EXCEPCIONALMENTE, HOJE NA QUARTA-FEIRA 02/03/2016, APRESENTAMOS O CAPÍTULO QUE DEVERIA SER PUBLICADO ONTEM. A SEGUIR O 16º DE NOSSSO FOLHETIM.
Capítulo 16

Úrsula subia as escadas de mármore ao lado de Susana. Tudo parecia perfeitamente limpo, desinfetado, quase esterilizado. Uma heresia introduzir-se naquele mundo que refletia uma auréola de sanidade e limpeza. Com estes comentários, elas tentavam dissipar as preocupações. Úrsula, pelo encontro inusitado com o irmão, avesso às visitas, aos relacionamentos com a família, à permanência no Brasil. Para ele, o mundo se resumia na Europa, principalmente Paris, descontando, é claro, os países árabes em que fizera fortuna. E para complicar ainda mais o encontro, juntava-se a isso, a descoberta que tinha um amante homem e que resolvera fazer o sepultamento do mesmo no Brasil. E ainda, daquela maneira sofisticada e excêntrica. Realmente, Carlos tinha dinheiro para ser desprezado em artefatos e decorações tão suntuosas. Talvez por isso, ela investira sua melhor perfomance no vestuário: uma pantolana em tecido nobre, blusa escura, sob um casaco que lhe resguardava os defeitos do corpo já não tão alinhado quando jovem. A bolsa e sapatos de salto médio acompanhavam a composição. Susana ocupava-se em desligar o celular, guardando-o na bolsa de couro, evitando atropelos. Não havia como disfarçar a ansiedade motivada pela provável presença de Roberta Célia. Úrsula a aconselhara a ficar tranqüila, depois de tudo que contara sobre a nora, pois, pelo que conhecia da mesma, não havia o que temer, desde que não aparentasse qualquer receio.
Da escadaria, anteviram uma sala imensa, cheia de poltronas, ao lado de estatuetas brancas, e vasos com lírios. Imediatamente, o irmão afastou-se de um pequeno grupo e aproximou-se de Úrsula. Era um homem alto, magro, nariz adunco e cabelo grisalho puxado para trás. Usava um terno padrão único, grafite, com camisa social branca e gravata discreta. Seus lábios eram grossos, levemente brilhantes e seu corpo girava-se em movimentos rápidos, desenhando uma leve corcunda, enquanto caminhava. Úrsula o abraçou e enxugou algumas lágrimas. Ele parecia tranqüilo. Confortado como se tivesse realizado todos os seus objetivos na vida. Em seguida, Úrsula apresentou Susana, como uma amiga e foram elegantemente conduzidas até as poltronas por um atendente, enquanto um garçom trazia canapés, chá e sucos. Úrsula chamou o irmão e confidenciou-lhe ao ouvido. _Carlos, onde está o defunto?
Ele enxugou uma lágrima forçada, agora ansioso. Aquela palavra dava-lhe arrepios. _Não fale assim. Brian era tão cheio de vida, tão ágil. Esta palavra é desprezível – censura. Úrsula prossegue – Tudo bem, mas onde está...
_Na outra sala, no andar superior.
_Ainda tem outro andar?
_Sim, e depois o terraço. Você sabe, muitas pessoas passarão a noite aqui, precisam descansar. Não podem ficar numa sala ao lado de... do corpo.
_Entendo. Mas por que você nunca me contou?
_E você me entenderia?
_E Carmem, o entendeu?
_Ela tem me dado todo o apoio que necessito. Mas não vamos discutir. Eu pedi que organizassem uma sala somente para nos encontrarmos. É um momento de união, minha irmã, de reencontro.
_Você tem certeza?
_Absoluta. Mas não se preocupe, você não estará sozinha às feras. Sua amiga ficará com você.
_E quando será este encontro?
_Eu marquei às nove. Daqui há dez minutos.
_E a Carmem, está aqui?
_Já avisou que está para chegar. Esteve comigo durante todo o tempo, mas voltou para o hotel para descansar um pouco, fazer uma sauna, maquiar-se, enfim.
_Ah.
_Mas você parece que não se cuida muito, Úrsula. Está acabada!
_Talvez tenha os meus motivos.
_Espere, minha irmã. A chefe de eventos está preparando o momento das fotos. Preciso falar com ela.
_Fotos?
_Sim, com Brian.
Úrsula examinou os convidados. Não passavam de trinta pessoas, provavelmente alguns familiares e amigos do morto. Pareciam bem dispostos, falantes, percorrendo o salão, fazendo visitas aqui, ali. Susana a convidou para subirem até o terraço. Quem sabe, tomariam um ar e esperariam mais tranqüilas para o encontro marcado. Úrsula, a principio, desconsiderou a idéia, mas logo que percebeu que havia um elevador, resolveu acompanhá-la.
No terraço, verdes ornamentavam praticamente todo o espaço, transformando-o quase num jardim. Aproximaram-se da mureta e descansaram por um momento, sem muita convicção sobre o que estavam fazendo ali. Susana foi a primeira a falar.
_Dona Úrsula, não acha essa coisa toda estranha?
_Estranha? Ridícula. Se não fosse por meu irmão, nem viria.
_Não devíamos ver o defunto?
_Talvez, mas o Carlos nem insistiu.
_Seu irmão me parece um homem culto.
_Não, não se iluda minha querida. Carlos é um homem viajado, é diferente. Ele conhece centenas de culturas, viajou por este mundo todo, conviveu com os maiores homens de negócios do mundo. Mas nunca pegou um livro para ler, nunca se preocupou com as artes, a cultura ou qualquer coisa cientifica.
_Mas ele vive em Paris, fala nos museus, nas artes.
_Ele adora a festa de Paris, a boemia, as noitadas. O que ele diz, repete como papagaio.
_E o amante, o tal de Brian?
_Deste não sei nada, mas vou descobrir. Também, será que vale à pena, agora?
Úrsula cala-se por um momento, como se um sentimento novo a sobressaltasse. Susana percebe que está com o pensamento longe. Pergunta.
_Está preocupada com a reunião?
_Não, que bobagem. Sabe em que estava pensando?
_Nem imagino.
_No velho defronte do meu apartamento.
_A senhora não o esquece, hem? Nem aqui.
_É que nunca mais o vi, nunca mais apareceu na janela. Às vezes penso que tenha morrido.
_Não, se isto acontecesse, a senhora saberia. Dulcina seria a primeira a contar-lhe.
_Você tem razão. Mas o que poderá ter acontecido com ele? Nem os enfermeiros tenho visto.
_Talvez a senhora tenha dormido na hora em que ele aparece.
_Susana, você sabe que não durmo.
_Mas estão?
_Então que estou preocupada. Talvez o tenham levado para um asilo.
_Mas a senhora o detestava. Dizia até que ele era um assassino.
_É... é verdade, mas não tenho certeza de nada. O que ele diz pode não passar de asneiras. Está velho, caduco. Só isso.
_Então, eu tenho uma sugestão. Por que não vamos até o apartamento dele?
_Até o apartamento, está louca?
_Não, afinal vocês são vizinhos.
_Mas ele evita olhar-me. Sempre desvia os olhos, quando percebe que estou na minha janela.
_Talvez porque seja tímido.
_Um velho não tem por que ser tímido.
_Às vezes, a senhora é preconceituosa com os velhos. Já percebeu isso?
¬_Não sei, você tem cada uma! Imagine, eu preconceituosa. Na verdade, conheço o mundo. Os ponteiros do meu relógio já deram muitas voltas. Eu sei analisar cada segundo e quando o tempo passa, assim tão inexorável, é possível a gente julgar a velhice tal como é, nas suas fragilidades, nas suas vivências.
_Mas então ele não pode ser tímido.
_Não, já passou o tempo. Pode ser descuidado, indiferente. Não, tímido.
_Está bem, se tem tanta certeza.
_Sabe de uma coisa, Susana, eu não tenho certeza de nada nesta minha vida. Apenas de uma coisa, os filhos não deveriam ir antes dos pais. É muito triste.
Quando o irmão surge entre samambaias, elas quase haviam se esquecido de onde estavam. Ele pede que entrem. Todos estão esperando para o encontro. Susana e Úrsula se olham, cúmplices. Depois, obedecem e seguem Carlos.
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