segunda-feira, julho 03, 2017

O medo intrínseco

Não gosto de comentar notícias policiais, muito menos ficar dissecando as informações, investindo em cada detalhe e transformar o fato numa dramaturgia barata. Mas às vezes, a realidade dura nos obriga a pelo menos refletir e sofrer as consequências da falta de humanidade.

O bebê baleado no útero da mãe, em Caxias, na Baixada Fluminense vai contra qualquer percepção de realidade, como se o surrealismo ou a ficção concentrasse seus valores em nossa realidade. Como não se comover, como não sentir na pele o arrepio da dor e do medo ao assistir um fato tão doloroso. Como acreditar na humanidade e imaginar que ainda há futuro?

Quando vemos nossos filhos longe, ficamos com o coração na mão e quando estão perto permanecem em total abandono, porque as balas perdidas não são excessões, ao contrário, são a regra em muitos recantos do Brasil, como na escola em Porto Alegre, onde os alunos precisaram fugir para não ser atingidos.

Parece que o homem fica cada vez menos homem, menos ser humano e talvez não tanto animal, mas um ser perdido na desumanidade, um ser que enxerga no outro apenas o reflexo de seu desejo de ganância, de ódio e do medo intrínseco de se enxergar no espelho alheio.

É triste. Uma involução que avança em várias áreas e repercute nas comunidades mais frágeis. Uma involução nos costumes, na política fascista que avança, na ilegimidade dos governos, no despropósito das ações alavancadas na não-constituição.

Onde chegará o homem?

Quem cuidará de nossas crianças?

Quem olhará por nossa vida?

sábado, julho 01, 2017

Havia flores em Lisboa

Havia flores nas janelas e outras que se acomodavam em espaços menores, juntando seus galhos e pétalas e espécies diferentes e inúmeros brotos que surgiam à luz primeira da manhã.

Eram rosas, jasmins, gerânios e se estendiam pelas janelas, pelos pequenos canteiros, pelas intersecções das ruas, pelas rótulas, pelos caminhos, pelos passeios.

Eram lindas as flores e alvissareiro o dia que mergulhava mais e mais nas horas da manhã que aos poucos se adiantava.

Foi ali, que parei um momento, sentado num banco verde, observando as construções antigas ao longe, as igrejas seculares, as ruas estreitas e o rio que se desenhava ao fundo. Não poderia ser diferente. Acomodar-me naquele ambiente valorizado pela natureza cultivada, era reviver um pouco das memórias ocultas que se restabeleciam com a beleza.

Memórias de um passado que esquecemos, mas que ressurge quando invocados pelo sentimento.

Talvez devesse ficar ali todo o dia, se outros compromissos não me absorvessem, não me chamassem para a realidade árdua que nos atinge como sinos simbolizando a chegada ou partida.

Sinos que vem e que vão, trazendo consigo lembranças, exigindo chegadas e acenos ou levando consigo esperanças e procuras a outros ninhos.

Mas, de todo modo, ficar ali, observando as pessoas, as crianças, os jovens e idosos, o refluir da diversidade da natureza era pintar um quadro na memória e usufruir dessa júbilo para jamais esquecer.

Assim deve ser a realidade, norteada pelo sonho e pela esperança. Acrescentada à beleza das flores, dos pássaros, dos sons das crianças e dos afazeres dos homens. Tudo junto eleva a beleza da vida.

Partilhar essa realidade é experenciar a vida com o vigor dos que amam e absorvem a beleza do momento.

Linda Lisboa!

terça-feira, junho 27, 2017

ATUALIZAÇAO DA ENTREVISTA DADA AO BLOG DO SIB

 Atualização da entrevista dada ao blog do Sistema de bibliotecas FURG para a Bibliotecária Simone T. Przybylski. Foi atualizada apenas para efeito de divulgação dos últimos livros publicados. A entrevista original está no link: http://bibliotecafurg.blogspot.com.br/search?q=entrevista+bibliotecário

1)    Com que idade começou a escrever ? Teve alguma influência de alguém ? Acho que comecei a escrever quando aprendi a ler. Ficava muito tempo tentando descobrir o significado das palavras, principalmente nos jornais e revistas que meu pai lia. Ele me incentivava muito nesta descoberta. Também ganhava muitos livros, lembro que na 4ª série primária, ganhei “Aladim e a a lâmpada maravilhosa” e devorei o livro em pouco tempo. Em seguida, veio “Tiradentes e o aleijadinho : as duas sombras de Ouro Preto”, de Sérgio d. T. Macedo, livro que possuo até hoje. Também lia as histórias do Sítio do Picapau Amarelo (esta uma coleção de minha irmã). O que eu adorava mesmo eram as histórias de mistério de Ellery Queen, cheias de suspense e emoção. Eu tinha coleção. Ainda no primário, inventava muitas histórias e sempre me saía bem nas redações. Com uns 11, 12 anos escrevia histórias em cadernos.

2)    Que hora do dia costuma escrever ? Segue alguma disciplina ou quando dá vontade de escrever ?

Durante o dia, penso em fatos, acontecimentos comuns do cotidiano, observo pessoas que me chamam a atenção, ou mesmo situações contadas por alguém, mas para escrever, eu prefiro a noite. Nestas horas, me sinto mais disposto até fisicamente, mais livre e pronto para fazer o que gosto. As ideias surgem nos horários mais inusitados, mas a vontade de escrever é principalmente à noite.

3)    Quantos romances você já escreveu ?
Escrevo dezenas de contos e crônicas, mas romances, me atrevi a fazer sete. São eles: “A barca”, que foi finalista no Prêmio SESC de literatura, “A casa oblíqua”, “Somos todos iguais na casa”, “A morte original”, “O doce bordado azul”, “Pássaro incauto na janela” , “O eclipse de Serguei” e "A biblioteca e a barca".

Publiquei “O eclipse de Serguei”, também em e-book, pela editora Biblioteca 24x7.

Em 2017 Em 2017, foi publicado "A barca e a biblioteca: um romance sobre como os livros também foram sitiados em tempos de repressão" pela editora Metamorfose, de Porto Alegre. http://editorametamorfose.com.br/abarcaeabiblioteca.

No site www.clubedosautores.com.br, disponibilizei o romance “A casa obliqua”, que pode ser impresso quando solicitado ou na modalidade de e-book. Também está publicado em capítulos no meu blog http://letras-livres.blogspot.com.br, bem como "Doce bordado azul" e "Pássaro incauto na janela".

O livro de crônicas “Outras águas”, uma coletânea com vários autores, foi publicado pela All Print Editora .

Em 2016, participei com o conto "Emblema da morte em vida" na antologia de contos Metamorfoses, organizado por Marcelo Spalding, da editora Metamorfose.

4)    Como funciona a lei dos direitos autorais se você já disponibilizou uma obra na rede ? Tem retorno financeiro ou é mais para divulgação da obra ?

Alguns sites protegem o documento, mas isto não impede por completo que a obra seja manipulada ou copiada de alguma forma. Há a lei de direitos autorais, no Brasil, que protege a propriedade intelectual. Mas na internet é muito difícil impedir que seja cumprida. Entretanto, o mais adequado é fazer um documento de registro ou averbação junto à biblioteca nacional para garantir a autoria da obra. Além disso, conseguir-se o ISBN. O que acontece com crônicas, por exemplo, é a possibilidade de algum blogueiro usar a crônica no seu blog, a partir de um pedido por e-mail e fazer a citação adequada. Outro dia, recebi a solicitação da Secretária da RBE-AMPED para utilizar a minha monografia sobre identificadores de qualidade de periódicos e um artigo sobre este assunto para utilizar em prováveis estudos.

Com a disponibilização dos romances no letras-livres.blogspot.com.br, obtive bastante leituras e comentários. O retorno é puramente de divulgação. Quanto ao livro O eclipse de Serguei, participei de várias feiras do livro (Rio Grande, Gramado, São Borja, Caxias) e consegui algum reconhecimento.

5)    Quais seus autores preferidos brasileiros e estrangeiros ?

Na escola, lia Machado de Assis, por obrigação. Inclusive, um dos nossos livros de gramática da língua portuguesa tinha o Machado na capa, além de Camões, José de Alencar e outros. Já adulto, no curso de Letras, reli Machado, mas agora com prazer. Li todos os romances dele, gosto especialmente os que são classificados no realismo, inclusive o tipo de desenho psicológico dos personagens. Gosto também dos contos de Machado. Outro autor que aprecio muito, inclusive li quase todos os livros dele, ( desde Metamorfose , O Processo, O castelo, etc.) é Kafka, um escritor surrealista e ao mesmo tempo, com um pé firme na vida cotidiana e atual. Outros que citaria com prazer são Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Eça de Queirós, Sthendal, Fernando Pessoa, Macedo Miranda, Florbela Espanca, e também os contemporâneos, Mia Couto, Milton Hatoum, Amós Oz, Paolo Giordano, o próprio Chico Buarque. Também aprecio a literatura policial de Stephen King, Georges Simenon, Agatha Christie e Conan Doyle.

6)    Com qual gênero literário você se identifica mais ?

Eu prefiro narrativa longa, romance ou novela, que permite se delinear os personagens com mais profundidade, permitindo uma abordagem mais complexa, tanto das características psicológicas dos personagens, da crítica social que pode ser analisada, quanto da estrutura que permite urdir a trama. Para ler, também prefiro o romance. Leio alguma poesia, mas ainda prefiro ouvir poemas do que ler. Leio as crônicas mais na internet ou nos jornais. Compro mais livros de romances.

7)    Quem faz a capa dos seus livros ?

Quando da publicação do “Eclipse de Serguei”, sugeri a arte de minha mulher, Evanoli, cujo desenho se adaptava à trama. A editora avaliou e concordou com o tema. No caso do “Outras águas”, foi a cargo da editora. No clube dos autores, as capas são disponibilizadas no próprio site.

No romance "A barca e a biblioteca", a editora Metamorfose se encarregou da capa.

sexta-feira, junho 23, 2017

Quem é este homem?

Que é este João? Quem é este eremita que viveu recluso no deserto para pregar às margens do Rio Jordão?

Que destino extraordinário por bem lhe coube de anunciar a chegada do Messias?

Quem era este homem que batizava, mergulhando as cabeças dos seguidores, tornando-os cristãos, e trazendo para o “reino” os que não acreditavam?

Quem era esse homem sem meias palavras, sem maniqueísmos ou dissimulações, que exigia a conversão verdadeira e o arrependimento real dos pecados? Que exigia uma vida digna e honrada dos que o seguiam? Que denunciava os vícios e as injustiças?

Quem era este menino que ficou em segundo plano, mesmo tendo vindo antes, com uma mensagem austera e fiel aos seu princípios?

Quem era este homem, que não se sentia digno de atar as correias das sandálias de Jesus? Que afirmou que Jesus viria com maior poder do que ele, e que não batizaria na água, mas com o Espírito e em fogo? Quem era este homem humilde que batizou o Mestre, induzido a ser o precursor, aquele que viria antes e que, através dele, Jesus consolidou a solidariedade para com os homens.

Quem era este homem que incomodava os poderosos?

Quem era este homem frágil e ao mesmo tempo vigoroso e veemente, que lutou contra as injustiças, contra a hipocrisia, contra as relações falsas do Imperador, sua amante e cunhada, a filha e troca de favores indignos. Um homem que não se abateu ante a força do poder, que enfrentou Herodes, a amante e rainha Herodias e sua filha Salomé, a ponto de colocar na berlinda, como prêmio, a sua cabeça decapitada.

Quem é este homem que preparou os caminhos do Senhor?

Quem é este homem que humildemente mostrou-se muito maior na própria grandeza humana e que se fez menor para cumprir a missão profética.

Este é João. O João Batista. O João que transformou o batismo, deixando um legado para os que preservam os valores da humildade, o ficar na penumbra para iluminar o outro, o arregimentar a construção, para que a moradia se estabeleça.

Que muitos Joões surjam e preparem no seu anonimato, os caminhos da liberdade, do auxílio aos oprimidos, da compreensão de que dar o peixe significa pouco, mas é uma maneira de alimentar não somente o corpo, mas a alma, para que se aprenda com o exemplo.

Queria ser um João, sem ter a presunção de seu protagonismo e sua santidade, sem sua força profética, sua missão, seu messianismo. Queria ser um pouquinho de João, com a coragem de gritar às injustiças, de mostrar as incongruências da sociedade emburrecida, de lutar com garra pela insensatez de aceitar o feio, o faminto, o marginalizado, o craqueiro, o invisível, sem a náusea característica dos que só aceitam o belo, obtusos à realidade que nos cerca.

Queria ser um João agitador, agressivo, impetuoso, mas acima de tudo, um homem de Deus, da paz, da verdade, um mártir. Ou seja, um black bloc às avessas (e sem máscara), cuja única destruição seria a dos preconceitos e da manifestação manipuladora.

Ele usou as ferramentas da palavra, do discurso inflamado, do apontar o erro sem medo e sem disfarces, baseado na fé e na verdade. Que usemos também as que temos ao nosso alcance para alimentar um mundo novo, sem tanta mágoa, decepção, dor, pobreza, miséria, abandono, preconceito, mentira. Ferramentas da escrita, da voz, da ação, do trabalho, da oração. Enfim, um pouquinho de João é suficiente para aplainar o mundo que o Mestre deixou.

Oração a São João Batista

Glorioso São João Batista, que fostes santificado no seio materno, ao ouvir vossa mãe a saudação de Maria Santíssima, e canonizado ainda em vida pelo mesmo Jesus Cristo que declarou solenemente não haver entre os nascidos de mulheres nenhum maior que vós; por intercessão da Virgem e pelos infinitos merecimentos de seu divino Filho, de quem fostes precursor, anunciando-o como Mestre e apontando-o como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, alcançai-nos a graça de darmos também nós testemunho da verdade e selá-lo até, se preciso for, com o próprio sangue, como o fizestes vós, degolado iniqüamente por ordem de um rei cruel e sensual, cujos desmandos e caprichos havíeis justamente denunciado.

Abençoai todos os que vos invocam e fazei que aqui floresçam todas as virtudes que praticastes em vida, para que, verdadeiramente animados do vosso espírito, no estado em que Deus nos colocou, possamos um dia gozar convosco da bem-aventurança eterna. Amém.

sábado, junho 03, 2017

Recuerdos

Deixara-o assim, esquecido, empoeirado. Pudera, nunca mais o tinha visto tão próximo. Não mais havia sentido o seu aroma, seu aspecto meio decadente, suas pequenas partículas se evaporando no ar, brilhando no rastro de luz da janela; a estrutura cada vez mais frágil, como se braços e pernas se desmembrassem aos poucos, perdendo a coesão.

Transformava-se, é claro, como todos os seres, ao longo do tempo.

Percebia suas fraquezas, seu cheiro de coisa passada, água estagnada.

Entretanto, tinha comigo, que ele não perdera as propriedades completamente. Não era aquele deus cheio de conteúdo do passado, mas ainda revelava integridade, força e sabor. Restava o dna de sua natureza.

Produzia uma ternura intrínseca que arrepia os cabelos, pousar-lhe a mão, acariciar seu corpo em frangalhos, lendo nele os traços oníricos de outrora.

Agora, sem a vitalidade de sentimentos que no passado, divisava.

Não, acariciá-lo agora era palmilhar com cuidado sua existência e ver através dela os ecos há tanto esquecidos.

Tão importante ainda é em minha vida, que passei a sonhar novamente.

E bastou uma mão amiga para guardá-lo com cuidado, para protegê-lo das intempéries e do esquecimento.

Tão frágil tem sido e tão forte o conhecera.

Punha nele as esperanças, meus desejos mais íntimos, vontades secretas, liberdade indefinida.

Cultivara consigo os melhores sonhos, alimentara sua fome de sentimentos, fertilizara suas raízes com o adubo forte da paixão, do desejo de extrapolar as ideias, expressar os pensamentos e revelar intenções.

Assim, portanto, fui alicerçando seu tronco, deixando-o robusto e poderoso.

Mesmo que vissem nele apenas um rascunho, um amontoado de primícias que não dariam em nada.

Apesar de tudo, imprimia nele toda a energia em seu coração aberto, seu cérebro em branco, à espera do sonho, da inteligência, da verdade, da ficção, da realidade, da vida.

Então regava com carinho suas primitivas folhas, assim verdes, enroladas uma na outra, agarrando-se à seiva que brotava.

Acariciava com cuidado seus brotos, examinava-lhe os fungos, os parasitas, os incrédulos de suas tramas, os irônicos e suas dúvidas.

Na verdade, estava sempre ao meu lado. Nunca relegava qualquer trabalho mais afoito ou incisivo.

Era meu companheiro de caminhada, de solidão, de infortúnio, dor, alegria ou paixão.

Amava-o em sua parceria constante, sua presença quieta, atenta e ouvinte.

Quantas vezes, nele derramara lágrimas, maculando seu semblante, integrando-as em suas entranhas, dilacerando suas fibras, apagando seus traços.

Também sorrira comigo, acompanhando-me em noites brilhantes, nas quais a alegria cantava por cantos desconhecidos, embrenhando-se em frestas jamais ousadas, espiando em fechaduras há tanto tempo cerradas.

Ao seu lado, abria todas as portas, todas as passagens, todas as janelas, anunciando brisas matreiras que se enroscavam em meus cabelos, boca e olhos circundados de estranha ironia.

Uma ironia boa, faceira, de quem desconhece o mundo, mas descobre seus caminhos e palmilha febril as vielas amplas e ensolaradas dos dias felizes.

Era assim, meu companheiro fiel, Sancho Pança folgazão e matreiro, acostumado a buscar o mundo sem qualquer envolvimento mais sério.

Apoiava-me nele, para arregimentar meus sonhos. Um suporte onde as ilusões quase se transformavam em realidade.

Mas com o passar do tempo, o abandonara a sua própria sorte. Sentia piedade, mas não me acostumara a viver daquele modo iludido, achando que ainda acreditariam nele, como se carregasse consigo a verdade suprema.

Bobo! A verdade era outra: palpável, cruel, única.

Um só caminho, um só jeito padronizado de viver no senso comum, uma moral estrita e una.

Um povo que caminha em uníssono, fingindo-se iguais.

Amando igual, pensando igual, comendo igual, sofrendo igual.

Afastei-me dele para sempre.

Vez que outra, lembrava de seu jeito folgazão, companheiro e amigo. Mas só vez que outra.

Logo esquecia e mergulhava no poderio do mercado, nas contas a pagar, na sobrevivência comezinha, no salve-se quem puder, na noite sem mistérios, no amor comprado, na dor do dia a dia. Apenas um sonho enterrado. Uma morte rasteira, rasa, sem cova; adormecido no mundo dos iguais.

Até que a mão amiga guardou-o com carinho, acalentou seus sonhos lá escondidos no fundo da gaveta, na última gota do varal, no desencadear das nuvens abstratas no céu. Assim, deitada na relva, descobrindo figuras, carneiros que voam, luas que se afastam, foguetes que somem no cosmo. Ah, aquela cauda brilhante dos cometas. Aquele pisca-pisca incessante dos pirilampos na noite escura. Aquele ar gelado, que estremece a espinha e arrepia os pelos dos braços, revelando as cores da infâncias, tão próximas e reais.

Não deixou que secassem as lágrimas que mancharam sua face, seu corpo inteiro, nem que amarelassem a sua fisionomia.

Nem que desatasse de vez os braços desmembrados do corpo, as mãos soltas e disformes.

Ao contrário, colou-as com cuidado no gesso agregador da recordação, da amizade, das lembranças doces de tempos já idos.

Ajeitou seu corpinho frágil, guardou-o com cuidado em trajes bem confortáveis e o enviou de presente.

Um presente que já era seu e que compartilhou tantos anos com o amigo.

Por isso, essa mão amiga e carinhosa o devolveu, pesarosa, mas feliz, pois temia que se não o fizesse, nunca mais o veria interpretar o mundo daquele forma dissonante do senso comum, do padronizado, do tudo igual.

Melhor mandá-lo de volta assim, embrulhado, com carinho, tendo o cuidado de não machucá-lo, como uma lembrança revivida que tomou corpo.

Chegou-me deste modo, pelo correio. Arrumadinho, sem disfarces, sem máscaras, revelando um passado que pode ser o presente renovado.

Aqui está ele, em minhas mãos.

Na testa, está escrito “ Meu Companheiro”.

Como antigamente.

Um retorno que identifica um rótulo novo, novas idéias e comportamentos. Sonhos renovados e garantidos. Sonhos tentados. Por fazer.

Assim chegou às mãos, o velho caderno.

Prenhe das velhas histórias, dos velhos textos com seus personagens e seus tramas, seu desejo ousado de observar e ser observado.

Trouxe-me a validação da escrita, não na alegoria infantil, mas com a verdade madura de meu coração, se é que se pode amadurecer nos sonhos.

Verdade é que está aqui, ao meu lado, modelo de dias de verão, companheiro de jornadas, de dor e alegria. De lágrimas imergindo-se em suas fibras, mexendo com a estrutura, esmaecendo as cores, misturando as tintas.

Está aqui, como um troféu, um farol iluminando o mar escuro, servindo de bússola a novos devaneios.

Observo-lhe as páginas amarelecidas, rabiscadas com letra infantil, mas não o abandono jamais.

Fiel escudeiro nas novas investidas.

Assim, velho caderno, cujo nome “Companheiro” me reporta à infância, deixa-me caminhar ao teu lado e embalar o sonho que ainda me absorve.

(Recebi de volta de uma amiga e de um amigo, alguns cadernos em que escrevia, quando adolescente. Cadernos estes guardados com carinho para algum dia serem devolvidos. E o foram. Ângela Puccinelli e Francisco Javier Garcia, o Paquito, meus colegas de escola, amigos de caminhada, que a vida de alguma forma nos separou, lembraram-se de mim, por tanto tempo. Meus reais companheiros.)

DIA DE LIMPEZA

Dei alguns passos pela calçada suja, enlameada pela enxurrada, sem imaginar que fugiria dali tão rapidamente. Modo de dizer, meus pés doíam e meus passos tinham a medida certa de fugir das poças.

Sacos plásticos entulhavam-se nas bocas de lobo. Carros passavam próximos à calçada, aumentando ainda o caos que se alimentava de nós, mendigos, pedintes, marginais, prostitutas, acostumados a fazer da deformação geral, o nosso modo de vida.

Mas chegar àquele ponto de ser chamuscado, quase queimado, quando uma mão sinistra com isqueiro se aproximou do banco em que estava e tacou fogo como pôde, foi o portal do inferno.

A sorte foi a chuva.

A sorte foi estar acordado.

A sorte foi ter forças ainda para levantar, examinar a cara do bandido e esborrifar nele um cuspe que me vinha da alma.

Ele fugiu, dando risada da minha cara. Eu fiquei, ali sentado, ali sozinho, ali maldizendo o que não tinha pra maldizer.

O que não tinha que esperar. Quem sabe morrer ali, na rua, queimado, transformado em cinzas não era a saída?

Mas ficar assim, humilhado, era pior.

Ainda me sentia assim. Ainda tinha brios que desconhecia.

Agora estou aqui, com fome, procurando um café pra aquecer o estômago. Mexo nos bolsos, agitado. Parcas moedas tilintam nas mãos.

Oh, amigo, quer encostar o carro? Puxa pra cá, arreda pra lá. A gente se acerta.

Mas é difícil participar da vida dos outros. Eles não querem intimidade. Têm medo da gente. Medo de bandido, como eu.

Talvez, um dia, procure uma saída.

Talvez saia desta vida, faça a barba, corte o cabelo e procure alguém que ficou pra trás. Lá longe, bem distante, quase no infinito do paraíso.

Uma velha mãe escondida na costura. Uma mulher que mudou de vida, para esquecer o marido bêbado. Levou os filhos, levou os móveis, os poucos agasalhos. Levou a vida.

Mas só o café não basta.

Um trago forte vinha a calhar.

Quem sou eu, me pergunto. Lavo os para-brisas dos carros em busca de alguns trocados. Procuro uma vaga nos estacionamentos. Se não existem, invento.

Tenho raiva de fazer isso. É o que me toca. Não tem jeito. Quem sabe, ainda arranho o carro deste cara, que esqueceu de me dar o que mereço.

Aturar a cara emburrada, enfiar um sorriso, tentando argumentar do meu jeito e depois ser jogado pro lado, como quem empurra um traste qualquer, interrompendo o caminho.

Quando a noite chega, o frio aumenta.

Voltar pro buraco é tentar conhecer o túmulo antes da morte. Empurrar os pés na laje e fingir que se encosta no baú, aos pés da cama.

O frio enrijece os músculos. Os pensamentos ficam mais demorados, mais confusos.

A melancolia avança noite adentro, sem convite.

Tenho tosse, dor de cabeça. Pés gelados.

Ouço barulhos lá fora, risadas, choros, gritos quase uivos ao longe.

Alguém que morre, leva porrada ou vai preso.

Ainda tenho este canto do túnel pra me agasalhar.

Os companheiros não vieram. Certamente estão enfiados nos albergues para passar a noite. Aquecer a garganta com uma sopa quente, submeter-se ao banho.

Sinto que não vou dormir.

Uma luz forte invade meu espaço, sem pedir licença. Vozes de homens, ganidos de cães.

Um grito mais forte nos meus ouvidos, o cano de um fuzil apontado para minha cabeça.

O mundo mergulha em desespero, não por mim, não pela minha pele frágil e suja. Mas pela dor tangente na alma dos homens.

Um dia os sinos tocarão em regozijo e eu serei, quem sabe, amado por alguém.

Aquela velha na costura deve estar lá me esperando, talvez a gente se encontre.

Puxam-me os pés, empurram-me o corpo, usam expressões rasteiras.

Olhos brilham na noite, como corujas alertas. Me encaram de perto. Cães farejam. Sentem meus humores. Procuram meus pertences. Examinam meus bolsos. Nada que procuram encontram, mas o que acham lhes basta para completarem o gozo: meu corpo frágil e oprimido.

Pelo menos, aqui, têm uma resposta a suas indagações.

Um isqueiro brilhou próximo aos olhos de um deles.

Estremeci, não pelo fulgor dos olhos, mas pelo clamor da chama.

Baixei a cabeça e vi cair perto dos coturnos o palito quase cinza.

Mas a visão daquela chama ainda abala meu ser, como se os alicerces enferrujados afrouxassem pela força do vento. Vento que agora zune forte, esfriando ainda mais o ambiente.

Levaram-me com eles, sem dizer o destino.

Tinha de concordar, quieto, calado. Era dia de limpeza.

A cidade aguardava um influente evento internacional.

Tinha de tomar o meu rumo.

quarta-feira, maio 31, 2017

ISSO NÃO DEU NA TV

No meio do quartinho, Nízia passava roupas numa mesa adaptada. O ferro quente tinia e o calor se propagava também no seu rosto, no colo suado, no qual punha a mão para assegurar-se de que estava viva.

O coração batia forte e descompensado, mas que fazer? Não podia parar o trabalho. Dezenas de camisas do patrão, roupas dos filhos e da patroa, principalmente os vestidos de tecidos finos e leves, aos quais devia prestar muita atenção para não estragá-los. As mãos dificultavam o estender do tecido, trêmulas e quase incapazes de cumprir a tarefa. Será que seu corpo todo desandaria assim, de uma hora para outra, quando precisava tanto de sua energia.

Sempre fora uma mulher forte. Era elogiada pela patroa, pelos poucos amigos, por alguns parentes. Embora solitária, soubera dar um rumo a sua vida.

Pretendia estudar um pouco, pelo menos sair daquele b-a-b seboso que não levava a caminho nenhum.

Queria ir mais longe, mas quanto mais pensava, menos tempo tinha. Era praticamente da família. Passava os dias e as noites experimentando as horas de sucesso, de festa ou angústia.

Muitas vezes, acalentara o menino que chorava para a mãe desfrutar do passeio ou do jantar. Outras, vira o sol nascer ao lado da menina com febre e olhos murchos, pensando que ela era mais uma ferramenta para passar a dor.

Na verdade, gostava de seu trabalho, gostava dos filhos que não tivera, gostava da família que era sua.

Nem sempre, porém foi um ente familiar. Muitas vezes, precisou afastar-se quando os momentos não indicavam a sua presença. Dócil e cuidadosa, afastava-se devagar, às vezes arrastando chinelos pelo avançado da noite.

Mas vivia em seu quartinho, hoje tão quente por causa do ferro elétrico.

Tinha uma TV no quarto e se satisfazia em ver que as atrizes negras faziam papéis semelhantes aos que ela desempenhava.

E amavam os patrões tanto quanto ela.

E até sofriam caladas em seus quartos.

Então, estava tudo certo. Ela aprendera com a TV. Aprendera muito.

Também aprendera que a maioria dos homens presos e considerados bandidos eram negros e principalmente jovens. Eles não usufruiram das escolas boas, nem dos conselhos dos pais, nem da disciplina escolar. Não eram bons como os filhos da patroa. E se o governo dava escolas, dava educação (ela considerava assim, que tudo era dado e grátis), eles não aproveitavam. Preferiam ficar na rua fumando maconha, vivendo entre gente ruim.

Os outros não fumavam maconha. Aproveitavam a oportunidade e se acaso acontecesse um acidente, eram reconduzidos ao rumo certo, cuidados em clínicas e tudo ficava bem.

Ela tinha aprendido isso na TV.

Também percebera que as meninas negras e pobres, muitas vezes, se desviavam do bom caminho.

Não iam à escola e se iam, desobedeciam as regras, nem participavam da igreja, não se harmonizavam em grupos para estabelecer boas relações, como os filhos da patroa e seus amigos. Acabavam na vida fácil, tinham filhos sem a idade adequada e às vezes, morriam fazendo abortos.

Eram meninas desprezíveis para a sociedade e para a família religiosa.

As filhas da patroa e suas amigas sabiam resolver suas pendengas, caso acontecesse uma tragédia. Eram levadas a clínicas com muita cautela e carinho e voltavam como se o mundo recomeçasse.

Talvez houvesse uma maneira de reconstruírem as suas vidas, que somente pessoas de classe como a patroa soubessem discernir.

Isso também ela tinha aprendido com a TV.

Algumas meninas de seu bairro foram estupradas e o que saía na mídia e nos círculos de fofoca é que elas incentivavam aqueles homens a agirem como animais.

Portanto, eram culpadas, pois usavam roupas vulgares, mostrando mais do que deviam, dançavam funk e portanto, nem podiam reclamar.

Afinal, os homens tem seus desejos e muitas vezes, não conseguem controlar-se, ainda mais quando incitados.

As meninas da casa, como as da patroa, ao contrário, sabiam muito bem manipular um homem, à custa de sua educação e inteligência. Quando iam a festas, só saiam com o seu grupo, porque não lhes interessava quem não fosse da mesma classe. E tinham razão. Não se misturavam com qualquer um. E se dançavam funk nas festas ou usavam algum incentivo à alegria, tudo eram muito bem controlado pelo grupo. Elas sabiam se comportar.

Tudo isso, Nízia aprendera na TV.

Havia também alguns meninos que eram até seus parentes, um que outro jogador de futebol, mas alguns que tinham essa mania de virar mulherzinha. Queriam usufruir dos mesmos desejos das mulheres, como se assim fossem. Uns até usavam maquiagem. Outros andavam se agarrando, desejando outros homens e até considerando-os namorados.

Um deles, aquele que era seu parente, fora assassinado, alvejado por um policial, que se dizia assediado.

Afinal, devia ter sido muita pressão para o tal policial, afinal ser assediado por um gay! Ele, um cara da lei! Houve até a interferência de um deputado homofóbico contra o menino, é claro.

Mas está correto, ele se desviou do bom caminho. Isso é uma doença.

Na casa grande, quero dizer, na da patroa, também ocorreu algo parecido, mas foi com o dono da casa, o patrão, parece que um amigo do filho o assediou ou foi ele, não sabia. Claro que a coisa fora resolvida na base da educação. Aquilo tudo não passara de uma brincadeira, em virtude de terem bebido um pouco demais e a patroa entendera e todos foram felizes.

Tudo isso, ela havia aprendido na TV.

Certa vez, Nízia recebeu uma visita de um grupo de mulheres negras que lutavam pela dignidade da mulher e sabedoras de seus problemas relacionados à família, ao seu bairro e a pessoas que conhecia, tentaram ajudá-la.

Deram-lhe folhetos, indicaram leis, avaliaram até o seu trabalho, como se morasse na senzala.

Nízia ficou muito braba e não entendeu o que diziam, na verdade, não encarava como verdadeiros aqueles fatos.

Naquela noite, porém, Nízia não conseguiu dormir.

Ligou a TV, assistiu a novela, depois um programa humorístico que mostrava uma mulher negra que reforçava o estereótipo de mulher sensual, de bunda grande e poderosa.

Mais tarde, abriu o folheto e leu alguma coisa relacionada a mulheres negras que venceram como advogadas, educadoras, escritoras ou funcionárias públicas. Não representavam ela.

Isso ela não aprendeu na TV, por isso perdeu o sono.

sexta-feira, maio 26, 2017

A ARMADILHA

Era magro, alto, estapafúrdio. Cabelos loiros, nariz adunco, olhar disperso. Vestia-se com primor. De nome Eugênio, julgava-se o espírito inspirador. Mais velho do que nós, esnobava qualquer gesto que imitasse seus artifícios. Esperto, namorador, conquistador das meninas do bairro.

Nós, os da turma de baixo, não passávamos de crianças e devíamos como tal sermos tratados. Às vezes, aos sábados, em pé de conquista, passava como quem flutua, olhando ao longe, pesquisando os desafios e a melhor maneira de vencê-los. Era meu vizinho, mas somente se relacionava com os de sua idade. Nós, entre os 10 e 12 anos nos preocupávamos com o destino do Agente 86, das peripécias do Major Nelson da Jeannie, dos pequeninos de Terra dos Gigantes, das vilanias do Dr. Smith dos Perdidos no Espaço ou das brincadeiras de luta livre que faziam parte de nosso cotidiano.

Eu sempre fui observador e no meio de toda a barafunda de aventuras, arriscava-me em analisar as atitudes dos que me cercavam: Seu Alencar da fruteira, Dona Judite da mercearia, Seu Joaquim da padaria, as vizinhas solteironas que rebuscavam-se em salamaleques na cata de fofocas, nas atitudes arrogantes de Eugênio.

Talvez porque gostasse de escrever, inventar histórias onde este universo do cotidiano povoasse a minha mente imaginosa.

Vez que outra, Eugênio se lançava em descobertas mirabolantes: de uma feita, inventou que a lua sumiria brevemente do firmamento, em função de um transtorno espacial, providenciado pelas irradiações das usinas elétricas.

E olhe, que naquela época nem se falava em ecologia ou preservação do meio ambiente. Inventava absurdos como ninguém para deixar-nos maravilhados pelas descobertas incríveis que fazia. Baseava as suas descobertas nas informações de radio-amador do pai, noticias que jamais acompanharíamos pelo radio ou pela tevê.

Noutra oportunidade, informou-nos que havia captado uma descoberta assombrosa, mas que não tínhamos idade para a revelação: éramos pequenos, bobos e imaturos. Deixou-nos dias na expectativa.

Falava de sombras que se agigantavam à noite, tudo muito vago, e que tomariam conta do espaço, escurecendo posteriormente o dia. Havia, segundo ele, um motivo extra

terreno, além de um procedimento que impediria tal ocorrência, mas que somente ele tinha acesso e que jamais nos contaria. Eu tinha muitas dúvidas, afinal, era muito saber, muita pesquisa, para quem havia repetido várias vezes de ano, que só pensava em namorar e tirar vantagens.

Um dia, disse-lhe que eu também tinha uma descoberta fenomenal, de acordo com os meus parcos conhecimentos e que para expô-la completamente, deveria exercer na prática os seus efeitos. Ele riu na minha cara, desautorizou qualquer conhecimento na frente de meus amigos e afastou qualquer hipótese de praticar uma experiência. Então, disse-lhe que mais dia, menos dia, ele seria o protagonista da experiência. Não desconfiaria como, nem quando, mas a solução do problema viria através de suas mãos, ou pés, quem sabe. Deixei no ar a questão: qual a força que faz com que um homem de 70 kg despenque no chão, sem que para isso, exerça qualquer esforço. Naturalmente que ele respondeu que era a força da gravidade, ao que os colegas juntamente concordaram. Eu disse que ele poderia estar certo, mas a segunda parte da experiência, seria feita por ele, num momento em que ele jamais esperasse.

Então planejei tudo silenciosamente. Atravessei a calçada no entardecer de um sábado, um daqueles dias em que Eugênio passava em frente da casa todo engomadinho, visando a caça do fim de semana. Como era região de praia, a areia era solta, não havia pavimento, ideal para executar a minha tarefa.

Sentei-me o chão, já preparado com uma pequena enxada, que tirara das ferramentas de meu pai e um balde de água. Cavei um buraco bem fundo, com uma circunferência pequena, constituindo uns 50cm, no formato redondo. Acomodei as paredes, fazendo uma perfeita cratera, bem alinhada. Derramei generosamente a água. Fabriquei uma tampa com hastes de taquara, previamente cortados. Depois, estiquei o papel de embrulho, perfazendo toda a extensão da circunferência, espalhando a terra por cima, de maneira uniforme, até encobrir totalmente o papel. Assobiei para os amigos que jogavam pelada do outro lado da rua e sentei-me encostado no muro de casa, à espera do acontecimento.

Os guris correram, ouviram o meu relato breve, cheio de suspense. Teríamos em seguida, a solução da experiência: a força que atrai o homem para o solo, tendo ainda com uma questão reserva: poderia haver um dispositivo que precipitasse tal acontecimento?

Os meninos estimulados queriam saber o que eu havia feito, que tipo de coisa estava planejando? Queriam respostas, interessados em que estavam no desfecho.

Alguns, contrariados, queriam voltar ao jogo, embora quisessem saber o resultado.

Eu pedia que esperassem, que tivessem calma, o momento chegaria e não tardaria muito.

Estava certo.

Em seguida, surgiu no alto de seu eterno esnobismo, Eugênio, desta vez de calça branca, camisa de seda vermelha, envolto numa atmosfera de satisfação própria e orgulho.

Caminhava austero, cabeça pro alto, nariz adunco, levantado, meio sorriso de sabedoria e esperteza. Passos certos, seguros, precisos. Nem nos olhou, preocupado em que estava em sua própria figura. Nós estávamos de olhos, bocas e ouvidos grudados em sua silhueta. Meu coração disparava desenfreado. Minha boca estremecia, meus olhos se agigantavam na pupila.

De repente, o extraordinário, o impossível aconteceu.

Eugênio enfiou vigorosamente o pé no buraco, falseando o corpo, desequilibrando e caindo ao chão, sujando de lama as calças, enfiando a cara na areia.

Caímos na gargalhada em uníssono, rindo sem parar, enquanto ele esbravejava, acusando-nos de ter feito a armadilha.

Entre risos, eu o desafiava, argumentando que ele protagonizara a solução do problema. Um homem despenca no chão, quando a força da gravidade o impele, principalmente se existe um dispositivo técnico para isso. Ou apenas, a incerteza do destino, completei.

Ele nos olhou amuado, afastou-se jurando vingança, gritando impropérios, ameaçando queixar-se aos nosso pais.

Nunca mais ouvimos as suas descobertas fantásticas, ou nos deparamos com o seu jeito soberbo de nos tratar.

Dali para frente, deixamos de lado a figura de Eugênio, embora eu ainda o cultivasse em meus escritos, cada vez com nuances mais exacerbadas.

quarta-feira, maio 24, 2017

Nunca ao entardecer

Nunca ao entardecer, pensava ela, estirando-se na grama do parque. Olhava para o céu, desconfiada de que choveria. Nuvens corriam, e a impressão é que se chocariam conforme o vento aumentasse. Mas ficava ali, quase adormecida, olhando para o céu. Se pudesse, ficaria até a noite. Mas não arriscaria a vida, num capricho desses.

Por certo, seria melhor levantar-se, tirar as folhas das árvores que se grudavam no jeans, olhar para os lados, desapercebida, e seguir em frente.

Talvez pegar o metrô, tirar da mochila aquele livro do Sartre e ficar folheando, fingindo que lê. Há tempos faz isso. Pensa que um dia acabará a leitura, mas não acaba nunca. Sartre pensa demais. Nada aproveitável, diria sua avó.

O piercing recém colocado causava certa ardência no umbigo. Dava uma leve coceira, também. Nada que fosse levá-la ao desespero.

Na verdade, se desesperava por poucas coisas. Ainda bem. Afinal a vida é uma eterna turbulência. Pra que ficar se angustiando.

Ouviu o barulho do metrô na estação.

Decidiu ficar ali, mais um pouco. Gostava de manter-se ocupada consigo mesma. Cuidar de seus movimentos. Analisava os braços que ora pendiam corpo afora.

A calça justa, cintura caída. A blusa solta no corpo, branca, de um algodão fino que deixava ver o sutiã escuro. Fixava o céu. Era de um azul quase lilás, esbranquiçado, transformado pelo sol frouxo que perdurava nestes dias sonolentos.

Pudera ficar mais tempo, esquecida do mundo, das coisas, dos seus pensamentos mais íntimos. Sabia que, como manda a filosofia budista, devia esperar. Esperar que os pensamentos debandassem, assim como vinham, desavisados. Vertentes inefáveis do medo. Sairiam, deixando-a vazia. Tudo girava de revés. Era só esperar. E esperar era o que mais fazia atualmente. Esperar o fim do assédio moral, sexual e discriminação no trabalho. Esperar que a respeitassem como mulher. Mais do que isso: resistir.

Afinal de contas, sua geração era a de resistir. Geração, não, a herança maldita de gênero, diria a mãe. Afinal, a mulher parece estar sempre em teste contínuo, tentando provar a todo momento que pode sobreviver, nem que seja por instrumentos.

O painel do voo

Não sabia o que fazer. Lambuzava-se com a salada. Um olhar no celular, outro no painel do voo.
 

Não sabe por quanto tempo ficou ali, parado, meio perdido, preocupado em mudar a situação. Seu terno era surrado e as meias balançavam nos tornozelos. Andara muito.
 

A cidade plana e quente e seca. Brasília era assim. Incomodava. Incomodava a beleza e a feiura da imensidão. 

Doía-lhe as costas. Esticou-se, pediu um café. Voltou a sentar-se no banco alto do bar.
 

Pessoas passavam com suas malas gigantescas. Tinha a impressão que levavam o mundo. Foi só uma impressão, pois seus pensamentos voltaram a voar para o problema. Olhou para o alto, esfregou os pulsos. Sentiu um leve calafrio, como um desandar da pressão, um mal-estar da comida, um temor de altura.
 

O café apareceu na mesa através de uma mão branca, um meio sorriso, um afastar-se rápido na direção oposta. Quis dizer qualquer coisa: um obrigado, talvez. Não pode. A moça sumiu como desapareceu de sua imagem o que restava dela: a mão branca, as veias azuis e o café preto, borbulhante. Tomou o café, na esperança de ter um up no ânimo. Mas deixou-se ficar ali, alisando o cartão de crédito no granito do balcão. Por um momento, olhou-se na pedra brilhante. Seu rosto contorcido, fundo de colher, como num espelho de circo. Um cheiro de álcool passava entre seus dedos. A limpeza constante do bar, o esfregar de lá pra cá, como se o estivessem correndo dali. Tomou o último gole de café. Voltou para o celular. Abriu o tablet.
 

Por um momento, teve um pensamento estranho: se abandonasse o local, se deixasse o aeroporto e voltasse para o hotel. Não tinha nada a perder quanto às finanças. Tinha tudo emocionalmente. A casa, o lar, a vida que construíra, tudo estava tão longe, distante de seu controle. Via naquela moldura embrumada a mulher desenvolta nas atitudes cotidianas, levar a filha na escola, deixar com a babá, voltar para o trabalho. Via-a sorrindo com as colegas, enfeitando a escola para a copa, fazendo o artesanato das crianças, voltando para casa. Via-a agir, assumir, viver. Ele ali, parado e aquela neblina envolvendo tudo, o retrato ficando longe, cada vez mais, e as nuvens tomando conta. Tudo parecia passado, embora tão presentes em sua mente.
 

A garçonete perguntou alguma coisa. Ele nem ouviu ou se ouviu, fingiu que não. Mesmo assim perguntou se o aeroporto tinha wi-fi. Pergunta boba, mas necessária naquele momento. Precisava dizer alguma coisa e era o que lhe vinha à cabeça. Guardou o tablet na mochila, sem usá-lo. Guardou também o celular no bolso do paletó. Sentia um suor escorrer testa afora e parar na boca. Sentiu o gosto salgado e não fez nada para evitar. Alguma coisa mais forte o mantinha preso àquele lugar. Levantou os olhos na direção das luzes neon do bar e ficou imaginando as letras coloridas da escola. Certamente aquelas que sua filha decorava e enfeitava o caderno. O pequeno caderno colorido, com mais desenhos e ilustrações do que texto. Era o caderno de sua filha. Que estaria fazendo ela, aquela hora?
 

Então, voltou-se para o painel novamente. As linhas mexiam-se rápidas no seu astigmatismo. Tinha quase certeza de que era o seu vôo. Correu em direção ao painel para ver de perto. Um aviãozinho circulava pelo céu de Brasília. Ele não estava lá.
 

segunda-feira, maio 22, 2017

Garrafas ao mar

Uma garrafa pode conter muitas coisas, além do líquido, do rótulo, da tampa, pode conter por exemplo, um segredo.

Quem não tem vontade de mandar para outro continente, quem sabe, uma garrafa contendo algo estranho, como um bilhete.

E se a garrafa atirada ao mar, trouxesse boas vindas de um tempo muito antigo, tantos anos atrás, que já nem reconhecêssemos o objetivo, o texto carcomido, com um letreiro cheios de esses e efes, quando se pediria apenas vogais. Palavras esquisitas, desejos tão inocentes que não mais teriam significado nos dias de hoje.

Porém é uma garrafa que vem com um bilhete dentro e nos traz alvissareiras mensagens. É o que pensamos. É o que desejamos.

Mas e se essas mensagens não passem de apenas um desejo individual?

Como por exemplo, que o mundo saiba que em 1920 alguém comprou o seu primeiro automóvel e percorreu 35 km, a maior distância já percorrida por um carro numa estrada de carruagens?

Talvez não significasse nada. Talvez apenas um regalo para quem mandou e uma notícia blasé para quem recebeu.

Nos dias de hoje, somos levados a experienciar apenas o que nos permite ter importância, e que participemos dessa magnitude.

Não temos o romantismo e a ilusão de outrora.

Talvez não mandássemos garrafas ao mar e se o fizéssemos seria talvez como um artefato bélico que explodiria e lançaria milhares de chamas para alegrar nossas mentes deterioradas.

É, não se tem mais a ilusão dos bilhetes, nem se espera qualquer segredo, pois eles não existem mais nas redes sociais.

E se existem, servem apenas para delatar quem participa dessas mesmas redes e achincalhar o seu perfil.

Garrafas ao mar, jamais. Sonhos jamais. Apenas o cobre desairoso de nossos petardos.

A vida é bela

A vida e bela

Um dia desses, eu pensei que participava de um reality show como a Fazenda ou o abominável BBB. À cada semana, uma eliminação do face. Vai ver, que faz parte de um jogo, algum aplicativo do face do qual desconheço. Não era nada disso. Era bem mais raso e simples. Mas não fiquei incomodado.

Os motivos das eliminações nada tinham a ver com pendengas afetivas, aparentemente. Aos poucos, fui descobrindo e dando chance à liberdade.

Afinal, todos temos que ser livres para escolhermos quem queremos ser nossos amigos. Isso é muito bom. Os motivos, enfim, variavam de tendências políticas discordantes e até posicionamentos sociais considerados um pouco avançados para as perspectivas. Libertários pra mim. Nada de vanguarda, nada de grandes avanços das concepções humanísticas ou de cunho restrito aos costumes, apenas o arroz com feijão do viva e deixe viver. Algumas lutas contra preconceitos, alguns desejos de igualdade, pelo menos, a possibilidade de alguma aproximação pelas classes sociais, a conciliação entre os distanciados na realidade urbana, um encontro com os ideiais cristãos, só isso.

Mas mexe um pouco com a acomodação provinciana e conservadora de alguns. Mexe com a intolerância, com a consciência social, com os radicalismos, com a posição de senhor e senzala em que vivemos. Pessoas que amam Miami como uma saída para a civilização e que nem sabem que os americanos consideram os brasileiros, mesmo loiros de olhos azuis, apenas latinos que eles acham que são afrodescentes. Nada que nos denigra, ao contrário, mas para estes que pensam que são a pura raça ariana, deve ser uma frustração enorme, ao menos que nem se deem conta disso.

Por isso, às vezes, dava as minhas opiniões, até para chegar a um denominador comum, observando como as coisas acontecem no nosso mundo de caos de preconceitos. Um caldo de ideias conservadoras e retrógradas. Mas o mundo é assim, não vou mudar, claro, nem sou o dono da verdade.

Entretanto, me informo por várias fontes e tento ser o mais severo possível nos meus próprios conceitos. Então, não fiquei triste, quando pensei participar da Fazenda. Vai ver que ainda tenho a chance de viver o reality show da vida com mais verdade, mesmo falando menos, mesmo discutindo menos e se possível, ouvindo mais. A vida é bela.

terça-feira, maio 16, 2017

Nosso barco quase a esmo

Fonte da ilustração: Pintura de Evanoli Resende Corrêa

Às vezes me pergunto o porquê das pequenas rusgas. Não falo das grandes intolerâncias, dos descalabros das discórdias, das quase tragédias.

Penso nos pequenos desentendimentos, nas mágoas secretas por presumíveis falhas de quem nos quer bem, nos silêncios provocados para evitar a verdade, tendo em vista que a pós-verdade é o que interessa.

Que importa que o amigo, o colega ou o companheiro de trabalho não tenha falado exatamente como nos foi contado, se o que pensamos é o que vale como verdade absoluta. O que existe de tão definitivo no pensar humano, que impõe apenas uma regra para o estabelecimento da verdade, cujas variantes se encerram em um único ponto de vista. O que vale é a intenção de censurar o outro, resultando no afastamento e definindo a distância como principal mecanismo para nossas desavenças.

Por que não ouvir a outra pessoa em vez de ficar apenas com uma única versão? Talvez porque o homem defina para si o caminho mais fácil, que não confronte com as ideias diversas, já que discorda com veemência das posições que fogem ao seu senso interno, e talvez por isso escolha o trajeto sem curvas e sem voltas, de preferência o mais plano e direto. As curvas geralmente nos levam a procurar outras saídas, e isto talvez nos dê mais trabalho e desconfiança, quiçá, medo.

Melhor agradar e confiar no alcoviteiro, embora a sua crítica se expresse a partir de um pensamento único, não observando condutas que conversem com outras perspectivas.

Melhor viver às escusas de momentos do que partilhá-los na íntegra, porque em nossa consciência atribulada, sabemos que a verdade não é tão manifesta , estreita e regateada. Ao contrário, exige mudança de paradigmas e certezas efêmeras.

Quem sabe, possamos encontrar a verdade apenas com um sorriso, um abraço, um carinho de amigo. Elementos estes que servem de âncora para firmar nosso barco, às vezes quase a esmo.

sexta-feira, maio 12, 2017

O detetive e a cerveja alemã

Samuel Smart era o nome dele. Dizia-se detetive particular e tinha tanto sigilo, que temia que o chamassem de detetive. Certa vez, estávamos num bar tomando umas cervejas e o chamamos, mas ele nem nos olhou. Ficamos nos perguntando o que estava acontecendo , eu e outro amigo que comemorávamos qualquer coisa, como o início do verão, ou apenas o simples motivo de nos reunirmos.

Afinal, Samuel Smart era nosso conhecido há muito tempo, não que tivéssemos uma amizade mais próxima com ele, mas a intimidade se dava devido à pequena distância de seu escritório como o nosso trabalho. Às vezes, o encontrávamos ali mesmo, no bar, com uma história capciosa, mas aquele dia, especialmente ele nao queria a nossa presença.

Tempo depois, voltou assoberbado e até ofegante, passando por nós e evitando conversa. Não deu outra: resolvemos tirar a limpo o que estava acontecendo. Levantamos da mesa e fomos ao seu encontro. Samuel disfarçava, olhava enviesado para os lados, procurando não dar na vista. Insistimos, queríamos saber o que estava acontecendo.

Ele então confirmou, irritado:

— Eu estava numa campanha, numa investigação importante, entende? E vocês começaram a me chamar por detetive, estavam colocando tudo a perder! Não podia responder.

— Mas qual era o caso? – Perguntei displicente.

— Como assim? Acha que não tenho sigilo com os meus clientes?

— Ah, você sempre dá uma dica. – Acrescentou o meu amigo, que a estas alturas estava um pouco alto. Insistiu com Samuel. – Você até contou que tava perseguindo uma mulher que traía o marido e que era ...

—Cala a boca, você quer me prejudicar?

Eu então fiz o convite crucial. Perguntei se não queria sentar a nossa mesa. Ele foi definitivo:

— Quando estou a trabalho, não bebo.

— Mas você já não terminou a investigação?

— To no processo, você sabe. A coisa não acontece assim, de uma hora pra outra, não é tão simples assim.

O meu amigo perguntou, irônico:

— E você não tem medo de ser capado por algum marido descoberto?

— Não diga bobagens. O cara fica tão desesperado que quer fugir e esquecer até que eu existo!

Decidi encurtar o caso. Melhor era voltar para a nossa beberagem e curtir o fim do dia. Perguntei pra Samuel:

— Você viu a nova cerveja alemã que tá no mercado? Viu a data, você que sabe tudo, grande detetive.

— Você está me zoando.

— Sério. É de 1945. Já tomou? Olha o selo na garrafa.

Samuel aproximou-se do balcão, examinou bem a garrafa, passou a mão pelo rótulo, pela tampa, tentou decifrar o que dizia em alemão e concluiu:

— Não tem importância a data.

— E por que não? – Perguntei, intrigado.

— Porque deve ter outra fresquinha aí dentro. Essa já tomaram naquela época.

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domingo, maio 07, 2017

Um pouco sobre A BARCA E A BIBLIOTECA: um romance sobre como livros também foram sitiados em tempos de repressão

A história trata dos vários olhares do homem em consonância com o seu cotidiano, alicerçado nos valores que concebe para a sua vida.

É a trajetória de um homem (César), que aos poucos vai conhecendo a verdadeira história de seu pai e o quanto ela ainda o influencia nos dias atuais, forçado de certa forma, a recorrer ao passado e reconhecer nele um caminho novo, de liberdade e orgulho, que não identificava antes. Uma história que vai modificar e completar a sua. Com o conhecimento destas vivências, cresce como ser humano.

Tudo começa nos anos sessenta, cuja curiosidade infantil o impulsiona a conhecer determinados documentos estranhos que parecem comprometer o seu pai, e que tanto o angustiavam pelo forte conteúdo político que continham.

Ao mesmo tempo vivia a sua vida de menino, confrontando a fantasia de aventurar-se na barca á beira do cais, sempre impedido pela mão forte do pai, ao mesmo tempo, que por outros caminhos, imergia no mundo sagrado da biblioteca, batizado que fora nas letras, podendo singrar os mares tal como os navegadores antigos, sem que houvesse qualquer intervenção.

Aqui ocorre a metáfora da barca que não ousara entrar, mas que se materializava no ambiente dos livros.

Em meio a tudo isso, há a luta política do pai, como voluntário no Movimento da Legalidade, quando Brizola instalava a rádio nos porões do Palácio.

Em decorrência destas atitudes, fora perseguido, taxado de comunista e torturado, a partir da derrocada da liberdade pelo advento da ditadura.

Na fase adulta, César é envolvido no mistério dos documentos secretos do pai, onde se misturam personagens que gravitam em torno deste mesmo mistério.

Esta trama ocorre no cenário de uma biblioteca, chegando ao ápice, a partir de um crime. Ele descobre finalmente o grande legado que o pai lhe deixara: a liberdade de escolha calcada na sabedoria da tolerância.

Nesta atmosfera misturam-se sentimentos muito fortes, mas bem distantes dos relacionamentos idealizados de sua infância.

Este livro está à venda no site da Editora Metamorfose http://www.editorametamorfose.com.br/livro.php?pid=960 , na Livraria Vanguarda (Rio Grande e Pelotas) e pelo telefone: (53)999013508 e pelo site da Amazon.com.br

sexta-feira, maio 05, 2017

E a dor da saudade?

Muitos poetas, escritores, músicos e filólogos já reviraram de ponta-cabeça a palavra saudade. Um sentimento melancólico causado pela ausência de pessoas a que se estava efetivamente muito ligado.

O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa mostra o termo saudade oriundo do latim “solitate”, isolamento, solidão, através das formas “soidade” e “suidade”, soedade , suydades , até à saudade na atualidade.

Como falar de saudade, se é um sentimento que se bifurca entre a alma e os sentidos, uma sensação de melancolia e vazio, da espera sem o retorno, da falta sem a presença. Uma palavra que não se traduz em outra língua, pela impossibilidade de demonstrar a amálgama de sentimentos que compõem o seu universo.

Mas os poetas a expressam com tal excelência de espírito, que a traduzem em nossa compreensão de mundo. Se não vejamos os versos do Chico Buarque, na música “Pedaco de mim”.

“Que a saudade dói como um barco/E evita atracar no cais”.

Através da figura do barco que se afasta e se desvia do cais, configura-se a interrupção do retorno. A saudade é a volta que não se conclui.

“É assim como uma fisgada/No membro que já perdi”.

Aqui, o poeta mostra a dor no lugar absurdo da ausência; pungente e aflitiva, que consome e tortura. Isto é a saudade.

A saudade afigura-se num corte cirúrgico da existência, como se comprova nos versos da mesma música.

“Que a saudade é o revés de um parto/A saudade é arrumar o quarto/Do filho que já morreu”.

A crueza do fracasso da esperança que aflorava, se transforma em desesperança. A ausência “do filho que já morreu” não permite o movimento mínimo de estabelecer uma ponte entre a mãe e o filho, o que seria natural. A saudade é essa impossibilidade de atravessar a ponte.

A saudade, porém institui uma regra pessoal, à medida em que se manifesta em nossa solidão, pela falta da pessoa amada, do(a) filho(a), do (a)amigo(a), dos pais. É um processo constante e rotineiro, e por mais que queiramos prosseguir o cotidiano, ela interefere a cada momento, em virtude da ligação ao objeto de nosso afeto.

Entretanto, por outro lado, a saudade permite quantificar a qualidade de nosso afeto e precisar a necessidade do encontro, da convivência, do carinho, dos pequenos segredos e grandes silêncios ou apenas do sorriso que nos conforta e amolece a alma.

sexta-feira, abril 28, 2017

O Professor Pardal das palavras

A palavra desvenda a nossa compreensão do mundo, trasmitida pela oralidade, cuja mensagem legamos às gerações pela sua representação gráfica.

Pesquisando sobre a criação de palavra novas, percebi que algumas eram inventadas por escritores de várias épocas e nacionalidades. Não sabia, por exemplo, que o substantivo “robô” fora criado pelo escritor Karel Capek, da República Checa, cujo significado “trabalho escravo” definia o estilo de produção mecânico em seu livro “Rossum’s Universal Robots”, de 1921. Em 1941, Isaac Asimov a utilizou mais tarde e criou o termo “robótica”.

Além deles, há outros autores como John Milton, que inventou a palavra “pandemônio” e imaginem, a expressão “massa cinzenta”, foi utilizada pela primeira vez por Agatha Christie, através do detetive Hercule Poirot. Há muitas outras como: “freelancers”, de Sir Walter Scott, “factoide”, de Norman Mailer, em 1973, “capacho” criada por Charles Dickens, “ciberespaço” por William Gibson, em 1982 e “beatnik”, por Herb Caen. Mas além dessas palavras que foram incorporadas ao dicionário, temos as de João Guimaraes Rosa, como “nonada”, na abertura de Grande Sertão Veredas, que significa “coisa sem importância”, uma fusão do “non” (português arcaico) com o pronome indefinido “nada”. Ainda encontramos Luis de Camões, Carlos Drumond de Andrade, Rui Barbosa, Dias Gomes e Millor Fernandes.

Claro que aqui, há uma atividade literária, que permite ao autor expressar com mais propriedade o seu pensamento, às vezes tão profundo e inconsciente, que carece de um novo vocabulário.

Além das literárias, muitas palavras são incorporadas em nosso idioma, como periguete, pintar, ralar, blogar, baixar, pen drive. Bem, cada uma com a sua função. Afinal, a língua é um sistema dinâmico e é regida pela palavra oral, pela disseminação da mensagem pelo povo, para depois chegar a sua grafia.

No caso, dos escritores, entretanto, a oralidade está em seus personagens, o que prova que o escritor é também um inventor, uma espécie de Prof. Pardal das palavras.

sexta-feira, abril 21, 2017

Vem, morena, vem

Vida útil, vida inglória, ingrata, insólita, insana, imbróglio de leva e traz, impaciência, intolerância, dor, inútil. Tudo isso e muito mais pra te dizer, morena, que a dor que sentes agora, já senti com muito mais força e afinco, quando me deparaste na porta, de quatro, chorando feito um bezerro desmamado.

Poderias ter evitado aquilo, ser mais romântica, confiada e confiante, amada e amante, amiga e compreensiva. Só porque sou homem, que jogo futebol nos fins de semana e rebento meus meniscos, não era motivo pra me abandonares em plena quarta-feira. Em plena quarta-feira, morena, no dia que combinamos ir ao cinema, lembras do filme? Nem lembras mais, por certo. A raiva, a intolerância, o mau-humor já detonou teu cérebro, já fundiu tua mente, confundiu teus sentimentos.

Era um filme daqueles de amores transbordando, derramados, de paixões ardentes, de beijos pungentes em faces rosadas, de luzes de matizes doirados em cenários pastel. Havia até musicais, morena, e é raro um homem como eu, gostar de musical. Pensa bem, sou sensível até a flor da pele. Devia pesar estes meus bons sentimentos.

Lembras da tarde em que salvei a velhinha que estava estirada em plena avenida, cheirando a grama, nariz enfiado entre paralelepípedos irregulares e crateras emolduradas de pasto? Sei que não deu certo, morena, mas lembras, bem que tentei. Passei de carro pela avenida e vi a senhora despencar no chão, envergar-se como folha morta de outono, migrar no interior da terra, transformar-se em larva medíocre, alijada da dignidade, esperando a morte. Claro que foi noventa e nove por cento de imaginação, mas sabes, morena, sou assim, sensível e criativo. Voltei correndo, feito o Massa enfrentando a fórmula 1 e deu no que deu. A velha tinha se levantado com uma garrafa na mão e quase me jogara o vasilhame na nuca, não querendo ser internada porque não era louca. Eu declarei isso a ela, pelo contrário, tentei ajudá-la, dando a mão, revelando afeto. Mas que nada.

Deixa, pra lá, morena. Não vais entender nunca o meu ponto de vista. Se sou socialista, tu és extrema direita, se sou holístico, és radical opus dei, se sou zen, és estressante e estressada. Nossos pinos não batem. Mas nossos corações sim, ah, estes batem em uníssono.

Quando nossos corpos ficam assim, juntinhos, ressoam na mesma frequência, ah, bouquet de vinho dissipando-se nos lábios, escorregando suave pela boca, amaciando a língua e o espírito. Não tenho dúvida, morena. Nossas bocas se encontram devagarinho, na mesma intensidade, sinto teus lábios molhados, beijando meu pescoço, assim, obscena, faceira, atrevida, mordendo-me a orelha, auscultando meus ouvidos, enquadrando meu coração no compasso que esperas.

Também te sinto palpitar acelerada e teu peito arfar e teus seios juntarem-se ao meu corpo, afugentando os ruídos da rua, a poluição visual, as deformidades do dia. Ficamos assim, quietinhos, num pedaço de paraíso, temerosos que o tempo passe e que a mágica acabe. Somos assim, morena, unha e coração. Será que assim, que se diz? No nosso caso, sim. Sou mais coração e tu, mais unha. Aí, me deixas na sala como bode expiatório, exibindo chifres, dando razões ao mundo de servir de exemplo a teus caprichos. Um bode expiatório aos teus pecados.

Mas na quarta-feira morena, quando após o cinema, pegaríamos aquela pizzaria para passar as horas que restavam na noite rotineira de um casal suburbano, classe média, senso comum e meio medíocre. Na verdade, pizzaria, não. Sabes que detesto pizza. Mas todo mundo gosta. Como diz o Chico, naquela música, você não gosta de mim, mas sua filha gosta. Estou disperso, morena, delirando. Misturando as coisas. Me deixaste enfeitando a sala e destruindo a casa. Por que hoje, porque na quarta-feira? Podíamos pegar aquele barzinho de música ao vivo e conversar, colocar os pontos nos is, ajeitar nossas carências, ajustar nossas dificuldades.

No barzinho? Vê morena, tu me confundes. Barzinho é coisa pra louco. Ninguém conversa, só ingere cerveja porque é de praxe beber até em posto de gasolina, gritar para poder ser ouvido, entrar em fila de toalete e ouvir o cantor gritando um Fagner desalmado que mastiga as notas sem piedade. Eu por minha parte, finjo ouvir as conversas e dissimulo qualquer coisa, discutindo qualquer assunto e não dizendo nada. Tenho saudades daqueles bares em que o cara tocava um violão, baixinho, uma MPB tranquila e a gente ouvindo solitário, mesmo a dois, o que a poesia balbuciava.

Sei morena, que às vezes, não falamos a mesma língua, talvez porque nossos dialetos sejam diametralmente opostos. Eu falo galego e tu esperanto. Me querias o super-homem do Gil (quem dera, pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera, ser o verão o apogeu da primavera e só por ela ser. Quem sabe, o super-homem venha nos restituir a glória, mudando como deus o curso da história , por causa da mulher) e eu seja apenas o malandro do Chico.

Eu também sonhava contigo, na figura suave que paira no ar, declarando amor, proclamando "com que com açúcar e com afeto, fizeste meu doce predileto pra eu parar em casa", mas de antemão sabias que "os amigos me esperavam, aquecias meu prato, beijavas meu retrato e me abrias os braços". Mas não somos nenhum desses, morena. Nem o Chico se enquadra, em nossos esquadros e descalabros. Nem que nossos ideais se misturem nestas imagens, nossos corações não ousam lutar para abrir as comportas que o presente fechou. Me deixaste assim, abandonado e bobo. Me roubaste um beijo e brincaste de menina em tempos de Capitu. Que pena, morena.

Somos assim, tu e eu, bobos, perdidos no emaranhado de sentimentos que não se coadunam com nossa realidade, assim, tão cheia de nós, que não fizemos e não ousamos desvendar.

Se eu pedisse, tu voltavas morena? Se eu pedisse, desvendavas junto comigo o nó cego da insegurança, do medo, do pavor de ser um quando sonhamos ser dois? Se eu pedisse, abandonavas o jeito arrogante, bamboleando quadris nas calçadas estreitas e voltavas, ensaiavas uns passos e refletias que não sou o Johnny Depp, mas também não sou o açougueiro gordo da esquina, que espanca a carne sonhando em fazer amor com a mulher? Ele faz, a gente vive. Não chegamos ser o casal da Valsinha do Chico, nem dançamos nem nos amamos na praça. Mas precisamos um do outro para não enlouquecer.

Pelo menos, não hoje, morena, não na quarta, por favor, não deixa o tempo passar, o mundo gira, a quinta chega tão depressa! Na quinta não tem cinema, nem barzinho, nem passeio à tarde. Na quinta pode ser tarde demais.

Vem, morena, vem.

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