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UM GOLPE NO OUVIDO

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Juntou as chapinhas de bebida e sentou-se à sombra, olhando para o nada, mas com a certeza de que aquela árvore o acolheria para sempre. Puxou um real do bolso e pensou no que poderia fazer dali em diante. Quem sabe, voltar à oficina, juntar os seus pertences, pegar a mochila farrapada e tomar um rumo na vida. Entretanto, sentia-se impotente, até assustado com a situação. Voltar a juntar latas de alumínio, chapinhas de refrigerante, limpar as lixeiras e esconder-se embaixo de qualquer marquise era uma onda que não queria reviver. Lembrou-se do Guto, com aqueles olhos esbugalhados e a boca aberta, o sangue escorrendo pelo chão visguento de diesel. Sentiu um arrepio. Tinha mesmo que dar o fora, antes que alguém chegasse e o acusasse de ter matado o negrão. Por que ele tinha voltado àquele lugar? Tinha passado tanto tempo e tudo ficava na mesma. A mesma galera, as bebidas de sempre, a maconha, a farra, mas nada tão pesado e difícil. Havia um líder e não era ele. Ele era um pobre coit...

A esquina iluminada

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Fabrício desceu os vinte e cinco andares do prédio, tateando pela luz fraca do celular. Ainda bem que não tomara o elevador, pensara, ainda aturdido pela queda de luz. Dirigiu-se ao carro e em seguida afastou-se, passando pela portaria e cumprimentou com um meio sorriso os dois funcionários, que pareciam olhá-lo surpresos. Já chegando à rua, ouviu um “oh” festivo pelo retorno da iluminação. A noite se antecipava e ele continuava no bairro tão próximo ao de sua infância, olhando pelo retrovisor do carro, como se a qualquer momento um personagem desavisado voltasse para o cenário antigo. Coração atribulado. Desceu do veículo e caminhou rápido, atravessando ruas, dobrando esquinas, sentindo o frio produzido pelo sereno que molhava do paletó aos cabelos. Em seguida, deparou-se com um bar muito parecido com o de seu pai. O frontispício com aquelas ramadas sobre a porta de duas abas, expressando o tempo passado. Havia música ruidosa anunciada por um apresentador, espécie de show ...

Meu padrinho, o turfe e a laguna

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Meu padrinho estava sempre disposto a levar-me ao hipódromo, a sua paixão. Eu, guri de 12 ou 13 anos, não me interessava muito pelo esporte, entretanto, aquele passeio de certo modo, representava uma liberdade de ação, da qual não tinha acesso à época, em virtude da severidade da disciplina paterna. Meus pais muito severos no encontro com os colegas ou na eventualidade de passeios com desconhecidos, não permitiam passeio sozinho pela cidade, principalmente em lugares diferentes dos que frequentava. A possibilidade de me relacionar com meninos desconhecidos, de jogar bola nos campinhos de várzea, de me embrenhar pelas dunas próximas à laguna, geralmente criavam muitos conflitos. Pois bem, meu padrinho significava essa liberdade, essa possibilidade de passear com ele, mas com o direito de fazer o que quisesse, ou seja, não participar das carreiras com as quais tanto se encantava. Eu aproveitava o momento para encontrar os amigos. Naquela tarde domingueira, fui como de hábito ao j...

O VIGÉSIMO ANDAR

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Às vezes, tenho a impressão de que as paredes do elevador se aproximam e me acolhem com delicada impaciência. Passam por meu corpo faminto e suado e me dizem coisas desconexas, que somente elas entendem. Seguro-as com força: as mãos espalmadas, o peito encostado em suas carnes metálicas. Sinto um leve arrepio. Não consigo afastar-me, como se estivesse irremediavelmente preso, quase fundido em suas fibras e entranhas. O elevador para no décimo andar. Um homem entra e finge não me ver. Ao mesmo tempo, as paredes se afastam, tal como eu, que me encosto no ângulo da esquerda. Ali, a minha visão é privilegiada. Olho em torno, retribuindo a distração. Ele abre uma maleta, retira um notebook e examina qualquer coisa, sem muita atenção. Observo-o firmar os olhos na direção da porta. Parece ansioso. Reparo que tem olhos claros e frios. Talvez seja um executivo, um professor de línguas, um advogado. Não é, porém, um cidadão de bem. Percebo a aflição que paira inquieta em ...

Saco de plumas

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Nos dias de hoje, quando a intolerância, o preconceito e ódio grassam nas relações humanas, revelados principalmente nas redes sociais, lembramos de histórias que destroem pessoas, não edificam quem as pratica, muito menos servem de exemplos. Histórias que expressam calúnias, opiniões preconceituosas sob qualquer espécie, tanto étnica, política, de gênero ou classe social. Nestes momentos, as pessoas desandam a falar qualquer coisa que as aparte, aos olhos dos outros, de quem as incomoda. Para estas e até para nós mesmos, quando agimos sem pensar e atribuímos aos outros, como absurdo e imoral, o que discordamos segundo nossos princípios, cabe o fato a seguir que tão bem ilustra o nefasto desfecho de uma calúnia. Para tanto, pegue um saco de plumas e jogue-as ao vento. Nem precisa subir a montanha. Jogue-as ali mesmo, no terreno baldio em frente a sua casa, ou naquela esquina próxima à praia, onde não passa ninguém, só pequenas dunas se formando pelo vento. Quem sabe, use os campos...

UMA PLANTAÇÃO DE BONECAS

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Centenas de bonecas se espalhavam no jardim. Quando passeávamos por ali, tínhamos a impressão de que um leilão de brinquedos era instalado ou talvez, tudo procedesse de um longo pesadelo do qual não podíamos acordar. Passamos por perto, chutando o que nos vinha pela frente, tanto as bonecas, quanto pedras e pequenos objetos de madeira que não significavam nada. Pelo menos, nada relacionado a brinquedos. Continuamos nosso percurso, um tanto desolados. Parecia também que uma inundação havia deixado aqueles rastros espalhados, a água viera, se acumulara até as janelas, mergulhara os jardins e por fim, retomava ao seu curso, deixando as bonecas arremessadas e sujas ao relento. Sentia pena. Não podia ser verdade o que diziam. Uma plantação de bonecas, como se fossem espantalhos no meio do milharal? Cada coisa estranha se passava em nossas cabeças, por isso, parei um pouco e tentei refletir sem qualquer emoção. Talvez aqueles objetos fossem apenas fruto de um total desconsolo pessoal, ...

Uma saída para o nunca

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Todos corríamos pela sala, excitados. Ríamos sem sabermos bem o motivo, talvez impulsionado pela adrenalina de sermos felizes. Quando a professora chegou, o burburinho custou a desfazer-se, até que nossas almas se acomodassem nos corpos agitados. Ela parecia mais severa do que de costume, mas de uma seriedade estranha, como se alguma coisa terrível houvesse acontecido. Os cabelos escondidos atrás de um lenço colorido, preso ao pescoço. Os óculos pesados e embaçados, um certo vermelho nos olhos parecendo conjuntivite. Mas não demos muita importância. Estávamos demasiadamente felizes para nos preocuparmos com a fisionomia de Dona Glória. Ela permaneceu parada num canto da sala, talvez esperando o momento adquado para dar a notícia. Mas que notícia seria tão importante a ponto de nos fazer cúmplices de sua angústia. Alguém gritou do fundo da aula, quase em desafio, perguntando se não teríamos aula, ao que ela, talvez aproveitando a brecha, rapidamente, respondeu que ele esta...

O despertar do brinde

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Saber como se adequar às coisas, como se apropriar da vida, como sobreviver. Poderiam ser frases de um reality show de desafios, mas nos dias em que vivemos, parece que os desafios são mais reais e incongruentes do que qualquer programa desse gênero. As pessoas já não se encaram, nem mesmo quando estão do outro lado do balcão. Basta-lhes a tela do computador ou o visor do celular. Buscam, pesquisam, navegam, incluem números e documentos e quase não se olham. Um trabalho qualquer numa loja é suficiente para se observar estas facetas dos funcionários, bem como dos clientes. O sistema é o deus onipotente de qualquer trabalho. O sistema abrange desde a contabilidade das empresas e bancos, até o humor dos empresários ou do passante distraído na avenida. Mesmo no transporte, não existe nada mais importante, nem mesmo os sinais de trânsito do que o gps e o celular. Isso sem falar nas redes sociais. Ali tudo é possível, a mídia virtual manisfesta a todo o momento as necessidades mais ...

Aplaudam o palhaço!

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Dona Marina surgiu esbaforida, prendendo nervosa, o lenço colorido ao pescoço, fugindo do frio e do vento. Entrou na sala e se recompôs rapidamente. Cumprimentou a turma, esclareceu alguns pontos que ficaram vagos da aula anterior e colocou-nos, de sobressalto, o assunto da prova, que seria na semana seguinte. Eu sentava entre dois colegas mais chegados. À minha volta, principalmente nas cadeiras da frente, as meninas que voltavam os olhos e os narizes vermelhos, cada vez que um de nós fazia qualquer gracinha. Camilo estava ao meu lado e comentava os gibis que havia trocado no sebo. Luís encantava-se com o torneio feito por Seu Matias, uma espécie de patrono dos meninos, jogadores de várzea que se esforçavam para fazerem bonito nos campinhos de futebol. Eu estava quieto, recordando as histórias que criava em casa, as quais escrevia e interpretava sozinho, executando a sonoplastia com uma batida na mesa com um biscuit de minha mãe, embalando as vozes em diferentes timbres, para id...

O medo intrínseco

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Não gosto de comentar notícias policiais, muito menos ficar dissecando as informações, investindo em cada detalhe e transformar o fato numa dramaturgia barata. Mas às vezes, a realidade dura nos obriga a pelo menos refletir e sofrer as consequências da falta de humanidade. O bebê baleado no útero da mãe, em Caxias, na Baixada Fluminense vai contra qualquer percepção de realidade, como se o surrealismo ou a ficção concentrasse seus valores em nossa realidade. Como não se comover, como não sentir na pele o arrepio da dor e do medo ao assistir um fato tão doloroso. Como acreditar na humanidade e imaginar que ainda há futuro? Quando vemos nossos filhos longe, ficamos com o coração na mão e quando estão perto permanecem em total abandono, porque as balas perdidas não são excessões, ao contrário, são a regra em muitos recantos do Brasil, como na escola em Porto Alegre, onde os alunos precisaram fugir para não ser atingidos. Parece que o homem fica cada vez menos homem, menos ser humano e t...

Havia flores em Lisboa

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Havia flores nas janelas e outras que se acomodavam em espaços menores, juntando seus galhos e pétalas e espécies diferentes e inúmeros brotos que surgiam à luz primeira da manhã. Eram rosas, jasmins, gerânios e se estendiam pelas janelas, pelos pequenos canteiros, pelas intersecções das ruas, pelas rótulas, pelos caminhos, pelos passeios. Eram lindas as flores e alvissareiro o dia que mergulhava mais e mais nas horas da manhã que aos poucos se adiantava. Foi ali, que parei um momento, sentado num banco verde, observando as construções antigas ao longe, as igrejas seculares, as ruas estreitas e o rio que se desenhava ao fundo. Não poderia ser diferente. Acomodar-me naquele ambiente valorizado pela natureza cultivada, era reviver um pouco das memórias ocultas que se restabeleciam com a beleza. Memórias de um passado que esquecemos, mas que ressurge quando invocados pelo sentimento. Talvez devesse ficar ali todo o dia, se outros compromissos não me absorvessem, não me chamassem para a ...

ATUALIZAÇAO DA ENTREVISTA DADA AO BLOG DO SIB

 Atualização da entrevista dada ao blog do Sistema de bibliotecas FURG para a Bibliotecária Simone T. Przybylski. Foi atualizada apenas para efeito de divulgação dos últimos livros publicados. A entrevista original está no link: http://bibliotecafurg.blogspot.com.br/search?q=entrevista+bibliotecário 
 1)    Com que idade começou a escrever ? Teve alguma influência de alguém ? Acho que comecei a escrever quando aprendi a ler. Ficava muito tempo tentando descobrir o significado das palavras, principalmente nos jornais e revistas que meu pai lia. Ele me incentivava muito nesta descoberta. Também ganhava muitos livros, lembro que na 4ª série primária, ganhei “Aladim e a a lâmpada maravilhosa” e devorei o livro em pouco tempo. Em seguida, veio “Tiradentes e o aleijadinho : as duas sombras de Ouro Preto”, de Sérgio d. T. Macedo, livro que possuo até hoje. Também lia as histórias do Sítio do Picapau Amarelo (esta uma coleção de minha irmã). O que eu adorava mesmo eram as histórias de mistério...

Quem é este homem?

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Que é este João? Quem é este eremita que viveu recluso no deserto para pregar às margens do Rio Jordão? Que destino extraordinário por bem lhe coube de anunciar a chegada do Messias? Quem era este homem que batizava, mergulhando as cabeças dos seguidores, tornando-os cristãos, e trazendo para o “reino” os que não acreditavam? Quem era esse homem sem meias palavras, sem maniqueísmos ou dissimulações, que exigia a conversão verdadeira e o arrependimento real dos pecados? Que exigia uma vida digna e honrada dos que o seguiam? Que denunciava os vícios e as injustiças? Quem era este menino que ficou em segundo plano, mesmo tendo vindo antes, com uma mensagem austera e fiel aos seu princípios? Quem era este homem, que não se sentia digno de atar as correias das sandálias de Jesus? Que afirmou que Jesus viria com maior poder do que ele, e que não batizaria na água, mas com o Espírito e em fogo? Quem era este homem humilde que batizou o Mestre, induzido a ser o precursor, aquele que ...

Recuerdos

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Deixara-o assim, esquecido, empoeirado. Pudera, nunca mais o tinha visto tão próximo. Não mais havia sentido o seu aroma, seu aspecto meio decadente, suas pequenas partículas se evaporando no ar, brilhando no rastro de luz da janela; a estrutura cada vez mais frágil, como se braços e pernas se desmembrassem aos poucos, perdendo a coesão. Transformava-se, é claro, como todos os seres, ao longo do tempo. Percebia suas fraquezas, seu cheiro de coisa passada, água estagnada. Entretanto, tinha comigo, que ele não perdera as propriedades completamente. Não era aquele deus cheio de conteúdo do passado, mas ainda revelava integridade, força e sabor. Restava o dna de sua natureza. Produzia uma ternura intrínseca que arrepia os cabelos, pousar-lhe a mão, acariciar seu corpo em frangalhos, lendo nele os traços oníricos de outrora. Agora, sem a vitalidade de sentimentos que no passado, divisava. Não, acariciá-lo agora era palmilhar com cuidado sua existência e ver através dela os ecos há ta...

DIA DE LIMPEZA

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Dei alguns passos pela calçada suja, enlameada pela enxurrada, sem imaginar que fugiria dali tão rapidamente. Modo de dizer, meus pés doíam e meus passos tinham a medida certa de fugir das poças. Sacos plásticos entulhavam-se nas bocas de lobo. Carros passavam próximos à calçada, aumentando ainda o caos que se alimentava de nós, mendigos, pedintes, marginais, prostitutas, acostumados a fazer da deformação geral, o nosso modo de vida. Mas chegar àquele ponto de ser chamuscado, quase queimado, quando uma mão sinistra com isqueiro se aproximou do banco em que estava e tacou fogo como pôde, foi o portal do inferno. A sorte foi a chuva. A sorte foi estar acordado. A sorte foi ter forças ainda para levantar, examinar a cara do bandido e esborrifar nele um cuspe que me vinha da alma. Ele fugiu, dando risada da minha cara. Eu fiquei, ali sentado, ali sozinho, ali maldizendo o que não tinha pra maldizer. O que não tinha que esperar. Quem sabe morrer ali, na rua, queimado, transformado e...

ISSO NÃO DEU NA TV

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No meio do quartinho, Nízia passava roupas numa mesa adaptada. O ferro quente tinia e o calor se propagava também no seu rosto, no colo suado, no qual punha a mão para assegurar-se de que estava viva. O coração batia forte e descompensado, mas que fazer? Não podia parar o trabalho. Dezenas de camisas do patrão, roupas dos filhos e da patroa, principalmente os vestidos de tecidos finos e leves, aos quais devia prestar muita atenção para não estragá-los. As mãos dificultavam o estender do tecido, trêmulas e quase incapazes de cumprir a tarefa. Será que seu corpo todo desandaria assim, de uma hora para outra, quando precisava tanto de sua energia. Sempre fora uma mulher forte. Era elogiada pela patroa, pelos poucos amigos, por alguns parentes. Embora solitária, soubera dar um rumo a sua vida. Pretendia estudar um pouco, pelo menos sair daquele b-a-b seboso que não levava a caminho nenhum. Queria ir mais longe, mas quanto mais pensava, menos tempo tinha. Era praticamente da fa...

A ARMADILHA

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Era magro, alto, estapafúrdio. Cabelos loiros, nariz adunco, olhar disperso. Vestia-se com primor. De nome Eugênio, julgava-se o espírito inspirador. Mais velho do que nós, esnobava qualquer gesto que imitasse seus artifícios. Esperto, namorador, conquistador das meninas do bairro. Nós, os da turma de baixo, não passávamos de crianças e devíamos como tal sermos tratados. Às vezes, aos sábados, em pé de conquista, passava como quem flutua, olhando ao longe, pesquisando os desafios e a melhor maneira de vencê-los. Era meu vizinho, mas somente se relacionava com os de sua idade. Nós, entre os 10 e 12 anos nos preocupávamos com o destino do Agente 86, das peripécias do Major Nelson da Jeannie, dos pequeninos de Terra dos Gigantes, das vilanias do Dr. Smith dos Perdidos no Espaço ou das brincadeiras de luta livre que faziam parte de nosso cotidiano. Eu sempre fui observador e no meio de toda a barafunda de aventuras, arriscava-me em analisar as atitudes dos que me cercavam: Seu Alencar da...

Nunca ao entardecer

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Nunca ao entardecer, pensava ela, estirando-se na grama do parque. Olhava para o céu, desconfiada de que choveria. Nuvens corriam, e a impressão é que se chocariam conforme o vento aumentasse. Mas ficava ali, quase adormecida, olhando para o céu. Se pudesse, ficaria até a noite. Mas não arriscaria a vida, num capricho desses. Por certo, seria melhor levantar-se, tirar as folhas das árvores que se grudavam no jeans, olhar para os lados, desapercebida, e seguir em frente. Talvez pegar o metrô, tirar da mochila aquele livro do Sartre e ficar folheando, fingindo que lê. Há tempos faz isso. Pensa que um dia acabará a leitura, mas não acaba nunca. Sartre pensa demais. Nada aproveitável, diria sua avó. O piercing recém colocado causava certa ardência no umbigo. Dava uma leve coceira, também. Nada que fosse levá-la ao desespero. Na verdade, se desesperava por poucas coisas. Ainda bem. Afinal a vida é uma eterna turbulência. Pra que ficar se angustiando. Ouviu o barulho do metrô na est...

O painel do voo

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Não sabia o que fazer. Lambuzava-se com a salada. Um olhar no celular, outro no painel do voo.   Não sabe por quanto tempo ficou ali, parado, meio perdido, preocupado em mudar a situação. Seu terno era surrado e as meias balançavam nos tornozelos. Andara muito.   A cidade plana e quente e seca. Brasília era assim. Incomodava. Incomodava a beleza e a feiura da imensidão.  Doía-lhe as costas. Esticou-se, pediu um café. Voltou a sentar-se no banco alto do bar.   Pessoas passavam com suas malas gigantescas. Tinha a impressão que levavam o mundo. Foi só uma impressão, pois seus pensamentos voltaram a voar para o problema. Olhou para o alto, esfregou os pulsos. Sentiu um leve calafrio, como um desandar da pressão, um mal-estar da comida, um temor de altura.   O café apareceu na mesa através de uma mão branca, um meio sorriso, um afastar-se rápido na direção oposta. Quis dizer qualquer coisa: um obrigado, talvez. Não pode. A moça sumiu como desapareceu de sua imagem o que re...