Pular para o conteúdo principal

MORTE LENTA

Cai a noite. Por certo, os meteorologistas se preparam para as últimas informações sobre o clima. Nada do que palmilhar os mapas da mente e descobrir o clima interior, este tão próprio, tão intimo, tão vulnerável.

Pudera seguir o caleidoscópio da paixão. Sentir o calor que se abrasa em meu ser frágil.

Pudera ver as novas vertentes das cores que se abrem, misturadas às múltiplas facetas do mundo que se explora.

Mas está frio aqui dentro. Lá fora também.

A noite é intolerável.

A noite é uma mulher má, austera, fria. Sem consolo. Nem lágrimas derretem seu coração. Meu coração, certamente se derrete mais no gelo do que no calor.

Mais um dia, ou melhor, uma noite, em que me coração ficará sozinho, disforme no sofá rasgado da sala.

Por que não tenho um gato para se aninhar nos meus pés e aquecer meus tornozelos? Um gato submisso, quedme espia atrás da poltrona, enlaça seu rabo de leve no pé da mesa e passeia pela sala ao meu encontro.

Não, não tenho gato. Não gosto de gatos, nem de crianças, nem de cachorros.

Mas que faria um cachorro aqui, numa noite vazia a não ser ganir de frio ou de fome e solicitar a noite inteira o meu carinho?

Eu é que preciso de cuidado, de carinho, de atenção.

Pudera sair pela noite fria, pisar meus pés no sereno quase geada e afundar na lama das enxurradas. Ali, não teria mesmo ninguém para me aquecer. Talvez os marginais das esquinas ou os mendigos que se aquecem com chamas de papel queimado.

Quisera atravessar as praças escuras, palmilhar com cuidado os degraus da catedral e me sentar ao relento, esperando que a noite passasse e que o dia despejasse os frágeis raios de inverno. Por que o inverno é tão duro, tão inóspito para pessoas sozinhas como eu? Por que não fico me aquecendo ao pé da lareira ou mesmo no aquecedor barato que vez que outra se desliga da tomada, produzindo pequenas faíscas, anunciando o excesso de energia. Energia que não tenho, que não se acumula num corpo que se aniquila.

Cai a noite. Cai devagar, lenta, preguiçosa. Mas ela sabe o quanto dura: uma eternidade. Ela sabe que o espaço que ocupa foge das zonas geográficas da cidade, e se limita ao meu peito, aos meus braços quase inertes, às minhas pernas magras, ao meu coração estático.

Pudera fugir da noite e avançar dia após dia, sem esperar que a noite venha. É a pior espera. Um solitário como eu não pode se dar ao luxo de esperar a noite. Ela é fria, é cruel. E traz consigo sombras que subjazem nas calçadas, nos viadutos, sob as marquises.

Quem sabe, hoje, o sangue flua generoso de minha boca, num só golpe, num único esforço e jorre pela casa toda, pela calçada, pelos túneis e eu definha como um vampiro faminto. Será a morte lenta de quem não tem um sol para se recompor.

Comentários

PULICAÇÕES MAIS VISITADAS

Estranha obsessão : um filme de muitas perguntas e poucas respostas

Estranha obsessão (2011), ( pode haver alguns "spoilers" ) em francês “Le femme du Vème” ou em inglês “ The woman in the fifth” é uma produção franco-polonesa, dirigida por Pawet Pawlikowski. Ethan Hawke e Kristin Scott Thomas formam o estranho par romântico na trama de mistério. O protagonista é Tom Richs (Ethan Hawke), um escritor norte-americano que se muda para Paris, para se aproximar de sua filha. Já em Paris, depois de ser roubado, se hospeda em um hotel barato. Numa livraria, é convidado para uma festa, onde conhece uma viúva de um escritor húngaro (Kristin Scott Thomas), tradutora de livros, com a qual mantém um romance. Por outro lado, mantém um romance no hotel, com uma linda polonesa (Joanna Kulig, atriz polonesa). Por fim, é acusado de suspeito por um crime, pois seu vizinho de quarto é assassinado. Para livrar-se da acusação, tem como álibi o encontro com a viúva, em sua casa, porém, a polícia descobre que a mulher havia cometido suicídio em 1991. Mas toda es

Trabalho voluntário no Hospital Psiquiátrico: uma provocação para a vida

Participávamos de um grupo de jovens religiosos, no início da década de 80. Era um grupo incomum, porque embora ligado à igreja católica, recebia participantes sem religião definida, sendo um deles, inclusive, espírita. Formava um caldo interessante, porque os argumentos, ainda que às vezes, estéreis, produziam alguns encaminhamentos para discussão. Era realmente um agrupo eclético e ecumênico. A linha que nos norteava era a solidariedade com o próximo. Queríamos inconscientemente modificar o mundo, pelo menos minorar o sofrimento dos que estavam a nossa volta. Diversos temas vinham à pauta, tais como moradores de vilas pobres, desempregados, idosos do asilo, crianças sem acesso a brinquedos ou lazer. Era uma pauta bem extensa, mas houve um tema que foi sugerido por mim. Tratava-se de algum tipo de trabalho com os pacientes do hospital psiquiátrico. Houve de imediato, uma certa aversão e pânico pelos integrantes do grupo. Classificavam os transtornos mentais a partir da ag

Lascívia

Este conto é um desafio de uma oficina online, sobre a elaboração de um conto erótico com o protagonismo masculino. Carlos estava sentado na poltrona, ao lado da janela, entediado. Quem diria que ficasse assim, depois da reunião com os estagiários e as modelos excitantes que participaram da aula de pintura. Entretanto, nem a aula ou as mulheres faziam-no esquecer o homem que se atravessara na frente do carro, obrigando-o a parar quase em cima da calçada. Por um momento, imaginou tratar-se de um assalto, apesar da aparência de executivo. Mas quem poderia confiar num homem de terno e uma maleta embaixo do braço, hoje em dia? Dera uma desculpa, dizendo-se interessado em saber sobre as suas aulas. Carlos não respondera. Estava irritado demais para explicar qualquer coisa. Levantou-se, pegou um café e voltou a sentar-se, olhando o deserto da rua que se alongava além da vidraça. Não chegava ninguém, era o que pensava. Entretanto, não demorou muito e bateram na porta. Espiou