segunda-feira, setembro 07, 2015

A FUGA DE MEU CÃO

Chamava-se Chacrinha. Nem sei por que cargas d’água dei este nome ao cachorro. Era um cusco preto, com uma pata branca, destoando das demais, meio peludo. Tinha um olhar atilado, uma boca enorme que se mantinha presa a trapos que eu puxava, segurando-o, levantando para o ar, dentes presos, respiração ofegante, peito saltando, olhar atento ao pano pendurado, sem descuidar para não perder a presa. Estava sempre assim, ao nosso lado. Corria comigo pelas ruas, enveredava por esquinas, metia-se em becos, quintais, ladrava com altivez e fugia no momento certo.

Num destes dias, em que as coisas acontecem sem que tenhamos qualquer intervenção ou pressentimento, fui à aula, pela manhã, com a pasta embaixo do braço, uniforme limpo, calças azul-marinho, frisadas, um lanche para o intervalo. Estava no horário de rotina à espera do coletivo que me levava até à escola, quando inesperadamente despontou na esquina, à toda velocidade, Chacrinha, correndo ao meu encontro, sem que eu pudesse detê-lo.

O ônibus dava sinais de estacionar e eu o expulsava em absoluto desespero, que para maior desgraça, ele parecia entender ao contrário, fazendo festa, pulando em minha roupa asseada, querendo participar como sempre de minha vida. Entrei no ônibus, na esperança que ele voltasse, desaparecendo na esquina, entretido com outras mensagens que pudessem surgir no momento, talvez uma cachorrinha alegre que despertasse interesse ou o cachorro imenso do vizinho, que latia como um trovão, afugentado-o em definitivo. Nada disso aconteceu. Quando sentei-me num banco, logo após à cadeira do cobrador, ele saltou para dentro do veículo, acomodando-se exatamente embaixo, junto a meus pés. Algumas pessoas brincavam que ele deveria pagar a passagem, outros olhavam de soslaio, desconfortados com o animal, assim alojado no mesmo ambiente. O cobrador já se inquietava em seu lugar, mexendo os quadris, adequando-se para solicitar a passagem para a frente, já que se esgotavam rapidamente as acomodações. Vez que outra, olhava para trás, na tentativa de enxergar o animal que se aninhava, encolhido, sem se mexer. Chacrinha, às vezes, observava atento, para o alto, aliviado, como se entendesse que estava no seu direito. Em seguida, baixava a cabeça, sisudo, conformado em apenas proteger-me. O cobrador, por sua vez, encarava-me com ar de censura, mas não tinha mais tempo de fazer qualquer reprimenda, porque as pessoas já se acotovelavam no corredor, centenas de meninos que iam para a escola em seus uniformes coloridos, outros tantos operários, comerciários, comerciantes, bancários, professores, enfim, o povo que se juntava na mesma hora para chegar a seus locais de trabalho. O pior de tudo é que se alguém se aproximava, o cão rosnava, com uma empáfia e coragem, como se me defendesse. Eu suava frio, imaginando que a qualquer momento, ele morderia alguém, ou mesmo que o colocariam para fora, na próxima parada.

Meu tormento durou mais ou menos 30 minutos. Desci um quarteirão antes da escola, aflito para me ver livre daquela inquietação. Desci contrito, coração apertado, culpado, por ter abandonado o meu cachorro, fingindo que não era meu, às pressas, quase fugindo do veículo. Mas na verdade, ele me seguiu, esgueirando-se por entre as pernas, sapatos, botas, alpargatas, torcendo o corpo lustroso e atingindo os degraus rapidamente, chegando em seguida ao meu encontro. Nada porém, me consolava. Afinal, ele estava ali e eu não poderia mandá-lo embora. Como voltaria, como encontraria rastros, cheiros, faro, se havia vindo de ônibus. Meu cão seria abandonado em plena via pública e não voltaria jamais para casa.

Deixei que entrasse na escola e subi rapidamente as escadas em direção à sala de aula. Ele se perdeu de mim, mas logo encontrou diversão, correndo no pátio através dos meninos que chegavam e se permitiam na algazarra, divertindo-se, nas horas iniciais, anteriores ao toque da sineta. Chacrinha corroborava para esta festa. Eu, lá de cima, a tudo observava, triste, temendo deixá-lo sozinho e perdê-lo para sempre, principalmente porque o inspetor da escola o enxotou, imediatamente, ao sinal da campainha. Não fiz nenhum gesto para ajudá-lo, defendê-lo, salvá-lo do desconhecido, das ruas estranhas onde não deixara faro, das diversidades, dos automóveis, dos homens que talvez o chutassem, correndo-o de suas casas ou dos outros cães, maiores e mais ardilosos, capazes de expulsá-lo de seus reservados.

Com este sentimento, entrei na sala de aula. Não me concentrava em nenhum assunto, nenhuma conversa entre os colegas ou qualquer ensinamento dos professores. Só via a imagem de Chacrinha, perdido nas ruas da cidade.

Voltei para casa, taciturno, com a pasta em desalinho, tal como meus pensamentos. Papéis se juntavam amarfanhados a cadernos dobrados, lápis misturados a canetas, borrachas e transferidores. A desorganização imperava. Meus pensamentos divagavam e as ruas me pareciam extensas demais e o caminho extremamente longo e o tempo quase eterno. Da esquina, avistei minha casa. Tudo parecia em ordem. As árvores não se mexiam, pelo contrário, desenhavam tacitamente sombras na calçada, elaborando uma tarde que se aproximava devagarinho, provavelmente vistosa, num dia de primavera. Em minha alma, entretanto, o inverno enregelava os sentimentos.

Tirei a chave do bolso, na tentativa de abrir o portão de ferro, esperando que as expressões tristes da família. Mas, eis que um som surdo e abafado, como se um corpo se debatesse me despertou a atenção. Por um momento, pensei que estivesse sonhando e que meu cachorro houvesse voltado para casa. Quando abri, a certeza se solidificou. Ali estava ele, feliz, lambendo-me as mãos, batendo as patas em minha pasta, sujando minha roupa. Havia voltado, nem sei como. Minha mãe dissera, que por volta das dez horas ele aparecera, esbaforido, língua pra fora, extenuado. Então se confirmara que ele não voltara de ônibus.

sábado, setembro 05, 2015

UM NATAL DISTANTE

Há quem se lembre dos natais da infância e são estes os que realmente preenchem a nossa memória, trazendo de volta a fantasia, a alegria e a recordação da família naqueles momentos intensos. Tenho comigo que os natais são todos bons, a menos que tenhamos tido algum sofrimento marcante e as coisas, aí, trilhem caminhos mais estreitos e tortuosos. Lembro de muitos natais da infância e acho que na maioria foram muito felizes.

Entretanto, há um em especial, em que eu não era criança, nem adolescente, nem vivenciava aqueles momentos de encantamento em que somos pais com filhos pequenos. Tinha meus 20 e poucos anos e o Natal se resumia a um pequeno encontro de família, com os pais e irmãs, a missa do galo e no máximo, alguma festa maior à noite, em que houvesse danças e namoricos. Nada que se compare às baladas explosivas de hoje em dia.

E este natal começou muito cedo. Na véspera, numa tarde de sábado. Um desses sábados à tarde em que as pessoas já fizeram as suas compras ou ainda permanecem comprando os últimos presentes que faltaram. Nas ruas, um pouco distante do centro comercial, a cidade parecia completamente deserta. Era uma avenida arborizada, com grandes canteiros centrais e árvores gigantescas que davam um ar de nostalgia para a véspera de natal, que já por conta de todos os envolvimentos emocionais, o Natal em si, já é nostálgico para mim. Uma data em que lembramos de entes queridos que já não se encontram em nosso meio ou, porque as famílias já se dissolveram e vivem em lugares distantes , ou porque, sei lá, temos uma dificuldade interna de sermos felizes quando todos assim parecem.

Pois, antes de chegar nesta avenida arborizada, eu resolvi visitar o asilo de pobres. Era uma experiência nova para mim, não que eu não tivesse ido até lá em outras oportunidades, ao contrário, já participara de outros encontros e dedicado alguns momentos que foram talvez bons para eles, mas muito produtivos para mim.

De todo modo, a experiência a que me refiro, se chama véspera de natal. Na véspera de natal, os idosos parecem ter a obrigação de serem felizes. Os cuidadores riem, esforçam-se para incentivá-los e não admitem quaisquer reclamações ou tristezas. Alguns filhos os visitam, trazem os netos e outros parentes. Às vezes, até os levam para casa. Eu conversei com alguns idosos e havia lhes trazido presentes. Na verdade, guloseimas, porque o que interessa para um idoso? Ganhar uma camisa nova ou uma blusa de rendas? Para onde eles vão? Com que se divertem? Como vestir roupas novas, se o seu destino inevitável é o quarto onde deitam suas dores? Então foi o que fiz. Presenteei-os com chocolates, biscoitos, cookies, balas e todos os tipos de guloseimas que pudessem adoçar-lhes a boca e o coração.

Uns conversaram mais do que os outros. Uns se fecharam em si mesmos, embora agradecessem os presentes, mesmo que momentaneamente, decididos a se afastarem, habituados a ficarem sozinhos. Houve os que contaram histórias, verdadeiras ou fantasia, mas que preenchiam suas memórias de maneira intensa, mesmo que por alguns momentos. Talvez, o encontro tenha durado uma hora.

Dali sai satisfeito e angustiado. Satisfeito por ter realizado o meu objetivo que era o de levar aquelas pequenas lembranças e angustiado, talvez por que outro objetivo não tenha sido alcançado, que seria o encontro. Acho que não houve o encontro entre nós. Não houve interatividade. Não houve partilha de sentimentos, de emoções, de troca de experiências. Houve apenas um encontro social, onde alguns fragmentos de sentimentos vieram à tona. De todo modo, fiz o que me propus e pensei que no próximo ano seria melhor. Depois, pensei melhor e me perguntei, por que no próximo ano? Por que não na próxima semana, no próximo mês, no forte calor de janeiro, no imenso frio do inverno? Há tanto momentos para serem compartilhados. Há tantos dias a serem preenchidos. E pensando desta forma, retirei-me, entre os cumprimentos e desejos de feliz natal e anseios de um bom ano novo.

Por um momento, lembrei de nosso trabalho no hospital psiquiátrico e o comparei com o asilo. Na verdade, a solidão e a fantasia eram as únicas coisas que os uniam. E talvez as únicas que realmente tinham alguma importância. Mas desviei o olhar, tentando não ver aquelas paredes escuras, cujas luzes pareciam focalizar apenas olhos assustados e ouvidos desatentos. Procurei não pensar e esquecer de vez esta visita. Muito menos divagar, fazendo comparações, cujas conclusões poderiam argumentar uma tese. Afinal, o asilo já tinha preenchido bastante aquela tarde.

Afastei-me devagar. Não estava tranquilo. Mas não devia me deter muito nisso. Teria mais tempo e mais angústias, que por certo aflorariam.

Dirigi-me a algumas casas, onde deixaria cartões sob as portas ou os entregaria pessoalmente. Nesta época, não havia cartões virtuais, nem redes sociais, nem comunicações online. Tudo era concreto. Tão concreto, quanto a calçada da avenida que eu, agora, após a entrega dos cartões natalinos, me dispunha a caminhar.

Observei que o sol já se punha, devagar, bem lentamente. É um sol de verão e portanto, demora mais a se esconder. Entretanto, a noite se aproximava e devia me antecipar, porque havia muito mais a percorrer.

Do outro lado da avenida, havia a igreja e nem uma pessoa na rua. Um silêncio sepulcral, como se todos houvessem abandonado a cidade. Um silêncio bom, que me deixava refletir, inclusive sobre a calma que a natureza despertava. O sol ao longe, se pondo, jogando seus raios por entre as árvores da avenida, a rua que se alongava em direção à saída da cidade, o silêncio intenso, tudo produzia uma paz que nem sabia explicar. Nem tentava, só absorvia.

Por outro lado, estava satisfeito, porque a maioria dos cartões natalinos foram entregues.

Pensei comigo que esta tranquilidade contempla a condição de nos sentirmos plenos, inteiros em nossa caminhada. Atravessei a avenida e aproximei-me da igreja, agora já um pouco às escuras, pois o lusco-fusco aumentava, em virtude das luminárias serem acesas, amiúde, e por momentos, via-se apenas a luz natural.

Foi neste momento, ouvi um voz firme e forte, me chamando. Olhei para os lados e não vi ninguém. A voz insistiu, pedindo que o olhasse, com a convicção implícita de que o atenderia.

Um pouco aturdido, voltei-me e avistei um homem encostado na porta da igreja, meio escondido, pois embora fechada, a porta fica um pouco para dentro, como um nicho. Percebi tratar-se de um senhor idoso, do qual não conseguia avaliar a idade que aparentava. Usava um terno escuro e vestia um colarinho de padre. Os sapatos pretos me pareciam de verniz. Aproximei-me, mais calmo, apertei sua mão com firmeza e sorri, quando disse: — tinha certeza de que conversarias comigo. Hoje em dia, todos estão muito apressados, mas tu já fizeste com calma o que te propuseste. Visitaste o asilo de pobres, entregaste os cartões natalinos e agora parasses para conversar comigo. Eu sabia que farias isso.

Respondi com determinação , que não havia motivo para não parar e ouvi-lo. Não entendi bem como ele sabia sobre o que eu havia feito, mas, de qualquer modo, tudo me parecia muito natural. Naquele momento, não achei que este detalhe tivesse alguma importância.

Ele então, concluiu: — és um bom rapaz. Foi por isso, que parasses para conversar comigo. Sei que sempre evitas contar as tragédias que tens conhecimento pela tv, jornais ou por outras pessoas, para os teus familiares. Achas que não vale à pena incomodar teus pais com estas histórias tristes, até mesmo, porque tu não gostas de repetir estas coisas. Não acrescentam nada.

Concordei com ele. Então, fez uma pequena revelação: – a partir de hoje, véspera do Natal, ficarei aqui, nesta igreja, até o Ano Novo. Se quiseres me ver novamente, conversar comigo, eu estarei aqui, te esperando. Agora, vai, te esperam em tua casa.

Apertei-lhe a mão e afastei-me ainda mais contente do que estava antes.

Passou o tempo, esqueci do ocorrido. Naquela época, havia o cinema Lido, que ficava próximo à Igreja. Na véspera do ano novo, eu e minha irmã decidimos assistir um filme, lembro que se tratava de um musical com Barbra Streisand.

Ao sair do cinema, passamos pela frente da igreja e, para minha surpresa, ele estava lá, sorrindo e me chamando para conversarmos. Avisei a minha irmã da pessoa que havia encontrado naquele mesmo lugar, na véspera do natal, da qual havia comentado anteriormente.

Para minha surpresa, ela ficou em verdadeiro pânico, correndo em absoluta velocidade, em direção à esquina, sem parar um segundo, muito menos atender aos meus chamados.

Ainda, antes de me afastar por completo, voltei-me e olhei para o homem que sorria e me acenava. As pessoas passavam rápidas, saindo do cinema e provavelmente conversando sobre o filme. Ele continuava lá, e nem sei se o viam, tal como eu.

De todo modo, nunca mais o vi, embora, provavelmente tenha ficado até o dia primeiro do ano novo, tal como anunciara. Nunca mais o vi, nem tenho certeza de que a mensagem que deixara, fora apenas uma invenção de sua mente. De todo modo, ratificou a ideia de que devemos sempre fazer o melhor em quaisquer circunstâncias. Que devemos perseverar em nossa missão e observar a natureza, experenciando sem pressa os momentos em que partilhamos a plenitude da vida. Seja cumprindo uma missão, seja interagindo com o próximo

. Isso é o que podemos chamar de momentos de felicidade. Provavelmente, seja este o significado maior do Natal.

sexta-feira, setembro 04, 2015

DESENHOS, HISTÓRIA E CASTIGO

As horas passavam lentamente, naquela manhã. Meu espírito irônico se evidenciava nas pequenas coisas, nas orelhas de abano do colega ao lado, na boca imensa e dentes desaparelhados do que ficava na fileira à direita, no cabelo sempre envolto em um generoso laço rosa da menina da frente e principalmente, cansava-me a atitude enfadonha da professora a conjugar os verbos interminavelmente. Estava na quarta serie primária, no tempo em que obedecíamos regiamente aos professores, pais, diretores, enfim, quaisquer pessoas superiores em hierarquia e em idade a nós. No entanto, havia uma pequena brecha que surgia a cada momento em nossas mentes, onde a ocupávamos com imaginação ou brincadeira, para atenuar a rigidez que nos era imposta. Nem o sabíamos, mas fazíamos de forma inconsciente, embora não raras vezes sofrêssemos as consequências.

Naquela manhã, não conseguia ouvir uma palavra do que a professora dizia, mas observava o seu jeito engraçado, a sua voz rouca, o seu olhar instigante, como se a todo momento, fizesse acusações irreparáveis. Estava vestida com uma blusa de gola alta, num vermelho forte, que lhe acentuava a pele clara, emoldurada nuns olhos negros e grandes. O cabelo, invariavelmente, preso para trás, num meio-coque, que aumentava-lhe ainda mais a testa, que me parecia interminável. Por cima da blusa, um casaco meio curto, acinturado, tecido assemelhado a lã, pontuado de pequenas pintas mais claras,compondo com a saia justa, que lhe vinha até os joelhos, na verdade, um pouco abaixo. As pernas meio finas, ajustadas em meias de náilon, com uma risca de costura atrás, como se usava na época, compondo com o sapato de verniz, salto alto, desenhando imagens no chão enquanto passava de lá para cá. Tudo que eu via, colocava no papel, grosseiramente, através de desenhos que tinham por motivo a professora, os colegas, as meninas da frente e assim, mostrava a todo momento, para os mais próximos, imaginando que jamais seria pego em tal gracejo. Todos riam sem cessar, revelando aos grupos mais afastados que a história era boa.

Quando acabou a aula, saímos a resfolegar, batendo os cotovelos, correndo como um bando de pássaros soltos da gaiola, chocando-se sem rumo, quando ouvi o meu nome, de forma sonora e altiva. Parei, lívido. Não era o momento de ser chamado, muito menos por ela, naquele jeito tão solene, pondo-me os olhos esticados, como se analisasse cada veia de meus braços. Dei alguns passos, meio atrás da turma, que já desaparecia no pátio. Ela encostou-se na porta e esperou que eu me aproximasse. Pediu, não, na verdade, exigiu que eu voltasse para a classe. Voltar? Mas era hora do recreio, como dizíamos. Não, já passara a aula. Agora, eu era livre. Pois ela insistiu, categórica: – volta para a tua escrivaninha e traze (ela usava o imperativo de forma perfeita) os desenhos que fizeste.

Estremeci. Minhas pernas finas bambolearam nos sapatos. As meias alargaram, caindo nos calcanhares. Minha boca se tornava seca, a voz não saía. Os cotovelos se enrijeciam e a professora tornava-se naquele momento, uma figura descomunal, extraordinária. Ela repetiu a frase, então dei alguns passos para trás, meio que me afastando, olhando de soslaio, vendo pelas janelas uma nuvem colorida de meninos que corriam para todas as direções, numa agilidade em que eu gostaria de estar incluído. Doía-me a alma. Na porta, algumas meninas se cutucavam, observando de longe, a cena. Uma delas, aquela do laço rosa, como se adivinhasse que eu a desenhara também, olhava-me com ar de censura. Dei mais alguns passos e passei por minha mesa. Voltei, abaixei-me e peguei da gaveta, que ficava mais embaixo, as folhas de desenho. Minhas mãos tal como minhas pernas tremiam. Então tive uma idéia genial. Talvez desse certo, não sabia. Mas não havia outra saída. Juntei as folhas, uma após a outra, e as levei com cuidado, ante o olhar intransigente da professora. Tinha a impressão de que quilômetros nos separavam, tal era a dificuldade de chegar até ela. Podia contar as lajotas coloridas, seus triângulos e outras figuras geométricas, simetricamente compostas. Quando cheguei, ela esticou a mão cheia de unhas vermelhas.

Mas antes de entregar-lhe, disse, com a mais disfarçada sinceridade: – fiz o que a senhora pediu na aula passada.

– O que eu pedi? – questionou, indignada.

– Uma crônica da turma, só que através de charges. Quer ver?

Ela me encarou de um jeito tão estranho, que pensei que fosse me pegar pelo pescoço, segurar-me junto à parede e levantar-me pela gola branco-anil da camisa. Depois, desviou o olhar e com displicência segurou as folhas. Examinou a primeira, a segunda, a terceira, na qual pude esticar o olho e ver que se tratava do esboço dela. Foi aí que ela parou por um segundo. Em seguida, me perguntou: – é assim que tu me vês?

Nem sei muito bem o que falei, ou se realmente disse alguma coisa. Acho que balbuciei e meus olhos revelaram tudo de uma vez, naquela mistura de medo e vergonha. Logo retomou às demais folhas e no que parecia uma avaliação, sentenciou, precisa: – Então está bem. É uma crônica, pois quero que faças mais do que isto. Quero a aula de hoje explicada por estes personagens. Eu arregalei ainda mais os olhos, eufórico, mas antes que eu fizesse qualquer gesto de aceitação, ela prosseguiu: – Mas agora, no intervalo. E tem mais uma coisa, tens que desenhar a ti e tu vais ministrar a aula.

Tentei arguir que estava com fome, que precisava descansar no intervalo, que devia pensar no que ela havia explicado na aula, para poder por em prática e se finalmente, sugeri fazer o trabalho em casa. Não havia alternativa. Era ficar no intervalo e obedecer ou ir para casa e voltar no dia seguinte com a mãe a tiracolo. Optei pela primeira. Inventei uma história de verbos, que não tive tempo de acabar. Meus colegas prosseguiam no alarido lá fora. As meninas se afastaram e conversavam em grupo. Uma que outra espiava pela janela. A professora também saíra e eu ficara ali, fazendo uma história que não sabia muito bem o enredo. Mas o que teria chamado a atenção na figura que eu fizera dela? Será que era...ah, devia ser, mas quem saberá algum dia? Quando todos voltaram, a aula prosseguiu e ela parecia ter-me esquecido. Fiquei com os desenhos, a história e o castigo.

domingo, agosto 30, 2015

AS VÍRGULAS DE ANTÔNIA

Para que servem as vírgulas. Se nos detivermos com atenção nas minúcias, observamos que há dezenas de usos, nos quais extraímos da mente, como apêndices desnecessários da linguagem, a não ser para respirarmos com mais tranquilidade. Entretanto, gramaticalmente, poderíamos falar em intercalações, tais como as do adjunto adverbial, da conjunção, ou de expressões explicativas, bem como nos apostos ou no uso após o vocativo, e o que é mais corriqueiro, nas enumerações. E aqui elas se fazem valer, altivas, imponentes, revelando aos incautos a força de seus significados e significantes, mostrando o porquê de suas inserções.

Mas na verdade, estas funções gramaticais não despertam curiosidade em nosso discurso cotidiano, ao contrário, nem percebemos a sua localização, seu uso adequado ou indiscriminado. Via de regra, respiramos saciados, no linguajar afoito de quem, quase sempre, tem pressa absoluta. E lá vai vírgula. Ao menos que sejamos especialistas em linguística, damos conta de suas funções e qualificamos suas determinações. A nós, pobres mortais, interessa-nos, quando muito, o conteúdo, o texto subjacente ou o ponto final. Este último, absoluto, austero, próprio, poderoso. Deixando pra trás qualquer vírgula ou interrogação mais arguta. Encerrando o que nos parece enfadonho, perigoso ou impróprio. Talvez porque não nos atenhamos às indagações que a vida nos dirige e passamos o rodo de graça nos momentos mais simples, mesmo que recheados de novidades e reflexões. Queremos o ponto final e com ele outros pontos, outras procuras, outros caminhos, sempre atentos ao fim, ao “the end”, “se fini”, ao encerramento, ao fim propriamente dito para começar tudo de novo. Esta é a angústia atual do homem, o homem que consome o tempo sem viver, que reclama das horas escoarem-lhe pelas mãos, como mercúrio de termômetro quebrado. Não percebe a plenitude dos acontecimentos mais puros, mais sensíveis e íntimos de sua existência. Talvez precise parar apenas, desapegar-se dos compromissos fugazes e desnecessários (ou apenas convenientes ao padrão inspirado por uma sociedade consumista e falsa de valores) e projetar seu pensamento e todo o seu coração nas coisas mais simples e proveitosas, essenciais e menos pontuais. Quem sabe, devesse o homem absorver-se do lazer e encontrar prazer em acontecimentos simples do cotidiano, sem deixar-se levar no lodaçal poluído da mídia, padronizando mentes pelo senso comum, produzido para rotular e criar necessidades alicerçadas em valores mercadológicos. Um mundo avesso ao passo amiúde dos velhos, às mãos integradas dos que oram, à mente livre dos que param e meditam, à fragilidade dos meninos de rua, à loucura dos famintos. Talvez pessoas que não se deixem seduzir apenas pelos grandes acontecimentos, mas que extravasem seus sentimentos nos cantos dos pássaros, no grito insistente e intenso do bem-te-vi, no gorjear esquisito da alma de gato em seus contatos diários no amanhecer do dia. Talvez estas não pontuem acontecimentos transitórios, mas cultivem o sabor dos presentes que a natureza via de regra oferece a quem faz parte dela. Apenas.

Tal como as vírgulas e suas pequenas interrupções, que nos instigam a ver nas palavras, mais do que seus signos representam, mas desvendar seus mistérios, desencadear significados, encontrar no contexto a vontade prenhe de saber, de descobrir, de vivenciar o que o outro apresenta. O que nos diz. Não apenas o ponto final, não apenas o encerramento, mas linha por linha, descrevendo cada sensação, cada matiz novo, quase tonalidade, como sons musicais e cores tingindo o mundo diverso que se apresenta no texto.

Quem sabe o seu uso amoroso, delicado, exacerbado como uma paixão fulminante e arrebatadora. As vírgulas de Antonia. Assim ela veste as palavras e anotações e títulos e autores e as remete ao contexto, bem como ao leitor do produto que está acessando. Ela gosta das vírgulas, mas gosta mais ainda dos acessos, das maneiras sutis de informar, do jeito delicado e suave de integrá-las ao contexto, usando e abusando de suas qualificações, sentindo-as como parte integrante da amostra, sem restrição, mas ampliando o conhecimento da informação.

Talvez mostrem o seu frisar a vida com calma e cuidado, o seu passar cauteloso e preciso, alcançando a plenitude do encontro, da interação com o outro, muito mais do que simples considerações técnicas. Para que servem as vírgulas de Antônia? Para chamar a atenção, para mesclar sentimentos, para adocicar as regras. Tal como o cajado sonhado do Caminho de Santiago de Compostela, ela as usa como efeito agregador e até enfeite. Um adorno útil no caminho que vira ponte. Um sorriso aqui, um piada ali, um caso do passado e a história se desenrola recheada de vírgulas, sem pontos, a não ser reticências para um novo recomeço. Sem ponto final, somente vírgulas. As vírgulas de Antônia.

Que importam os apostos, vocativos, advérbios? São as vírgulas que absorvem delicadamente o grande mundo da informação e o fazem com cuidado, esmero, atenção. Afinal, as vírgulas estão aí, para as pequenas coisas, separando e juntando acessos, intercalando assuntos, mesclando títulos, identificando autores. São as vírgulas de Antonia. Não pontos finais. Pontos? Só os de acesso.

(Crônica que tenta metaforizar o nosso relacionamento com o mundo e o outro, alicerçado em apreender as coisas simples, para viver intensamente. Para tanto, lembramos das vírgulas, como ponto de intercalações e de encontros. No curso Capacitação e Gestão da Qualidade em Bibliotecas, cujo módulo Representação Descritiva pelo AACR2 , tivemos a honra de ter como ministrante a Profa. Antônia Motta de Castro Memória, as vírgulas foram “contestadas” em tom espirituoso, em vista do sentido gramatical, nada que devesse ser revisto, porque estavam em absoluto acordo com as regras do código. Mas a tal “discussão” das vírgulas me levou a imaginar esta crônica.)

sábado, agosto 22, 2015

Na fazenda

Ajeitou os documentos velhos e ficou olhando pela janela, perdendo os olhos nas montanhas, observando os cascos dos animais, mastigando os campos sem vida. Melhor fugir da fazenda e desaparecer pra sempre das lidas rotineiras. Bambaleando pernas, perseguindo alemoas nos salões de outono, pisoteando as terras vermelhas rachadas pelo vento. Pudera varrer consigo as lembranças, os pequenos achaques nas contas do bar, os muitos acessos de cólera na imensidão das noites vazias. Melhor seria escolher apenas as estrelas pintadas no céu, descobrir as vida faceira nos açudes de banhos gelados, afujentando a saudade sem dor, abrilhantando o que sobrara de ar. Mas não, as lidas na fazenda, o velho passeio de botas engolindo bombachas, o peitoril amassado da janela esperando conserto, o fustigar dos cavalos nos açoites  de mãos violentas. Deveria persistir na mesma ladainha dos tempos idos, do despertar na cidade e amanhecer no campo. Tal como na época em que pensara crescer dentro de si a força e virilidade do macho erguendo o império. Um império que hoje se iguala ao braseiro apagado, acalentado pelo assopro frágil do velho simplório, que se vangloria do churrasco ardendo e das costelas doendo, dos quadris emperrados, dos joelhos dobrados na frente dos anos. Melhor seria viver a vida simples, sem o chafurdar dos "jipes", batizados nas lamas represadas em dias de temporal, avalizado por amigos endinheirados, vestidos de couro e camisetas rolê, sorrindo dentes brancos recém produzidos e mastigando a grama que lhes suga nos cantos da boca. Ou então beber do uísque os últimos sinais de lucidez e voltar molhado pra casa, pra beira do abismo, sentindo o frio coçar de leve as costas e não ter ninguém para amenizar a dor, a não ser o lençol elétrico. Mas que fazer se a vida no campo não corresponde mais à placidez do olhar, a natureza da criação, o fascínio das luzes e sonoridades do dia? Não assim, perto da alma, quando estavam juntos e pensavam arregimentar a vida a partir de suas escolhas. Que nada, tudo caiu no vazio, na falta de sentido, no alvorecer de amigos de todas as searas desfrutando apenas o consumo de seus desejos. Pudera voltar à solidez dos  sentidos, à veracidade das palavras ditas e dos dizeres ouvidos, das amenidades das lembranças e das buscas no futuro, do viver junto e solitário, sem mistério ou mentira. Só que nunca vivenciou o que pensa e a fazenda ou a estância como seu pai dizia, não passara de um subterfúgio da vida fácil e fabricada, sem grandes objetivos a não ser dispor dos prazeres do poder e estar, sempre olhado, sempre vigiado, sempre apoiado, sempre servido, construindo e destruindo o império. O físico e o interno, aquele que somente sua alma podia edificar.    

sábado, agosto 15, 2015

PEQUENA CRÍTICA SOBRE O FILME A VIDA NO PARAÍSO (Så som i himmelen)

Certamente há centenas de críticas e resenhas sobre o filme “A vida no paraíso”, dirigido pelo sueco Kay Pollak, mas há sempre um aspecto a explorar e nunca é demasiado se falar de um bom filme. A vida no paraíso é um destes filmes em que os personagens são envolvidos na trama existencial de suas vidas, tão pacatas, mas borbulhantes de problemas e confrontos numa sociedade machista da pequena cidade em que vivem. É para lá, que o maestro famoso volta, Daniel, o protagonista, retomando uma busca que sempre se propusera, talvez de forma inconsciente. Uma retomada ao passado, à vida simples e também cheia de contradições desse lugarejo, aliás, o lugar onde nascera. Lá vivera os primeiros anos de sua vida e logo se mudara para a cidade grande, para tornar-se um grande maestro. Após uma transformação física e espiritual, volta à cidade natal, aos costumes, aos velhos conflitos. Não há nada aqui relatado que possa tirar a surpresa do filme, pois logo no início da película, surge a causa principal de seu retorno à cidadezinha, o qual não foi aqui explicitado. De todo modo, resta-nos ressaltar este retorno como um ajuste de contas pessoal, uma constatação que as coisas permanecem como eram e que as pessoas não mudaram, nem mesmo ele. Apenas assumira uma qualidade intelectual que talvez a maioria ainda não alcançara. Percebera que o amigo de infância continuava tão agressivo e truculento, e que certamente todos prosseguiam com suas singularidades internas, sem grandes avanços. No decorrer da história, organizando o coral em que as pessoas do lugarejo participam, a sua presença vai influenciando na vida de cada uma, cuja possibilidade de mudança se torna mais próxima a partir de suas ideias. Na verdade a mudança interior já está imbuída em suas mentes, dái o conflito interno, a tensão exterior, o desejo de enfrentar novos rumos e finalmente os avanços. Essas possiblidades tranformam a fisionomia da cidade, a trajetória de cada cidadão que se conhece e participa daquele clubinho outrora fechado. É um filme lindo, sensível, capaz de emocionar e de fazer-nos refletir na capacidade de crescimento que temos a nossa frente e muitas vezes, ou na maioria da vezes, precisamos de alguém para apontar-nos o caminho. Para mim, aí está a maior qualidade do filme. O protagonista de A vida no paraíso é interpretado por Michael Nyqvis, um grande ator, que já havia trabalhado na comédia Bem-vindos. Outros autores que participam com especial competência são Frida Hallgren, Lennart Jähkel, Ingela Olsson e Niklas Falk. É um filme, como citado, sueco, do ano de 2004 e foi indicado como melhor filme estrangeiro em 2005. Vale à pena embrenhar-se pelos meandros da sensibilidade e do afeto verdadeiro, onde pessoas comuns transformam a sua realidade e a dos demais.

terça-feira, agosto 11, 2015

APONTAMENTOS NO SÓTÃO

Passei a noite descobrindo coisas novas. Percorri o corredor imenso da casa, subi as escadas e parei no sótão. Como toda peça meio escondida, não passa de um buraco com teias de aranha. Queria achar um livro antigo, de meu pai, um tipo de atlas, mas que tenho certeza, além de mapas, havia anotações lá. São elas que procuro. Anotações provavelmente a lápis, meio apagadas, rasgando a folha do outro lado, amarelada e fina, puída ou furada por traças. Sei que devo achá-las. Anotações. Anotações que contam histórias, talvez muito mais profundas dos que as contadas nos livros. Verdadeiros registros, quase certidões de nascimento. As anotações de meu pai. Mas as horas escoam rapidamente e minhas pernas estão cansadas. Por que não coloquei as malditas meias elásticas. Por certo, teria pelo menos duas horas sem as terríveis dores da circulação. Pernas que envelhecem, que incomodam e impedem meus gestos. Mas nada me fará desistir, nem esta cãibra que insiste em retorcer os dedos do pé. Numa pausa, levantarei deste emaranhado de papéis e farei alguns movimentos. Vou até a janelinha pequena que dá para a frente da casa. Espiarei as pessoas lá embaixo. Certamente não serão muitas. Mais certo que o deserto humano predomine pelo adiantado da hora. Pelo menos, descansarei. Darei meia volta, investigarei objetos guardados há tanto tempo e que para mim não tem valor nenhum, muito menos, emocional. Quando voltar, investirei nas caixas de documentos. Muitos papéis, contas antigas, além de fotografias. Meu pai costumava guardar os retratos, como dizia, nestas pequenas caixas. Se eu me deter um pouco nelas, certamente acharei algumas fotos de minha infância. Nem sei se as quero ver. Estou tão diferente agora! Fazem parte de um passado de inocência que já não existe. Mas vou adiante. Me instalo na janelinha. E o que vejo? A luz amarela do poste. Um cachorro que se arroja entre a fonte sem água e o banco de pedra abandonado. Está frio e ele se encolhe, o rabo abaixado, o focinho rastejando o chão. É um vira-lata preto. Não, não está sozinho como pensava. Um vulto se esgueira sob a marquise, visível pela chama do cigarro. Parece tranquilo, sem se mover, acostumando-se provavelmente com o frio que aumenta. Talvez espere alguém. Um destes pederastas que aluga homem para realizar suas fantasias obscenas. Homens sem Deus. Ou apenas um marginal, esperando o comparsa para arquitetar um crime. A calçada brilha na luz amarela e pingos de chuva se espalham intermitentes. Pingos grossos com tempo certo para se espalharem. O homem agora, movimenta-se em direção à esquina. Estranho que pare onde não há proteção. Examina alguma mensagem no celular e aproxima-se do prédio da farmácia. No ultimo andar, uma luz fosca se acende. Alguém aproxima-se da janela, espiando através da cortina. Talvez tenha perdido o sono ou algum barulho o alertou. Talvez seja o tal vadio que o espera. O homem do cigarro se encosta no prédio, sem chegar à farmácia fechada, apesar do cartaz de 24 horas. De vez enquanto, olha para cima, como se procurasse alguém do último andar. O vira-lata levanta a cabeça desconfiado de alguma coisa, mas logo, volta a se espichar, deitando-se na lajota. Uma pata traseira estremece, como se sonhasse. O visor do celular do homem brilha. Ele abaixa a cabeça, parece não se importar com o alerta. Guarda-o no bolso. Estica o tórax e olha para cima, provavelmente para o néon da farmácia. A luz fosca do último andar se apaga. Eu que ainda continuo nesta inércia, meio perdido, sem saber se continuo a minha busca. Às vezes, tenho vontade de desistir. O mais lógico seria encontrar as anotações nas caixas de documentos, mas meu pai jamais faria isso. Sei que devo investigar, decifrar um perfeito quebra-cabeças. Coisas do velho. Preciso pensar com a lógica dele. Mas de qualquer modo as coisas não são como parecem, nem pra ele, nem pra mim. Passava horas efetuando cálculos. Tinha consigo que a vida era um teorema matemático. Para tudo, havia uma estatística, um percentual que justificasse o fato, uma conta de chegada. Nada escapava de sua elucubração, não somente quando se tratava das contas do dia a dia, o que seria natural, mas até mesmo o rendimento escolar, a mudança do clima, a evolução dos costumes. Usava expressões como: “70% do descarte do lixo vai parar na lagoa”, mesmo que não correspondesse à realidade, ou “já lhe disse, Homero (falando com seu irmão), 25 % do mecanismo do carro depende da máquina, o resto é só com o motorista”, ou “a estatística diz que o homem só envelhece quando começa a perder os dentes e não se importar com isso”. É, ele tinha dessas coisas. Tudo se resumia a percentuais e estatísticas. Acho que até o carinho que dispensava a nós. Particularmente, achamos que tudo a que se referia tinha um fundo de verdade ou estava absolutamente correto. Com o passar do tempo, também este percentual foi caindo e percebemos que não passavam de expressões vazias, expletivas, para dar veracidade aos conceitos. Meu pai era assim, um homem estranho, mas extraordinário. Conseguia em poucas linhas descrever o que levaríamos páginas para explicar. Além das estatísticas, dispunha de um recurso de sinopse muito eficiente. Quase um recurso estilístico. Ah, se encontrasse as anotações, por certo, entenderia bem melhor o que pretendia dizer. Se bem, que isto pouco importa, hoje. Ele não está entre nós, deixou-nos por herança essa complexidade de ideias, fazendo-nos percorrer caminhos que não levam a nada. Talvez, em alguma lugar, em alguma dimensão, esteja rindo, observando nossas buscas vãs. O homem não está mais encostado no prédio da farmácia. O cachorro também sumiu e a chuva parou. Até o frio amainou um pouco. Não sei se ainda terei tempo para procurar. Daqui a pouco, começa a amanhecer e eu terei que sair. Não quero ficar mais um dia nesta casa. Estou cansado destas paredes velhas, deste quarto escuro, escondido no fundo do corredor, deste sótão que não passa de um buraco de teias de aranhas. Às vezes, me sinto perdido. As pernas estremecem e meu coração tamborila. Nem sei se estou doente, ou só angustiado. O que sei é que preciso sair o quanto antes deste labirinto. Um labirinto que me acolheu por tantos anos, mas que agora me parece sem saída. Quantas vezes, a chegada era melhor que o ponto de partida, uma vitória, conforto da alma. Havia muitas portas e muitas descobertas, muitos sóis para brilhar e luas para encantar. Hoje, apenas um túnel escuro. As árvores foram crescendo em torno, raízes destruindo os caminhos, os muros se fechando e as brechas cada vez mais estreitas. Por vezes, me esgueiro entre estas paredes vazias, mas sinto que elas se aproximam de meu corpo magro e restringem meus movimentos. Se meu pai estivesse aqui ou se encontrasse as malditas anotações, por certo teria de volta o conforto que perdi, a paz, a tranquilidade. O labirinto se libertaria das amarras, das raízes, do abafamento sufocante e eu seria livre para a descoberta. Mas cada vez me afundo mais nesta busca vã. Não sei qual será o meu fim. Batem à porta e meu coração estremece de novo. A ansiedade limita meus movimentos. Quem viria, a esta hora? O que procuram em minha casa, esta casa que foi de meu pai, de minha família, que tem tantos segredos. Quem me procurará? Subo as escadas correndo, falseio o pé no último degrau, mas não desisto. No sótão, posso espiar sem que me vejam. Quem sabe identifico quem bate à minha porta? Espicho-me através da vidraça, empurro o postigo com o braço esquerdo e curvo meu dorso para frente, tentando ver a figura lá embaixo. Batem novamente. Não sei o que sinto, se é aflição, medo ou curiosidade. Meu coração alucina. Alguém lá embaixo, apontado pelo azul do visor do celular. Parece que usa boné ou uma boina. Preciso descer, não admitiria esta indecisão. Por certo, decretaria uma frase definitiva sobre o tema: “80% dos homens não toma as atitudes corretas na vida”. Fecho a janela devagar e desço rapidamente, esquecido da dor no pé. Sei que devo agir de modo severo. A vida não arrefece o coração de ninguém, ao contrário, torna-os duros e cruéis. Aproximo-me da porta da frente. Ali o presumível inimigo, mas se não abrir, nunca terei certeza de nada. — Procura alguém? — Conforme o combinado — aponta um número bem grande no visor do celular. — Não sei, não me lembro. — Como não se lembra? Não foi tu que ligou? De quem é este número? — Meu, sim, este número é meu. — Pois então, cara, posso entrar? Já voltou a pingar. — Tu tava embaixo da marquise? —Claro, tava ligando pra ti, mas deixa pra lá, vamos esquecer esta história. Sabes pra que eu vim, né — esboça um sorriso cúmplice. Fico estupefato, mas deixo que entre. Quem sabe esclareço que ainda não encontrei nada? Entra, à vontade e senta-se na numa poltrona. Esparrama-se como se estivesse em casa. Livra-se num salto da jaqueta e em seguida da camiseta regatas, muito justa. Olha-me de um modo estranho, quase indecente, como se tentasse me seduzir. — Por que faz isso? — Tens que ver o material. Gostasse do meu corpo tanquinho? — Por favor, não sei do que tu falando? — titubeio, afastando-me, balançando os braços ainda atônito. Uma leve tontura me atinge e tenho a impressão de que o labirinto aumenta e suas paredes me sugam. Ele se aproxima decidido e me pega os braços com cuidado, sorrindo. Num ímpeto, empurro-o contra a parede. Seu rosto fica transtornado, as veias do pescoço se tingem de vermelho. Parece não entender o que está acontecendo, tanto quanto eu. — Escuta aqui, cara, tu não me chamou? Que tá havendo? É um joguinho novo que desconheço? — dá uma risada maliciosa e complementa — mas eu posso aprender, basta tu me ensiná. Sou bom nisso! — enquanto fala, passeia pela sala, sempre me encarando. Seus olhos brilham, sua boca entreaberta, meio sorriso. — Não tem nada de joguinho ou sei lá o que que tu tá falando. Sou casado, tenho família. Eu só vim aqui pra… — a memória interrompe a minha fala. Ele complementa, atrevido: — Pra transar comigo! É isso que tu quer, não é? — e se aproxima, enquanto me afasto, negando. — Não, não, não. Tu não entendeu nada! — Entendi muito bem, entendi que tu se arrependeu, pois se é assim, me paga o que me deve. Quinhentos pau, aqui na minha mão — estende a mão cheia de anéis e uma pulseira dourada, que oscila perigosa. Veste a camiseta e a jaqueta, enquanto discursa, conformado. —Tudo bem, isso já aconteceu comigo, tem gente que na hora agá fica com medo de se entregá, se é o teu caso, sem problemas, desde que me pague o que me deve. E pode ficar tranquilo, tudo no sigilo. Sou bem pago pra isso! — Eu só vim aqui procurar as anotações de meu pai, me lembrei. Era isso, o verdadeiro motivo por que estou aqui. Ele diria que 70% das pessoas costumam ter este tipo de reação quando desconcertadas. – Nem me importo com o que teu pai diz, só quero o que é meu. Se liga, cara, não vem com caô pro meu lado! Pode passar a grana, vamo lá, meu parceiro. Preciso acalmar-me. Nada me fará pensar diferente. Meu pai tinha razão quando dizia que a gente tem que manter a mente 90% ocupada, os dez por cento restantes ficam para o lapso da memória. É preciso relaxar e esperar. Somente assim temos o poder da segurança. Quando calamos, eles se calam também. Preciso conduzi-lo ao meu objetivo. — Não vamos fazer uma tempestade num copo dágua, rapaz. Sugiro que bebas alguma coisa e te acalmes. Nós somos pessoas sociais, educadas. —Ah, to entendendo a tua. Tu gosta de conversar. Tudo bem, se foi pra isso que me chamou. Tem caras carentes, que precisam se desabafar com alguém, então contratam um michê — percebe a minha dúvida e esclarece — um profissional do sexo, entende? Foi ai que tive a ideia redentora. Meu coração dispara, feliz. Meu pai tem a resposta. Sim, lá no sótão acharei a saída, destravarei os caminhos do labirinto. Não preciso de muito, mas se encontrar as anotações, a verdade virá fatalmente. Vou até a escada e, por um instante, volto-me em sua direção. Está em pé e me espera. – Tu não me ofereceu uma bebida? Tá na hora. — Suba. Levo um uísque com gelo. — Lá em cima? — Do lugar, onde te vi. É no sótão. Lá, podemos conversar. — Pra mim, tudo bem. Mas já to te avisando, se passar do meu tempo, paga o dobro, tá ligado? Com um meio sorriso, concordo. Quando chego, ele está agachado mexendo nos livros. Deve ter revirado as caixas, buscando algo. Talvez, tenha me espionado, para descobrir a verdadeira face de meu pai, tudo o que procurei durante toda a vida! Faço barulho, para que me veja, ele se volta e sorri, sem constrangimento. Sente-se à vontade naquele ambiente, muito mais do que eu. Perguntei, de imediato: —Que está fazendo? –Nada. Dando uma olhada nestes trecos aqui. Estes livros são tudo de religião? –Não, são de meu pai. Por favor, não mexe nestas coisas. Eram dele, só ele tinha acesso. —Tudo bem, não tenho a menor queda pra religião. — Eles são repletos de anotações. Meu pai costumava fazer verdadeiros tratados nos livros que lia. Estou procurando-os há muito tempo. —Só vi coisas de religião. Teu pai era pastor? —Ele fazia anotações. Tu achaste alguma? ele costumava contar fatos de sua vida, apontar-me caminhos corretos. Ele jamais receberia alguém assim… em plena noite. Ele se aproxima sorrindo. Sinto o cheiro cítrico da loção pós-barba. Tento afastar-me, mas as pernas pesam e meu corpo todo estremece. Meu coração acompanha o compasso de minha confusão mental. Ele debocha, dissimulado: — Teu pai não receberia alguém assim… como eu? — toca-me suave no rosto, sempre sorrindo — mas tu gosta, né? Uma sensação estranha me envolve, sinto-me fraquejar e meu corpo se abala, sentindo a respiração forte circulando meu pescoço, minhas costas, um resfolegar na nuca, na orelha, seus lábios próximos, muito próximos, sua voz ofegante. Meu sexo se agita, intumescido. 80% dos puros de coração caem em desgraça, na frente dos ímpios, quando sua fé é insuficiente. Então, o empurro em direção à vidraça, derrubando uma pilha de livros. Ele se desequilibra e se segura como pode, no parapeito. Grita com fúria e penso que vai me agredir. Mas se contém. Sabe que deve ir embora, mas pretende alguma coisa, por certo, vingar-se de minha recusa. — Tu procura um livro que teu pai escreveu nos cantos das páginas. — Sim, eu o procurei o tempo todo. Eu não encontrei este livro. — Um destes aí, o sem capa — aponta para a pilha desandada de livros sob a janela. Não tenho coragem de me aproximar, de pegar o livro, de encontrar os apontamentos. Ele me conhece e ridiculariza esta dificuldade. Às vezes, penso que meu próprio pai está ali, também me acusando. Logo, a realidade nojenta de nossa vida mundana se escancara a minha frente. — Aí só fala em pecado, morte, temor a Deus. Me explica, tu que é crente, como é que pode amar um Deus que se tem medo? Mas deixa pra lá, o fato é que entendi tudo, malandro, a letra do livro é tua, tu escreveu essa merda. Não tem nada a ver com teu pai. Eu peguei a tua agenda lá embaixo, queria verificar se tinhas o meu número, é a mesma letra. —Cala a boca! Não diz bobagem! Eu só queria constatar o que meu pai escreveu. Ele estava certo. Ele temia a Deus! — grito em absoluto desespero. Meu coração está revolto em dor. A noite fica escura em minha mente e meus olhos tingem de sangue, como se todas as veias fossem explodir. Sinto um calor que me envolve a nuca e o pescoço e o suor gelado goteja o tórax e as costas. Ele prossegue, com raiva: — Péra ai, eu te conheço, cara. Volto para a janela, empurrando os livros com os pés e, quase sem querer, desvio o olhar para a vidraça. Vejo algumas rajadas no céu, muito leves, uma certa brisa balança as árvores já visíveis. O dia já vai clareando. A pessoa do último andar fecha a janela. Provavelmente, se prepara para o trabalho. Uma pessoa decente. De Deus. Por um momento, sinto um ódio sinistro por este cara que está aqui, no sótão de meu pai, dando palpites sobre suas anotações, como se conhecesse a minha vida. Mastigo a dor que me consome e me afasto da janela. Dobro os joelhos para pegar o tal livro que ele indicou, abro-o e fico folheando-o, mas não vejo nada, nenhum apontamento. Sei que mente como o inimigo. Ele bebe e saboreia o uísque devagar como se fosse o último de sua vida. Mexe indelicado, com os dedos, o gelo no copo. Age assim para me agredir. — Tenho um amigo que se converteu por tua causa. Tu mudou a vida dele, tirou ele do vício, deixou até de ser garoto de programa. Levou ele pra igreja e depois se tornou teu amante! Agora me lembro, sim, tu é pastor! Tu inventa esta história de anotação de teu pai, porque tu não tem coragem de assumir, quer a aprovação dos outros. Evito responder. Minha vida é limpa como a fonte e expressa a verdade absoluta. Mas sua mente é deturpada e o desvia do verdadeiro caminho. — Vai embora, por favor. — Tu tem vida dupla, cara. Queria transá comigo, mas abomina tal coisa. O pior de tudo é que tu dá testemunho. Então se arrependeu. Caralho, o que tu quer afinal? —Sai daqui, eu não posso, eu não posso, eu não quero! Ouço a voz de meu pai, seus ensinamentos! Sou um pastor, um homem de bem. Foi ele que escreveu tudo, que ditou as regras, eu só obedeço! Ele se aproxima, quer o dinheiro, eu sei, pois que seja pago pelo mal que cometeu. Que se afaste de mim. Por que está tão próximo, sinto seu perfume quente e enjoado, e um ardor que me percorre a barriga, que me atinge as pernas, que me bamboleia a mente. Por que esta intimidade lasciva e intrigante? Por que este abraço que me acolhe, me aconchega. Por que o diabo me tenta? Afasta-me com arrogância. Vejo seus olhos ávidos por violência. Uma garra prende minha cabeça, que é batida uma única vez contra a vidraça. Caio numa poça de sangue, a janela estilhaçada. O nariz entope e a visão turva. — Pastor filho da puta, me dá o meu dinheiro, se não tu vai morrê, agora mesmo! Vou te jogar por esta janela e tu nunca mais vai bisbilhotar a vida de ninguém! Peço que pegue a minha carteira, no bolso de trás da calça, não consigo levantar-me. Ele obedece rápido, tira mais do que devia. Afasta-se praguejando, descendo a escada e batendo a porta. Estico meu corpo sobre os livros e pego o exemplar sem capa. Agora tenho certeza de é o de meu pai, suas anotações estão ali, finalmente as encontrei! "100% das atrações físicas entre homens é produzida por uma reação involuntária.” Uma luz tênue envolve o sótão.

sexta-feira, agosto 07, 2015

José: um homem de fé


Quisera ser como tu, José. Tiveste a vida devassada pela sociedade patriarcal e machista da época. Carpinteiro que eras, carregaste pedra, para sobreviver. Lutaste contra as injúrias, o preconceito, o ciúme, a dor. Lutaste contra teus sonhos. Mas tua integridade justificou-se no amor por Deus. Um homem de fé. Um homem que superou os preconceitos e derrubou a maledicência. Que honrou a mulher. Que soube ser fiel, quando todos o julgavam, quando ele mesmo temia e a incerteza rondava seus pensamentos; quando a morte da dúvida avassalava seu ser. Um homem de fé. Que soube vencer os medos e discernir entre o que a sociedade lhe tirava e o que a vida lhe entregava de galardão.

Mas como enfrentar tudo isso, se não pelo amor?

Tu amaste, José. E por este amor, sobrepujaste qualquer temor, qualquer discórdia em teu coração. Quantas vezes choraste, José. Turbulências na vida, somente aplacadas pelo anjo a ti enviado. Até que a calma chegou e a mansidão de tua alma alternou a dor com a alegria. Tua sobriedade e honradez te tornaram o pai amoroso que lutou pela vida do filho amado. O medo, as traições te perseguiam, a ponto de precisares fugir para salvar teu filho. E foram tantos os dissabores, que precisaste superar! Por certo, soubeste ensiná-lo! Soubeste transmitir-lhe a sabedoria da paz, da tolerância, do momento certo de agir. Afinal, ficaste quatro anos no Egito para voltares à terra natal. E haja paciência para aguardar o tempo que já não era teu. E quando tudo parecia acomodado e tranquilo, teu filho se sobressaía entre os doutores da lei. Ali perto, à sombra, humilde o procuravas, orgulhoso talvez de o vires tão bem relacionado. Teu coração ordeiro e sábio, no íntimo sabia que ele voaria alto e que o Espírito justificaria em plenitude sua jornada. Por certo, José, não conhecias o futuro, mas teu coração garantia a tua parcela de protagonismo, mesmo ali, apenas na espera de teu rebento. É muito difícil ser como tu, José. Um homem onde a dúvida é aplacada pela fé.

domingo, agosto 02, 2015

QUAL SERIA O ACONTECIMENTO MAIS IMPORTANTE DA SEMANA?

Qual seria o acontecimento mais importante da semana? Talvez escolhêssemos no campo político, na economia, ou na área das ciências, da cultura ou mesmo nos assuntos cotidianos mais banais. Acho mesmo que aí está a resposta a nossa pergunta. Os assuntos banais, corriqueiros, comezinhos, que fazem parte de nosso dia a dia, sem grandes brilhos, oscilar das bolsas ou vultosos negócios. É ali, na nossa rotina que acontecem os grandes temas, as grandes manifestações de sentimentos, de sensações, de usufruir o que chamamos vida, existência, o estar no mundo. E estar é muito mais do que apenas viver, sobreviver, mastigar o dia pelas pontas, levando em conta as tarefas de roldão, sem pensar nelas, sem refletir os próprios comandos ou atividades. Faz-se tudo burocrático, organizado, produzindo caminhos iguais, onde trilhemos com segurança e precisão. Sentimos então o tempo passar rapidamente, porque nos acomodamos aos grandes acontecimentos, nos detemos nas grandes realizações e estas não ocorrem todo o dia, ou para todos. Até mesmo, as chamadas celebridades inventam fatos extravagantes para sobreviverem, para continuarem “celebridades”. É preciso, então, vivenciar as pequenas coisas, maturar o que está ao nosso encalço, sem muita preocupação com o produzir intermitente. Quem sabe observar mais, falar menos, ver no outro e ver em nós mesmos muito mais do que a nossa capacidade visual nos permite. Outras possibilidades, outros objetivos. Ver além. Examinar a beleza das coisas nos detalhes, nos meandros, nos desenhos das figuras que se formam, nas pessoas, nas plantas, nos céus riscados de vermelho ou nos pingos de chuva e frio que nos oprimem. Ver além. Ver apenas com os olhos mais puros do espírito. Parar para ver. Vasculhar menos as páginas policiais e ter mais afã nas páginas de cultura ou de diversão. Ter um olhar enviesado, obliquo, quase dissimulado para as coisas que não aproveitam o nosso espírito. Procurar trajetórias não tão retilíneas, não tão planas, tão diretas, tão cercadas de cuidados. Negligenciar um pouco nos caminhos, para ver o que nossos olhos esquecem, olhando para dentro, centrados em contas, compromissos, inseguranças. Ver o mundo com um olhar mais atento, mais apurado, sem medo e alargar horizontes, encontrar os meios de erigir outras raízes, colher outras frutas, ouvir outros falares, outros matizes. Viver assim, sem compromisso, a não ser com as coisas pequenas, mas que nos dizem muito. Vez que outra, pesquisar as demais, sem renunciar à realidade, mas principalmente concentrarmos nossas energias nos pequenos prazeres, para não perturbar a alma e saber assim, entender o mundo. Viver desta forma, o tempo não passará tão depressa, porque passaremos a ter mais contato conosco, usufruindo o que trazemos de dentro e não nos enchendo de conceitos, imagens e argumentos de fora.

domingo, julho 26, 2015

O invisível e suas previsões





Chamavam-no Capitão. Era alto e magro, usava calças abanando ao vento, revelando os ossos que lhe sustentavam o corpo, mãos grandes, calejadas. Tinha um olhar estranho, enviesado e costumava ficar muito tempo no banco da praça. Alguém perguntou-lhe qual era a atividade que tomava conta. Sorria, os dentes amarelados mastigavam a saliva, engolia em seco e geralmente respondia com outra pergunta. Por que não me deixam em paz? Falava vários idiomas, segundo alguns. 

As pessoas que passavam por ele, pouco percebiam seu jeito displicente, sentado no banco, fazendo companhia às pombas que pululavam, se reproduzindo em quantidade extrema.

Um dia, reparei que estava do outro lado da rua, distante alguns metros do largo onde costumava ficar. Vi que se aproximava de uma banca de revistas e examinava detidamente as capas, como se pesquisasse algum assunto interessante. Ficou ali, parado, algum tempo. Logo aborreceu-se, porque afastou-se um pouco, olhando para o chão, mão esquerda dobrada no queixo, a outra estendida alisando a coxa magra, como se refletisse o que havia lido. Voltou em seguida e deparou-se com a revista que me parecia estar mais interessado.

Encostei-me numa vitrine, sob a marquise da loja, porque começava a cair uns pingos finos e procurei abrigar-me. Não conseguia desviar o olhar da cena. Capitão parecia muito interessado. Percebi que chamou a atenção do vendedor, que nem se dignou a responder, entretido em que estava na faina de organizar uma leva de revistas que chegara. Capitão insistiu, mas nisto chegou um outro freguês, que comprou recarga de celular. Atendeu-o e retomou a atividade anterior. Capitão tornava-se ansioso. A saliva brotava-lhe dos lábios, os olhos fixos, com um brilho alucinado. Até que o homem perguntou, negligente, o que queria.

A chuva aumentou, fazendo com que me abrigasse dentro da loja. Ainda prossegui observando Capitão, do outro lado da vitrine. Um balconista me interrompeu, imaginando que deveria vender-me alguma coisa. Mostrou-me calçados, falou-me em bolsas, cintos ou carteiras. Já não o ouvia, tentando explicar-lhe que estava apenas me abrigando da chuva e logo que amainasse um pouco, sairia. Ele se afastou um pouco, mas ficou por perto, talvez temendo que eu não fosse apenas um transeunte atrapalhado pela chuva. Ainda comentei sobre o Capitão, personagem conhecido da cidade, na sua tentativa de comunicar-se com o dono da banca. O rapaz olhou pela vitrine, mas não deu muita importância ao fato. A chuva batia forte no vidro, embaçando a visão.

Do outro lado da rua, a cena se desenrolava sem qualquer avanço, pois Capitão colocava as mãos na cabeça, enquanto a chuva lavava seu corpo mirrado. Afastou-se alguns metros, voltou decidido, parando na frente da banca. Foi só por um minuto, pois desapareceu logo na enxurrada que levava carros e pessoas à tona, em busca de abrigo e fuga do lamaçal.

O dono da banca de jornais, baixou a porta pela metade, impedindo que a chuva molhasse as revistas e talvez temendo que Capitão voltasse. Resmungava sozinho, juntava o que podia rapidamente e espalhava plásticos , envolvendo jornais, revistas e outros objetos que faziam parte do negócio. Olhei em torno, a loja estava cheia de clientes e os funcionários andavam às voltas com o atendimento. Apenas o rapaz que me perguntara, fingia arrumar alguns calçados na vitrine, para cuidar as minhas atitudes.

Resolvi afastar-me, correndo por debaixo de marquises e entrando imediatamente no primeiro bar que encontrara. A tarde já anunciava seus últimos reflexos sobre as lajotas encharcadas, antecipando uma noite escura que surgia entre os prédios, perdidos na chuva que não amainava. Sentia um certo frio, talvez em virtude dos braços molhados e do peito, anteparo para o restante do corpo, enquanto corria em direção ao bar.

Pedi um café expresso, à beira do balcão. Homens conversavam afoitos, falando via de regra em futebol ou nos últimos acontecimentos políticos que estimulavam a frustração da cidade. O vendedor bateu com o copo no granito do balcão, mostrando que eu estava servido. Talvez estivesse distraído, ainda pensando em Capitão, pois tive um leve estremecimento. Olhei-o meio que censurando, mas não disse nada. Tomei o café em alguns goles, aquecendo o corpo. Fiquei ali, algum tempo, encostado no balcão, sentindo o gelo da pedra nas minhas costas.

Um homem aproximou-se e largou uma maleta bem ao meu lado. Parecia preocupado com o horário, pois examinava o relógio, confirmava com o do celular, perguntou-me as horas e respirou aliviado, certificando-se que o seu estava correto. Pediu um café também, mas solicitou algumas gotas de conhaque, que misturaria no líquido, para aquecer a garganta. Mostrava-se ansioso. Os olhos, vez que outra, se grudavam na porta, como à espera de alguém que encontraria numa emergência. Outro atendente trouxe a bebida, desta vez não era o que me servira. Era um menino ruivo, topete nos olhos, cheio de pintas no rosto. Mostrava-se ser muito conhecido dos frequentadores, pois fazia pilhérias a todo momento com um ou outro, exaltando o time pelo qual torcia e desmerecendo o dos demais. O que me atendera o olhava de soslaio, um tanto irritado. Devia ser o dono do bar e não lhe agradava aquela manifestação, que poderia prejudicar o atendimento. Mas nada dizia, já habituado com as manobras futebolísticas do rapaz. O homem que estava ao meu lado, confessou, em dado momento, quase num desabafo. – Deixei de fumar, faz um mês. Mas, hoje, especialmente, não sei se vou suportar ficar sem nenhum. –Mas se faz um mês, é melhor persistir. Quem sabe, esta aflição passa.

          

Ele me olhou como se estivesse a sua frente um alienígena. Suas mãos Tremiam  e o anel vermelho tilintava no granito. Resolveu pedir um conhaque, agora sem o café, um copo cheio. Olhei de esguelha e me aquietei. A chuva já estava parando e estava na hora de voltar para casa, investir nas ruas alagadas até a estação do metrô. Virei-me no balcão para pedir a nota do café e descuidado, derrubei a maleta ao meu lado. Levantei-a rapidamente, pedindo desculpas. Era pesada, a impressão que tinha é que havia um corpo esquartejado e dobrado lá dentro. Imaginação de escritor, pensei. Mas não pude evitar surpreender-me com a ansiedade do homem que a segurou com as duas mãos, como se quisesse protegê-la de um invasor, no caso, eu. Sua voz soou, gutural, metálica. _ Eu precisava tanto dele, e não veio. Deve ser pela chuva.

Não entendi nada, mas concordei com um aceno. Ele continuava a segurar a maleta, enquanto eu contava as moedas que juntava às notas de reais, para fazer o troco. Pedi um drops e voltei-me instintivamente para a porta. Parece que todos faziam o mesmo gesto, comungando da mesma surpresa. Capitão surgiu à porta do bar, cabelos espichados, pingando nos olhos, olhar caído, de cachorro pedinte, a camisa meio aberta, deixando surgir uns pelos ralos no umbigo escondido, as calças meio arreadas, de pés descalços. O dono do bar gritou, exigindo que saísse imediatamente, mas o meu companheiro da maleta, o impediu com um gesto, levantando o braço em sua direção, quase numa súplica. _Não, preciso dele.
Todos os olhares se fixaram em uníssono naquele homem aflito, que segurava a maleta ao meu lado. Quase perguntei o motivo, mas não é que todos fariam de imediato? Não, houve um silêncio geral. O mundo parou, o relógio juntou os ponteiros, indefinindo o horário, o rapaz ruivo encostou os cotovelos no balcão de pedra, ensismesmado, o dono abriu e fechou a boca, mordendo os lábios sem saber o que dizer. Capitão ficou na porta, como chegara, assim, calado, mas ofegante, respirando fundo, tentando cumprir uma tarefa que lhe tinham encarregado. O homem correu ao seu encontro. Perguntou, afetuoso. _Fez o que lhe pedi?
Uma mulher chegou alvoroçada, esgueirando-se entre a porta e Capitão, temendo encostar-se naquele corpo mirrado e sujo. Quebrou o silêncio, pedindo um refrigerante. Mas logo calou-se também. Esperou o resultado da cena, que se desenrolava.
Capitão explicou em voz sumida, que o dono da banca não lhe vendera a revista, que lhe mostrara o dinheiro, que suplicara, mas nada. Mas a tradução estava ali, na sua mão. O texto todo em mandarim.
O grupo que se acotovelava mais adiante, no outro extremo do bar, comentou, quase unânime: _Chinês? Mandarim?
A mulher examinou Capitão e questionou ao rapaz ruivo porque estavam perdendo tempo com aquele mendigo. O guri não soube responder. Riu um riso forçado, para evitar mais conversa e perder o desfecho.
O homem suspirou aliviado, quando o capitão tirou do bolso uma folha de papel toda molhada e com cuidado, tentou não rasgá-la, detendo-se nos símbolos que a enfeitavam. Antes de guardá-la na bolsa, ainda perguntou: _Mas o que você queria na banca, homem?
_Uma revista. Uma revista pra não molhar o papel. Sabia que ia chover.
A chuva cessara por completo. Capitão sabia o que dizia.


sábado, julho 25, 2015

PRESO NA IGREJA

Era início de noite de outono, mas havia uma sensação térmica mais fria do que se antevia no final da tarde, sintoma de que a estação do frio se prolongaria por bastante tempo. Uma neblina envolvia a cidade. Pouco se via os edifícios ao longe e suas iluminações fracas, espalhadas no cinza aguado da atmosfera.

Entrei na Igreja do Carmo (Rio Grande,RS) com o intúito de fazer uma oração breve, acompanhado de uma novena escrita, que depositaria na mesa providencial: conforto e esperança para os desanimados, acabrunhados em relação às dificuldades que a vida às vezes nos reserva ou mesmo esperançosos, eufóricos até, na certeza do atendimento das preces. Por vezes, e raríssimas exceções, apenas um momento de reflexão e agradecimento. Os que tem fé nutrem-se destes momentos de verdadeiro encontro consigo e com a Divindade, os  que por ventura se alijam destes comprometimentos, ou por terem dúvidas ou mesmo, desprovidos de qualquer entendimento no sentido da entrega total e absoluta de quem crê, servem-se destes momentos para dar uma parada em sua vida cotidiana e mergulharem em seu próprio eu.

Talvez tudo não passe de absolutas divagações. Quem pode traduzir os sentimentos, a ideologia ou mensurar a fé ou falta da mesma nos outros? Ou em nós mesmos. Com que instrumentos podemos transformar em estatísticas estes aspectos tão humanos, que são os da dúvida, do medo de duvidar, da confusão de pensamentos, da ciência como autora indômita de nossas resoluções ou aliada a nossas crenças? Não passa de um exercício de adivinhação.

De qualquer forma, estive na igreja, naquele fim de noite com o mesmo objetivo de milhares de pessoas, exercitar a fé, não talvez aquela fé formal moldada pela religião, mas uma fé personalizada, quase única (não deve servir de modelo), mas que em muitas vezes, me traz um acalento à alma que não encontro em outras relações, a não ser via de regra, pela escrita. Esta me faz sonhar, devanear, envolver-me além das fronteiras do pensamento racional e consequentemente me libertar de mim mesmo. Alçar vôos extremos que me permitem alcançar uma amplidão de sentimentos, que me faz rezar, rezar da maneira mais pura, talvez, um reza interior, incitada pela liberação do eu nos meandros do pensamento mais elaborado. A alma fica solta, despudorada, sem subterfúgios nem máscaras, nas regiões descampadas, nas quais o senso comum e a padronização das virtudes e desejos se desfaçam num rol de coisas inúteis, sem valor. Entre a fronteira da ilusão e da liberdade, aí se encontra o meu mundo ou o mundo dos que escrevem e assumem o seu estar, desimpedidos das fronteiras sociais, estas que realmente impedem o pensamento e a reflexão.

Mas, estava lá, num dos últimos bancos, ainda na penumbra, que por minha surpresa, avançava ainda mais, ficando quase em plena escuridão, somente evitada pelas poucas velas acesas no altar. Ajoelhei-me, fiz minhas orações, larguei dissimulado o papel da novena na mesinha, próxima à parede de vidro que separava o hall de entrada do ambiente interno do templo e voltei-me para o banco, desta vez, sentando-me e observando um número reduzido de pessoas que se agrupavam próximas ao altar.
 

Não demorou muito e começaram algumas orações, com as pessoas se ajoelhando em torno do altar. Em sequência, houve inúmeras canções religiosas, todas de uma melodia contrita, invocando o Espírito Santo, os anjos e demais santos da Igreja. Não quis afastar-me assim, repentino, porque havia começado o que me parecia um culto não muito usual, embora fosse da igreja católica. Imaginei uma missa de louvor, mas não havia nenhum dos rituais que confirmassem esta minha convicção. Pela minha ignorância, não percebia que era uma espécie de benção às pessoas que ali estavam, recheada de testemunhos, chegando ao clímax da chamada língua dos anjos.

Então, resolvi quebrar as regras da boa educação e afastar-me, já que não tinha me preparado para participar do ritual, mesmo porque havia outros compromissos e nem deixara nenhum recado em casa. As pessoas me esperavam e eu, nem trouxera o celular. Levantei-me no maior sigilo, esgueirando-me por entre os bancos, evitando fazer qualquer ruído e dirigi-me praticamente na escuridão (porque nos fundos da igreja, a penumbra já era escuridão absoluta) em direção à porta, tateando entre uma mesa no caminho, a parede envidraçada, que separava o hall, o mural de informações, e finalmente uma das portas laterais. Respirei, aliviado. Ali estava minha salvação. A porta. A liberdade, não que estivesse me sentindo mal naquele ambiente tão bem sintonizado com a bondade, a contrição do pensamento, a invocação a Deus. Ao contrário, estava guarnecido por um sentimento de paz e serenidade. Mas um outro lado, o do dia-a-dia, das tarefas por fazer, da rua que me esperava para afastar-me em direção à minha casa, o cumprimento de compromissos, o fato de não poder participar na íntegra do acontecimento e a razão maior, de que o tempo limitado não me deixava saídas, a não ser aquela real, austera, maciça. A porta lateral imensa, pesada, bordada em alto relevo me parecia fechada. Aproximei-me um pouco mais, encontrei a maçaneta que brilhava na penumbra resultante da fronteira entre a parede envidraçada e o hall de entrada.

De lá, ouvia os brados sonoros do padre. Fazia um discurso, que de certa forma apontava pessoas, pessoas que como eu não participavam da missa e eventualmente surgiam nestes momentos de ligação com o infinito, revelando que estavam sedentas de fé e religião. Sentia na pele que o discurso era pra mim. Delírios de quem se encontra num aperto. Mas ele prosseguia, como “aquele senhor ali, quer aproximar-se, receber a benção e apagar de vez a sua vida pregressa?” Claro que não se referia a mim, pois eu continuava preso entre o hall e a porta envidraçada. Girei com força a maçaneta. Já não sentia frio, nem me importava a neblina que se transformava em chuva lá fora. Meu coração palpitava agitado, não mais tranquilo, não mais sereno, não mais em paz. Um suor frio escorria-me pela testa atingindo a gola do blusão de lã, passando pelo colarinho da camisa. A porta não se abria de jeito nenhum. Então, afastei-me, titubeando entre as paredes, tentando atingir a outra porta lateral, pois qualquer uma das duas, fatalmente alcançaria a porta principal, de onde partiria para a rua, em definitivo. Fiz a mesma função anterior e nada. A porta até balançava com meu esforço.

Ouvi passos cujos ruídos aumentavam e estremeci. Alguém percebera o meu interesse em fugir e talvez pensasse que eu não passava de um ladrão forçando a porta. Mas era a porta que dava para a principal, ou seja, para a rua! Voltei-me devagar e espiei para descobrir o meu vigilante. Os passos diminuíam, bem como o discurso do padre.

Agora as orações eram quase em silêncio, cada um falando consigo mesmo, baixinho, cada vez mais baixinho. Encostei-me na parede próxima à porta e observei a pessoa que caminhava em rodeios. Era uma senhora obesa, que devia estar esticando as pernas inchadas e doloridas e nem de interessava pelo meu caso. Estiquei o braço para a maçaneta que cada vez me parecia mais imensa. Inesperadamente, esta porta lateral da esquerda abriu-se com uma suavidade que me encheu de alegria e esperança o coração. Mas, a odisséia prosseguia, porque havia a porta principal e desta, eu não tive a menor dúvida. Havia ferrolhos tão fortes, que eu jamais abriria.

Voltei desolado para o meu lugar, principalmente porque imaginava minha família me procurando, pois não demoraria dez minutos e já se passavam duas horas.

Em dado momento, as pessoas começaram a ser convidadas para a benção. A maioria situava-se bem próxima do altar, diferente de mim e de dois ou três, talvez não tão engajados, que se dispersavam em bancos afastados. Aos poucos, numa canção suave, as pessoas se dirigiam. Uma vela acesa, segura por um dos ajudantes e o sacerdote punha as mãos sobre a cabeça do indivíduo, abençoando-o.

Não era minha intenção participar do evento, da forma que se me dispusera, nem havia pensado em tal hipótese, muito menos sabia que ocorreria àquela hora, naquele dia. Arquitetei milhares tentativas em sair pela sacristia, imaginei saídas mirabolantes, rezar na frente de um santo qualquer do altar e evadir pela porta mais próxima. Ou, aproximar-me sorrateiramente do grupo, fazer algumas orações e aos poucos acessar os arredores da sacristia, talvez em marcha-ré, pé ante pé. Avaliei em cálculos os metros que faltavam e o tempo que levaria para chegar até lá. Quem sabe, aproveitaria o testemunho mais enlevado, o sermão mais enfático ou uma dose de absoluta mansidão, onde os sentidos se tornassem vulneráveis apenas aos sentimentos mais profundos de fé. Sairia assim, cauteloso e seguro de minha precisão.

Claro que nada disso funcionou, até porque, eu não tinha certeza de que após a sacristia, haveria uma porta aberta também. Por isso, aderi ao evento e num último convite, como o homem provavelmente alienado da religião, da fé e dos sentimentos bons, fui chamado para a benção. Obedeci. Lá estava claro, à luz das velas e de algumas artificiais estrategicamente acesas. Não era este o meu primeiro objetivo, mas me senti recompensado, até pelo tempo que considerara perdido. Até pela aflição que passara. As pessoas saiam sorridentes e comovidas. Eu ainda pensava, o que vou explicar em casa? Que fiquei preso na igreja? Quem vai acreditar?

O ESTRANHO PRIMO DO INTERIOR

Chamava-se Ismael. Veio morar conosco numa dessas tardes de inverno, quando o sol se põe tão lentamente que parece que vai desaparecer para sempre. Era forte, robusto, ideal para o quartel. Nos meus onze anos, me parecia muito velho. Era um típico exemplar de rapaz do interior. Olhos baixos, gestos miúdos, aperto de mão respeitoso aos mais velhos. Jeito de quem sabe onde pisa. Eu, ao contrário, tão acostumado a minha vida serelepe, sempre à busca de aventuras, me atirava de corpo e alma no exercício das travessuras. Estava sempre à cata de espécies que alimentassem esta gana. Ismael trazia uma mala marrom de um tom avermelhado, com alças de metal, que me deixava curioso. Foi morar no quarto dos fundos, onde passaria os próximos nove ou doze meses, não sabia bem. Percebia, de imediato que não gostava de minhas atitudes. Parecia me julgar infantil, imaturo ou qualquer coisa que lhe viesse na cabeça a respeito de meninos de minha idade. Julgava-se, provavelmente, muito adulto. Sentia um respeito e um carinho pelo meu pai, que me irritavam profundamente. Era o sobrinho de longe, aguardado com gentilezas e salamaleques. Na verdade, não tanto quanto eu imaginava. Mas naquela época, final dos anos sessenta, era fácil para um menino de minha idade importar-se com estas coisas: muita imaginação, poucas oportunidades de alargar horizontes, de movimentar a mente, descobrir coisas novas. Não pouco era o que a leitura me provocava, mas não bastava: havia a astúcia do movimento, a vontade de vencer o impossível, de tornar valente o fraco, de observar a transformação do inimigo, de mexer com o provável bandido, de não ser sempre o mocinho, mas o protagonista da trama.

Pouco nos falávamos. Ismael sempre se dirigia a meu pai ou a minha mãe, mesmo que a situação se referisse a mim. Aos poucos, fui conhecendo os seus pontos fracos, a sua imensa vaidade, os perfumes que guardava na mala marrom avermelhada, as colônias, os cremes de barba, as loções, os talcos, sabonetes, a brilhantina, a base para as unhas. As camisas muito bem passadas e guardadas de forma a não amassarem, as calças com o vinco perfeito, os sapatos lustrosos. Aos sábados, geralmente ia ao cinema à noite, nunca às matinés, como eu. Depois, estendia nas festas de garagens, as chamadas brincadeiras onde os rapazes e as meninas se reuniam para ouvir e dançar ao som dos rocks ingênuos, brindando à cuba libre e samba. Dizia que era coisa de homem, como se eu não soubesse o tipo de festa que faziam: conversinha pra cá, bate-papo pra lá, os homens de um lado, as meninas de outro. E pouco se encontrando. E ele se julgava o máximo.

Certa vez, quando se afastou para ir a uma destas festas, deu-me um cascudo na orelha, me olhou com cara de vilão de filme de caubói e ameaçou despudorado: – não te intromete na minha vida. Sou homem, tu é um frangote, ainda mija nas calças – em seguida, deu um sorriso astuto, puxou uma carteira de cigarro Continental do bolso, aquele com debrum dourado nas laterais (a gente chamava de ourinho), acendeu, deu uma baforada na minha cara e se afastou balançando o corpo. Era a outra personalidade que se desenhava só para mim.

Uma tarde, quando ele havia saído, aproximei-me de seu quarto. Coração aos saltos, assustado. Mão trêmula na fechadura, encaixando a chave de modo a não fazer barulho e não despertar a atenção de ninguém. Abri a porta, espiei longamente para dentro, tentando ver algo extraordinário. O ambiente estava na penumbra. Aproximei-me devagar, esbarrando na cama, fazendo um barulho surdo na minha coxa, franzindo a testa de dor e evitando qualquer ruído denunciante. Subi na cama. Somente as luzes que vinham pelas frestas da veneziana de madeira amarela esvaneciam um pouco o cenário escuro. Apenas pequenos feixes de luz iluminavam o quarto, espraiando-se pela parede oposta à janela, produzindo figuras oscilantes. Nas paredes, fotos de atrizes de Hollywood em poses sensuais. Havia uma prateleira bem alta, acima da cama. Dei alguns passos, atolei os pés entre as molas do colchão, mas não me detive, inquieto. Trombei com os pés na mala, que serviam de anteparo para minhas investigações. A prateleira, cheia de objetos me atraía vigorosamente. Então subi na mala, para alcançar o meu objetivo. O meu pé direito afundou rapidamente, fazendo uma cratera, como se constituísse de papelão, tão frágil em sua consistência. Assustei-me, mas já que estava ali, não poderia desistir. Estiquei-me o mais que pude, alonguei o braço direito em direção ao topo da prateleira, enquanto apoiava-me na mão esquerda encostada na parede, para manter o equilíbrio. Empurrei o que pude, para descobrir com o tato, o que não conseguia ver. Achava contornos estranhos nos objetos, mas não conseguia adivinhar do que se tratava. Um deles, percebi que era apenas um porta-retrato. Peguei-o e atirei-o sobre a cama, sem consideração. Puxeis os demais para a frente, pois estavam afastados, ao fundo. Tratavam-se de pequenos objetos, na semelhança de santos ou bonecos, não conseguia identificar. Aos poucos, vieram na direção de minha cabeça, enquanto segurava um deles, os demais caíam desordenadamente, uns sobre os outros, estatelando-se na cama, ao lado do porta- retratos. Sentei-me rapidamente, para examinar o objeto de minha pesquisa. Eram figuras estranhas. Meus olhos grandes ficaram ainda maiores com a curiosidade. Minha boca entreaberta, nariz fungando, espirrando, provocado pela poeira e pelo cheiro estranho que exalavam. Pareciam divindades africanas, homens com cabeça de animais, um diabo de chifres enormes e capa vermelha. Larguei-os, assustado. Em seguida, detive-me na fotografia em preto em branco: uma mulher, loira, de cabelos crespos, que deveria ser uma namorada ou a mãe ou a irmã ou alguém de sua intimidade. Nada me interessava naquele momento, a não ser fugir dali a qualquer preço: esquecer as figuras estranhas e tão assustadoras, a fotografia que poderia ser de alguém que houvesse morrido há muito tempo, pois restara uma vela usada na prateleira que devia estar perto dos objetos. Olhei para a mala esburacada, quase destruída pela desatenção de meus pés, em desalento.

Pulei da cama e me deparei com a cara na porta, que não se abria de jeito nenhum. Procurei a chave nos bolsos da bermuda, abaixei-me, especulando pelo piso, embaixo da cama e nada. Havia sumido como por encanto. Certamente na euforia, eu a havia esquecido em algum lugar. Talvez na própria prateleira onde se encontravam os objetos. Estava quase em pânico. Aquelas coisas estranhas me assustavam e a aventura parecia ter acabado ali, ou apenas começado. Eu estava preso entre aquelas coisas inanimadas que me olhavam incessantemente a cada gesto que fazia, como se me acompanhassem, observando meus movimentos. Minhas mãos doíam, procurando em cada canto, em cada décimo do assoalho a maldita chave. Subi novamente na cama e fiz um esforço sobre-humano para alcançar a prateleira. Subir na mala, jamais. Não poderia danificar o que restara dela. Mas como chegar mais próximo, se não fazer da mala um trampolim? Não havia outra maneira melhor. Minha cabeça já não raciocinava perfeitamente. Estava confuso. Temia que os objetos me seguissem, subissem em minhas costas, segurassem o meu pescoço e me asfixiassem, irritados em que estavam por eu ter invadido um mundo que não me pertencia. Quando atingi a estante, senti meus dedos se deslocarem no nada, a não ser poeira, e a saliência abrupta da madeira, que me espetava uma farpa furtiva na mão. Definitivamente a chave não estava lá.

Então, desci da cama, num salto, quase em desespero. Pensei em gritar por meu pai, minha mãe, chamar o vizinho. Mas não tive coragem. Precisava encontrar a chave. Precisava sair dali. As horas passavam muito rapidamente, mas significavam uma eternidade, porque a cada minuto, mais um tempo disponível para o meu desespero. Então, em desespero, comecei a gritar em desvario, quase em súplica, pedindo por socorro, cheio de raiva, furor, ira, medo, pavor. Subi na cama, comecei a dar pontapés na mala, até atirá-la ao chão. Foi quando ouvi um tilintar metálico. A chave estava dentro da mala e caíra, quando a empurrei com violência. Com sofreguidão, peguei-a com firmeza, me dirigindo imediatamente à porta. A mão tremia, o braço não atinava ao que o gesto mandava, o corpo todo tremia. Ao abrir a porta, senti uma lufada de vento frio e a noite já se prenunciava em seus primeiros acordes. Um zunido de vento, um balançar de folhas, o revoar dos pássaros agasalhando-se nas copas e subitamente uma luz que despertava meus olhos meio cerrados. Na minha frente, o primo do interior, olhando-me de uma maneira mais estranha do que as imagens que encontrara. Sem fazer qualquer gesto, patético, mãos nos bolsos, boca aberta, esperando explicações. Mais adiante, meu pai, seguido de minha mãe, esbaforida, procurando-me, argumentando que não me encontraram em lugar algum da casa, nem do bairro. Queriam explicações.

Quis sumir naquele momento, agachar-me e passar de soslaio, como se nada do que sucedera me dissesse respeito. Mas não teve jeito: a mão pesada de meu pai, pousou no ombro esquerdo, perdidamente, como se ousasse ficar ali a vida inteira, até que eu desse uma explicação. Então falei: – não te preocupa, pai. Trabalho do colégio.

Saí correndo. Não me perguntaram nada. Foi muito forte o que falei, como se desabasse qualquer argumento. Trabalho da escola era sagrado. Mas que diabo de trabalho eu devia estar fazendo lá? Foi o que tentei explicar durante toda a noite. Era mais uma trama imaginosa que precisava criar.

terça-feira, julho 21, 2015

Tio Pedro e a Mangacha

Chamava-se Pedro. Tinha por hábito visitar-nos, mesmo que meus pais não estivessem em casa. Eu, embora adolescente, costumava prestar atenção as suas conversas. Por mais rebeldia que tivesse, não hostilizava as normas da família. Entretanto, intimamente, me incomodava a sua presença. Quando se aproximava e ao vê-lo, disfarçava o desconforto. Nunca era a visita esperada. Entretanto, me esforçava para recebê-lo e agir de forma semelhante a meu pai ou minha mãe. Ou ambos. Servir um café, um chimarrão, jogar conversa fora. O pior de tudo é que via de regra, suas conversas eram recheadas de lamúrias. Ou a vida estava cara demais, pela hora da morte, como dizia, ou os médicos sempre receitavam medicamentos desnecessários, bastava um melhoral para passar a febre, o refriado, a dor de ouvido e eles empurravam-lhe uma série de injeções com cálcio e vitamina c. Também se queixava do fígado. Se lhe doía a cabeça, o culpado era o fígado, se coçava a planta dos pés, o culpado era o fígado e se a digestão estava atravancada, o fígado também era o vilão. Quando estes assuntos não eram ventilados, começava a perguntar por meus pais, indagar sobre minhas irmãs e por fim, sobre meus estudos. E quando nada mais havia a dizer, fazia um silêncio sepulcral, para o qual eu amealhava todos os temas em meus pensamentos para interrompê-lo, mas nada que dissesse parecia aplicar-se ao meu tio. Aliás, pouco sabia sobre ele, a não ser que era um tio distante, se é que este parentesco existe. Nós pelo menos, o considerávamos nosso tio, mas talvez fosse apenas um velho amigo de meus pais. Às vezes, ficava observando-o. Tinha umas feições severas, um olhar arguto, embora, às vezes, parado no nada. Parecia-me que era um homem solitário, viúvo, cujos filhos não o consideravam muito. Costumava reclamar deles. Explicava sobre os pés de laranja que gostava de cultivar, além das bergamotas e goiabas. Gostava de descrever o plantio, as formas de proteção às raízes, aos caules, às folhas para que sobrevivessem ao frio e protegessem os frutos. Mas queixava-se dos filhos que não deixavam que as plantas crescessem, que revelassem o seu esplendor e pudessem ornamentar o pomar que tanto gostava. Eles não respeitavam o tempo de maturação dos frutos, muito menos as suas medidas de cultivo.

Apesar de toda pouca vontade de conversar com aquele tio que sempre vinha nas horas erradas, eu tinha um pouco de piedade dele. E ao aceitar um café, o papo ficava até mais interessante, porque talvez inebriado pela cafeína, ele mostrava-se mais entusiasmado e sua conversa tomava outros rumos. Certa vez, contou-me sobre uma atriz, que conhecera e para minha surpresa, se tornara sua namorada. Uma atriz? Um tio agricultor, dono de um pequeno sítio, um homem da terra, cujas únicas aventuras eram as de aprender novas formas de cultivo e a mania de investir em plantas exóticas, vindas de outras regiões. Como poderia ele ter se apaixonado por uma atriz? E onde acontecera isso? Pois me contara tudo, satisfeito, numa dessas visitas não enderaçadas a mim, mas a minha família, que mais uma vez estava ausente. Às vezes, até desconfiava de que ele gostava de conversar comigo e escolhia os dias e horas certas em que não encontraria meus pais. Mas isso é egocentrismo de adolescente. Pois, segundo o seu relato, ele a conhecera no Cabaré da Mangacha. Lembra-se, como se fosse hoje, como me contara no momento.

"Naquela época, ele estava passando um tempo na cidade, bem longe do sítio da família. Era um pequeno quarto alugado, pois estava procurando emprego no Frigorífico Swift, para afastar-se em definitivo do campo.

Vestira o chapéu e saira às pressas, fechando a porta atrás de si, sem olhar para os lados. A noite se agigantava escura. Ele dobrou a esquina, pegou o bonde que passava em frente ao abrigo de bondes e dirigiu-se para a rua Uruguaiana. Olhou para os lados. O veículo estava quase vazio, a não ser um homem meio barbudo, que desandava a cabeça a cada minuto, num sono sobressaltado. Quando chegou ao ponto, pagou ao cobrador e cumprimentou o motorneiro. Ficou ali parado, na esquina até o bonde desaparecer na rua em direção ao bairro portuário. Olhou para os lados, ensimesmado. Deu alguns passos e observou o prédio, um sobrado bem na esquina. Já ouvia a música da orquestra. Sentiu um certo estremecimento. Era a primeira vez que adentrava no grande salão. Sabia que o esperavam as danças, os shows, a orquestra e principalmente as mulheres que faziam do cabaret, o mais famoso da cidade.

Aproximou-se da porta. Um homem com uma farad colorida o recebeu e disse-lhe alguma coisa inaudível. Ouvia um piano tocar, uma voz feminina que se distanciava pela imensidão do aposento. O homem mandou-o entrar. Finalmente, chegara na Mangacha. Lá chegou a conhecer Dona Ludovina, que era a proprietária do estabelecimento.

Pois nessa noite, chegou à cidade uma atriz linda oriunda do Rio de Janeiro. Era uma morena maravilhosa, olhos amendoados, cabelos crespos e uma pele de seda. Tinha seios fartos e umas ancas de dar arrepios na espinha. Ele ficara embascado com o show, mas mais ainda pela presença daquela mulher lindíssima. Os engomadinhos estavam todos ouriçados, homens de terno e gravata, regados a uísque e notas de dollars embutidos nos couverts. Mas ela só tinha olhos para ele. Os homens se desdobravam em mesuras, galanteios e sorrisos afoitos, ele se resguardava num canto, com seu terno de linho amassado. Vez que outra, ela enderaçava olhares sugestivos que o deixavam louco. Mas o que ele poderia fazer, um quase analfabeto, um agricultor acostumado às atividades rústicas de sua terra, sem o verniz dos homens da cidade? Seus pensamentos se agitavam e seu coração batia descompassado. O que faria? A levaria até a rua Uruguaiana para tonar o bonde em direção ao centro e passariam a noite em seu quarto alugado, quase espelunca? Mas os olhares, os sorrisos e algumas palavras a meia boca se sucediam. E por fim, seu coração estremeceu de vez e suas pernas não se sustentavam sob a mesa, batendo uma na outra, quando ela se aproximou após o show, e entre palmas e assobios, sentou-se a sua mesa. Em seguida, apareceu uma garrafa de uísque importado. E dali em diante, não precisou explicar mais nada. Só sorrir e aproveitar a vida. Acabaram a noite no hotel onde ela se hospedara e por uma semana ficaram juntos.”

Claro que meu tio Pedro não me contou com esta riqueza de detalhes, só mais tarde fui saber as informações complementares e enriquecedoras através de meu pai.

Ele continou nos visitando por algum tempo. Nunca mais falou-me na história e na mulher que chamava de namorada, usando certa autocensura. As visitas foram rareando e quando ele aparecia, eu já tinha muitas atividades, já trabalhava e a fase da adolescência dera lugar a uma fase em que o tempo ficava cada vez mais escasso. Esquecera-o aos poucos, quase por completo. Mas, às vezes, recordo o seu jeito acabrunhado e introvertido, um pouco ranzinza e lamurioso, mas que vez que outra, parece abrir-se para a vida e conta sua trajetória enriquecida de histórias. E ao visitar algum sobrinho, fico me perguntando, será que não sou recebido assim, com cuidados e educação, como o fazia com o tio Pedro? A vida se repete, o tio chato e solitário de ontem, pode ser o visitante de hoje. Espero que não.

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