domingo, agosto 05, 2018

O hóspede

Chegou de mansinho e se instalou em minha casa. A princípio, estranhei e até evitei de me envolver em demasia, a não ser proferindo algumas palavras daqui, outras dali, apenas o necessário. Com o passar do tempo, foi ficando mais audacioso. Começara a tomar conta da cozinha, da sala de estar e até mesmo de meu quarto. E nem tinha pudores em se alojar no banheiro. Respirei fundo, avaliei a situação e olhei pela janela, tentando encontrar alguma pista que me desse a solução. Um ser que domina o ambiente e se espalha por tua vida, como o sapo que precisava conquistar a princesa, enlameado e cheio de pedidos esdrúxulos. O que fazer com aquela companhia? Observei pessoas apressadas dando e recebendo recados, falando sozinhas enquanto atravessavam ruas ou sentavam-se em parques, absortas, entretidas em seus contatos. Não seria melhor livrar-me imediatamente daquele peso? Não me tornar mais um zumbi, como elas? Quem sabe, dar um chega pra lá e esquecer de vez que esteve aqui, entre estas paredes, ouvindo-me até o arrastar dos chinelos.

Com o passar do tempo, entretanto, me sentia cada vez mais impotente. Limitava-me a encarar a sua presença, como uma necessidade perene. Talvez por isso, ele tenha ficado e aos poucos tomou conta de mim. Esforço-me em manter-me livre de sua influência, dizendo a mim mesmo que não preciso dele, mas cada vez que o vejo por perto, sinto que não há como evitar o contato. Afinal, onde vou parar? E se ele despencasse escada abaixo, transmutando o que era vida em ruína absoluta? Ou naufragasse numa enchente terrível, dessas que até as palafitas desaparecem ou se, por outro lado, o sol o queimasse, retorcendo a pele e transformando-o num ser inútil? Quem sabe, me livro dele para sempre. Entretanto, sei que haverá em meu coração uma mágoa, uma ansiedade difícil de controlar, uma vontade de substituí-lo por outro. Certamente, este será mais esperto, mais independente e capaz, até, de me dar ordens. Quem sabe!

Não queria ser assim, um amante passivo, cujo protagonista mande e desmande com seus caprichos. Mas sei que cada dia, dependo mais dele, de seus alertas, seus conselhos, seus avisos, suas notícias, seus jogos, suas mensagens, sua mania de sempre me chamar na hora inadequada. Às vezes, o amo, noutras, o odeio. Não sei qual será o nosso fim, mas por certo, nunca um longe do outro. Por mais que eu resiste, por mais que o dispense, sempre o terei ao meu lado. Como um vício, como uma dose a mais que desfruto em meu viver, como um carma, ratificado no verso da música do Chico Buarque, “meu amigo, se ajeite comigo e dê graças a Deus”.

Mas ele está aí e por mais que o atire do vigésimo andar, irá sobreviver. Na verdade, a vida não está nele, mas na minha procura, na minha ansiedade, na minha dependência. Quero-o longe de mim e o desejo tão perto. Freud talvez tivesse algum veredicto, algum prognóstico se o conhecesse naquele tempo e me avaliasse como sou agora. Eu, que o desprezo e apenas o usava quando realmente precisava! Mas sei que necessito dele a todo momento. Como se fosse onipotente, absoluto, quase um deus. Provavelmente, se livrar-me dele, algum dia, encontrarei outro com novas possibilidades e upgrade, porque eles se reproduzem como ratos e cada vez mais potentes e indestrutíveis.

Por certo, vou relaxar e esquecê-lo um pouco, não tão distante, a ponto de ouvi-lo chamar: apenas com um toque, com a música preferida, com o vídeo mais engraçado ou a mensagem mais emocionante. Ou quem sabe, procuro nele, os meus e-mails e descubro neste meio tempo a temperatura? Acho que ficará mais um tempo comigo!

Celular amado e odiado!

segunda-feira, julho 30, 2018

As sutilezas da felicidade

Os dias pareciam dissolver-se no anoitecer que se alongava. Ao voltar do trabalho, o seu hábito era tomar o chimarrão, enquanto ouvia o Repórter Esso. Após o jantar, costumava abrir o Correio do Povo para lê-lo na mesa. Era um ritual ao qual estávamos habituados e sempre interagíamos entre algum comentário ou mesmo sobre a dúvida de um vocábulo desconhecido. Olhávamos para meu pai e procurávamos descobrir a solução através de dicas que ele informava. Lembro de minha irmã e eu buscando métodos mais rápidos para chegarmos a algum resultado. Ela pegava os dicionários ou revistas nos quais houvesse palavras semelhantes. Também ele tinha por hábito pesquisar os atlas, cujos mapas mostravam centenas de países e cidades das quais nem imaginávamos a procedência. Até mesmo no Brasil, começávamos com as capitais, depois as cidades do interior e teríamos que procurar no mapa e ao acertarmos, ganhávamos um ponto. Tudo era considerado uma competição, na qual nos esforçávamos para chegar à vitória.

Naquela mesa de toalha branca e alguns ramos de flores bordados, eu o observava e, de algum modo, assinalava um tipo de felicidade, se é que felicidade possa ser classificada. Uma felicidade que eu jamais voltara a experienciar. Talvez, nem minha irmã. Era uma alegria genuína, que nos unia e transportava a lugares e objetos, como se fosse um jogo. Um jogo cujas regras meu pai delimitava com disciplina. Havia um tempo para cada um. Um espaço para que nós também procurássemos palavras no jornal e nos mapas, a saga era por cidades, países, rios ou picos elevados.

Tínhamos um tempo que era só nosso, ao seu lado. Um tempo em que a sua presença era tão importante, que nem nos dávamos conta, por ser uma circunstância natural.

Minha mãe passeava pela copa e vez que outra, surgia da cozinha para também exercer a sua presença com um palpite, mas logo se debruçava na costura, bem ali, ao lado e ouvíamos o som cadenciado do pedal da máquina.

Às vezes, lembro melancólico desse cenário familiar. Lembro de meu pai e ainda o vejo à mesa, com os cabelos negros caídos à testa e bem curtos atrás, as mangas arregaçadas e um sorriso nos lábios iluminado pela luz minguada que surgia pela janela ou talvez pela alegria de despertar-nos a curiosidade e o diálogo entre nós. Agora, resta a saudade, que dói e que aparece assim, de repente, sem pedir licença, a abraçar delicada os pensamentos.

Também recordo minha mãe, coadjuvante naquele momento, envolvida noutra tarefa, mas dando os palpites e de vez enquanto, levantando-se da cadeira, deixando o pedal da máquina de costura e aproximando-se da porta, como quem observa uma cena da qual é cúmplice e se despoja de sua opinião para que a ação prevalecesse. Lembro dela noutros momentos, em que era a protagonista, mas também aqui sinto saudades, porque sei que sua presença silenciosa nada mais era do que apoiar a nossa maneira de ser feliz.

Isso era felicidade? Acho que sim, nas suas sutilezas, nas circunstâncias em que a vida não pede nada, mas nos entrega de mão beijada.

Fonte da ilustração: Artsy Bee in: pixbay.com

quarta-feira, julho 11, 2018

Literatura aliada

A literatura é conceituada e avaliada em seus aspectos estilísticos, estéticos, filosóficos e sociais. Aqui, no entanto, falo da literatura como uma aliada, uma companheira que exerce um papel fundamental na vida das pessoas.

Mesmo que não percebamos, é através da literatura, que mostramos o que somos, o que queremos da vida, o que sonhamos. Sabemos que a literatura é uma manifestação artística e para muitos escritores, ela se esgota nesta proposta. Para outros, porém dos quais eu me incluo, a literatura deve ser um registro da realidade que recria, como uma tentativa constante de transformação do mundo em que vivemos.

Na minha opinião ela só tem verdadeira importância, se for crivada dos anseios de seu povo, se tiver um viés político. O mínimo que se espera é que haja, em alguma medida, o pensamento crítico sendo colocado em jogo, sendo trabalhado e compartilhado.

A arte da escrita não é puramente estética. A despeito do que escrevemos, haverá sempre a intencionalidade do autor com a conexão do mundo real, da sociedade e também com o seu mundo interior, moldado em suas experiências e apreensão da vida. Faz-se política em qualquer gesto e tenho comigo que este brado deve corresponder ao clamor das minorias, dos excluídos, dos que não tem os privilégios, dos trabalhadores invisíveis.

Acho que o homem é o algoz do próprio homem e a literatura está aí, para redimir esta sequela humana, para transformar o bruto, no belo, no artístico, no lírico, no imponderável, mas acima de tudo, mostrar que o rústico, o pobre, o ausente das benesses é tão intenso e dramático e pertencem ao mesmo mundo em que vivemos. Basta olhar para o lado.

Não me interessa uma literatura calada, amordaçada, padronizada no senso comum, amarrada apenas à lógica literária e aos padrões estilísticos e de gênero. Interessa-me a literatura que não se cala às adversidades, aos desmandos, às ditaduras, à mídia manipulada e manipuladora.

Interessa-me uma literatura que mostra o seu povo, que enaltece a sua linguagem e que acima de tudo, produza a reflexão. E que por fim, seja, além de tudo puramente literatura, na qual a emoção e o sonho se completem no lirismo e na beleza. Acho, inclusive que o autor é um ser dividido e complexo, como todo ser humano, mas que ao refletir sobre isso, extravasa sua emoção e sentimentos no seu ofício e talvez sofra com essa dicotomia.

O poema “Traduzir-se” de Ferreira Gullar, musicado por Chico Buarque, exemplifica bem esta singularidade do escritor, quando diz:

“Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão.

Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira.

Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem.

Traduzir-se uma parte na outra parte – que é uma questão de vida ou morte – será arte?”

Fonte: Kalsgirl do link: https://pixabay.com/pt/users/kasgirl-1427481/

quarta-feira, junho 20, 2018

Uma tentativa de análise do texto poético da canção “A noite do meu bem” de Dolores Duran

A noite do meu bem é uma canção composta e interpretada por Dolores Duran e também representada por centenas de cantores. É uma verdadeira poesia com um eu-lírico desenhado em sua estrutura à espera da noite perfeita com seu amado. Tentei aqui desmembrar a letra, procurando decifrar de algum modo a intenção poética da autora. No entanto, ela, em poucas palavras, mostrou um mundo de sentimentos profundos e intensos. Eu tentarei em alguns parágrafos esmiuçar esta habilidade de jogar com as palavras e seus conteúdos, com tanta habilidade e talento.

A imagem da “rosa mais linda que houver”, mostrada na música/poesia composta e cantada por Dolores Duran, têm-se de imediato a beleza da flor ainda sob o orvalho da manhã, cujas pétalas tenras e o perfume ainda envolvem o ambiente. Tudo incide num processo onde partículas de cores, perfumes e sons nos remetem à virtude das cores e o arrebatamento do momento.

A seguir, ela persegue a beleza nos versos que se referem à “primeira estrela que vier”, o que nos parece sugerir uma espera pela longa noite, cujo encantamento do poeta preenche de pontos luzidios o nosso olhar que se perde e o sonho parece absorver em definitivo, o pensamento.

No decorrer da canção, “ a paz de criança dormindo” a autora reproduz a cena como uma metáfora de confiança representada no ser frágil cuja plenitude de entrega cumpre como garantia, o conforto, o carinho e o cuidado.

Já “na alegria do barco voltando”, a imagem propõe um quadro, cujos movimentos e matizes de luzes e sons, deduzem que o retorno é o encontro idealizado na comunhão do comandante com os que estão em terra. Mar e terra se completam e se tornam uma coisa só, onde a liberdade dos mares navegados se confunde e se integra às amarras dos barcos ancorados.

Em seguida, no verso “a ternura de mãos se encontrando”, ocorre aqui a conclusão lírica de que as mãos se encontram para perpetuarem alguma lembrança boa, um sentimento que une e consola, um carinho que se alonga, uma lembrança, um afeto que transborda e absorve a mensagem. Sempre uma busca e um encontro. Carinho afeição e perdão.

Quando praticamente chega no clímax, “ o amor mais profundo” representa o encontro consolidado, permitindo a plenitude do encantamento através do sentimento mútuo e da afeição que perdura. Aí ocorre “toda a beleza do mundo”, transborda a emoção e a certeza da felicidade fortalecida e perene.

Entretanto, nem sempre o sonho se realiza e quando a espera é longa, não prevalece no olhar o brilho da certeza, a pureza da esperança, a convicção de que o amor existe assim mitificado, assim poético, sentimental e romântico. Talvez pereça a integridade do amor, pois já não resiste ao sonho, já que a fantasia não se conclui na realidade. Por vezes, o olhar acena a uma certa ambiguidade, uma opacidade que embaça o cristal translúcido, então, como esperar e ao mesmo tempo possuir o mesmo amor para entregar se ele também se transformou?

quinta-feira, maio 31, 2018

Carta a uma amiga, preocupada porque eu disse que Lula era um preso político


Minha amiga, entendo a tua preocupação. Olha, na verdade, eu nem sei se Lula é totalmente inocente, mas tenho certeza absoluta que não houve uma prova concreta, apenas convicções, como eles dizem. O Jucá tentava persuadir seu colega a participar do golpe (tudo gravado). E diz mais ou menos assim: “é necessário que a gente tire eles porque eles não vão impedir a investigação de corrupção; para estancar a sangria, temos de dar o golpe”. E conclui dizendo: “Com o Supremo Tribunal Federal e com tudo”.

O Lula no centro de todo o crime cometido na operação Lava a Jato e, perguntado pela imprensa – essa imprensa que julga e condena – “quais são as provas contra Lula, senhor procurador”, ele respondeu: “não tenho provas, tenho convicções”.

Aqui, nós já vemos que a justiça é seletiva. Com provas, não há acusações, nem prisões, com convicção e delações, muitas vezes com interesses pessoais (na maioria das vezes), há condenação.

“Mas o problema é que o apartamento não é propriedade dele, não está registrado em nome dele num cartório de imóveis, ele não tem a posse, nunca morou lá. E aí se descobre que este apartamento que lhe foi atribuído foi usado pela empresa proprietária como garantia de um empréstimo bancário. Como a empresa não pagou o empréstimo, uma juíza levou o apartamento a leilão. Como, então, este apartamento pode ser do Lula? Mas, como diz o juiz do processo, isto não vem ao caso.”

Além disso, a grande reforma alardeada por Moro, nunca existiu, tanto que o movimento dos Sem-teto invadiram o apartamento e mostraram todo o seu interior, com nenhuma benfeitoria. Era tudo mentira!

Outro fato:

Em fevereiro de 2016, o STF mudou o entendimento sobre a Constituição, de forma estranha, porque o tribunal não tem este poder, além do Congresso, e passou a aceitar um mecanismo que se chama prisão provisória, antes do trânsito em julgado. É prisão de qualquer jeito. Rasgam a Constituição a cada dia.

Outro fato: “No Brasil, a exclusão se combina com o privilégio. A forma de controle violento não é visível porque atinge os de baixo. Da classe média para cima, não há um nível de violência e de controle relevante. Quem são os presos no Brasil? São os jovens negros. As mulheres que sofrem mais violência são as mulheres negras. Marielle é o símbolo de uma mulher que assumiu a sua condição, que foi capaz de desenvolver uma política e, mais do que isso, denunciou tanto o privilégio como a exclusão social. A face do excluído no Brasil é criança, é mulher, é negro, vive na periferia das grandes cidades, e no Norte e no Nordeste. São estes os milhões de brasileiros que durante o governo tão odiado do PT tiveram acesso a serviços públicos e a renda. “A casa grande não admite que a senzala evolua socialmente, essa é a verdade!”

A maior corrupção foi a crise de 2008, que não nasceu aqui. A manipulação do crédito de risco e a crise financeira foi o caminho. A lavagem de dinheiro ocorre na Suíça, portanto, onde começa a corrupção? Claro, que aqui se beneficiaram desse procedimento.

O Aécio agora tem mais 60 dias para discutir a acusação. E há provas tangíveis, inclusive ele ameaçou de morte um dos parceiros (tudo gravado).

É por isso, a minha revolta.

Mas fica tranquila, amiga. Eu só ponho a mão no fogo pelos verdadeiros amigos como tu. Quero que o Brasil supere esta crise e que vá mais longe, com pessoas alcançando patamares que nunca conseguiram no âmbito social e financeiro. Quero que as crianças tenham liberdade, que o mundo evolua, que o povo não seja manipulado pela mídia, que a gente volte a sorrir.

Grande abraço!

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/balanças-espada-mulher-2374886/

Quem sabe?

A flor na pele

a pele da flor

Se a flor floresce

a esperança ressurge

a dor desaparece

nada perece

Prospera o amor



À flor da pele

Em carne viva

Tudo perece

Vida sem cor

Quem luta compete

Quem fica fenece

Que luta, só dor!



Diálogo, luta, justiça

Quem sabe mais o que fazer?

Se não esperar ou perecer?


Fonte:https://pixabay.com/pt/rosa-natureza-flor-flores-174817/

segunda-feira, maio 28, 2018

Conversando sobre a crônica “Tênue limite”

A Revolução Farroupilha sempre foi contada pelos historiadores oficialistas e pela mídia atual, pela ótica dos vencedores, ou seja, dos gaúchos que lutaram com bravura e fidalguia para alcançarem a vitória. Mesmo não havendo vencedores de nenhum dos lados, já que houve um grande acordo que semeou a paz.

Na crônica “Tênue limite”, publicado neste blog, eu procuro dar vida ao outro lado do povo gaúcho, aquele que talvez seja herdeiro dos que apenas lutaram sem serem reconhecidos e para os quais, nem a vitória, muito menos a fortuna prevaleceu.

De todo modo, esclareço que não sou contra a Revolução Farroupilha como a criação de uma mitologia em torno dos homens dos séculos XIX, que lutaram no Rio Grande do Sul, como a honradez, a fidalguia, a virilidade e a valentia. Tudo isso faz parte de nossa tradição e cultura, incorporado em nosso imaginário gaúcho.

Entretanto, não posso ficar alheio à outra parte da história, que foi escondida pelos historiadores oficialistas ( não me refiro aos historiadores atuais, mas aqueles que faziam uma descrição apenas dos fatos considerados históricos e gloriosos para a nossa terra, ou que elaboravam suas pesquisas de acordo com as ordens governamentais). Refiro-me à história dos não tão dignificantes episódios, como as intrigas entre os chefes, os desmandos, os erros estratégicos e a terrível traição de Porongos, quando os negros combatentes ficaram desarmados e entregues à morte.

Acho que é preciso repensar o passado. Acho também que o povo que vive no interior de nosso Rio Grande não possui essa pujança e orgulho para demonstrar um sucesso da Revolução, pois foi na verdade um conflito regional entre grandes estanceiros e o Governo Imperial, não foi uma revolução do povo gaúcho em sua totalidade.

Amo a cultura do Rio Grande, de seu folclore, sua luta em se manter dignos frente às circunstâncias mais inóspitas, mas não posso ficar indiferente a esse povo campeiro que também deve ter orgulho de seus ancestrais e conhecer a sua verdadeira história, não aquela emoldurada pela mídia.

Houve um povo derrotado que não recebeu as benesses da Revolução, mas este povo também faz parte de nossa história e possui a mesma cultura, a mesma fidalguia e valentia dos vencedores.

Acredito que, como dizia o escritor Ricardo Piglia, que “nada pode ser pior para um derrotado do que ler, anos mais tarde, a história contada pelo viés atrofiado dos vencedores.”

Então, segundo o que penso, que foge um pouco do senso comum, que também deve-se falar deste campeiro, deste peão, deste gaúcho do campo que não se situa como um herói e nem conhece a sua história.

Por isso, elaborei a minha crônica, que mostra um tênue limite entre a galhardia e todas as glórias do gaúcho enaltecido pelo poder e sua história humilde. É a este que me refiro. Acho que ele faz parte do nosso Rio Grande.

Ilustração:https://pixabay.com/pt/users/cocoparisienne-127419/

sexta-feira, abril 27, 2018

Tênue limite

José cavalga pelo estreito caminho de terra vermelha. Nas bochechas, o ardente do dia, a boca seca, com um fiapo de grama no canto. Um olhar perdido no horizonte. Campos, campos e mais campos. Nos pés, chinelos de dedo arranhando a barriga do cavalo.

Quem o olhasse de perto, pensaria que tem a vida decidida. Conduta perfeita. Atitude positiva.

Na verdade, não. Ele nem sabe o que fazer além do que faz todo o dia. Busca os animais. Estão quase escondidos, próximos a um quiosque, perto da propriedade dos vizinhos e não muito longe da rodovia. Mas tem que ir.

Quem o visse, diria, que gaúcho guapo. Falta só as esporas, a bota, a bombacha.

Que nada. Está de calça rasgada no joelho e muito suja. Não é porque gostaria, mas porque não pode sujar a roupa no trabalho. Tem que trazer o gado, como faz sempre. Não são muitos, nem passam de uma dúzia. Mas também não são dele, nem de sua família. É apenas um peão, que mora numa cabana, quase casebre.

Os ventos mudam de direção, mas não ele. Quem sabe volta a estudar e aprende a ler alguma coisa. Não é tão difícil. Poderá ser chamado de gaúcho guapo, participar da Semana Farroupilha, exaltar os farrapos e comer churrasco em homenagem.

Ele é como um nômade, um pária, porque não é urbano, nem rural. Ele é ele mesmo. Como ele, milhares de gaúchos que vivem nas beiradas dos cofres alheios, tentando pegar algumas moedas.

Mas o povo levanta bandeiras, dá vivas à revolução e acredita que o Rio Grande é um país à parte.

Ele não, está neste liame, neste tênue limite, no qual não se permite a galhardia, a ousadia e a macheza do gaúcho. Aquele que vem uma vez ao campo, se veste à caráter, rompe estradas com seu 4x4 e dança nas mateadas. Este aparece na mídia.

Talvez ele seja um guasca, um índio do mato, uma mistura das três raças, nem sabe.

Negro tinha na família e índio era o avô.

Mas deixa pra lá. Melhor é caminhar quase sem rumo e seguir a vida.

Quem construiu a nação gaúcha, não foi ele. Foram os livros. E antes deles, os historiadores. Eles não mentem.

Fonte: www.pixbay.com

quinta-feira, abril 26, 2018

DE MINHA NATUREZA


(Do livro Anti-heróis que reúne contos selecionados para o II Concurso Literário da Metamorfose Cursos. Enfoca o anti-herói e enceta um diálogo importante com a tradição literária, mas sem perder de vista a contemporaneidade.)

Quando Ramiro desceu do ônibus, percebeu uma certa bruma que há muito não via na cidade. Era como se o inverno rapidamente avançasse e a umidade tomasse conta das casas desprotegidas. Mas o outono ainda estava no berço e pouco mais de calor preservava as suas costas suadas e seu olhar abalroado pela dúvida. Dirigiu-se ao cais e a neblina aumentava, como naqueles filmes de Stephen King, nos quais sempre havia uma atmosfera estranha para qualquer época do ano. Sentou-se à beira do cais, quase desconhecendo a cidade do outro lado do canal. Pouco a via, a não ser as torres da matriz, a única parte que ficava a descoberto da neblina. Devia ser um aviso para seus pecados. Uma ameaça, talvez.

Mesmo assim, ele desenrolou um cigarro de maconha lentamente, afinal, naquela bruma toda, nem o veriam. Fumou de morado por longos e infinitos minutos. Depois olhou a nuvem que fazia com sua própria fumaça e sorriu. Estava colaborando para o caos.

Ficou ali, não sabe quanto tempo, pensando na mulher que ficara em casa, nas contas que deixara sobre a mesa, nos boletos, nos cartões de crédito, no financiamento da casa. Mas aos poucos, foi esquecendo-os tal como a neblina que avançava mais e mais. O céu se juntava no canal, numa coisa só, indefi- nida. Os barcos sumiam, quanto mais os navios, que passavam bem mais longe. Parece que o caos aumentava e não via ninguém a sua volta. A maconha o deixava leve, cabeça encostada num poste, as pernas no gelado do cais. O mundo, para ele, riscava num fósforo de churrasco, que se acendia e apagava, numa chama tépida e sem graça. A vida dava ré e ele regurgitava em raiva, das coisas que não lhe pertenciam ou que lhe tinham tirado: o direito à moradia decente, à liberdade de andar na rua sem ser assaltado, ao término da faculdade pela falta de dinheiro, o tempo perdido num trabalho monótono.

Uma menina com a roupa enxovalhada se aproximou e ficou observando-o, ali, sentado, como se avistasse o Buda ou uma alma iluminada. A mãe estaqueou um pouco distante. Sentiu uma lágrima correr na face encardida do sol. Deixou que se aproximasse, deu-lhe todos os trocados que possuía. Mais do que isso, a beijou no rosto. A mãe do outro lado, se aproximou assustada pelo afeto inadequado. Não importava, ele amava as crianças e odiava a situação nefasta em que o mundo tinha se transformado pelos políticos e ilegítimas autoridades.

Elas se foram e de longe observou as duas sombras comprarem o que supunha ser um lanche. Suspirou aliviado. A noite e o nevoeiro compartilhavam o tempo e a intensidade. O silêncio ficou quase absoluto. Nada, nem ninguém por perto. Só o som ritmado das fracas ondas da lagoa e o ruído de um carro distante do outro lado da biblioteca pública.

A não ser Bruno, seu amigo de infância que se aproximava, talvez o único vivente àquela hora e com a tal neblina, sentiu uma espécie de epifania, uma alegria de algo que se revelava e restaurava a sua criatividade. Com ele, poderia utilizar toda a produção elaborada de se fazer entender a qualquer preço. Bruno era burro, um imbecil, na verdade, mas ele estava ali, ao seu lado e por certo, ficaria um bom tempo.

Lembrou por um segundo da mulher, das contas, do cartão de crédito, até da lista torpe do supermercado e sentiu uma fisgada no peito. Via o rosário sobre a bíblia e a mulher se ajoelhando como uma beata. Podia ter acabado com tudo, naquele momento, mas o ônibus não esperava e ele tinha de ir ao encalço dos seus limites.

Bruno chegou, fez aquele gesto característico de quem imita os negros americanos, batendo com as mãos e dando uma sacudidinha no corpo, cheio de promessas para si mesmo, pensando que os demais compartilhavam os seus trejeitos ultrapassados.

Em seguida, sentou-se ao seu lado e perguntou:

– E aí, tu deixou a vaca?

Bruno parecia seu pai. O velho era grosseiro, como ele, tanto que não sabia argumentar e por isso, batia muito. Não somente nele, mas na mãe, na irmã, na família toda. E se drogava, o desgraçado.

Ramiro sempre comparava o amigo ao pai. Ele tinha dessas coisas, de falar o que não devia nas horas inadequadas. Depois de muitas tragadas, muitas histórias sem sentido, a euforia os auxiliava a transpor os limites do bom senso.

Em dado momento, Ramiro começou a caminhar sobre o cais, muito perto da lagoa. A noite se enfeitava de pontos amarelos dos postes e a neblina camuflava algum barco que se aproximava.

Numa dessas loucuras, entre risos desenfreados e questões não respondidas, Ramiro resbalou o tênis velho e caiu na água.

No início, Bruno deu boas risadas, vendo o amigo mergulhar, desaparecer e vir à tona. Em seguida, viu-o afastar-se em direção às ilhas, talvez em virtude da escuridão que aumentava, apesar de ser exímio nadador. Com esforço, utilizava toda a resistência para praticar a volta ao cais, mas cada vez mais se afastava da cidade.

Bruno, então, apesar de demorar a entender que ele perdera a direção, percebeu que o amigo estava em perigo.

Decidiu atirar-se ao mar, embora nadasse como um prego. Apesar do frio, retirou a camisa e os sapatos para ficar mais leve. Deu algumas braçadas, tomando água, esforçando-se para chegar até o outro, gritando para que o esperasse, que voltasse e não se dispersasse rumo às ilhas, pois se afastaria cada vez mais do cais.

Ramiro, entretanto não o ouvia e se intrigava ao ver o companheiro superar-se, na tentativa de salvá-lo. O que esperava ele, transformar-se num herói, ele que nunca soubera tomar um banho com água acima da cintura. Seu amigo era mesmo um idiota, mesmo porque as ondas pareciam se tornar mais fortes e intensas.

Mas Bruno não desistia, segurava-se num barco não muito distante do cais, descansava alguns minutos para tomar fôlego e o chamava desesperado. A bruma era densa.

Ramiro ria, sem perceber que se afastava, guiando-se apenas pelas luzes da cidadezinha que ficava na outra margem.

Também estava cansado e por isso, apoiou-se numa boia, escondendo-se do amigo e rindo de sua odisseia.

Bruno, entretanto, insistia na labuta de encontrá-lo, e por isso, nadava de qualquer jeito ou da melhor maneira que conseguisse chegar até ele. Sentia perder as forças e a exaustão o deixava apavora- do, mas num ímpeto de sobrevivência, avançava em piruetas, alcançando uma poita e prendendo-se numa rede clandestina.

Tentava desvencilhar-se, enquanto gritava por Ramiro, que apático, observava o movimento nebuloso.

Um suor escorria pelo corpo de Bruno, que num ato de desespero, retirara os pés presos no entrelaçado, ferindo-se a brotar sangue. Finalmente, conseguiu dar um impulso, aproximando-se em seguida de Ramiro, resfolegando, a ponto de não conseguir falar. Por fim, tentou acender o isqueiro que trazia no bolso das calças, mas suas mãos tremiam e ele perdera o equilíbrio, quase afundando. Ramiro pegou o isqueiro e o acendeu, enquanto Bruno, assustado, o alertava da direção errada, ao mesmo tempo que o segurava com firmeza, tentando levá-lo para a margem.

Ramiro obedeceu e seus olhos brilhavam como se um caos se estabelecesse em definitivo. Sorriu para o amigo, e em vez de segui-lo, ele é quem o conduziu com facilidade, e os dois dirigiram-se ao cais, obedecendo a chama precária do isqueiro.

Bruno queria dizer alguma coisa, mas não evitava a água que quase o afogava. Ramiro desabonava a estupidez do amigo, apenas obedecia a chama, em silêncio. Juntos chegaram próximos ao cais, mas Ramiro o impediu de aproximar-se e segurar-se num ancoradouro. Bruno surpreendeu-se e quase em pânico, perguntou:

– O que aconteceu? Me deixa segurar, tenho que sair daqui.

Ramiro entretanto, enlaçou o seu pescoço com carinho e o mergulhou com firmeza. Bruno sentiu-se desfalecer e emergiu desesperado, quando a mão forte de Ramiro o libertara.

– Por que fez isso? Me larga, pelo amor de Deus! Eu não sei nadar, tu sabe!

Ramiro o olhava com certa ternura e o abraçava novamente, impedindo-o que se apoiasse no cais. Respondeu com tom afável :

– Nao posso te largar. Tenho que te matar.

– Por que? Eu fui te salvar, não fui? Por que então?

– Porque é de minha natureza. Tal como o escorpião da fábula, não posso. Eu preciso. Todos que se atravessam no meu caminho, na minha vida, todos que dão palpites, que me dão conselhos, todos... eu tenho que matar, entendes?

Ao terminar de falar, empurrou-o novamente para o fundo da lagoa. Viu o olhar do amigo num desespero quase poético, desaparecer sob as águas. Quando tentava emergir, ele o impeliu mais uma vez. Esperou um pouco. Alguns segundos apenas e desta vez, ele não voltara mais.

Ramiro suspirou fundo. Sorriu e esperou. O corpo viria à tona e ele o abraçaria com ternura. Sabia que tivera compaixão, quase amor.

A neblina aos poucos se dissipava.

domingo, abril 22, 2018

Condutas da vida

Fonte da ilustração: Pexels in: pixbay

De repente, o tempo de calor intenso muda e parece que uma nova estação surge do nada. Para um escritor, falar do tempo soa como clichê, mas o que acontece é que, às vezes, este estado de mudança atmosférica parece intimamente ligado a nossas emoções, acompanhando situações e condutas de nossa vida.

Olhei para a rua ainda com as beiradas das calçadas com algum resquício de água, mas os paralelepípedos já brilhavam secos, pelo vento que soprava folhas ou a poeira instalada nas bordas, esvaziando o cenário. Tudo expressava renovação, talvez não com os auspícios de dias floridos da primavera, mas com ares de outono hibernal, que aos poucos vai dando mostras de sua força. Um friozinho que se instala entre as persianas, um vento que ruge de quando em vez, varrendo qualquer possibilidade de fuligem ou folhagens como pequenas sombras desgarradas na noite de poucas luzes. Uma limpeza que a natureza se propõe. Pena que nem sempre o nosso eu interior possui essa possibilidade de limpeza, ele que se expõe aos fracassos, às frustrações, aos desejos inomináveis, aos medos e carências. Impossível transfigurar a alma e transformar as emoções, impossível lutar internamente, impulsionado pela natureza que se distrai, límpida numa noite que extrapola luzes e sombras. No homem, mais sombras do que luzes, menos vida e mais poeira incrustada nos meandros do cérebro, nos neurônios enredados em teias de aranha, amarfanhadas de modo a impedir qualquer saída para a verdade absoluta.

Que fazer, se não esperar que a natureza nos mostre o caminho? Um caminho drástico de limpeza geral, e nós quando muito, extrapolamos o limite, o vínculo que nos liga à interação com o outro, cujo liame quando partido, se dilacera e não se recompõe. Mas quem sabe, amanhã, a calçada mais limpa, o ar mais puro, a temperatura mais fria e os primórdios de uma revolução pessoal. Só aquela, bem íntima, porque a coletiva, a ideológica, esta já está por demais engessada, quase mutilada e pobre. Pobre do homem que não se refaz como a natureza e muito menos se apropria de seu País.

sexta-feira, abril 20, 2018

Ando tão à flor da pele

Ontem assisti ao vídeo da Gal Costa, em que ela apresentava o Zeca Baleiro com a composição "Vapor barato”, uma interpretação por excelência.

O tema trata da angústia e o desespero do provável amor não correspondido, mas os versos tocam tão profundamente que podemos adaptá-los a qualquer situação, desde que estejamos emocionalmente envolvidos.

O verso em que diz “ Ando tão à flor da pele, qualquer beijo de novela me faz chorar, ando tão à flor da pele, que teu olhar me faz morrer…” e por aí vai, nos remete a uma gama de sentimentos.

Ando tão à flor da pele, quando assisto em documentários em canais pagos, que centenas de crianças brasileiras viveram longe de seus pais, em outros países, e agora, na idade adulta, lutam para encontrar vestígios de sua vida passada. Pais que foram sequestrados, torturados, mortos pela ditadura que grassou no País.

Ando tão à flor da pele quando vejo questões fundamentais na política externa serem discutidas via Twitter, como o caso da Síria em que Trump ameaça com mísseis e o embaixador da Rússia promete derrubar estes mesmos mísseis, enquanto vidas são destroçadas.

Ando tanto à flor da pele quando vejo um Nobel da Paz sendo proibido de visitar um preso político em nosso Brasil.

Fico à flor da pele, quando assisto à regionalização de nosso país ser padronizada por uma cultura pasteurizada através de um modelo midiático, sob vários aspectos, obedecendo cega e servilmente ao imperialismo da mídia maior, principalmente da TV, enquanto quarto poder, introjetada pela maioria do povo brasileiro.

Fico ainda mais à flor da pele, quando imaginam que estes senhores, poucas famílias que mandam no setor, estejam financiando a educação e a cultura do povo brasileiro, quando na verdade estão deformando e rindo de nossa cara, preocupados apenas com os bilhões que depositam em contas da Suíça.

Fico à flor da pele, quando estes mesmos senhores lutam por liberdade de expressão, quando de fato, somente temos uma verdade, a verdade dita e exacerbada por estes mesmos donos do monopólio.

Fico tão à flor da pele, quando nossa programação regional é limitada a pequenos blocos, sucintos, relegados a segundo plano e em horas onde a audiência é mínima.

Fico tão à flor da pele, quando os estilos de vida, de moda, de arte são ditadas de acordo com modelos adaptados ao poder do consumo, do marketing da beleza padronizada e da falta de integração social, na qual a liberdade de escolha é tolhida e dirigida a uma sociedade imprevidente. E o lamentável é que muitos consideram esta conduta correta e condenam um rigor na regulação dos meios de comunicação e o governo com seus interesses de manutenção no poder, furta-se a este processo. Há os que são a favor do monopólio da mídia por puro desconhecimento, porque só veem um lado da questão, acreditando que o grupo midiático está em consonância com a Constituição, o que não é verdade. A sociedade incauta, por sua vez, dia a dia se afunda, chafurdando na lama do marketing televisivo, adquirindo hábitos que muitas vezes ferem suas crenças mais íntegras e, tentando seguir a corrente pseudomoderna, perseguem caminhos que a transformam num caldo inodoro, pronto para estatísticas padronizadas.

Criam para si, formas de pensamento, estilos que contrariam seus pares, esquecendo as suas raízes, suas tradições, sua cultura e seu relacionamento harmonioso com a cultura regional.

Esquecem os grandes compositores, os poetas, a arte, a literatura. O que vale são as novas formas de interação com o público a partir de monossílabos exaustivamente repetidos, uma forma enviesada de música, além da veneração por livros de autoajuda, ou acerca de sub-celebridades.

Aparecer, sob qualquer hipótese, é o que realmente importa.

Mas fico tão à flor da pele também, quando assisto a Gal, a Bethania, a Maria Rita, o Lenine, o Criolo, só para falar de alguns.

Fico à flor da pele em ler e reler um Kafka, um Machado, um Dostoievsky, Florbela Espanca, Mia Couto, também para falar de alguns.

Ou ler um artigo de um Leonardo Boff, um Gustavo Moreira, Alberto Villas, Menalton Braff, também só para citar alguns.

A estes, e muitos, muitos outros, meu coração se arrepia, e fico emocionado à flor da pele.

Uma emoção boa.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/users/geralt-9301/autor: Geralt

quinta-feira, abril 19, 2018

Faz tempo

Faz tempo que não se vai à janela, nem se observa a rua, nem se reflete na vida.

Faz tempo que não se pula amarelinha, nem se ensaia passos de dança, nem se sorri.

Faz tempo que o mundo anda cinza, que o medo acolhe as portas, que o riso encolheu.

Faz tempo que o ódio é mais inspirador que o amor.

Faz tempo que a divisão é o elemento maior.

Faz tempo que se rompeu o elo.

Faz tempo que se anda em atropelo, sem olhar para o mar ou rever amigos.

Faz tempo que se anda sozinho, que se olha uma tela e não se absorve nada.

Faz tempo que o mundo anda para trás.

Faz tempo que a vanguarda deixou de ser protagonista dando lugar ao retrocesso.

Faz tempo.

Fonte: Bess Hamiti in: https://pixabay.com/pt/users/Bess-Hamiti-909086/

segunda-feira, abril 09, 2018

Para não dizer que não falei das flores I

Talvez não faça diferença ler um ou outro, em qualquer ordem. Ou seja tudo a mesma coisa. Para não dizer que não falei das flores I ou II.

A manobra foi lenta e gradual. Bem estudada, desenhada segundo os meandros mais complicados que se apresentavam.

Usava-se das estratégias arquitetadas com cuidado, apreensão, focalizando o ponto de partida, que seria a vitória final. Sem retrocesso, sem voltar ao ponto de partida, sem pedidos esdrúxulos de recuos providenciais ou renúncia ao poder tomado pelos dedos fortes que empunharam as bandeiras das escolhas.

E a mão foi firme, optando por linhas vibrantes, que condissessem com os objetivos do desenho, principalmente, no ferir despudoradamente o tecido, sem antes porém escolher a dedo o fio necessário, aquele que abrange todo o molde, transformando uma imagem disforme num alto-relevo emergente.

Usar o dedal com precisão, para que não se esparja o sangue e arruíne a estrutura, puxar devagar a linha, com cuidado, quase com carinho, enfiando-a na agulha e trazendo para próximo ao peito, para não perder o equilíbrio e deixar que se escoe por entre os dedos, como água que jamais será retomada.

Esquecer o carretel ou o novelo e focar nas meadas, nas quais as linhas se dispõem paralelas revelando os vários tons, permitindo o descortinar da criatura sendo produzida.

Assim se deu a manobra lenta e gradual de se mostrar o talento no desdobrar do bordado, desde as costuras mais simples, porém necessárias, até os floreios mais personalizados.

sexta-feira, abril 06, 2018

Eu e a velhinha de Taubaté

Acho que sou meio parecido com a velhinha de Taubaté, do Veríssimo, que acreditava piamente no governo do General Figueiredo. Eu acredito na Globo e entendo o que o povo que vê TV, pensa como eu. Sabe por quê? Porque eu assistia ao programa Amaral Neto, repórter, lá pelos meados de 1970, mostrando as belezas naturais e culturais do Brasil, além da união que o governo militar trouxera ao nosso imenso país continental.

Ah, nesta época, eu amava a Regina Duarte, que depois da Ritinha, de Irmãos Coragem, passava a ser no ano seguinte, a namoradinha do Brasil com a novela Minha doce namorada. Um primor de pessoa. Sei que ela era assim na vida real: doce, simpática, sorriso amplo e pura! Antes ainda, no tempo dos Irmãos Coragem, ano em que o país ganhou a Copa do México, a tortura ainda era encoberta nos porões dos órgãos de repressão, e o General Médici era um presidente que mantinha um olho nos partidos clandestinos e outro nos campos de futebol. Por coincidência a novela tinha como um dos principais núcleos, o de um jogador de futebol e suas peripécias no campo. Mas novela também era cultura e informação! Tenho certeza disso. Ah, o Brasil foi campeão em 70!

Nas diretas já, a Globo demorou a transmitir os eventos, quando milhares de pessoas foram às ruas reivindicando eleições diretas. Eles eram contra e tinham seus motivos. Imaginem aquela baderna nas ruas, aquele povo sem freio. Era de assustar mesmo! Mas aos poucos, viram que o povo estava muito engajado num espírito de mudança para melhor e que outras emissoras já noticiavam com fervor. Decidiram aderir.

Depois de todas as tragédias, ficou o Sarney . E com ele, a nova moeda, o plano cruzado e segundo o presidente, cada brasileiro deveria ser fiscal dos preços, um fiscal do presidente, um programa em todos os cantos do país. Tudo muito bem encampado (talvez elaborado) pela Globo. Eu e muitos fomos os fiscais do Sarney, porque acreditávamos na poderosa. Ela sempre tinha razão. Se necessário, chamávamos a polícia, inclusive, tudo bem documentado pela TV. Havia até bótons com o slogan, “Eu sou fiscal do Sarney”. Foi em 1986. Em 1988, um tanto desiludidos, ouvíamos a nossa eterna namoradinha do Brasil interpretar a mãe da vilã, em Vale tudo. Ela sempre bondosa e íntegra, a honestidade em pessoa, lutando contra a tudo que representava a corrupção e roubalheira no mundo dos negócios e no Brasil. Eu me perguntava, tal como a velhinha de Taubaté, se existia corrupção nesta época? Ah, coisa de novela!

Apesar de todo o esforço, a coisa desandou um pouco e a TV fazia muitas entrevistas com especialistas em economia para mostrar ao povo brasileiro, que ainda havia uma saída, tal como agora, com estes vídeos de celular, que estão mandando.

Então, para salvar a pátria, surgiu Color de Mello, que se elegeria com a missão de acabar com os marajás e a Globo sempre atenta, apresentou um Globo Repórter inteiro esmiuçando a vida dos marajás, os funcionários públicos que se utilizavam do erário publico para as suas conveniências. Inclusive, no último debate do Lula, ela manipulou, quer dizer, ela ressaltou as imagens e diálogos, dando plena supremacia ao Collor, no JN. Uma emissora que sabia o que era mais útil para o seu povo. Isso, naquele áureo e abençoado tempo em que se assistia apenas a Globo. Prenderam a poupança dos brasileiros, houve escândalos, mortes como a do PC Farias, impeachment, mas tudo acordado e o país prosseguiu na santa paz de Deus. Ah, a nossa namoradinha, em 1990 era uma mulher determinada e forte, que juntava ferro-velho, envolta numa trilha sonora brega de Magal, “Me chama que eu vou”. A rainha da Sucata tentava mostrar ao brasileiro que ele podia dar a volta por cima e vencer no seu negócio (?) . Só que ela se apaixonava por um milionário. É, a nossa namoradinha não era mais a mesma, era brega e desbocada, bem de acordo com a primeira dama da época. E vá amor ao casal “real”. Afinal de contas, os tempos mudam e o que fica é o melhor para o Brasil.

Alguns anos mais tarde, em nova eleição, com o Lula concorrendo, a namoradinha teve medo. Não a personagem, mas a própria atriz, manifestando o seu medo real com a provável chegada de Lula ao poder.

Aos poucos, como a velhinha, comecei a me decepcionar. Houve outras mídias, e muita coisa estranha me deixava com a pulga atrás da orelha. Muita manipulação, muito apelo, muita tramoia. Assim caminhava a humanidade e quando a Dilma foi presidente, houve até passeata por R$ 0,20 centavos sendo uma manifestação quase diária apresentada pela emissora.

Mas como todos os coxinhas, eu ainda acredito. Não vou me suicidar como a velhinha de Taubaté, porque tenho grupos que me acolhem e até políticos que pensam como eu, como aquele do “ bandido bom é bandido morto”. E depois disso, eu sei que uma emissora de TV não tem nada a ver com a política. Eles apenas informam. Vou ouvir este mortadela, aí embaixo, mas fingir que não ouço pra não lhe quebrar a cara!

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Houve muitos fatos que são por demais conhecidas atualmente, gerando este ódio entre classes. Alguém ainda duvida deste quarto poder? Nem sei se às vezes, não é o primeiro. E muitos atos contra a vida e a justiça virão!

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/homem-branco-modelo-3d-isolado-3d-1847732/

quarta-feira, abril 04, 2018

Para não dizer que não falei das flores II

Rosas se espalhavam pelo alambrado, tingindo de vermelho o cenário, no qual se avistavam pequenos pedaços de azul da parede do prédio.

Quase não se via o outro lado da cerca, tão fortes estavam as rosas.

Tínhamos a impressão que o verde era apenas um adereço à beleza e ao perfume que revelavam.

Houve momentos em que cresceram tanto, que atingiram o jardim por trás da cerca, envolvendo-se nas margaridas, nas frágeis papoulas ou nos vigorosos cravos amarelos.

Achávamos que o vermelho suplantava as cores da discórdia, do ódio, da intolerância.

Pensávamos que o desafio estava tomado, que o sangue vertido nas lutas pela democracia representava os anseios de uma sociedade fragilizada por anos e anos de dissociação cidadã de sua pátria.

Pensávamos por fim que a sociedade estava madura.

Mas as pétalas foram caindo aos poucos, lentamente, no subterrâneo dos insetos devoradores, minando as raízes, as folhas, os galhos. Minando o verde da esperança até chegar no vermelho. O vermelho símbolo de tantas lutas, para estas formigas, pulgões e toda a sorte de predadores estimula o ódio, a intolerância, o desamor, o desrespeito, o embate furioso contra as leis, contra a democracia, o golpe.

Pois as pétalas se espalhavam, as rosas vermelhas que enfeitavam e transformavam milhares de cenários cinzas e pobres em espaços de esperança e melhoria, hoje estão sendo dizimadas através da mão canhestra do carrasco, até mesmo dos alienados que seguem o fluxo dos desinformados (ou manipulados).

Mas o mundo gira, e as flores tem a temperança da natureza, há tempo de brotar e por certo nem todas serão destruídas, porque a terra é fértil e o adubo está aí, pra ser espalhado.

quarta-feira, março 21, 2018

Lascívia


Este conto é um desafio de uma oficina online,

sobre a elaboração

de um conto erótico com o protagonismo masculino.


Carlos estava sentado na poltrona, ao lado da janela, entediado. Quem diria que ficasse assim, depois da reunião com os estagiários e as modelos excitantes que participaram da aula de pintura. Entretanto, nem a aula ou as mulheres faziam-no esquecer o homem que se atravessara na frente do carro, obrigando-o a parar quase em cima da calçada. Por um momento, imaginou tratar-se de um assalto, apesar da aparência de executivo. Mas quem poderia confiar num homem de terno e uma maleta embaixo do braço, hoje em dia? Dera uma desculpa, dizendo-se interessado em saber sobre as suas aulas. Carlos não respondera. Estava irritado demais para explicar qualquer coisa.

Levantou-se, pegou um café e voltou a sentar-se, olhando o deserto da rua que se alongava além da vidraça. Não chegava ninguém, era o que pensava. Entretanto, não demorou muito e bateram na porta.

Espiou pelo olho mágico e avistou uma cara disforme de fundo de colher. Abriu a porta e um homem alto, de barba e cabelo curto o observava com indisfarçada atenção. Seria alguém interessado na aula de pintura? Mas teve um sobressalto, quando o reconheceu. Era o mesmo do carro que o interpelara no dia anterior, quase cometendo um acidente. Fez um gesto rápido de fechar a porta, mas o outro o impediu com o pé.

O homem se desculpava por ter vindo até a sua casa e explicou de imediato, que soubera por um de seus alunos da aula de pintura. Disse, por fim, que procurava por uma pessoa.

Carlos tirou o celular do bolso e digitou um número. O outro ficou inquieto, pedindo que não chamasse a polícia, pois não era um criminoso. Só queria fazer algumas perguntas. Mostrou seus documentos e acrescentou que era um empresário do ramo do aço.

Carlos gritou, irritado:

― Porra, cara, não me interessa a tua vida, nem o que tu faz! Pra mim, isso é assédio à privacidade e perseguição. Não sei quais são os teus objetivos e vou chamar a polícia. Não te conheço, não tenho nenhum negócio contigo, portanto vaza!

Neste momento, o homem retirou o pé da porta e começou a chorar, em desespero. Em soluços, dizendo-se constrangido, pediu pelo amor de Deus, que o ouvisse. Ele só queria conversar, fazer algumas perguntas.

Carlos, intrigado, não sabia o que fazer. Um pouco desarmado, perguntou:

― Mas o que tu qué saber? É aula de pintura? Sabes o que faço aqui, tenho meia dúzia de estagiários e algumas mulheres bonitas. Elas ficam no meio entre os cavaletes, despidas, e cada pintor com a sua prancheta e suas tintas. Resumindo, é isso que fazemos. Não tem segredo. Agora, cara, disse tudo, pode ir embora.

― Eu tenho uma oferta a fazer. Deixe-me entrar, ver o local onde a aula acontece, conversar um pouco. Não leve a mal, mas a minha oferta é em dinheiro, eu pago por uma aula ou as do mês todo. Só quero que confie em mim e converse comigo. Olha os meus documentos, vê o meu celular, aqui estão todos os meus dados.

Carlos não quis ver os documentos. Coçou a cabeça, dividido. Um mês de aula, pensou. Bem que seria uma solução para algumas dívidas. Então, deu a cartada:

― Trezentos.

O outro sem piscar abriu a carteira e entregou três notas de cem reais. Carlos pegou o dinheiro, um tanto chateado consigo próprio. Mas que mal havia, se o homem mesmo fizera a proposta? Ele precisava de dinheiro, o outro queria pagar. Então que entrasse.

Ele entrou, deu alguns passos em direção a uma poltrona, a mesma em que Carlos estava anteriormente sentado, observando a rua pela vidraça. Olhou em torno e mostrou-se um pouco apreensivo. Perguntou se Carlos não queria olhar os documentos para se asseverar que ele era um homem de bem. Carlos, então leu o nome na identidade: Paulo Sorren Herrmann.

― Tu é bem conhecido. Teu nome sempre na mídia.

― Sim. Mas não vamos falar de mim, pelo menos neste aspecto empresarial, de homem bem sucedido, com família e filhos. Eu sou um homem que procuro muitas coisas, que não encontro na minha vida profissional e pessoal. Por isso, quase supliquei para entrar.

― Não entendi nada.

― Vou me explicar. Eu acho maravilhoso este ambiente, este cenário. Tudo aqui me dá uma atmosfera de sensualidade, de lascívia.

―Vou te dizer, que somos muito liberais na sexualidade, mas posso te garantir que sou hétero.

― Não te preocupa. Falei no ambiente apenas. É ele que me envolve, que me cerca, que me consome. Se me deixar ficar aqui, quando houver aula, eu posso pagar muito mais.

Carlos o olhava preocupado. Afastou-se um pouco e ofereceu uma cerveja.

― Não quero beber. Quero que você me fale tudo, me explique o que acontece e como acontece aqui.

― Eu resumi há pouco.

― Mas me fale mais, dê detalhes. – Dizendo isso, esticou as pernas parecendo mais relaxado.

Carlos foi até o quarto e trouxe um cigarro de maconha. Sentou-se num banco de couro e fumou lentamente. Ofereceu a ele, mas Paulo argumentou que nunca tinha usado.

― Tu é um burguês safado.

― Porque diz isso? Tu que te diz liberal e tem preconceito contra mim.

― Beleza. Tem razão.

Carlos fumava e enchia o ambiente de um aroma adocicado. O outro ficava cada vez mais à vontade. Levantou-se, caminhou pela sala e observou os cavaletes encostados na parede, os bancos altos de madeira, a banqueta de couro onde as modelos sentavam. Olhou para Carlos, que agora deixara o banco para sentar-se no chão, numa posição imitando a de lótus. Indagou:

― Não vai me contar tudo?

Carlos fungou e falou com a voz um tanto fanha, em virtude do fumo. Sorriu e perguntou se ele queria saber tudo.

― Sim, tudo.

― Então para de girar pela sala. Senta aí.

Começou a descrever a aula e Paulo tinha a impressão de que já estivera naquele local, que sabia tudo o que iria acontecer, mas gostava de ouvir, como se fosse a história das mil e uma noites. Uma história que se repetia, mas retomava um sabor diferente.

Por fim, repetiu o que ouvira:

― Então a modelo lindíssima senta-se na banqueta, no círculo, completamente nua. Homens e mulheres a ficam analisando entre os cavaletes, observam o seu corpo, o contorno dos seios, a saliência da barriga, o umbigo, a genitália e eles se excitam.

― Não, ninguém se excita. É um trabalho, cara, se orienta!

― Ah, não me diz que tu não fica de pau duro também.

― Claro que não, pelo menos, não de propósito. Pode acontecer, mas a gente se controla.

― Eu já estou excitado, imaginando tudo que me disseste.

― Não é legal, cara. Isso é só imaginação. Aqui não é para isso.

― Mas eu imagino sim, imagino os olhares enviesados, fingindo que estão desenhando ou pintando. Eles observam os detalhes e sentem tanto tesão que quase não resistem. Tanto eles, como elas. Quando um homem está lá, também observam a silhueta, a barriga, e deslizam com seus olhares por reentrâncias que mais se interessam, observam o pau caído, encolhido, o saco achatado no banco e se seduzem a si próprios.

Em seguida, suspira sôfrego e prossegue:

―Eu preciso participar de uma aula. Só vou encontrar aqui, o que nunca consegui no meu meio, tu entende?

―Aqui não é casa de prostituição, cara, deixa de ser vacilão. Por que tu não vai na zona ou contrata uma garota de programa.

― Assim, tu tá me ofendendo. Não podes acabar com a minha ilusão, com o meu sonho. Com prostituta, tudo é falso. Aqui é real.

― Não, nenhuma mulher ou homem, nenhum modelo vem pra se exibir com qualquer intenção sexual. Ninguém vem vender o corpo aqui. Isso é uma aula de arte, cara.

― Pois então, eu não quero comprar nada. Só a tua permissão. O gozo só é verdadeiro, quando é espontâneo. É isso que preciso.

― Mas o outro não sabe da tua intenção. Ele é um profissional.

― Pode saber. Eu posso me excitar com quem está ali no círculo e acabar gozando, entende. Pode ser um ou dois. Uma mulher e um homem. Sem eles saberem a princípio, mas depois, haverá uma reação subliminar que aos poucos vai nos comprometendo. Vai atingindo a todos, como uma orgia de sedução.

― Então tu é gay.

― Sou bi e só sinto prazer assim. Eu sonho com isso, Carlos. Por favor, deixa eu participar da aula de artes, eu quero o círculo, quero os olhos escondidos e comprometedores. Eu sei, que aos poucos, todos vão sentir a mesma paixão, o mesmo tesão. Basta haver alguém que os seduza.

― E tu acha que pode fazer isso?

― Posso, assim como fiz contigo.

― O que tu queres dizer, cara? Que porra é essa?

― Que assim como a Sharazade eu recontei a história e tu revivesse tudo. Tu estás excitado, to vendo daqui.

― Cara, já te ouvi demais, se toca. Vai embora, vaza.

― Não fica irritado, sei que és hétero, é normal, não muda nada. E eu não vou sair, eu paguei pra me ouvires, lembras? Agora quero que marques uma aula. Eu preciso ter essa experiência.

Carlos levantou-se, dirigiu-se à janela e abriu a cortina. Uma luz tênue se estabeleceu, expressando o entardecer que findava. O outro se aproximou e falou quase ao seu ouvido:

― Eu espero. Não precisa ser amanhã. Quando tu quiser.

Carlos não disse nada. Sentiu com prazer o aroma adocicado que ainda envolvia a sala e como o sultão Shariar, quis ouvir a história de novo.

Fonte da ilustração: Efes Kitap - site: https://pixabay.com/pt/users/efes-18331/

terça-feira, março 06, 2018

O verão agoniza

Nem sempre a noite clara, a brisa entre o arvoredo, a avenida com luzes esparsas pairando sobre bancos e jardins, parecem a plenitude da paz no fim de verão. Pode ser sim o reflorescer das esperanças dos que se reencontram, o harmonizar do mate solitário no banco de madeira, o gorjear dos pássaros noturnos que sinalizam o início do descanso.

Ou a emboscada da solidão que martela de leve os que carregam na mochila pesada de vazios, a busca insensata das bebidas e drogas, do ser não sendo quase nada, dos que mendigam amores e dinheiro no chão das esquinas desenhado entre folhas e luar.

Outro dia, o vi recolhendo latinhas perto do parque infantil. Fumava uma bagana e parecia procurar alguma coisa indefinida, talvez uma dúvida da qual não se livrava. Olhou-me de soslaio e sem vacilar, disparou: o que é cupincha? Surpreso, respondi indeciso: comparsa. Ele reagiu com um grunhido e silenciou.

Pensei em afastar-me, mas perguntei se juntava muito material à noite. Ele repetiu cismado: me chamou de cupincha. Tentei descrever a palavra; seria companheiro?

Ele riu com alguns dentes à mostra. Depois, se aproximou, o que me produziu algum receio. Confidenciou que um camarada o mandou levar drogas até determinado lugar, mas não aceitara. Só vivia de sua cachaça e não queria se sujar. Entendi que "se sujar", em sua linguagem, era tornar-se um criminoso. Concordei que não devia se envolver com drogas. Ele deu uma gargalhada e me abandonou de vez, como se entrasse num mundo paralelo, do qual eu não fazia o menor sentido.

Fiquei alguns minutos observando o arvoredo da avenida, as poucas pessoas que passavam, o veraneio que agonizava bonito como o abandono dos pássaros na maciez dos ninhos.

Afastei-me e pensei na ética humana. Aquele homem podia não ter nada, nem esperança, nem saúde, nem importância para os transeuntes, mas tinha ética. Mesmo que tudo fossem devaneios, não importa, ali estava incrustada a ética em suas convicções mais profundas. Ética não é para todos.

sábado, março 03, 2018

O que Saint-Exupéry, um amigo e as redes sociais tem a ver?

Há muitas coisas que nos chamam a atenção, quando participamos de redes sociais como o facebook, o twitter, o Snapchat, Instagram, entre outras. Por exemplo, há pessoas que conhecemos ou não e que compartilham assuntos de mesmo interesse, como no meu caso, a literatura, a política, filmes, músicas, ciências da informação, com ênfase em biblioteca, os livros enfim.

Não sou muito dado a bate-papo online, nem participar de redes de orações, discussões religiosas, jogos, nem muito menos expor coisas muito íntimas, como por exemplo, um beijo apaixonado em minha mulher (porque se já foi fotografado, por certo, feito alguma pose e publicado na rede) então, já este beijo não é tão espontâneo assim, é meio dramaturgia, não é mesmo? Claro, que ocorrem os flagrantes e isso é legal. Mas falo daqueles encontros arrumadinhos, tudo muito certinho e o beijo tascado de forma cinematográfica. Ah, isso é engraçado.

Há coisas intimas também, como um jantar em família, na alegria em estar com a família num passeio ou ou viagem. Acho saudável, claro respeitando os limites da soberba e da ostentação. Mas não estou aqui para julgar ninguém, muito menos para criticar os inúmeros integrantes das redes sociais, inclusive os meus amigos.

Por outro lado, sei que no dia a dia, quando topo com uma pessoa com dificuldades físicas, e às vezes, um certo atraso em demonstrar o que desejam expressar, fico um pouco impaciente. É um defeito meu, é claro, já que devia ser mais tolerante, principalmente porque todos, sem excessão, inclusive eu, somos cheios de dificuldades, ou psíquicas, ou em virtude da idade avançada, ou da pouca idade, ou dos comportamentos rígidos assimilados, das inseguranças, ou mesmo da arrogância, da autoestima exacerbada, da intolerância, enfim, todos temos algum tipo de inquietude em relação aos valores e atitudes dos demais. Ninguém é perfeito.

De todo modo, está claro que não sou paciente, mas também não sou intolerante. Sou uma pessoa que espera, espera que a outra mostre a que chegou, e sem nenhuma superioridade interior, tentar me aproximar e ser o mais natural possível. Não quero exercer o papel de juiz, nem professor ou qualquer personagem investido de poder e segurança para mostrar quem é o melhor. Desta forma, evito demonstrar minha impaciência e respeitar o tempo e o limite do outro.

Falo isso, porque fico me perguntando sobre uma pessoa que vem a minha casa, pelo menos uma vez no ano, nos verões, quando vem ao Cassino.

Na verdade, eu o conheci através de outras pessoas, e nem tinha motivo de ser seu amigo, apenas procurava ser gentil e educado nos poucos encontros que tivemos em comum com outros conhecidos. Via de regra, vem no meu aniversário, mesmo que não seja convidado. Não reclamo, já acostumei com sua presença e sei o quanto é sincero. Uma vez ao ano, quando vem também me convida (eu e minha família, para um churrasco especial, que faz somente para nós). Fico pensando no motivo de tanto desvelo, uma vez que não é meu parente e a amizade, para ser sincero, começou quase em via única, do lado dele, porque para ele, parece que há um lastro que consolidava uma amizade eterna. Não que eu o dispense, ao contrário, sempre o trato com a maior sinceridade e gentileza, mas somos pessoas tão diferentes, que se torna extremamente difícil uma conversa entre pessoas com objetivos tão distintos. Se eu fosse um cara extrovertido, talvez ele tivesse motivos para me procurar.

Ao contrário, sou meio quieto, e essa característica se acentua em virtude das dificuldades em que ele apresenta em desenvolver os assuntos. Jamais poderia falar nos temas que me interessam com ele, pois somente concordaria com um ãh ãh absorto, provavelmente olhando ao longe, perdidos em seus pensamentos.

Via de regra, seus assuntos prediletos referem-se ao celular de última geração que acabou de comprar, do carro ano 95 que está tinindo de novo, do último DVD da banda de pagode, das fotos dos sobrinhos, dos passeios que faz na praia e do exame destes assuntos meia hora depois, repetindo tudo de novo. O interessante é que ele sabe de cor qualquer dia do ano em que tenha feito uma compra, como por exemplo comprou um aparelho toca-discos 2 em 1, com prato para LP, toca-fitas e rádio am fm, nas Lojas Colombo, no dia 19 de abril de 1988, dia do Índio. Ou a TV preto e branco de 21 polegadas, da marca Philco nas lojas Manlec, em 1982, no dia dos namorados.

Por isso, não esquece jamais as datas de aniversário, inclusive, a minha (e olha que não havia facebook, quando o conheci).

Acabo, ficando na estratégia de perguntar em círculos sempre a mesma coisa, que lhe diga respeito e intervir com um detalhe ou outro sobre mim, que também possa sugerir algo referente a ele.

Por isso, indago a mim mesmo e aos que me conhecem, por que ele sempre me procura com esta absoluta sinceridade, que embora apresente um certo egocentrismo, sempre procura me agradar de uma maneira ou de outra, ora convidando para um churrasco, ora trazendo as fotos que tirou num dos aniversários para mostrar, ora trazendo um DVD para assistir, mesmo que não seja o meu gênero preferido, mas que imagina, com convicção infantil, que me alegrará sobremaneira.

Por estas e por outras, sem querer propalar meus bons sentimentos, talvez seja exatamente isso, essa maneira honesta de ser, sem vislumbrar meus interesses pessoais, sem me importar com as horas que vão naquele mate de vai e vem, sem ouvir muito mais do que o silêncio.

Talvez seja um ato de doação. Mas não é só pra ele, é para mim também, no momento em que me dispo um pouco do que sou e fico mais próximo do ser humano. Afinal, ser amigo também é uma qualidade humana. Acho que é isso. Não ter muita paciência e às vezes, até procurar, disfarçado, as horas no celular, ocorre sim, mas a diferença é que o aceito como é.

Muitos que o conhecem, o tratam como um idiota, como uma criança a quem se dá ordens e se exige pouco para não encher o saco.

Pelo contrário, procuro sempre ressaltar as suas qualidades, incentivá-lo a melhorar em seus projetos, talvez medíocres para a maioria das pessoas, mas que para ele, são grandiosos, como tirar a carteira de motorista para dirigir o carro que comprou.

Não lhe dou conselhos nem faço ressalvas em suas atitudes. Ouço o que tem a dizer e dou a minha opinião, sem muitas reservas. Procuro falar das coisas que lhe dizem respeito, e acrescentar-lhes um frescor que normalmente não teriam, por mais simples e banais que possam parecer. São coisas suas. É a sua vida. Por isso, acho que intui uma certa cumplicidade com a sua percepção de vida.

Mas voltando às redes sociais, como no início da crônica, observo que algumas pessoas que conheço (ou assim acredito) demonstram qualidades completamente estranhas em seus seus perfis públicos, a ponto de pensarmos que se trata de outra pessoa completamente diferente.

E fico me perguntando, será que eu estou equivocado? Que elas são exatamente como aparecem na rede e que na vida real não passam de um produto de minha imaginação? Nem sei se há uma intenção de exibirem uma personagem diferente ou se acreditam que a persona que criam é a sua realidade interna. Quem sabe, uma inspiração para uma vida melhor? Um upgrade de mais qualidade?

Afinal, todos somos enigmas, até mesmo para nós mesmos. Temos cavernas escuras em nossas mentes que não mostramos para ninguém, até mesmo para nós mesmos. E o quando o fazemos, tomamos um choque e juramos de pés juntos que foi tudo um sonho. Que é obra do destino ou da manipulação do terapeuta.

Entretanto, afundado em minhas próprias cavernas e a cada dia, tirando um pé, pra chegar no claridade do dia, procuro mostrar minhas preferências, sem me preocupar muito com a aprovação alheia. Claro que fico muito satisfeito que curtam e comentem o que publico, mas fico feliz com opiniões diferentes das minhas, pois ao declararem, estes estão sendo sinceros, como sou com aquele amigo, sem quererem me agradar simplesmente. Neste caso, a discussão proporciona um pluralismo de ideias interessante. Mostro claramente que sou de esquerda, mais especificamente socialista, que assumi de acordo com minha visão de mundo, dos valores que apreendi.

Afinal, como diz Cazuza, todos precisam de uma ideologia pra viver. E cada um tem a sua. Que bom que seja assim.

Respeito os que pensam diferente, critico, discuto e aceito as críticas. Há casos, afinal, sou humano, que procuro ocultar as publicações alheias e comentários, pois para a boçalidade, não há argumento.

Por outro lado, exerço o meu gosto pela literatura e faço da escrita o meu ritual diário. Também adoro viajar e de vez enquanto, publico alguma coisa que lembre as viagens que participo. Cenas que considero curiosas ou bonitas. Também falo alguma coisa em música e os que virem meu perfil, percebem que gosto muito do Chico e que procuro assistir seus shows. Além disso, gosto de filmes, principalmente os que tem conteúdo dramático e faço algumas resenhas nos meus blogs. Falo um pouco em espiritualidade e para isso, devo estar focado numa emoção religiosa para expressar alguma coisa, porque prefiro não repassar nada em que não acredite.

Às vezes, sinto que sou um chato, porque insisto em alguns assuntos, como o horror à ditadura e por isso, sou muito cobrado e criticado. Mas tudo bem, se não me mostro como sou na realidade, pelo menos não douro a pílula, me mostrando um santo no altar do facebook.

Por isso, fiquei pensando neste meu amigo, cujas dificuldades físicas e neurológicas, não o impedem de exercer as suas tarefas com muita competência. Nesta pessoa que confia em mim, e que tento ser paciente, aceitando-o como é.

Em razão disso, lembrei de um livro que a maioria dos adolescentes de gerações passadas leram: "O pequeno príncipe" de Saint-exupéry. Quando o li, me impressionou o modo como o autor descrevia as relações humanas sob imagens metafóricas, através da raposa, da rosa, do príncipe de outro planeta, do geógrafo, do bêbado. São pessoas em absoluta solidão, que finalmente se deparam com o sentimento, assim despertado pela raposa, que diz ao menino, a frase tocante, que expressa o real significado da vida. "Os homens esqueceram a verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer”.

Através desta lembrança, tive um pequeno insight, que não é nada original, mas que centenas de pessoas já devem ter experienciado em nas suas relações com o próximo. Todos querem ser cativados, de alguma maneira. Na redes sociais, nas festas, nos encontros, no dia a dia, até mesmo nas relações quase imperceptíveis do comércio, onde estamos via de regra preocupados com o produto e o comerciante com a própria venda.

A raposa queria ser cativada. E o que fazer, perguntou o Pequeno Príncipe. "Você deve ser muito paciente. Eu não preciso de ti.Tu não precisas de mim. Mas, se tu me cativares, e se eu te cativar…ambos precisaremos um do outro. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas."

Saint-Exupéry sabia dessas coisas. É só preciso paciência.

terça-feira, fevereiro 20, 2018

O DILEMA DA PRIMEIRA-MINISTRA

Este conto faz parte de uma oficina literária com o desafio de se inserir no conflito dois personagens reais, Indira Ghandi e o papa João Paulo I. Um encontro impossível, pura ficção.

A Primeira-Ministra da Índia, Indira Gandhi teve uma visita inusitada, na penúltima noite de outubro de 1984: um emissário da Mossad e o Papa João Paulo I. Tudo começou assim.

Indira ensaiou alguns passos, decidida, em direção ao corredor pouco iluminado, observando os pequenos focos de luz que vinham do jardim. Estremeceu, tinha consigo que alguma coisa fatídica estava por acontecer. Mas ultimamente, sua vida estava recheada de acontecimentos surpreendentes. Examinou-se no espelho lateral, próximo à porta, ajeitou com as duas mãos, a ghaghara, saia longa que lhe parecia menos pretenciosa do que o sári e acolheu o véu à cabeça, o significativo odhini, que produzia, sabia disso, uma expressão mais resoluta e misteriosa. Salientava seus olhos negros e grandes, e seu nariz alongado causava um ar de sapiência estudada. De todo modo, talvez a situação exigisse tais doses de vaidade.

Quando chegou à sala e avistou as duas figuras na penumbra, teve um sobressalto. Um dos homens levantou-se e acercou-se dela, apertando-lhe a mão, amistoso. Era o emissário da Mossad, chamado Hersch. Ela, entretanto, não conseguia desviar os olhos do outro, cuja fisionomia quase se escondia na penumbra.

Hersch, ao seu lado a fitava sem sorrir. Seus lábios finos e olhar entrecortado, se deparavam com uma mulher assustada, o que o deixou intrigado. Não imaginava encontrar uma mulher como Indira Ghandi, assim, desorientada. Passou a mão imensa pelos cabelos ralos, apertou os olhos azuis que pareciam disparar das órbitas e perguntou:

- Conhece-o, não? A senhora tem a plena consciência do motivo pelo qual estamos aqui.

- Sim, evidentemente. Mas como é possível isto?

Neste momento, o outro se aproximava lentamente. O cabelo grisalho alinhado para a direita, os olhos apequenando-se atrás dos óculos, ante a fisionomia alegre, o sorriso denso. Vestia-se com um terno preto e o colarinho fechado, vestimenta de sacerdote. Mais perto, percebeu um leve suor na testa ampla de Indira. Esta puxou o véu um pouco para trás e estendeu-lhe a mão.

- Não posso acreditar, não consigo entender como o senhor está aqui.

- Quando Irmã Vincenza veio trazer-me o café da manhã, com o seu afável "Buongiorno, Santo Padre" e eu não respondi, muitos também não acreditaram. Meus partidários, porém, sabiam de tudo. Ou pretendiam saber. Quanto à V. Exª., é preciso acreditar além do que vê, fundamentada nos sentimentos.

Ele sorriu, aconchegando as mãos nas suas.

Indira se recompôs e, por um momento, esqueceu toda dúvida e temor.

- Por favor, V. Santidade, me chame de Indira. Se tenho um milagre em minha casa, em meu País, deixemos de formalidade - e dirigindo-se a Hersch - O emissário também deve ter uma revelação importante, para chegar a este extremo!

- Muito mais do que eu, senhora. O Santo Padre tem muito a dizer. Eu sou um emissário da Mossad, e a minha intenção é salvaguardar as comunidades judaicas na Índia, o único país onde não sofremos discriminações. E a senhora sabe, a religião mulçumana está crescendo muito neste país.

- Nosso encontro teria um caráter informal.

- Exatamente, senhora. O Santo papa que me convenceu a vir aqui!

- Mas ele não está...?

- E quem não está, não é mesmo, nos dias de hoje, onde há tantas traições.

Ele os interrompeu:

- Alguns dias atrás, o dezessete de outubro seria meu aniversário. Atualmente tenho outra data a comemorar. É a impermanência da vida, como refletem os hindus.

Os demais silenciaram. A Primeira Ministra até tentou ser gentil, mas aquela ideia era tão extraordinária, tão surrealista que não encontrava meios de se comunicar e sentir-se à vontade. Ofereceu-lhe um chá. Em seguida, uma criada aproximou-se e serviu-o, na mesa despojada que destoava da sala ornamentada. O papa João Paulo I serviu-se com absoluta calma, gestos pausados, delicados. Seu olhar pousava nos objetos, como se pretendesse ajustar neles o olhar que os vislumbrava. Um olhar apaixonado, vibrante, que não se coadunava com o dos demais. Indira tomava alguns goles, sôfrega, ouvindo a declaração do emissário.

- Não se preocupe, que meu amigo Luciani, ele permite que o chame assim, me induziu da maneira mais tranquila. Surgiu como um frágil foco de luz, quase a chama de uma vela, que foi se fortalecendo, até se tornar uma luz densa e arrebatadora. O papa sorri, dizendo que o emissário tem a capacidade de acomodar tudo numa caixa padrão e sempre o conteúdo é maior do que o invólucro. - Certamente, V. Santidade sabe do que estou falando. Quando me apareceu, eu não tinha a expectativa, nem o sentimento do que realmente deveria fazer.

- Essa expectativa se refere ao meu país? - perguntou Indira, intrigada.

- Podemos afirmar que é de uma abrangência mundial.

- Então encaminhemo-nos ao meu gabinete. Na verdade, devia tê-los convidado desde que chegaram.

- Se não se importa, senhora, ficamos por aqui mesmo. A menos, que haja a impossibilidade do sigilo. - Asseverou o emissário, abandonando, cauteloso, a xícara sobre a mesa.

- Meus guarda-costas da etnia Sikh cuidam de meus negócios. Eles têm a disciplina como eixo principal de sua crença e tenho absoluta confiança neles. Acho porém, que no escritório ficaríamos mais bem acomodados.

- O que tem a dizer, meu amigo Luciani?

- Que a oportunidade se aporta. O que temos de fazer não deve esperar, a não ser com o tempo da compreensão.

- Então está bem. Continuemos aqui.

- Nós viemos, naturalmente por um motivo especial, mas deixarei que meu amigo mesmo a convença. - Apontou para o papa que fisgava um doce com a ponta do garfo.

- Estou ansiosa em ouvi-lo.

- Talvez o que tenho a dizer-lhe não mude em nada os fatos ou pelo menos, não a curto prazo. O essencial, no entanto é conhecer a verdade e a verdade está acima de nosso conhecimento. É única. Não existem duas verdades. Não se pode afirmar que tal autoridade sofreu um ataque cardíaco ou que morreu pela espada. Não. A morte é uma só. Por isso, a verdade, vem do alto e a mentira é dos homens.

- Mas os homens são filhos de Deus.

Indira percebia-se mais tranquila, o que a deixava intrigada, não a ponto de negligenciar a curiosidade. Deveria ocupar seus pensamentos e coração naquele encontro e no resultado que produziria em sua vida. Talvez fosse isso, uma guinada, uma mudança de direção e ela pudesse assim, vencer todos os adversários, de agora em diante.

- Há duas maneiras de nos encontrarmos com a verdade: a primeira é abrir o coração e deixar que a verdade flua do alto, sem a nossa participação física. Na adoração, na entrega do espírito, na meditação, no deixar envolver-se nas mãos de Deus. A segunda, é agir de acordo com a lei, com as condutas de moral, de honestidade, bondade, de consolo, de integração com as rochas, com as conchas, com os animais, com a natureza. Deus não está apenas no sacrário, ou na comunhão, ou no sacrifício da missa, como o veem os religiosos, mas na natureza, em todas as religiões, em todas as crenças, nos pobres, nos que vivem à revelia da sociedade, até nas pedras.

- V. Santidade acredita nisso... meu Deus, fala como um hindu!

- Sou a favor da vida.

- V. Santidade me deixa confusa. Não veio aqui para me convencer ou falar de religião?

- Seguramente, não falei de religião.

- E o emissário, o que tem a dizer?

- Vou direto ao ponto. Não queremos que V. Exª. perca o poder para os conservadores. Os mulçumanos há cada dia propagam mais a sua religião e ratificam o ódio pelos judeus, além disso, os conservadores de ultradireita entregarão a Índia ao grande colonizador, à Inglaterra, através da dependência econômica. Não queremos isso. Não podemos ser massa de manobra! O governo fatalmente se submeterá aos interesses das classes superiores, dos donos de terras e sindicatos poderosos. Haverá toda sorte de criminalidade e corrupção! Os poderosos terão preferência aos partidos organizados.

- Um me fala de política e o outro de religião!

- Não, do encontro com a verdade, que vem de Deus.

- Mas então?

- Vim aqui para que o movimento que alavanca as possibilidades dos mais pobres não pereça. Que o slogan de 1974 "garibi hatao" seja reativado. Que a Índia dispense o apoio internacional e execute o seu próprio desenvolvimento social. Que não haja ódio entre doutrinas, mas a união entre os filhos de Deus. Por isso, eu o convenci a vir, afinal, ele luta pela reintegração dos judeus, que faz parte deste caldo cultural tão dissociado da realidade nos dias atuais.

- E como resolver esta questão, Santo Padre? O senhor tem uma solução?

- A solução depende de sua aproximação com os representantes da religião Sikh e pedir perdão.

Indira chacoalhou a colherinha entre os dedos. A observação era absurda. Esquivando-se de qualquer agressividade, porém, perguntou com paciência:

- Por que V. Santidade me pede isso?

- Porque é a única maneira de evitar o derramamento de sangue que está por vir. Tal como Irmã Vicenza em meu leito de morte, V. Exª. desconhece o destino do homem, as tramas que o envolvem. Ele fez uma pausa, segurou-lhe as mãos, afetuoso e pediu que ouvisse o que o emissário tinha a declarar, em relação aos detalhes políticos.

Hersch assentiu, de bom grado.

- Pois não, amigo Luciani. Para que o destino da desavença e da destruição não se cumpra, a senhora deve assumir o perdão de seu governo como ferramenta essencial para a paz. Deve estender a mão aos sikhs, pedindo que acolham o seu pedido de perdão pela invasão ao seu templo sagrado - e antes que ela tentasse argumentar ao seu favor, ele prosseguiu, enfático - sabemos que foi uma tentativa desesperada de trazer a paz à Índia, impedindo que o líder dos separatistas exercesse maior desestruturação da nação, mas a que preço, não? Olhe, não pedimos que V.Exa. se converta a sua crença, apenas que mantenha um olhar mais atento, quase de súplica, investindo nos sentimentos mais profundos de seus partidários.

A primeira-ministra ainda tentou esclarecer, do jeito que costumava convencer a si mesma de que havia sido razoável em sua estratégia.

- Eles querem dividir a Índia. Querem estabelecer uma nação desunida. Nossas tropas ocuparam os estados de Punjab e Haryana, porque os rebeldes se espalharam em manifestações violentas. Precisávamos reestabelecer o controle da Nação. Portanto, foi inevitável a invasão do templo, porque o líder deles se refugiou lá.

O emissário não ousou contrariá-la. Apenas sugeriu que utilizasse a diplomacia, ao que ela replicou: _É uma humilhação! - Seus olhos outrora límpidos, estavam marejados e não havia como evitar o conflito de sentimentos. Uma dose de desilusão reinou em seu íntimo.

Ao voltar-se para João Paulo I, Indira observou um sorriso leve, expressando uma aura de santidade que transtornava ainda mais o seu coração perturbado. Talvez por isso, sentara-se a sua frente, almejando que ele lhe desse as respostas, cujas perguntas pululavam desordenadas. Também sorriu para ele e quando o fazia, sentia-se tranquila e receptiva. Então, ele completou o tema, com afável delicadeza.

- Talvez a sua missão seja hostil aos seus sentimentos humanos, mas muito elevada perante os desígnios divinos. Muito mais do que diplomacia, trata-se de uma demonstração de humanidade, de que a filha principal da Índia não é somente a Primeira-Ministra, mas uma cidadã solidária, que respeita e ama todos os seus conterrâneos, sem ver-lhes a casta ou a inclinação política ou religiosa. Sabe, Irmã Indira, a vida não tem sido fácil para eles também.

Neste momento, o pranto silencioso embargou a voz e ela se aquietou, sem dizer nada, apenas limitando-se a ouvir o Pontífice.
- É uma verdadeira tragédia para os que lutam pela liberdade ou o que chamam de liberdade. Se V. Exª luta pela liberdade dos pobres, pela socialização da terra, das riquezas, deve lutar também pelas liberdades individuais.

Num esforço extremo, a estadista superava a mulher:

_A mando de quem vierem aqui? Meu Deus, às vezes, penso que tudo não passa de uma alucinação. Querem que eu me aproxime dos sihks e peça perdão? Mas nossas relações são de paz, vejam os meus agentes que pertencem esta seita!

O emissário e o papa se entreolharam, expressando, talvez, tudo o que seu coração trouxera na bagagem.

Indira observava o Santo Pontífice e de repente, seus olhos se transformaram, como se a revelação saltasse pelas órbitas. Seu coração abalado a fez recuar, aproximando-se do corredor envidraçado. Lá fora, do outro lado da residência, o jardim todo às escuras, tão bem guardado pelos agentes. Então, voltou-se para os dois que agora estavam separados.

O papa folheava algumas páginas da Bíblia, que o emissário lhe entregara. Este desenhava pequenos círculos com os pés, contornando as estrelas dos ladrilhos. Ela aproximou-se e pousou a mão sobre a Bíblia, reluzindo a ametista no anular, num gesto de alerta. O papa levantou os olhos e a ouviu, paciente.

- V.S. pretende indicar-me um caminho! Agora, sinto que as coisas estão aqui, na minha mente, no meu coração. São eles... eles me trairão. Assim, como o senhor previu a sua morte ...

Ele faz um aceno com a cabeça. Seus olhos diziam mais do que ela gostaria de ouvir. Entretanto, nada parecia surpreender Indira, desde que iniciara o dia, portanto, até nos discursos que teria pela frente, suas previsões seriam as mesmas.

- Então acha que...

- Minha filha, quando nos afastamos do perdão e da justiça, buscamos a vingança.

Ela dirige-se ao emissário.

- A revelação era esta?

Ele abre os braços, mostrando que não há nada a esconder.

- E como sabe?

- A senhora mesma afirmou. Veio dele, do amigo Luciani.

- Então, que devo fazer? Se pedir perdão, apenas para me livrar da vingança, para me livrar da morte, não serei digna para a história. Estarei apenas abreviando a minha partida, mas faltarei com a verdade que o senhor propaga.

- Por outro lado, evitará o derramamento de sangue. Evitará que a Nação se abaixe ao colonizador imperialista, que o povo seja esmagado na miséria, que o capitalismo destrua os benefícios alcançados, impeça que os judeus sejam mais uma vez expulsos de seus nichos.

Neste momento, o emissário Herscher se encaminha até a mesa, juntando-se aos dois. Quando ela pergunta "Devo então desviar o rumo, devo mascarar o meu destino?", ele devolve, convicto: "Ao contrário, deve exercer o seu destino. Está em suas mãos."

Indira abaixou a cabeça, melancólica. Um filme se passou em sua vida: Lembrou o pai, Nehru, o qual ajudou enquanto era primeiro ministro, recordou da vitória na guerra do Paquistão, cuja parte oriental, resultou na República de Bangladesh, com sua influência e participação marcante, motivando a aceitação pelo povo que a elegeu. Pensou em sua vida pessoal, na sua família, em seu filho que morrera num acidente aéreo, no outro filho que detestava política, mas que faria qualquer coisa para agradá-la. O que seria dela, a partir de agora?

Suspirou. Perguntou ao emissário:

- Quando será?

- Não sabemos com certeza, mas o fim está próximo. V.Exa. tem de se apressar.

- Tão pouco tempo assim?

- Tempo suficiente para decisão. Para a reconciliação. Para o pedido de perdão.

O velho papa ouvia o diálogo, alisando suavemente a página de um salmo. Quando Hersch perguntou o dia, Indira retirou um pequeno calendário da gaveta da mesa. Ele repetiu a data por duas vezes. E na segunda vez, completou:

- Trinta de outubro. Deve ser amanhã. O ator inglês já chegou?

- Peter?

- Sim Peter Ustinov. Você não deve ir ao jardim sob hipótese alguma, amanhã. Esqueça a entrevista.

- Que loucura!

João Paulo I levantou-se, deixando a Bíblia aberta sobre a mesa e se aproximou de Indira. Abraçou-a e abençoou-a ante o olhar emocionado do emissário. Em seguida, perguntou se ela pediria perdão à nação Sikh. Indira afirmou que pediria perdão, conforme o desejo do sumo Pontífice.

Neste momento, o emissário foi até a porta principal e pediu que um dos agentes entrasse na sala. Indira o olhou petrificada. Seria ele, o homem que a mataria, ou junto com o outro, executaria o plano na íntegra. Perguntou ao papa, o que significava aquilo? Teria chegado a sua hora?

Ele sorriu e acrescentou, satisfeito.

- Ele mesmo dirá.

O homem, a princípio, receoso, depois mais seguro aproximou-se e estendeu a mão à Primeira-Ministra. Ela recuou alguns passos, mas deteve-se, paralisada. Seria o seu fim, a previsão se antecipara para o dia anterior? Estaria ali, encomendada a sua morte? O que queria aquele homem e o outro guarda-costas que acabava de entrar.

- Nós queremos a paz e antes que peça perdão, nós também pedimos, pelo derramamento de sangue que também causamos. Queremos partilhar da mesma paz que V. Exª pleiteia.

Indira Gandhi estremeceu. Voltou-se para o jardim e sorriu.

Na noite seguinte, proferiu o discurso mais lindo e emocionado, que lhe valeu por presságio, em toda a sua história:

"Não me importa se perco a vida ao serviço da nação. Se morrer hoje, cada gota de meu sangue revigorará a nação."

Somente Hercher sabia que ela descobrira o dia de sua morte e por isso, fizera um vaticínio tão preciso.

Entretanto, a esperança de que não se concretizasse fora inabalavelmente destruída pela vingança do homem. O papa convencera Indira, mas o coração empedernido do antagonista não soubera compartilhar o mesmo ato conciliador. Somente o emissário Herscher sabia o quanto ela fora enganada, não por ele, nem pelo papa, mas pela bestialidade humana.

A verdade está no alto, não no homem.

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