sábado, março 21, 2015

PARA QUEM A PAZ DE CRISTO, NÃO PASSA DE UM CUMPRIMENTO SOCIAL

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A paz de Cristo é um cumprimento que ocorre na missa, no momento em que se transmite ao outro, ao fiel que está ao nosso lado, este sentimento de plenitude e paz que Nosso Senhor nos outorgou e que hoje repetimos nos rituais litúrgicos. É um momento lindo, de pureza e afeto, que nos une um pouquinho ao divino e nos deixa mais humanos, mais próximos do outro, mais ligados à fé. Entretanto, às vezes, nem sempre este ato beneplácito é usado de forma natural. Muitas vezes, o cumprimento não passa de uma atitude estereotipada, usada apenas no aspecto social, quase uma obrigação. Nestes momentos, penso que estas pessoas deviam passar longe da igreja, ou caso participem de alguma atividade religiosa, que o façam com dignidade. Se não gostam da pessoa, que permaneçam com seus rancores ocultos, que se afastem e se juntem aos seus pares, mas não utilizem as palavras de Cristo como um modelo artificial, apenas para demonstrar em público, uma educação (que em regra) não possuem. Acho que Cristo as compreenderia e por certo, saberia alertá-las de algum modo, dar-lhes uma saída, para que voltassem a serem sinceras. Afinal, pelo menos, não fariam sofrer com hipocrisia, os seus desafetos. É uma pena. Deveríamos refletir muito antes de qualquer gesto dentro dos rituais da missa. Deveríamos ser sinceros. Afinal, a paz de Cristo deve ser para todos. Não apenas para alguns. Deve ser irrestrita. Não seletiva. Deve ser franca, não evasiva. Na verdade, deveríamos reatar com a pessoa, antes do cumprimento, nem que fosse em oração, para termos a faculdade de oferecer a nossa paz, que assim, seria plena. Que tenhamos a paz de Cristo. Que a desejemos com alegria e sinceridade e se por acaso, ainda não estivermos aptos a aceitar o irmão que está ao nosso lado, não o cumprimentemos com falsa consideração. O que existe de pior para uma pessoa é perceber o quanto a tratamos socialmente, sem qualquer afeto sincero. Que a paz de Cristo seja para todos, inclusive para quem não a sabe distribuir

domingo, janeiro 18, 2015

SORRI



Quando passava rapidamente pelos sebos de revistas, livros e todas quinquilharias, gostava de procurar aqueles discos de vinil antigos principalmente os de coletâneas musicais. Às vezes, nem tão famosas, mas surpreendentes pela qualidade, embora ainda intactas nas caixas. Num desses passeios, percebia que as coisas mudavam de repente, que os vinis não me pareciam o antigo objeto de desejo, que havia outros motivos para os passeios, que nem sabia muito bem definir. Talvez o dia de sol em Porto Alegre, encontro com outros colecionadores e amantes de livros e discos, ou de quaisquer bugigangas que trouxessem um pouco de saudade. Nestes momentos, o mundo não parecia o mesmo, movia-se mais rápido. Com o tempo, percebia que, na verdade, procuramos muitas coisas e nossos desejos de felicidade estão bem escondidos, num lugar quase impenetrável e cada vez que os buscamos, o fosso se alarga e ela se espalha, como mercúrio do termômetro quebrado. Ágil, imperiosa. Às vezes, alegria transborda. Outras, a tristeza impera. Mas não há porque chorar, mas sim, sorrir. Juntar as gotas de mercúrio talvez seja impossível, mas há como sujar os dedos de pura substância. E o perigo está aí, em ser feliz. Porque a felicidade também dói, também causa ansiedade e medo. Mas então, devemos sorrir. Como naquela música que o Cauby Peixoto cantava magistralmente e também, mais tarde, num tom bem melancólico, a voz limpa e melodiosa de Djavan. Sorri ou Smile. “Sorri, quando a dor te torturar e a saudade atormentar os teus dias tristonhos, vazios.” Há momentos assim, que os dias se arrastam, que não se tem a dinâmica do processo do tempo nem a perspicácia para se descobrir um caminho novo, para mudar a situação. Às vezes, nem sempre é algo muito palpável. É uma tristeza de se querer ser triste, não se sabe como, mas quem sabe uma necessidade intrínseca do ser humano em querer sofrer. Que me perdoem os médicos e os psicanalistas, mas acho que o homem em determinados momentos, gosta de sofrer. Por vezes, o sentimento extrapola uma dor imaterial, sugerida por uma canção doída, que nos remete a sofrimentos, que nem são nossos, mas que os tomamos, como a dor de nossas vidas. Sempre que ouço a música “Pedaço de mim”, que fala exclusivamente da saudade, pra mim, surge uma imagem clara da dor de um pai ou mãe que perdem o filho e essa imagem me dói intensamente, mesmo sabendo que é uma metáfora forte para a dor da saudade, do abandono, da morte do amor. “Oh, pedaço de mim, oh, metade arrancada de mim, leva o vulto teu, que a saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto, do filho que já morreu”. E se sofremos por motivos diversos, isso de forma real e absoluta, também encolhemos essa dor, com medicamentos alienantes. Mas que fazer? Segurar a dor? Segurar a ansiedade? Não. Sorri, como diz a música. “Sorri, quando tudo terminar, quando nada mais restar do teu sonho encantador”. E quem não sonha sempre, em qualquer etapa da vida? Quando crianças, em conseguir aquele game famoso, de última geração. (Na verdade, nem todas as crianças tem estes sonhos, algumas no máximo, o de brincar nas ruas enlameadas em que vivem). E quando adolescentes, que o sonho maior talvez seja apenas a afirmação como ser humano, integrante no grupo, fazer parte da galera? É possível. Aí vem o sofrimento, a dor , a angústia. E quando adultos? O amor imaginado, a segurança do carinho certo, do encontro pleno, ou quem sabe, da profissão desejada, do emprego, da vocação? Há tantos sonhos para os jovens. E para os adultos, de qualquer idade? A viagem sonhada? A saúde? O projeto há tanto adiado? O reconhecimento dos amigos? O acolhimento da família? Que fazer, quando nem tudo ocorre como sonhamos? Sorri. “Sorri, quando o sol perder a luz e sentires uma cruz, nos teus ombros cansados, doridos, sorri”. E quem sabe, assim, com o passar do tempo, com o deflagrar das ilusões, com a tendência de sermos celebridades por momentos exíguos e expor as nossas vidas ao público das redes sociais, vivermos esse sonho virtual. Então: “Sorri, vai mentindo a tua dor, e ao notar que tu sorris, todo mundo irá supor que és feliz”.

quinta-feira, janeiro 08, 2015

O OUTRO

http://kbimages.blogspot.com/url-code.jpg Estava assim à procura do tempo e o avistei sozinho. Parado que se encontrava à porta da igreja. Barba longa, desleixo involuntário. Pele escura, encardido. Sol a pino, um boné velho, virado para o lado, uma gosma escorrendo no canto da boca entreaberta com dentes falhados, amarelos, mastigando levemente a vida. Nos olhos, uma fuga estranha, um olhar para dentro, um não sei o que faço, que assustava. Por um momento, senti uma certa náusea. Olhar aquele ser humano, e poder enxergar esta condição, me apavorava. Difícil para qualquer um entender. Difícil pensar no assunto e enfrentar a situação. Aproximei-me com moedas pesadas, ajustadas na palma da mão, mergulhadas que estavam no bolso, escorregadias no tilintar dos dedos. Acho que o assustei, porque me olhou de soslaio, meio apalermado, temendo talvez uma sacudida, um pedido que saísse, ou uma ordem de evacuação do espaço. Que nada. Sorriu ao ver o brilho das moedas, bem maior para os seus olhos. Segurou-as rápido e afagou a minha consciência, no beneplácito da ação. Senti-me culpado. Dar moedas, quando poderia oferecer qualquer coisa que me tornasse um pouco mais próximo, mais intimo, mais afetuoso. Quem sabe, uma pergunta, uma palavra qualquer. Um desejo inconsciente de relacionamento. Bobagem. Naquelas condições, o máximo que faria é esfregar o dorso da mão nos olhos, ante a minha figura emoldurada nos últimos vestígios de sol, que ainda iluminavam a praça. Na volta, pessoas caminhavam céleres, preocupadas consigo, temerosas de assaltos, envolvidas em suas pequenas paixões do dia, se as tivessem, sobressaindo talvez às mediocridades do cotidiano. Quem sabe viver plenamente era enfrentar estas contingências da civilização atual. Quem sabe este confronto não faz parte de nossas existências, para alicerçarmos nossos pequenos desafios, percorrer os degraus às vezes mais acima, outras bem inferiores, irregulares sempre. Talvez fosse assim este ato de coragem de enfrentar a vida, suas vicissitudes, seus vazios, suas perdas e monótonas contradições, seu dia a dia morno, estável e seguro. Que seguro? Se precisas fossem as armas que nos apontam. Se não fossem ainda miradas através de olhos humanos, de mãos frágeis, vagabundas, certamente poucos de nós restariam. Ou só eles, os fortes, os modificados geneticamente, os robôs, os clones, os desumanos. E seriamos então a constituição de todas estas raças artificiais. E nem armas, nem moedas, nem afetos nos trariam à vida. Certamente, tudo descambaria para a vala comum da insanidade. Mas ainda o vejo ali, estirado, uma perna esticada, mostrando os músculos danificados, através da calça rasgada até o joelho, sujo, escuro, fedorento. As mãos ensimesmadas uma na outra, esfregando-se, fingindo frio, fazendo tilintar as moedas que brilham nos bolsos. A cabeça encostada no canto da porta, à esquerda, pendente, pedindo socorro. Cabelos sebosos, amarfanhados, divididos na nuca no confronto da madeira. Por que continuo observando-o se nada tenho a oferecer. Talvez este olhar complacente, que raramente possuo. Talvez este jeito despojado, esta vontade esquisita de ir ao poço de mim mesmo e descobrir ali, um pedaço da humanidade, aí, repartida em mil cabeças, cada uma ruminando o seu destino, alijadas de um processo de cidadania que a poucos contempla. Talvez seja ele um protótipo de nossas insensatezes, de nossas precárias participações da comunidade, do nosso desejo fraco do coletivo. Afasto-me e temo encontrá-lo novamente. Por certo, tremerei o coração, mas não por ele. Recordo Hemingway, e entendo por quem os sinos dobram. Eles dobram também por ti. Meu coração estremece, solitário e doído, por mim.

domingo, novembro 09, 2014

O PROJETO DE LEI

O conto "O projeto de lei" foi finalista do 2 º Concurso de Contos de Santo Ângelo (RS), promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Santo Ângelo. Faz parte de uma antologia de contos (prêmio).


Estava a poucos metros da tribuna. Coração assaltado. A camisa ajustada no corpo esquálido. A boca ressequida, o ar faltando. De repente, ela apareceu, elevou-se numa névoa, atravessando o corredor estreito que desembocava no púlpito. Todos os olhares se voltaram, um zum-zum se ouviu, quase alarido a sua passagem. Uns riam, piscavam o olho, irônicos, outros acenavam uma dúzia de pedidos e a distribuição insana de favores. Eu continuava convicto, confiante nas propostas, nas ideias e em sua escalada a um posto tão alto. Vivia lá, com minhas rabugices e meu cavalo acompanhante. Vez por outra, o via pela janela do sonho: pobre coitado, tão raquítico quanto eu, pelo desbotado, sem vida, puxando o resto das gentes de bem. Eu ali, domando a vida, dominando e dominado por ele. Às vezes, me ouvia, quieto, abanando as orelhas, sem discussão. Noutras, fincava pé, engatava o casco nos paralelepípedos irregulares, levantava a cabeça arrogante e me olhava de soslaio. Não tinha Cristo que o convencesse. Via de regra, me seguia paciente. Andávamos pelas ruas ensolaradas ou frias e chuvosas, tanto faz. Pra nós não tinha dia ruim. Só a a cata insensível do lixo. E cada vez se amontoava mais, aos nossos olhos: latas de alumínio, garrafas plásticas, vidros, até livros. Ele tinha os seus caprichos. Houve ocasiões em que se recusou a carregar certas coisas. Não atinava, o bobo. Na cabeça dele, eu ia carregar vira-latas mortos, crianças abandonadas, comida bolorenta. Difícil explicar-lhe. Uma, que ele não entendia. Outra, que era teimoso feito burro, se o fosse! Até que a encontramos, os dois: estava na esquina, com um megafone fazendo publicidade e fantasiada de … bem, nunca descobrimos de quê, mas era uma coisa estranha, mistura de carnaval, com prenda, coisa difícil de assimilar. O chapéu amarelo na cabeça definia o visual e um cartaz com o nome do partido. Então não tivemos dúvidas. Nosso voto foi pra ela. Tanto que estamos aqui, hoje. Ela não convenceu todo mundo, mas todo mundo fez questão de votar nela! Acho que pra fazer um teste ou para brincar de votar. Coisas do povo! Nós, ao contrário, demos o voto consciente. Eu e ele. A partir daí, a família, os parentes próximos, os vizinhos.
 Ela não faz figura entre seus pares; riem, mascam as palavras quando pronunciam o seu nome, tentando engolir em seco a fatalidade de dividirem a mesma mesa. Mas agora estava lá, atravessando a cerca de madeira envernizada, que divide os vereadores da plateia. Aplaudimos sem cessar. Meu companheiro lá fora, contava as pedras da rua, batendo as ferraduras, esperando o resultado. Estava aflito, tanto quanto eu. Padecia sozinho, o pobre. Que fazer, se não esperar? Era nosso destino e agora, estamos prestes a construir aos poucos o caminho que alicerçamos. Antecipar o que já era certeza nos sonhos. Alguns olhavam enviesado, outros cochichavam e o riso resumia o sussurro desavisado do ambiente. O presidente solicitou silêncio. Percebi que o fazia, esgueirando-se entre a conivência com a plateia e as normas da casa. Sorria com o canto da boca e seus olhinhos miúdos perfilavam outros olhares que entendiam o recado. Em seguida, sentou-se, alisando a barriga na direção dos pés. Acomodou-se, pegou uns óculos que lhe caíam na ponta do nariz e pontuou qualquer coisa no formulário branco. Um visto qualquer. Ela bateu no microfone, que nos doeu os tímpanos. Um alô, alô, alô infinito. A voz sonora e atravessada, tão semelhante a nossa, sem entonação, sem timbre agradável, sem locução adequada. Tentou falar e o fez amiúde, mas quase não disse nada e se o disse, foi daquele modo desajeitado de falar sem dizer nada. Prolixa. Lembrou da doação de galinhas para uma creche e todos caíram na risada, agora em alto volume, acompanhados uns dos outros, assim, em uníssono. Eu até tentei explicar para um senhor ao meu lado, um homem calvo, olhar disperso, que também ria como os demais e fazia uma espécie de assobio aflito, como se lhe faltasse o ar. Não havia motivo para rir, pois o que dissera era a pura verdade. Ele apalpou o ouvido e perguntou: hein? Então, calei-me e voltei-me para a tribuna. Ele tornou a rir e a assobiar. Na mesa, um vereador mais à direita, escrevia num calhamaço de folhas. E o fazia olhando para o público, as têmporas brilhavam de suor e vez por outra, arrumava a gravata que teimava em inclinar-se apenas para um lado. Quando a olhava, não via nada. Apenas o que já tinha na retina. Suspirava, passava a mãos pelos cabelos ralos e acentuava a censura através do aceno incessante da cabeça. O outro, à esquerda, ouvia-a, preocupado com o relógio. Divergia, por certo, da fileira de fatos distorcidos e enumerações sem sentido que ainda ouviria, até acabar o tempo a que ela tinha direito. Quando muito, esperar que acenasse para o projeto de lei, que tinha em mãos, do qual ela destoava de qualquer apreciação, sem alcançá-lo nunca. O que ficava mais ao centro, fitava patético, o auditório. Vez por outro cutucava colega e argumentava baixinho : “Tenho certeza que alguém executou este projeto por ela. Ela nem entende o que lê!”. Este limpava os óculos pesados, com a mão untada em álcool gel enquanto ajeitava o fone nos ouvidos. Junto a tudo, produzia um muxoxo, sacudindo os ombros. Eu me perguntava, como ele conseguia elaborar tantas ações consecutivas! Desviei a cabeça daquelas caras alheias à figura na tribuna. Nem ousei encarar a loira que se desviava entre os vereadores, trazendo papeis para assinarem, dando pequenos avisos, informando determinadas orientações. Ela não se furtava também em apreciar o público e esperar, talvez, que a apreciassem também. Enviava olhares sinuosos, bocas solicitas, que prometiam coisas obscenas. Mais tarde, soube que também era do quadro. Quem teria votado nela? Gente como eu, pensei, que vota pela publicidade e pela mídia. Uns pela experiência, outros pela figura agradável que aparece em todas as campanhas, em todos os canais, em todos os palanques, em todas as esquinas (são onipresentes), outros talvez pela esquisitice, pelo acabrunhamento das ideias, pelo favorecimento, pelo agrado, pelo beneficio. Outros ainda, pela rotina. Habituamos à imagem. Se morrem, choramos como se perdêssemos os mártires de nossa salvação. Se são presos, perdoamos como uma mãe negligencia a culpa, mas não o amor ao filho.
Meu companheiro deveria estar impaciente lá fora. Talvez imaginasse os inúmeros quilômetros que ainda restavam para atravessar a cidade. Então, me dediquei à imagem dela e até me esqueci do discurso. Tinha o cabelo contido pelo fixador, embora as pontas rebeldes aflorassem, vitoriosas, na arrancada pro céu. Seus olhos eram vermelhos, afundados, os dentes grandes e exageradamente brancos, perdidos na boca frouxa, desabitada e pouco habituada com os novos moradores. Uma estampa estranha naquele palanque engessado. Seu discurso vazio e mal engendrado fadado ao fracasso. Discurso que desprezei, até ouvir a palavra “cooperativa”. Então acordei do transe e sorri. Por certo, o companheiro recebia por telepatia, a minha gratificação. Ela disparou tudo que sabia sobre lixo, leu um trecho qualquer sobre meio ambiente e concluiu novamente na expressão esperada. O que a gente pedira com afinco, ela alinhavava esperta e inteligente: uma cooperativa para os catadores da cidade. O povo aplaudia, eu doía-me as mãos e o coração de alegria. Então, afastou-se desalinhada e voltou ao lugar que ocupara. Fiquei ali, tantas horas que me perdi no tempo. Houve toda sorte de discurso, todo o tipo de premissa, de réplica e tréplica a análises e pretensas discussões. Houve quem discordasse que o trabalho informal gerasse ganho à comunidade, houve quem imaginasse algum tipo de extorsão, de exploração do trabalho e até destruição da fauna (??), também eu fiquei em dúvida. Quando contar ao companheiro, nem vai acreditar. Também pudera. Ele não entende dessas coisas, embora seja teimoso que nem burro, que ele não é, na verdade. Pertence a uma família de espécimes vigorosas, ativas, amigas e inteligentes. Ele, entretanto, foge ao padrão, a não ser a amizade que demonstra por mim. Mas não vem ao caso. O que me despertava a curiosidade, naquele momento, era a conclusão dos despachos. E era despacho pra cá, despacho pra lá, e nada da votação no projeto de lei.
Nisso, se deu o inexplicável. Retornaram as análises sobre as leis municipais, a aplicabilidade da legislação e suas conseqüências. Também discutiram se a coleta do lixo seria executada de modo a atender as exigências do Ibama ou mesmo, se respeitaria os direitos dos cidadãos que se desfaziam de seus pertences, para serem arremessados a locais inadequados, partilhando sua história entre cooperativistas. Para alguns, cooperativa, lembrava comunismo, então os humores se alteravam tal como as cores vivas de suas fisionomias assombradas. E eu, perdendo o dia, que transcorria lá fora. Uma brisa suave empurrava as cortinas de oval para o interior da sala, lambendo o meu rosto de vez em quando, escondendo a cena brilhante do palco. Suspirei aliviado, quando iniciou a votação. Uns avaliavam o documento após as inúmeras divagações que enfrentavam no decorrer das falas, porém eram interrompidos pelo presidente, que por sua vez ocupava o tempo que seria gasto pelo votante, esclarecendo que o prazo era exíguo e somente utilizado para a votação propriamente dita. Concordei com ele, menos com o palavrório arrastado do comentário. Um deles interpelava o grupo, perguntando onde estava a sineta, para a interceptação do displicente. “Era coisa de se perder o mandato!” Eu cá com meus botões, me perguntava quando terminaria a sessão, arrependido em ter dedicado o meu tempo a tanta prosa, sem nenhuma conclusão eficaz. Tudo produzia contornos inúteis e como redemoinhos, juntavam o lixo daqui para colocar mais adiante e este fazia voltas e voltas e retornava sempre ao ponto inicial. Era lixo que eu nunca tinha visto nas minhas andanças, catando pela cidade! Mas qual, meu dever era aguardar pela solução. Por isso, procurei desatinado pela minha porta-voz. Onde andaria que não a avistava? Sorri, recompensado. Aquela brisa que enviava a cortina ao meu encontro, fazia com que uma outra, tão parecida com a minha, a encobrisse por completo. E, ela, inteligente, deixou-se ficar quieta, escondida dos olhares curiosos e maliciosos, esperando a sua vez para dar o sim definitivo ao projeto de lei, que nos favorecia.
Finalmente retornaram à votação e quando o presidente anunciou o adiantado da hora, foram céleres em atingir o seu intento. Entre o sim e o não, aconteceu o inesperado: um empate. Um empate! Meu coração vibrou, desorientado! Faltava somente ela, ela, para colocar um fim em todas as dúvidas e desesperanças! Ela, para ratificar o desejo dos desfavorecidos. Por fim, bradaram o seu nome, uma duas, três vezes. “Excelência, por favor, dê o seu voto. Quis o destino que fosse a senhora a decidir esta pendenga! Vamos, Vossa Excelência está me ouvindo?”
A loira boazuda torceu o salto, deslizando no piso de mármore e puxou a cortina que envolvia o rosto da vereadora. Ela acordou, exaltada: “_Sou contra, sou contra! Bota aí que sou contra!”

A plateia em peso caiu numa risada alucinada. Algumas vozes destacavam, que a responsável pelo projeto de lei votou contra. Nem ela acreditava em si mesma! O homem ao meu lado, retomava seus chiados sincopados, tentando absorver o ar que faltava, enquanto desandava a rir. Os demais acotovelam-se nos cantos, produzindo uma farra que misturava nobres e súditos. Nunca a democracia foi tão plena! Todos riram, sacolejando os ombros e as barrigas arfantes. Eu chorei e pensei nas galinhas que ela tinha doado à creche. As crianças tiveram mais sorte. Não passou pela câmara.

quarta-feira, setembro 24, 2014

O mundo evoluiu?


Às vezes, me pergunto o que está havendo com as pessoas, com os jovens que, de certa forma, ditam as regras da sociedade em que vivem (pelo menos nos grupos que participam e nos quais exercem grande influência). Provavelmente, minha avó teria este mesmo pensamento de dúvida e estarrecimento,  na época em que todos éramos  jovens e gritávamos aos quatro ventos as nossas angústias, os nossos objetivos bem calcados em modelos distantes de sua experiência, numa vanguarda que muitas vezes assustava. Talvez coisas bem mais brandas, como deixar o cabelo comprido, a barba por fazer, um cinturão de couro na cintura, uma calça santropê, com uma nesga do lado da perna. Por outro lado, havia as discussões filosóficas intermináveis, as procuras por novos caminhos na política (para alguns), a leitura dos grandes autores e entrar de cabeça nas novas ideias, os desejos de ser livre a qualquer preço, de sair do jugo dos pais, dos professores, dos mais velhos. Não se confiava em quem tinha mais de 30, naquela época, porque em geral, eram os donos dos mesmos preconceitos, da busca desenfreada pelo vil metal, da luta diária de manter o status quo. Tínhamos sonhos de amor livre, da “liberdade” das drogas, do altruísmo de construir uma sociedade de iguais. Hoje, nós absorvemos o que de bom ficou e descartamos o que nos prejudica (nem todos), mas ficou uma mudança de valores, de paradigmas, de evolução do mundo, de amor pela natureza, de solidariedade humana. Agora, porém, os mais velhos também estão estupefatos, mas não porque alguém luta por mais avanços progressistas, ou que haja uma vanguarda nos pensamentos da humanidade. Ao contrário, parece que estamos enveredando pelo caminho das trevas, como na Idade Média. Hoje em dia, as pessoas postam comentários a favor de justiça com as próprias mãos, como no caso da jornalista do SBT, subproduto desta mídia reacionária com o slogan “adote um bandido”, debochando dos direitos humanos. As pessoas espancam os pobres e principalmente os negros, sempre confundidos com marginais. Agridem jogadores de etnia africana, fazendo bullying, com exclamações humilhantes. Atingem idosos nas ruas, extrapolam no trânsito, com uma fúria selvagem, como se todos os demais fossem apenas obstáculos no seu trajeto, elogiam os ditadores, fazem analogia à ditadura, vestem-se de nazistas para torturar homossexuais ou quaisquer pessoas que fujam aos padrões étnicos ou sociais por eles aceitáveis, fazem homenagens a Hitler, como o que aconteceu em Itajaí, SC, os homens assediam as mulheres nos metrôs, em lugares públicos, como bárbaros, os adolescentes não conseguem decifrar o que leem (quando leem). A involuçao parece cíclica. O homem, ao invés de avançar, regride terrivelmente e o pior de tudo, os jovens que deveriam manter a vanguarda dos movimentos, estão entrincheirados na fronteira da ignorância. Graças a Deus, não são todos. 

A ilustração é do site http://contosdalua2014.blogspot.com.br

quinta-feira, agosto 21, 2014

A vida andava devagar


Como morava próximo à Praça Saraiva, meu pai às vezes tomava o bonde, que saía do abrigo, via Aquidaban, dobrava na linha nova e prosseguia pela Colombo fazendo a curva na Praça. Na Bento Gonçalves, o fim da linha. Morávamos em frente à Padaria União e lembro bem, meu pai cevava o mate, apanhava a garrafa de leite da soleira da porta, comprava o pão de quilo, tomava o café e saía para o trabalho. Era o pão que nos aguardava para o café antes da escola. Recordo, certa vez em que voltava no Saraiva, com meu pai. Eu, apoiado no final do vagão, observando os trilhos que fugiam céleres ante meu olhar, escoando histórias pelas alamedas que se perdiam, homens apressados para o trabalho, crianças no caminho da escola, donas de casas afoitas para abastecer a despensa. Lembro de uma tia que estocava a tulha com cereais, pois temia uma presumível guerra mundial. Além disso, tinha por hábito, enfeitar a cozinha com artesanato em crochê. O forro do botijão que compunha o fogão Wallig, a capa do filtro de cerâmica, o guardanapo sobre a Steigleder e a toalha da mesa. Nem a tulha escapava do adorno. Ah, da cozinha para a copa, havia uma passadeira, adivinhem, de crochê. Fiquei ali, observando os trilhos que se afastavam, compondo histórias, quando meu pai perguntou por minha irmã. Nem percebera que ela ficara na parada onde tomamos o bonde. Meu pai desceu rapidamente, sem antes alertar que eu não me afastasse dali. Que faria, a não ser observá-lo pela vidraça, correndo feito um desvairado à procura de  minha irmã. Naquele momento, percebi-o como um herói dos gibis, empenhado na  defesa da harmonia e da paz. Não demorou muito e ele apareceu na janela, esbaforido, com minha irmã nos braços, pedindo que abrissem a porta do bonde. O cobrador acenou para o motorneiro, que em seguida freou, acionando a campainha, para que meu pai permanecesse no meio fio. Quando o vi, ali dentro, a paz se instaurou. Então, voltei pra minha janela, lembrando da tia esquisita, que ornamentava a casa, quase desfigurando-a de seu aspecto original. Lembro de outra tia, que varava as madrugadas organizando a cristaleira. E em minha mente, a presença de um tio, de feições aristocráticas, rosto afilado, bigode preto e fala macia, que discutia política. Mas estes, são temas para outras crônicas. A vida, naquela época, andava devagar, como os bondes.

sexta-feira, agosto 15, 2014

AS MENINAS DA SOCOOWSKI


São lindas, feias, morenas, loiras, negras e sararás.
São pobres, jovens; jovens demais. Aparentam entre 14 e 21 anos. Não se sabe precisar ao certo. Afinal, permanecem ali, na beira da calçada, sem sonhos ou direções.
Seus encantos e encantamentos se foram há tempos, na sarjeta da rua sem meio fio.
Por certo, há pouco brincavam e vez que outra, ainda o fazem, na imaginação. Brinquedos usados, roupas da última campanha, dores do desfazer, do quase inexistir.
Estão lá, considerando-se belas, cabelos despenteados, roupas que nem lhes cabem, botas compradas com o dinheiro da humilhação e decadência.
As meninas da Socoowski*.
Talvez tivessem outro destino.
Talvez não se desfrutassem nas madrugadas e manhãs frias da Socoowiski, oferecendo-se nos pontos de ônibus ou aos caminhoneiros de passagem.
Talvez tivessem outros sonhos, se a vida lhes fosse afável.
Ou não.
Buscam o que precisam, não refletem, não questionam. Seus sonhos são rasteiros e doídos, despidos de qualquer beleza. Seu aspecto é tristonho. Carregam consigo o mais torpe fardo. Seu olhar é perdido, quiçá um pensamento distante de um futuro que não lhes cabe, vasculha de vez enquanto, a mente.
A prostituição é  atividade profissional no Brasil, enquanto  praticada por adultos.
Mas serão adultas, as meninas da Socoowski?
E há os que as procuram, por isso, elas existem. Não importa se são menores ou não. Há os pais que as oferecem. E o que fazem as mães das meninas da Socoowski?
O que querem as meninas da Socoowski? Dinheiro, roupas da moda, drogas?
Certamente as drogas são ferramentas de seu trabalho.
São prostitutas as meninas da Socoowski? Ou sofreram abuso sexual intra e extra familiar?
Estão ali por que querem?
Quem entende as meninas da Socoowski?
Quem salvará as meninas da Socoowski? 

 * Rua na direção dos bairros, até a rodovia, em Rio Grande (RS)

domingo, agosto 03, 2014

Restauração da imagem por ser considerada feia

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A notícia sobre a restauração da  imagem de Nossa Senhora do Caravaggio, em Farroupilha, tem no mínimo, um quê de absurdo. Parece que  que conta realmente nos dias de hoje, é a aparência, até mesmo da imagem das santas. Fica de somemos importância a fé, o carisma de Nossa Senhora, a devoção dos peregrinos.  Segundo a maioria que reivindica a maquiagem na face da estátua, reitera a desproporcionalidade da imagem, identificando uma figura excessivamente feia e por isso, não compatível com a grandeza de Nossa Senhora. Mas onde está a grandeza,  se não um elo de intercessão entre os fiéis e Deus? Ou na aparência que deve incentivar o turismo? E que critérios foram discutidos para sugerir uma mudança na estrutura da escultura? Quais os critérios artísticos que comprovam que há uma desproporcionalidade na obra? Quem pode afirmar que esta condição que foge ao modelo padronizado  não induz a formas artísticas que produzam movimento e ideias, quem sabe uma grandeza simbolizada na força de Nossa Senhora? Que modelo de beleza é adequado  para que ocorra essa mudança, que não leva em consideração a contrariedade do próprio escultor? Quando a visitei, achei tudo deslumbrante e nem me preocupei com o tamanho da estátua, talvez imbuído por um único objetivo, o de interagir aquele momento com a mais absoluta fé. Mas para o caso que nos deparamos, fica a pergunta:  o que é mais importante para os devotos e peregrinos? Para as pessoas que procuram um regaço para suas dores, seus pedidos, seus agradecimentos? O comércio? O turismo? A beleza da imagem da santa? A fé? Ou a falta dela? É de pensar.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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