que não to nessa.
— Ah, ta sim!Tu foi o escolhido.
— Por que me escolheram? Eu não pedi nada.
—Porque tu é o meu gurizinho – e falou sorrindo, me segurando o pescoço, com as duas mãos. Senti uma mistura de ódio e um frenesi, que não sabia muito bem identificar. Talvez porque nunca tivera qualquer envolvimento com nenhuma guria, eu estava numa fase de conflitos e ambiguidades. Ele se aproveitava da falta de jeito. Me largou, com raiva e clamou, indignado, na direção dos seguidores – e ai, moçada, vem clareá as idéia do nerd aqui. Parece que não entendeu o trato!
Um dos meninos, um baixinho parrudo, disparou ao meu encontro, e em gesto consentâneo, amarrou-me os cadarços dos tênis, um no outro. Todos caíram na risada e se afastaram quando o líder deu o sinal decisivo. — Ele vai cumpri o prometido – e se dirigindo a mim, ameaçador — se não, vai ser pior pra ti. Ou cumpre ou assume!
Na sala, eu não prestava a atenção na prova de matemática. Não me saíam da cabeça as ameaças de Jonas. Não era justo produzir um fake com o perfil da professora Marina no facebook. Queriam humilhá-la utilizando imagens falsas, incluindo comunidades eróticas, e tendo a sua foto manipulada, além de enviar e-mail para todos os professores e alunos com as alterações. E por que eu deveria fazer aquilo? Uma tarefa que seria fácil para qualquer um.
O prazo venceu. Depois de noites de tortura e sentimentos confusos, não cedi, mas o mundo desabava e não havia como reerguer-me dos escombros. Sabia que era o meu fim. Jonas me procurou mais uma vez, só que agora o encontro foi na biblioteca. Estávamos numa sala de estudos, ao fundo do acervo, onde não havia quase ninguém. Ele estava diferente. Não havia brutalidade em seus gestos. Sua postura estava quase tranquila, a não ser o pé, que movimentava, involuntário, embaixo da mesa.
—Então, podemos abrir pra turma?
—Abrir o que?
—Que tu que ser a minha guria?
—Cara, tu enlouqueceu.
—Tu não fez o combinado. Então não resta saída. Só que não vai ser só minha, mas de toda a escola!
—Então, o seguinte, me confessa uma coisa. Diz aí, que tudo foi armação, que tu só quiseste humilhar a professora porque ela disse a verdade sobre ti, não tem nada a ver com a turma, não tem nada a ver com a prova difícil, tem a ver só contigo — blefei, desatinado.
Neste momento, sua segurança desapareceu e voltou a ser agressivo.—Olha, aqui, cara, não to te entendendo, ta ligado? Fecha esta matraca, se não vou te socá até acabar contigo.
—Então é verdade – arrisquei.
—Verdade o quê? Ta zoando de mim?
Pensei em ameaçá-lo, afirmando que o trato estava gravado no meu celular, mas ele percebeu a minha tramóia. Indignado, começou a bater em cada partícula do meu corpo, empurrando-me contra a parede envidraçada, ensopando as mãos no sangue que me escorria do nariz. Foi então, que num ímpeto desesperado, reagi e lhe acertei um murro tão forte, que o deixou atônito, pelo inesperado e o desequilibrou de encontro à mesa, se estatelando no chão. Aproveitei a queda e calcei seu pescoço com o solado do tênis, enquanto ele tentava desviar o rosto e serpentear o corpo para fugir da postura ultrajante. Eu não lhe dava chance. Quem me visse naquele momento, certamente perceberia um brilho ferino, selvagem em meu olhar. Minha boca sangrava, mas eu cuspia uma dose prazerosa em sua cara, confirmando, pelo menos naquele momento, a minha superioridade.
A porta foi escancarada e Seu Miguel, ao lado de outro funcionário me segurou pelos ombros, pelos cotovelos, retirando-me da sala como um animal acuado. Percebi que atrás deles, os meninos se acotovelavam, pasmados, olhos argutos, bocas que se abriam intermitentes, produzindo sons que eu não conseguia ouvir. Sabia, no entanto, que chegara a minha hora, não importava o custo. Uma leve brisa lambeu meus cabelos e meu coração se acomodou, quieto. Confessava a mim mesmo, que pretendia matá-lo de verdade, embora meu corpo sinalizasse muitas vezes, uma leve excitação na sua presença. Uma lágrima, porém, correu do meu olho apesar do desfecho clichê. Por pior que seja o carrasco, ele sempre nos seduz.
sexta-feira, julho 10, 2015
Crônica sobre o filme Mon Oncle
domingo, julho 05, 2015
OS TEXTOS MAIS LIDOS ENTRE 28/06/2015 a 05/07/2015
1º lugar: Metáforas cruéis : desqualificação das mulheres e negros
2º lugar: Não estava lá
3º lugar: O professor e o golpe
4º lugar: Eu e os carros antigos
5º lugar: Desafio : salve as florestas
6º lugar: Então, me explica
7º lugar: Vida empalhada
8º lugar: Saco de plumas
9º lugar: Sorri
10º lugar: A rebeldia dos guris e gurias da LES
quinta-feira, julho 02, 2015
Não estava lá
quarta-feira, junho 24, 2015
Vida empalhada
Não sei se era noite de lua ou escuridão total, nem se as luzes artificiais da rua iluminavam as frestas das persianas. Sabia, no entanto, que suava frio e ouvia os escarros da velha, no quarto contíguo. Puxava um cigarro, certamente, ouvindo vozes, como de hábito. Doía-me sua solidão, suas horas contadas sem futuro. Mesmo que ouvisse suas histórias na infância, não me furtava em ouvi-la ainda hoje, embora desandasse em enfadonha canseira. Não tinha o que fazer com ela, a não ser esperar que se escoassem os dias, as noites, o tempo que lhe restava. Levantei-me devagar e espiei pela porta entreaberta. Estava como eu pensava, mascando aquele cigarro velho, babado, queimando os dedos, do que restava de chama. Aproximei-me, cauteloso, entre as aves empalhadas que simbolizavam a sua mais torpe herança. Avisto-a com pesar. Me parece aflita. Olhou-me por baixo dos olhos quase ocultos nas bolsas enegrecidas. Desviou-os rápido, como se quisesse esquecer de vez, a minha figura. Perguntei por que não dormia. Entoou a voz grave, de cordas vocais gastas, afirmando que nesta noite, seria a decisão.
Sempre me tratava de um modo distante, como se temesse qualquer aproximação. O nariz adunco, os cabelos ralos pendurados sobre os ombros. Alguns fiapos pretos. Às vezes, sentia um pouco de náusea. Talvez pela fragilidade que me incomodava, a dependência, o tempo escasso de viver. Mas estava curioso. De que decisão, ela se referia?
Me olhou desconfiada. Esboçou um leve sorriso. Respo0ndeu mansinho. –Nem eu entendo, moço.
Lembrei dos dias em que era forte, espera, arguta. Vidente, rezadeira, mulher de muitos saberes. Cobrava dia e noite o aluguel do quarto infame que me sugeriu como moradia. Agora mora comigo, como uma herança que não consigo dispensar, como um cão sarnento que temo abandonar e me venha lamber os pés. Eu sozinho, talvez tanto quanto ela. Também sem perspectivas, tão dependente. Por isso, me exaspera sua figura patética, esperando o fim dos dias. Às vezes, acho que a odeio. Mas não tenho onde ir, os míseros tostões que me sobram não dão pra me afastar daqui, para ter uma casa que seja realmente minha. Enfrento devagar a ojeriza. Paciente. Fico em silêncio. Daqui a pouco, ela começa a falar. Como de costume. Não foge do padrão.
– Esta casa foi muito grande. Protegeu famílias inteiras. Mas todos foram embora. – me olha de soslaio, por um segundo e pergunta: – tá ouvindo o vento? Tá fazendo corrupio, lá fora, levantando poeira. Sempre foi um sinal.
Sentei-me próximo, puxando uma cadeira de palha. Ela não levantou a cabeça, mas prosseguiu enfática, apesar da voz estremecida e falha.
– Tá chegando a hora e você precisa cumprir o destino. A minha vida não tem mais cuidado. Tá na hora de debandar.
– Como assim?
– Acabar com ela. Você tem esta missão.
Fiquei petrificado, mas a ideia não me era de todo estranha. Não havia mais tempo. De repente, ficava aí, feito figura de cera, imagem desmaiada de quem já dera as cartas, um dia. Quem sabe era uma oferta, um convite, como aquele que fazem às personalidades, às celebridades internacionais. E para elas cuja imagem sobrepuja qualquer outro aspecto humano, nada mais coerente do que a frase “o convite para virar estátua no Madame Tussauds lhe chegou em boa hora”. Tal como uma estátua do museu, talvez lhe permitisse a chance de permanecer como presença empalhada entre nós. Por que não seguir o seu conselho e transformá-la num daqueles seres embalsamados que preparava no porão da casa?
Mas como fazer o negócio? Não dava pra matar a velha, assim, com a cara limpa. Tinha que tomar alguma coisa forte. Tinha que me transformar.
Cães ladravam na noite escura. Ela tinha acessos de tosse. Depois parava, mas logo iniciava um som surdo, quase suspiro, na dificuldade em respirar. Devia tomar alguma atitude, pro bem ou pro mal. Foi quando bateram à porta de meu quarto. A velha ouviu e ficou quieta. Fui abrir e a luz escassa me deixava ver uns olhos escuros, que assim mesmo brilhavam. Não pareciam humanos. Bobagem. Precisava atender, ver o que queriam, naquele frio e lonjura danada!
O homem tirou o chapéu e pediu para entrar. Perguntei o que queria. Era tarde. Trazer desassossego a uma casa quase deserta? Então, ele falou, se escondendo ainda mais na escuridão.
– Sou de tempo mais antigo que ela. Quando essa vida tinha outros ares. Quando tudo parecia não ter fim.
Por que se dirigia a mim, como ela? Era como se falasse através dela, feito ventríloquo. Não tive coragem de perguntar. Mas ele disse.
– Vim cumprir o destino.
– De que está falando? Não acredito em destino, disse isso à velha.
–É melhor se preparar. Fim da trilha.
– Sei o que pretende. Não me engana. Quer me matar.
– Matar é uma coisa que não faço. Vá pela casa, passeie pelos quartos, vá até a cozinha. Procure o quarto da velha.
Não entendia o que queria dizer, mas não havia como retrucar. Melhor obedecer do que morrer. Fiz o que mandou: andei pela casa toda. Examinei cada peça, cada quarto, fui até no banheiro. A casa estava em petição de miséria. Não tinha certeza, mas tinha a impressão de que estava sendo seguido. Uma sombra, um bafejo em meu ouvido. Um frio no estômago. Por fim, bati na porta do quarto. Precisava falar com a velha, quem sabe, já tinha acontecido. Quem sabe, teria morrido? Bati devagar, na primeira vez. Depois com mais força. Por fim, percebi que a porta estava aberta. Entrei, observando as paredes descascadas. Alguma poeira rolava pelo teto. No entanto, ela não estava lá. Havia uma cama desfeita, cobertas atiradas ao chão, a luz fraca do abajur piscando intermitente, alguns livros sobre a mesa de cabeceira. Então, assustado, voltei-me para a porta, que se fechava de súbito. Olhei para os lados, procurei a janela que dava para a rua, aquela janela em que a velha ficava espiando o mundo. Mas não havia janela, não havia rua. E o pior de tudo, aquele era o meu quarto. Por que entrara ali, no meu quarto? O que acontecera com a velha? Fiquei tão sozinho e desolado, que me deu uma estranha compulsão de sair correndo e fugir daquela casa que não era minha, mas que se parecia muito com a da infância, de minha vida atual. A velha não existia mais e o homem que estava à minha porta, também desaparecera. E esta solidão imensa que se intensificava. Aproximei-me da porta, com raiva. Não ficaria ali, nem mais um segundo. Nem que eu mesmo me transformasse em estátua de Madame Tussauds.
Seria até melhor. Ficaria sempre com o mesmo sorriso, mostrando dias felizes, sem essa velha solidão que me consumia.
sábado, junho 20, 2015
Skinheads
sexta-feira, junho 19, 2015
sábado, junho 13, 2015
O PROFESSOR E O GOLPE
O professor de filosofia observava a pequena multidão que se aglomerava em frente à prefeitura, naquele 31 de março de 64. Percebeu que na sacada, reuniam-se muitos representantes do partido trabalhista. Caixas de som ligadas, microfone instalado e discursos inflamados se seguiam. Havia um burburinho grande e vários carros estacionados próximos à praça. Um dos motoristas ouvia atento, a rádio nacional. As ondas curtas vinham e iam, produzindo ruídos na compreensão das notícias. O professor afastou-se de um grupo mais animado e aproximou-se do motorista que ouvia rádio, percebendo a dificuldade com que tentava assimilar o que ouvia. Mesmo assim, tentou saber se o que tinha apreendido das conversas itinerantes tinham algum fundamento. Conversaram alguns minutos. O assunto não podia ser outro. Brasília estava em pé de guerra e as notícias assinalavam que João Goulart seria deposto. Um dos políticos falava no microfone a altos brados. Parecia antecipar-se aos acontecimentos.
O professor encostou-se no carro e observou o cenário que de repente se descontruía a sua frente. As pessoas se olhavam e discutiam com a convicção de que não entendiam o que acontecia. Estavam confusas, desarmadas. O pequeno grupo que estava na sacada começou a dispersar-se. Em menos de cinco minutos, as caixas de som sumiram e o microfone calou-se. As informações que surgiam eram desencontradas, inclusive falavam em um presumível triunvirato de poder no Brasil, com as três forças armadas. O professor logo lembrou de Roma, que no ano de 59 a.C, Gaius Julius César, Pompeu e Marco Lucínio Crasso se uniram para governar Roma. A história estaria dando marcha à ré? Em seguida, o professor tal como os demais retirou-se de frente do paço municipal, despedindo-se do motorista e agradecendo as informações. Voltou para as suas aulas, para o seu trabalho, sua família.
À noite, a lua nova dava seus ares de despedindo, dando lugar à minguante para os próximos céus nublados. O mundo amanheceu cinzento. A cidade parecia outra, na qual se temia conversar nas esquinas, falar em política ou articular a palavra golpe. Na rádio, Brizola resistia com a campanha da legalidade, mas logo percebeu que seria um terrível derramento de sangue e desistiu. Alguns dias mais tarde, cassaram o prefeito. A imprensa salientou, garbosa, que a prefeitura não estava acéfala, pois assumira o vice. Não por muito tempo, pois renunciara e logo assumiu um capitão reformado do exército. Havia um interventor. Começava a operação limpeza. Muitas pessoas foram presas, levadas para o navio Canopus, um presídio improvisado, aclamado pela imprensa da época como belonave, abarrotado de líderes vermelhos e agitadores. Professores eram retirados da sala de aula, pais de família investigados e estudantes perseguidos; isso acontecia a quem pensasse diferente da força reacionária que surgia enfurecida pelo Brasil, ou que aos olhos do poder, expressasse alguma faceta que os contrariasse. Muito simples: é contra o regime, é vermelho, comunista. Deve ser punido. E tudo acontecia com as bençãos de várias instituições, inclusive da Igreja Católica, com excessão de algumas dissidências que honravam as palavras de Cristo. O professor de filosofia era um dos conspiradores do bem comum. Tanto, que foi taxado de terrorista e mal exemplo aos alunos e à sociedade.
Em dado momento, foi interrogado em sua casa, com a intenção clara de o prenderem. Seria mais um preso político jogado naquele navio, para aprender a ser um homem que não envergonhasse a nação. Nem percebiam que a nação chorava constrangida e mal conceituada pelo mundo afora.
Naquele momento, reuniram a família, a mulher e os filhos, citando todos os seus crimes contra o País, inclusive rechaçando o seu conhecimento científico e acadêmico, que para eles não valia nada. Deram voz de prisão, fizeram-no juntar seus pertences, ante o olhar apavorado dos parentes. Examinaram minuciosamente todos os objetos para se certificarem que estavam de acordo com as normas da prisão que estavam efetuando. Apenas uma muda de roupa, um par de sapatos sem cadarços, um barbeador elétrico, alguns objetos de higiene. Nisso, perceberam que havia um livro entre os pertences. Um deles, mais afoito, aproximou-se, abriu-o e estupefato, perguntou: – O senhor pretende levar este livro? Não se da conta que é uma confissão de que não passa de um comunista?
O segundo, que parecia mais calmo, aproximou-se, pegou o livro e largou-o sobre a mesa. Deu um leve sorriso, de quem não entendeu nada, mas concordou com o colega. Ainda ouviu a pergunta irônica do primeiro: – O que tu acha Aristides? O homem não tá encrencado?
Aristides concordou com um aceno de cabeça.
O professor, apesar da aparência amarga, ainda esboçou um sorriso pelo absurdo da pergunta. Asseverou que levaria o livro. Por fim, perguntou o motivo por que tanto ódio contra Machado de Assis. Nisto, o soldado deu dois passos para trás, como se iniciasse uma marcha, na qual daria meia volta. Mas não o fez: estancou e segurou o livro, abrindo-o na página do título. Começou a lê-lo, a princípio devagar, depois, releu palavra por palavra, quase declamando e para cada uma dava uma explicação.
– Memórias póstumas … Memórias, coisa de comunista! tu não acha Aristides?
Silêncio absoluto. Ele proseguu: — de Brás, isso é coisa de petrobrás, eletrobrás, monopólio, tu não acha Aristides?
O outro esboçou a primeira reação, tentando articular uma frase, talvez lembrando que a briga da petrobrás vinha desde o Getúlio, onde o Jango, como ministro na época não aceitava a interferência americana, mas nada disse, foi interrompido pelo soldado leitor, que exclamou vitorioso, os olhos muito vermelhos, a voz embargada de forçada nacionalidade — Cubas! Aqui não tem mais conversa, amigo! Comunista puro! Vermelho de merda! Tu tá lendo um livro que fala em Cuba!
Aristides, desta vez sorriu, franco. O amigo sabia o que dizia!
O professor foi preso, torturado e mais tarde exilado no Chile. Se fosse vivo, talvez fizesse um estudo sociológico, antropológico ou seja lá que viés percorresse para encontrar algum motivo, por menor que fosse, de que Memórias póstumas de Brás Cuba é um livro comunista. Ou enlouquecesse de vez!
quarta-feira, junho 10, 2015
Eu e os carros antigos







terça-feira, junho 09, 2015
METÁFORAS CRUÉIS : desqualificação das mulheres e negros
Certa vez, em uma disciplina de um curso de pós-graduação em linguística, avaliamos uma série de adjetivos ou substantivos adjetivados que soam lisonjeiros para os homens e ao contrário, para as mulheres produziam conotação pejorativa, pois a própria palavra utilizada possui juízo de valor, tanto para um lado quanto para o outro. Estas distorções linguísticas são foco de vários estudos de cursos de pós-graduação e muito bem explanadas em vários artigos. Sabe-se entretanto, que a língua é apenas um instrumento que é fruto da cultura dos cidadãos de um país.
Estes adjetivos constituem metáforas que desquafilicam o sujeito feminino e qualificam o masculino. Se não, vejamos alguns exemplos, que foram exaustivamente avaliados em vários trabalhos, mas que cabe aqui, identificá-lo en passant. O adjetivo vadia, para a mulher tem a ver com promiscuidade, assim como vagabunda. No caso do homem, o termo vagabundo ou vadio, tem a abordagem do trabalho, mas pode incluir também um significado positivo, como garanhão, altamente elogioso na nossa sociedade. No caso de se chamar um homem de cão, ou cachorrão, pode haver uma conotação negativa, mas nunca no aspecto sexual. Inclusive, ser um "cachorrão"", infere aspectos positivos, dependendo do contexto. Mulher chamada de cadela, no entanto é considerada uma prostituta. A desqualificação feminina se dá sempre no âmbito da sexualidade. Mulher aventureira, pistoleira, da vida ou galinha (puta). O homem aventureiro, que viaja, que arrisca, pistoleiro, um matador, homem da vida, que adquiriu sabedoria, o galo é aquele que tem um orgasmo rápido e certeiro. O adjetivo puto pode vir, além da conotação sexual, com vários significados como nervoso, irritado, bravo. Fulano está puto da vida. No caso feminino, esta última conotação é menos usada. Chamar um homem de cavalo, pode designar um indivíduo grosseiro, sem educação. No caso da mulher, chamá-la de égua, designa meretriz. O homem que é um touro, é aquele forte, bravo, fogoso e robusto. Uma mulher vaca é a mulher leviana, aquela que aceita qualquer homem. O homem chamado de lobo é o considerado sanguinário, a mulher loba é uma meretriz, o mesmo caso de mariposa. Piranha designa uma mulher de vida licenciosa, meretriz. Estas metáforas zoomórficas são destacadas por E. V. Leitão, em 1988, no livro " A mulher da língua do povo" (LEITÃO, E.V., 1988).
Mas esta desqualificação da mulher ocorre também em relação às pessoas de etnia negra (homens e mulheres), em virtude da cor, através de uma herança cultural que sempre marginalizou os negros. Para tanto, observa-se, não adjetivos, mas metáforas produzidas por expressões cotidianas que constroem um verdadeiro dicionário. Outro dia, li um texto de Setephanie Ribeiro, no site do Pragmatismo Político, que emumerava 13 expressões que ela considerava formadoras do racismo contemporâneo. Vou descrever algumas aqui, na tentativa de relacioná-las com a desqualificação feminina observada anteriormente. Umas delas, é "serviço de preto” expressão utilizada para associar a um trabalho desleixado. Remonta ao passado escravocrata, quando afirma que o negro era malandro, negligente e seu trabalho era ruim. Outra expressão é “morena, mulata“ seguidos de "tipo exportação”. Neste caso, embraquece-se a pessoa, transformando-a em morena ou mulata, e o pior "tipo exportação", no meu ver, seria sugerir uma aceitação da mulher negra pelo estrangeiro. Uma venda do material humano, como um objeto no mercado. Uma terceira expressão é aquela “não sou tuas negas”. Neste caso, a frase deixa explícito que com as negras, tudo é possível, e com as demais não se pode fazer o mesmo, lembrando o comportamento de assédio e estupros com as mulheres negras escravizadas. “Cabelo ruim, cabelo duro, etc.”para designar características do cabelo afro como algo pouco estético, fora dos padrões europeus. “Nasceu com o pé na cozinha”, neste caso, a expressão indica as origens das mulheres negras, associadas aos serviços domésticos, já que as escravas podiam ficar na cozinha e, inclusive, segundo a autora, dormiam ali mesmo.
Percebemos enfim, que vale a regra do poder reacionário, escravagista, machista e branco sobre as categorias analisadas. Tanto a mulher quanto a etnia negra, tem a desvantagem de apresentar estereótipos que os desqualificam como sujeitos. Não se pode dizer que há preconceito em relação à mulher, mas sim que todos os adjetivos são frutos de cultura machista e retrógrada que sempre privilegia o homem, principalmente no aspecto sexual, no qual a mulher é sempre inferiorizada. No caso das expressões que investem contra o negro, percebe-se aqui um franco racismo, muitas vezes disfarçado na terrível expressão “alma de branco”, que o autor também destaca. Para estes, lembro daquela música “alma não tem cor” de André Abujamra, cantada por Chico César, Zeca Baleiro, pelo grupo Perota Chingo, entre outros.
"Alma não tem cor
Porque eu sou branco?
Alma não tem cor
Porque eu sou preto?
Você conhece tudo
Você conhece o reggae
Você conhece tudo
Você só não se conhece”
Fonte:
LEITÃO, E. V. A mulher da língua do povo. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.
PEREIRA, Edilene Machado; RODRIGUES, Vera. Amor não tem cor?! Gênero e raça/cor na seletividade afetiva de homens e mulheres negros(as) na Bahia e no Rio Grande do Sul. In: https://www.abpn.org.br/Revista/index.php/edicoes/article/viewArticle/87
RIBEIRO, Stephanie. 13 expressões racistas que precisam sair do seu vocabulário. In: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/05/13-expressoes-racistas-que-precisam-sair-do-seu-vocabulario.html
http://blogueirasnegras.org/author/stephanie/
ZAMPARONI, Valdemir D. Os estudos africanos no Brasil. In: Dhttp://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=522
quinta-feira, junho 04, 2015
Registros
quarta-feira, junho 03, 2015
A política e os palpites
sábado, maio 30, 2015
PAREDES APARENTES
Morena, ainda percorro em infinitos passos, cada taco do corredor. Sei que imaginas, mas não sentes o que sinto, nem percebes a aflição. Toco nas paredes, como se me ouvissem, e às vezes, tenho a impressão de que não estão aqui, de verdade. Paredes aparentes que me oprimem, me sufocam como mãos que se torcem e me agarram a garganta. Morena, falta-me o ar. Queria ver-te, bem perto, nem que para apenas receber o beijo frio, molhar minha boca no teu veneno e corromper minhas vísceras. Quisera vender a mobília, cerrar as janelas, impedir o vento que rola as folhas em rodamoinhos de nossa paisagem. Quisera não sentir o bafejo na vidraça, molhando os olhos, nariz e boca no frio do vidro. Preferia fugir e pisar nos insetos que infestam nossas soleiras. Ouço tua voz, teu cheiro, tua presença. Ecoam tuas palavras, às vezes doces, outras, duras, frias, cruéis.
Moreno, arrisquei atravessar a lagoa, dei braçadas para vencer as marolas e não alcancei teu amor. Hoje, pra ti não sou nada, carta dobrada, que desfazes do baralho pra esconder o jogo. Fecha as janelas sim, deixa que a escuridão tome conta, sente meus dentes rangendo, minha boca estremecendo de raiva e torpor. Não sou nada, talvez a marca do adeus. Um adeus feito devagarinho, aos poucos, acalentado, pra não dar na conta. Meu destino é caminhar assim, desesperada, longe de casa, da tua vida, do lar. Quem sabe, o mapa que percorro não seja o mesmo das paredes falsas que construíste, mas que me dão guarida pra continuar.
Morena, saio na rua aos tropeços. Penso e repenso, nem sei se falo ou desisto, se grito ou alcanço com o som de minha voz fugaz dos que nem querem ouvir. Temo não te escutar jamais. Temo desviar nossos rumos, descarrilar nossos trens, afundarmos na lama fugidia que me cobre na chuva. Sei que fui omisso e não mais posso esperar que me ouças. Talvez nem pedir que me esperes, que examines com cuidado cirúrgico minhas passagens por teu corpo, teu ventre, teus seios, tua mente. Não, sei que me esqueces assim, de momento, para não mais sofreres. Agora, estou só, perdido neste vendaval que me tolhe os sentidos e os gestos. Encosto-me na parede, finjo que estou firme, ancorado, apoiado nas pernas finas que mal me cabem as calças. Sinto a dor da esperança e o olhar dos aflitos. Vejo-me na vidraça do bar, um rosto truncado, escondido em olhares sorrateiros, que não parecem os meus. Nariz adunco, avermelhado, os olhos fundos, congestão infinita. Entro no bar, me acerco de outros homens e mulheres que se esgueiram famintos na noite. Minhas mãos estremecem, assim como meu pés, imprecisos, solitários. Morena, dói-me o peso nos ombros, fardo que carrego sem querer. Dores que ferem e me afastam de mim. Morena, peço a bebida, que talvez aqueça a garganta e turve a alma.
Moreno, bebi da água pura que escorre sem dó, fria, entre minhas mãos ansiosas. Procuro o que não acho, vejo o que não encontro, desvio do que me atrai e me aproximo do que me atinge. Nem estou só, mas não me encontro entre os meus. Milhares de quilômetros nos separam, porque a distância interna é maior do que o mundo. Quisera sim estar ao teu lado, ouvir tuas queixas, assumir tuas dores, mas só soubeste golpear-me, assim de uma forma cruel e lenta para que a punição se tornasse comum e necessária. Quando te vi, nada mais restou a não ser a imagem da desilusão. Nem cansamos de nós, nem enfaramos de nossas vivências. Ao contrário, estávamos sedentos, um do outro. Mas a mulher de tua vida não pode ser apenas complemento do teu desejo. Vejo-te ainda ao lado dela e tão longe de mim. Minha mãe se acerca e pergunta qualquer coisa que não sei responder, ou nem sei decifrar. Como esfinge que me questiona, me perturba, me dilacera. Tenho olhos e ouvidos para aquela imagem que me fica guardada assim em multimídia, para não esquecer jamais. Respondo então o que devo e me vem à lembrança. Nada doce, nada suave, nada sensível. Estou só. Onde andarás, agora?
Morena, alguém se aproxima, sinto seus cotovelos próximos aos meus, no balcão de pedra. O garçom me olha de soslaio, triste, como se compartilhasse minha dor. No cotovelo, o retalho de couro, num casado antigo de lã, xadrez. Afasto-me um pouco, tento desviar os olhos para a porta de umbral redondo, cheia de vidraças coloridas; em cada uma vejo o teu sorriso, às vezes caramelo, às vezes, vermelho, às vezes, azul, às vezes sem cor. Teus dentes brancos sorrindo pra mim. Pareces um caleidoscópio. É bonito de se ver. O homem do casaco pergunta alguma coisa, vejo seu perfil e por um momento examino o rosto cravejado de espinhas, pequenas saliências que lhe agastam a fisionomia. Boca escondida num bigode tingido. Cabelos ao alto, circundado por extensas entradas. Olhos parados, finitos. Nada parece perturbá-lo, mas é só por um momento. Afasto o olhar e ele repete a pergunta. Me volto surpreso, porque nada me vem à mente, a não ser teus gestos brejeiros, tua voz sonora, límpida, teus olhos claros me dizendo coisas que não recusava ouvir. Carrega uma pasta estreita, uma espécie de guarda-tudo, talvez documentos, agendas, talvez fotos dos filhos. Não tivemos filhos, morena, nada nos sobrou a não ser o que nos vai na alma e o que lutas tanto para destruir. Ele insiste, puxa conversa. O barulho do bar fica quase insuportável, misturado ao som da tv que inicia um jogo de futebol. Um grupo se acomoda no meio do bar, espalhando-se entre as mesas, assim em pé, tentando torcer juntos, em uníssono, como pássaros em bando, conformados em viver um momento coletivo. Não é o meu caso, estou só, sem amigos, sem ti. Estás longe, morena. Tão longe que a distância até dói. Mas bastava um telefonema, uma mensagem pra começar o encontro. Foi o que ele falou, o homem do casaco com remendo de couro no cotovelo. Falou em encontro. – Não achas que tá na hora? Os homens deviam se encontrar mais, buscar em suas vidas, a paixão pelo encontro. Engoli a bebida destilada num gole. Olhei-o sem saber o que dizer. Ele pareceu entusiasmado com o meu espanto. Prosseguiu, enfático: – a paixão de se reunir. Não para assistir futebol, como fazem estes caras aí – quando terminava a frase, o nariz se erguia e uma troca rápida de olhares para a turma que já se acotovelava na galera - só tem por objetivo torcer por um time, mas não tem o sabor do encontro, da conversa fluída, da amizade intensa. Logo que acaba o jogo, cada um vai para suas casas, sem nunca mais se virem, a não ser no próximo jogo, ou na próxima beberagem. Acho que fiz um aceno afirmativo, mas quisera eu ter para onde ir, encontrar-te morena, me esperando, assim, de braços abertos. Teus cabelos caídos nos ombros, aquele cheirinho de sabonete de maçã, a boca pintada de vermelho, o olhar puro a me dizer todas aquelas coisas que eu sempre quisera ouvir. – Tu não achas que é um crime? Um crime com suas vidas, com suas ambições mais humanas, que deveria ser de integração, de procura e de encontro. O encontro máximo. Um com o outro. O garçom se aproximou, trouxe-me outra vodca, que ingeri sem gelo nem limão. Vi quando o homem abriu aquela maleta preta e esquisita e enfiou a mão com cuidado. Examinou-a de tal forma, que me pareceu haver mesmo alguma coisa muito perigosa ali dentro. Tirou um recorte de jornal, um cartão e me entregou sorrindo. Nem sei se li, morena, mas no recorte, eu via a tua imagem, tão linda, sorrindo, me dizendo coisas, aquelas em que eu sempre ajustava o ouvido com cuidado, pra não perder o matiz da trama bem urdida.
Moreno, nem devo pensar nos momentos que vivemos de bem, mas o bem que vivemos já não é o bem presente, que não é bem nem mal, apenas nada. Insosso. Sentimento puído, renda velha, desbotada. Traças que perfuram, impunes, a vida que se desenrola sem colorido. Minha mãe se atrapalha nas louças, nos talheres, se atrapalha nas pernas, se perde. Ajusto as costas, ergo o dorso, seguro-a com força. Penso em ti. Quisera estar do teu lado e esquecer a dor que causaste. Quisera sufocar também a dor que corrói meu coração. Ela está velha e doída. Talvez tenha sofrido assim,este desgaste, mas as costas não lhe doem como antes, porque se acostumou com a dor. Eu não. Sentou-se ofegante. Olhou-me nos olhos. Pensou em morrer. Disse-me coisas corajosas e até falou em ti. Estamos as duas tão só e nem nos fazemos companhia. Por uma estar se acabando na dor e a outra, a dor a acabou. Nossos mundos desiguais são apenas paralelos, mas ela sabe que só há um rumo em minha vida. Moreno, queria devolver-te a rosa, que não morreu jamais. Ela é símbolo da beleza que persiste. Minha mãe fala em perdão, porque teme não haver mais encontro, ela que já se desencontrou tanto nesta vida e nem achou seu rumo. Se achou, perdeu de vez, assim, cansada, tropeçando nas coisas, tendo raros momentos lúcidos, fugazes, que temo não encontrá-la jamais. A não ser, batendo-se nos móveis, perdendo-se em labirintos dos quais nao encontre a saída. Melhor ficar quieta e esperar.
Morena, ensaiei alguns passos, tentando afastar-me olhando a figura que mostrava teu sorriso tão franco, como se fosse me contar uma de tuas histórias. Mas o homem do casaco de remendo de couro me puxou pelo braço. Indicou o endereço, falou-me na igreja, o único ponto de encontro que julgava ter algum objetivo. Li o cartão ,agradeci e tentei afastar-me. Mas um sonoro não ecoou no recinto, tão forte que paralisei. Minhas pernas estremeceram, meus pés suaram encharcando as meias. Por um momento, os olhos e todos se desviaram da tv e se voltaram para nós. Para mim, porque
de alguma forma, fazia parte do drama que para ele se agigantara entre todos, como se força descomunal tivesse. Abriu a mala preta, esquisita e retirou um revólver, apontado em seguida para a própria cabeça. Tentei falar-lhe.
Me contive. Só ali tua imagem desapareceu, Morena. Uma cena tão forte, me fez temer pela vida, mas não entrei em pânico.
Apenas ouvi.
– Ninguém quer, ninguém pode, mas eis o encontro. Se não ouvirem a palavra, não se integrarão como devem. Eu já não posso!
Não conseguia entender porque se mataria se pregava a união. Ele então, virou a maleta
sobre o balcão de pedra, ante os olhos assustados do garçom. Uma mulher loira, cabelos presos ao alto se antecipara à cena, adentrando à porta e alguém a interceptara com um gesto. Como se tudo devesse ocorrer da forma esperada. Ou imaginada.
No balcão, voaram papéis para todos os lados. Notas promissórias, contas, talões de cheques. Aproximei-me. Argumentei:– Se queres o encontro, como pretendes te matar?
Ele gritou, exasperado: – Por isso mesmo, porque ninguém quer o encontro e eu me endividei! A Receita Federal está atrás de mim! O Banco Central me procura! O Ministério Público, a Polícia Federal me caça! Não se aproximem. Façam o que não fiz. Vão à igreja e ajudem o irmão. Não destruam o seu pastor! – e disparou um tiro na cabeça, despencando no chão. Algumas gotas de sangue respingam em meu rosto. Depois do estampido, um silêncio brutal. Foi só um segundo. O garçom quase saltou sobre o balcão, a mulher que chegara há pouco, gritou em desespero, pedindo socorro, os assíduos do futebol se afunilaram em volta do corpo. Dobrei-me sobre o homem, tentando descobrir se ainda havia vida. Mas nada. Abri o paletó de lã, xadrez, com o remendo de couro no cotovelo. Encontrei uma carteira, examinei as fotos, os documentos. Pastor da igreja evangélica. Levantei-me. Chamei o dono do bar para que tomasse alguma atitude em relação ao defunto. Afastei entre o grupo que se alinhava, atenção máxima na cena inusitada que se desenrolava ante seus olhos. O sangue brotava do ouvido, alagando o piso, do qual os pés descuidados se afastavam devagar. De repente, um gol sonoro na tv e todos os olhares e gestos e movimentos bruscos se efetuaram no mesmo instante. Aproveitei para afastar-me, Morena, acabrunhado, sem ter muito o que fazer a não ser enfrentar a chuva. O frio me fazia ranger os dentes. Quisera estar aí, do teu lado, acendendo algumas achas de nossa lareira imaginária, e sentir nas minhas mãos as tuas, percorrendo nossos corpos aquecidos. Só me resta, porém, divagar entre as calçadas irregulares, atravessando ruas enlameadas, buscando o nada, voltando para as paredes aparentes e sentindo-me mais perdido do que estou agora. Sem querer, vejo a luz do teu quarto, ao longe, um pequeno abajur que enfeita tuas noites de leitura, teu notebook abusado, amigo inseparável que me substitui a todo tempo. Quisera estar contigo, Morena, embora com ele ao lado dividindo nossos espaços. Esperando que tua mãe dormisse e esquecesse o passado onde reina rainha de um mundo desconhecido, só seu e de seus mortos. E assim ficaríamos abraçados, tomando vez que outra um vinho ao gosto, repetindo pra nós mesmos que o mundo se resumia nestes momentos, salvaguardo pela atenção, o carinho, o cuidado, o amor.
Moreno, da janela avisto um riscado cinza que ora aparece ante a luz de postes. Um riscado de água que escorre incólume pelas calçadas, inundando vielas, mergulhando as lágrimas dos que vivem ao relento, ou nas fachadas sonhadas de casas inexistentes de papelão. Sei que ficarei assim toda a noite, esperando que a vida passe, que o tempo se esgote, que minha mãe vislumbre uma cena real por alguns segundos e esqueça de vez dos vivos. Ai de mim. O tempo passa, Moreno, a mola- mestra da vida não tem fim. Melhor esquecer e não seres nada mais do que uma lembrança boa, manchada apenas pela traição. Melhor assim. Um homem qualquer, como tantos outros. Mas se surgisses nesta escuridão listrada, se vislumbrasse teu rosto molhado, teu corpo encharcado, teu pedido de perdão, talvez não soubesse dissimular, e perder de vez a vergonha, o orgulho, a auto-estima, a raiva, o ódio. Tal como as putas que te assediam. Sem vergonha, sem recato, sem princípios. Talvez não dissesse nada. Apenas abrisse a porta.
Morena, como atravessar os degraus, subir as escadas respingando nos patamares diáfanos, sujando o branco dos mármores, aviltar com minhas botas a pureza dos andares, o enfeitar dos verdes, ligeiramente escorrendo folhas pelos vasos floridos. Temo resfolegar, engolir em seco, mastigar as palavras incongruentes, construir sintagmas estranhos, inventar hipóteses absurdas. Minhas pernas tremem. Morena, meu cabelo ensopado de chuva e suor cai-me na testa, afugentando a imagem escondida, acabrunhada, meus olhos submersos em água e lágrima, mergulhados em que estão num vazio absurdo, meus ouvidos que somente ouvem o próprio som que me vem da alma, expressos numa única palavra: perdão. Mesmo com a mão trêmula, um pingo de coragem alicerçada na bebida destilada que me aquece a garganta, espalmo a mão desajeitada, encostando-me à porta impoluta, alimentado apenas pela esperança, tênue, rasa. A porta se abre devagarinho, adivinhando a investida. O olhar furtivo, a boca vermelha, o cabelo ondulado, caído nos ombros, a voz sonora e límpida.
–Morena.
–Moreno.
terça-feira, maio 26, 2015
A professora e a biblioteca (Pequeno trecho do romance A barca e a biblioteca)
quinta-feira, maio 14, 2015
Joyce - Feminina (1980) - Completo/Full Album
http://kbimages.blogspot.com/url-code.jpg A música "Feminina" é citada como analogia em minha crônica sobre as mães. Cito a Joyce no texto "Então, me explica ..."
terça-feira, maio 12, 2015
Então, me explica...
sábado, abril 11, 2015
Análise dos poemas: “Poesia do momento” “Sentir" e “Realidade” da poeta Dalva Leal Martins
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