sexta-feira, fevereiro 26, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XV

HOJE, QUINTA-FEIRA 25/02/2016, SEGUE O NOSSO FOLHETIM RASGADO "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 15º CAPÍTULO. NOVAS REVELAÇÕES!

Capítulo 15

Desde a última vez que Susana visitara o pai, não conseguia esquecer a sua manifestação, quando de seus poucos momentos de lucidez. Ressoavam em sua cabeça como sinos que dobravam intensos, absurdos, deixando-a aturdida, dividida, atormentada, a ponto de não conseguir trabalhar. Via de regra, inventava desculpas ao amigos ou colegas, na tentativa de dissimular o sofrimento que a atingia. Sabia que o quadro de seu pai não reverteria e a tendência era vê-lo a cada dia, definhando, se transformando num vegetal, um objeto inanimado, quase sem vida.

Nas visitas subsequentes, a decadência que se pronunciava, riscando de suas limitações qualquer gesto que justificasse um simples entendimento, uma sensação sequer. Pelo contrário, anteriormente, ele até a observava, mesmo que não a enxergasse como a filha, ou mesmo uma mulher, um ser humano. Seu olhar não se detinha em nada, cada dia mais distante e o mundo era um grande vazio. Susana o via como uma folha seca, que podia quebrar-se aos poucos, partindo-se até esfarelar-se definitivamente. Dessas que se guardava nos livros, quando criança, esperando que secassem, na tentativa de se pesquisar sua estrutura. A folha ia secando, secando, até amarelar e se esfarelar de tão desidratada. Seu pai estava assim, uma folha seca presa nas páginas fatais do livro. Nas mãos, antes mapas desenhados, modelados em veias azuladas, onde se produziam lampejos de vida, hoje, objetos inertes estirados, opacos, sem emitir movimento, mesmo que fosse involuntário, capaz de armazenar sentimentos de esperança ou amarga espera. Não. Nada que identifique a imagem de um ser humano.

Na última vez que o viu, percebeu-o de boca aberta, praticamente desdentado, respirando com dificuldade, como um peixe que morria aos poucos no anzol; um rascunho do homem forte e ágil que lhe mostrara a vida, que ensinara os primeiros passos. O equilibrar-se na bicicleta, os primeiros tombos, os afagos restauradores, os carinhos desmedidos. Na verdade, a cabeça pendia, para trás, encolhido na cama como um cobertor rasgado, embrulhado num canto, para ser colocado no incinerador. A única vida que lhe restava era a que os aparelhos produziam, ajustando últimos sinais vitais ao som repetitivo e enfadonho. Susana aproximou-se da cama, pousando a mão afetuosa no crânio que parecia menor: cabeça nua, uns fios raros remanescentes davam idéia da profunda falência. Não era mais um homem, não era mais seu pai, mas um erro da natureza, um ser cibernético, resumido a fios, sustentado por condutores que o mantinham vivo, como um espectro. Preso num labirinto. Ela assumia de vez o choro convulso, que lhe estrangulava a garganta, sacudindo os ombros, derramando a dor líquida em sua face inerte.

Vinham à mente como tufão arrasador, as suas últimas palavras, lúcidas, terrivelmente verdadeiras e comprometedoras. “Por favor, minha filha. Não me deixe perder a lucidez. Quando acontecer novamente, faça alguma coisa para o meu coração parar. Eu lhe peço. É um ato de amor.” Agora, ele somente não perdera a lucidez, como toda a energia de seu corpo, toda a capacidade de transformação, de melhoria, de reação. A natureza, enfim, lhe negligenciara o valor da dignidade humana, descaracterizando-o como ser humano, para produzir um corpo-objeto. Sua vida real já estava ceifada há muito tempo, desde que lhe fôra negada a chance de reagir. Entretanto, aquele vendaval destruidor, vento que sopra zunindo, vergando bambus, destruindo árvores, derrubando telhados, ceifando vidas. Aquele vendaval que lhe tomava a alma, que acalentava devagar a sanha do medo e do terror, mas que ao mesmo temo lhe acautelava o coração doído. Que fazer? Como justificar-se a si mesma? Como olhar-se no espelho e julgar o que os olhos não vêem, a experiência que somente sua alma desconsolada poderia se atribuir. Precisava ousar, precisava ser forte, precisava amar. O pedido de seu pai martelava em sua mente, soterrando-lhe as resistências mais profundas, maculando-lhe de forma indelével a consciência. Seu olhar mendigava compaixão. Seu olhar exigia um cuidado que teria que ter: um cuidado em entender o seu último pedido.

Ela sabia disso, quando forçou os pés, pisando imprecisa nos ladrilhos xadrez, sentindo as pernas gemerem, estremecidas, a mente perturbada na febre intensa, o olhar congestionado de quem está perdido, mas com objetivo determinado. Esvaziou a cabeça ou encheu-a a tal ponto, que não mais raciocinou de outra forma, a não ser o que já estava escrito naquele livro decisivo, que comprimia a folha secando-a em suas páginas indestrutíveis. Dirigiu-se à porta envidraçada, quase flutuando, oposta ao imenso corredor que dava a outros quartos e laboratórios e a fechou lentamente, engatando o pequeno trinco. Voltou rapidamente para o leito e não mais encarou seu pai. Se o fizesse, não teria coragem de executar o ato. Esticou o corpo, cujos seios quase tocaram-lhe no rosto e desligou rapidamente, os aparelhos que o mantinham vivo. Agarrou-se ao seu corpo franzino e esperou que perdesse todos os sinais. Como o vendaval, o tufão, a procela aniquiladora, soterrou-o de forma definitiva, libertando-o completamente. Beijou-o delicada, sem chorar. Voltou a ligá-los e ficou ali, por um tempo, sentada ao seu lado. Quando se lembrou de abrir a porta, algumas pessoas, entre enfermeiros e médicos, faziam sinais preocupados, querendo entender a situação. Ela não conseguia mover-se. Ao vê-los, a realidade tombou aos seus pés e seu coração apertado desandou, acelerando a marcha sem que pudesse evitar e o choro convulso novamente abriu passagem para a dor. Alguém bateu com força, chamando-lhe a atenção. Alguns curiosos também examinavam a cena, intrigados. Entre eles, uma mulher, provável visitante de algum doente de um quarto próximo. Levantou-se e obedeceu o chamado, abrindo o trinco, falando confusa, despertando o interesse por quem passava por perto.

terça-feira, fevereiro 23, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XIV

HOJE, TERÇA-FEIRA 22/02/2016, SEGUE O NOSSO FOLHETIM RASGADO "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 14º CAPÍTULO. NOVAS REVELAÇÕES!

Capítulo 14

Tenho vontade de dizer para o velho que não estou sozinha, tal como ele, que desapareceu há dias de sua janela, do seu quarto. Será que morreu? Espero que não. É mais um pra minha coleção. Cada dia, um se vai. Quando será a minha vez? Espero que demore bastante, sinto que ainda posso fazer alguma coisa, sinto que posso ajudar Susana. Essa expectativa me dá uma euforia, uma vontade de realizar coisas, um bafejo de vida. Tenho até desejo de tocar piano, como antigamente. Mas já faz tanto tempo, que nem sei se não desaprendi.

_Que terá acontecido com Susana? Por que me chamou daquela maneira? Parecia tão desorientada, a coitadinha.

_De quem tá falando, vovó?

_Ah, não importa. Estou falando sozinha. Que mania vocês tem de chamar de vovó. Eu tenho nome.

_Desculpe, não quis ofender. É que conheço a senhora há tanto tempo, quero dizer, só de pegar os seus remédios na farmácia: é remédio pra pressão, pro colesterol, pro glúten, pra diabete.

_Precisa enumerar todos? E cuida o trânsito, ta uma loucura, não ta vendo?

_Só quis lhe dizer que lhe conheço dessas coisas que faço pra senhora, por isso a chamo assim.

_Por isso mesmo, por me conhecer é que devia me chamar pelo nome. Todo mundo sabe que sou Úrsula. Primeiramente, vocês chamam de tia, tia pra cá, tia pra lá. No meu tempo, as tias eram as putas da esquina, sabia? – o motorista ri, satisfeito. Olha de soslaio para Úrsula e volta a fixar a rua. Ela continua no protesto.

Quando a gente fica mais velha, é vovó. Ora, vá pro diabo com estas manias!

_A senhora ta amarga, hoje, hem? Só porque lhe falei dos remédios.

_E você gosta que eu fale que toma Viagra?

_Quem lhe disse isso? A senhora pirou? – freia o carro, destemperado. Os bigodes muito pretos, as entradas separando fiapos de cabelos, suando. Os olhos arregalados.

Ela sorri, vingada. Continua, irônica.

_Eu não pirei. Quem pirou foi o... o vizinho, ai.

_A senhora é muito abusada. Eu não preciso destas coisas – responde, retomando o caminho.

_É mesmo? Não é o que minha fonte me falou.

_E quem lhe falou?

_Nem sob tortura lhe digo – ainda esboça um sorriso sorrateiro. Ele exclama, irritado.

_Diabos, essa gente não tem o que fazer, se não ficar fuxicando a vida dos outros.

Úrsula volta-se para a vidraça do carro, examinando as pessoas na calçada que agora lhe parecem tão parecidas com ela, ocupadas com sua própria vida. Faz-se silêncio. Ela é a primeira a falar – toca o carro, rapaz. Deixa de bobagem.

Após descer do veículo, Úrsula olha em direção à janela do apartamento de Susana. Está entreaberta, as cortinas produzindo movimento. Esquiva-se do frio, aproximando-se rapidamente do prédio, até atingir o elevador. Ajeita-se olhando-se no espelho. Puxa a gola do casaco, arruma os cabelos e examina-se por um segundo, observando os olhos que lhe parecem um tanto fechados. Deve ser inchaço, em virtude do pouco tempo que consegue dormir. Ao abrir-se a porta, Susana está a sua espera. Evitou parecer aflita, maquiada para não demonstrar nenhum sofrimento, pelo menos perceptível à primeira vista. Aproxima-se e a abraça, com carinho. Úrsula se emociona.

_O que foi minha filha? O que aconteceu com você?

Susana pede que entre. Reconhece de imediato que não deveria tê-la pressionado a vir até lá. Não foi uma boa estratégia, afinal, não tem o direito de envolvê-la em seus problemas. Por fim, afirma que os acontecimentos não tinham esta importância que ela tinha atribuído. Havia sido um desabafo.

Úrsula entra, quieta. Observa os móveis, a estante de livros, as poltronas confortáveis. Percebe a sala despojada, sem uma decoração suntuosa, embora lhe desperte a atenção a presença de alguns moveis antigos e tapetes bem alinhados. Senta-se e a observa, vendo-a caminhar de um lado para o outro. Seus olhos a acompanham intrigada.

_O que foi, dona Úrsula?

_Eu é que pergunto. Você não me fez vir aqui para nada. Diga-me o que aconteceu.

Susana desconversa: – gostaria que conhecesse meu escritório. Lembra quando fui na sua casa, pela primeira vez? Mostrou-me o apartamento, o seu piano, falou de várias coisas e não foi direto ao assunto.

_Porque não confiava em você.

_E agora, confia em mim?

_Confio. Por isso estou aqui, para ajudá-la.

Susana fecha a janela que dá para a rua, deixando apenas a vidraça misturando os vários tons de luzes, que circundam as redondezas. Quando resolve sentar-se em frente à Úrsula, não consegue esquecer a atitude de Roberta Célia, na posição em que estava, enfrentando-a com arrogância, em tom de ameaça. Ela, por sua vez, está na mesma atitude defensiva em que se encontrava naquele momento.

_Gostaria de fazer um chá para nós.

_Nada disso. Você quer desvirtuar o assunto. Olhe, Susana, se não confia em mim, seja sincera. Daí, eu vou embora.

_Não diga isso, Dona Úrsula. Eu confio na senhora. A senhora pra mim, é uma parente muito próxima, que não tenho.

_Você não tem nenhum parente aqui?

_Minha mãe morreu muito cedo, pouco me recordo dela.

_É verdade, se não me engano você me disse isso alguma vez. Não estou bem lembrada. Mas então? É sobre seu pai?

Susana abaixa a cabeça, as mãos trêmulas, pousadas nos joelhos, como se quisesse ampará-los ou segurar-se a si própria num apoio imaginário. A voz soa irregular, mal articulada.

–Dona Úrsula, é uma história muito longa, cheia de meandros, que fazem da minha vida uma angústia constante. Quase uma rotina. Sou uma mulher com muitos erros. Aliás, tenho um crime inconfessável nas costas.

–Por favor, Susana, não me assuste.

–Não, não, é a última coisa que desejo que aconteça. Não sou uma assassina, uma mulher que cometeria um crime por algum motivo vil. Mas eu cometi um crime e o pior de tudo, uma pessoa está me ameaçando, fazendo chantagem.

–Então me conte isso do início.

quinta-feira, fevereiro 18, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULOS XII E XIII

HOJE, QUINTA-FEIRA 18/02/2016, SEGUE O NOSSO FOLHETIM RASGADO "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 12º E 13º CAPÍTULOS. NOVAS REVELAÇÕES!

Capítulo 12

Susana aguarda o elevador em seu andar. Está prestes a entrar, mas é impedida pela voz urgente, quando a porta se abre. A mulher a impede de entrar, praticamente suplicando em falar-lhe. Ela tenta entender o que está acontecendo, sem dar muita importância à situação. Está preocupada com o horário, segurando a bolsa numa mão e uma série de documentos numa pasta azul. Na outra mão, digita no celular, tentando conseguir algum estagiário para o trabalho em campo. Detém, ao ouvir o seu nome. A mulher é magra e alta, cabelo vermelho, curto, aparentando quarenta anos.

_Susana? Você é Susana Medeiros?

O zelador que subia a escada, antecipa-se ao diálogo, esclarecendo que ela a havia procurado e não pudera impedir. Tentara explicar-lhe que daria o recado, mas a coisa parecia séria.

_Não se preocupe, João. Está tudo certo – e voltando-se para a mulher, a interroga sobre a gravidade do assunto, já que está em saída para o serviço. Esta, mostra-se decidida.

_Desculpe-me, mas precisei investigar onde morava. Não foi difícil, a senhora é uma jornalista bem conhecida. Se me der alguns minutos, eu agradecerei eternamente.

_A senhora quer falar sobre alguma coluna do jornal?

_Não, na verdade, trata-se de outro assunto. Eu não sei a quem recorrer, sabe. Aliás, não tenho muitos conhecidos influentes. Mas talvez a senhora possa me ajudar. Eu sei que você está fazendo uma entrevista com... – interrompe-se, enigmática – com Dona Úrsula.

_Sim, mas não entendo em quê possa ajudá-la. Dona Úrsula é a viúva de um jornalista, a fonte mais adequada para a biografia que pretendo fazer. O que a trouxe aqui, realmente?

_Eu sei, ela era mulher de um jornalista famoso. Foi até preso na época da ditadura. Ele fez uma reportagem na serra pelada, criticando aquele comércio e foi crucificado por isso. Mas esse acontecimento foi mais tarde, depois da prisão. Ele não se emendava.

_Pelo que parece, a senhora está muito bem informada.

_Ah, sim, sem dúvida. Sei muito sobre ele. Inclusive, se quiser, posso ajudá-la. Tenho o maior interesse, pode ter certeza.

_ Como a senhora o conheceu?

_Dona Úrsula deve falar muito no filho, não ?

_É verdade.

_Pois bem, eu sou a nora dela. A mulher do Luis Afonso.

_A das flores de plástico?

_Como assim?

_Desculpe. Uma referência, apenas. Coisa de jornalista. Como é seu nome?

_Roberta Célia. Pode chamar-me apenas de Roberta. Esses nomes compostos só atrapalham, sabe? É o caso do Luis Afonso, poucos o conheciam por Afonso. Já a velha, tinha a mania de chamá-lo por Luisinho.

_Sei. Mas então você é a viúva de Luisinho?

_Do Luis Afonso.

_Claro, me desculpe. Acostumei a chamá-lo assim, tal como Dona Úrsula.

_E também como se refere a mim?

_Como assim?

_A das flores de plástico?

_Foi um ato falho.

_Não se incomode. É assim mesmo. A velha sempre criticou as flores que levo para o túmulo do Luis Afonso. Mas olhe, se não se importa, poderíamos conversar na sua casa?

_Não me importo, de modo algum. Só que neste momento, é impossível. Estou indo direto para a redação do jornal. Tenho uma ideia, poderia ir comigo, no meu carro. Poderíamos conversar no caminho e marcamos um encontro para outra oportunidade.

_É que o jornal fica muito distante do meu caminho.

_Neste caso, marcamos outro dia?

_Se pudesse ser ainda hoje...

_Dê-me o seu n°, que eu lhe ligo, está bem assim?

Roberta Célia obedeceu, percebendo que esta seria a estratégia mais adequada. Ao cair da tarde, atendeu, animada.

Capítulo 13

Ao entrar no apartamento de Susana, porém, não demonstrava a mesma disposição. Parecia mergulhada numa espécie de contrição, de sofrimento interno, que a impedia de sentir-se à vontade. Vestia-se com simplicidade, mas bom gosto. Uma blusa cinza, com detalhes em faixas trespassadas salientando a cintura, acompanhando uma calça preta, que a deixava mais esguia. No pescoço, uma corrente de ouro, guarnecida com pingente em forma de pentágono. Observou o cenário em que se inseria, registrando rapidamente com o olhar arrebatado a estante de livros. Não que fosse muito adepta à leitura, mas interessava-lhe saber as coletâneas de crônicas organizadas pelo Jaime, inclusive as centenas escritas nos jornais, que estavam catalogadas em livros. Passeou em seguida os olhos pelo móvel no qual situavam-se algumas fotografias. Espichou o pescoço, tentando talvez encontrar a figura de algum conhecido. Todas as suas atitudes demonstravam grande curiosidade.

Susana convidou-a sentar e percebendo o interesse, comentou sobre algumas fotos. Apontou para um porta-retratos, indicando tratar-se de seu pai.

_Ah, seu pai. Um homem muito bonito, apesar da barba. Sabe, tenho uma aflição com homem de barba. Me incomoda. Mas e sua mãe, não consta nas suas fotos?

_Não. Tenho poucas fotos de minha mãe. Ela morreu muito jovem.

_Você é casada, Susana?

_Sou divorciada.

– Os casamentos hoje em dia não duram nada. A mulher se preocupa muito consigo mesma, com sua beleza, seu trabalho, suas amigas e deixa o marido de lado. Homem não gosta destas coisas.

_Você pensa assim mesmo?

_Sem dúvida, Susana, se me permite, a mulher está se excedendo em todas as áreas. Está além dos limites. Uma mulher decente deve se preocupar com o lar, com os filhos. Acho um absurdo deixar uma criança com a babá ou numa creche.

_Você tem certeza de que é deste século?

Roberta Célia detém-se, surpresa. Susana desculpa-se – desculpe, Roberta, mas pensei que estava apenas ironizando. Acha mesmo que a mulher deve só ficar em casa, cuidando dos filhos, do marido?

–Não, eu não disse isso. Seria uma idiota. Pelo contrário, acho que a mulher tem que sair, tem que badalar, ir às lojas, ao cabeleireiro, cuidar da aparência. Afinal tem que estar bonitinha quando o marido chegar do trabalho. Mas não deve se afastar das atividades sociais, das amigas sempre prontas para uma fofoquinha, você sabe, deve ter um monte assim, no seu jornal.

–Não, não. Ou melhor, deve ter sim. Sempre tem, em qualquer lugar.

–Mas você não é ligada, né? Já percebi. Você é voltada para os estudos, à pesquisa, à investigação – termina a última palavra enfatizando sílaba final, com certa censura. Reduz o tom e prossegue, entusiasmada – me diga uma coisa, Susana, mas não me leve a mal: será que não foi por isso que se separou?

Susana cala-se por um instante, aturdida.

– Deve ser, sim. Deve ser.

– Eu não disse? Aí tá o erro da mulher trabalhar fora. Veja que o seu exemplo reforça a minha tese. Mulher na rua é desperdício!

– Meus Deus, ela fala como um homem!

_Que disse?

_Roberta, você queria falar comigo sobre um assunto urgente, mas até agora, não disse a que veio. Seria melhor, começarmos, não acha?

Roberta Célia respondeu, eufórica.

_É claro, é claro. Preciso da sua ajuda. Inclusive, em casa, estive pensando, que em troca, posso ajudá-la na sua biografia. Sei de muita coisa do meu sogro.

_Sim, acho que você será muito útil.

Susana observava que Roberta Célia tinha o hábito de puxar a franja vermelha para trás num movimento continuo, parecendo ansiosa.

–Pois é, nem sei como começar. O problema todo está na cabeça dura de Dona Úrsula. Você sabe que ela tem uma casa, quer dizer, uma casa que não é só dela, é de dona Carmen, do irmão, o Carlos e minha.

_Sua?

_Sim, porque pertencia ao Luis Afonso também.

_Mas não haviam doado a ela?

_Diz ela, ninguém viu documento algum. Dona Carmem disse que foi só de boca e na ocasião em que o velho era vivo, todos concordaram. Porém, nunca corrigiram a situação, nunca registraram no cartório o consentimento de todos, entende? Eu já estive falando com um advogado a respeito. Ele foi taxativo. O Luis Afonso tem direito.

_Mas pelo pouco que sei, o irmão nem se interessa pela casa.

_É, esse nem se liga em nada. Além disso, o coitadinho ta numa fria, que dói. A barra pretiou pro lado dele.

Susana levantou-se dirigindo-se à janela, olhando de soslaio para a rua. Fingia desinteresse.

_Do que se trata?

_O namorado morreu.

_Namorado?

_É, ficou vexada? Você, uma mulher moderna, imagina a irmã e a própria Dona Úrsula! elas tentam abafar, fingem que desconhecem a viadagem do irmão, mas eu sei de tudo. O Tal Carlos tem um namorado há muito tempo. Agora o dito cujo morreu e o Carlos quer fazer o enterro aqui, na terra dele. Parece que os funerais serão ainda nesta semana. Vai trazer o corpo da Holanda.

_Mas dona Ursula não sabe de nada.

_Aquela vive alienada num mundo paralelo. Pouco liga para o irmão.

_Mas e Carmem?

_Ah, esta vem com o irmão, está dando todo o conforto a ele. Deve ter se atualizado ou pelo menos, fingindo que é apenas um amigo querido. Pelo que me contaram, ele quer a família inteira no velório do namorado, ou marido, sei lá. Mais conveniente, parceiro, não é mesmo?

_Tanto faz.

Roberta Célia faz um silêncio proposital. Com um leve suspiro, resmunga.

_Ele gosta muito de mim. Ele me quer junto – em seguida, altera a voz, agitada - será um funeral maravilhoso, estilo americano. Já alugou todos os serviços. Já pensou que luxo? Ficaremos hospedados numa mansão, com várias dependências, salas especiais com hometheater, bons quartos. Um hotel 5 estrelas. Era a vontade do amigo.

_Pobre Dona Úrsula.

_Mas o Carlos é muito rico, se deu bem no estrangeiro. Você sabe que ele trabalhou no ramo de construções na Arábia Saudita? Dizem que até mexia com petróleo. Essa gente é esperta, diversifica os empreendimentos. Diversifica até os relacionamentos, não é mesmo? – faz um gesto malicioso, escondendo a boca com a mão em concha. Logo prossegue no tom anterior - faz o que quer do dinheiro, tanto que aquela casa mixuruca nem lhe apetece.

_Então você quer que eu convença Dona Úrsula a ceder a tal casa para você.

_Pra mim, não. Para todos.

_Mas os outros não querem. Pelo que eu saiba, a irmã desistiu há muito tempo. Para ela, são águas passadas. Dona Úrsula mesma me contou.

_Pode ser, mas a minha parte tem que ser dividida. É justo, você não acha? Pra que aquela velha vai querer uma casa que nem usa? Pra pagar os remédios dela?

_Não sei, mas até para isso. Só quero lhe dizer uma coisa, Roberta Célia...

_ Por favor, só Roberta.

_Está bem, Roberta. Eu não posso me envolver nisso, por preço nenhum. Não posso trair a confiança de Dona Úrsula. Pra mim, ela é uma mulher autêntica, às vezes até severa demais, porque diz o que pensa sem meias palavras. Mas eu gosto muito dela.

Roberta Célia a analisa, examinando-a detidamente, como se quisesse mostrar que sabia alguma coisa de seu passado, de sua vida, quase uma ameaça.

_Parece que você se agarrou nela como uma tábua de salvação.

_Por que está dizendo isso? – Susana afasta-se da janela e volta a sentar-se. Segura entre os dedos, um folheto que estava sobre a mesa, na tentativa de tomar alguma atitude, como apoio.

_Você sabe.

_Não, eu não sei do que está falando.

Roberta Célia reflete um pouco, em silêncio. Abre a bolsa e tira uma carteira de cigarros, descolando o rótulo dourado, delicadamente. Retira um, levanta a cabeça observando a insegurança de Susana e faz o pedido: – sei que não é conveniente, mas posso ficar próxima à janela. Sou viciada, sabe?

_Sei o que é isso. Também fumei um dia.

Roberta Célia, que já se havia levantado, volta-se sorrindo, uma alegria infantil – é verdade? E como deixou?

_Ah, foi muito difícil. Com apoio, remédios. Mas antes de tudo, foi preciso decidir-me.

_Você tem razão. Decisão! Esta é a palavra chave – debruça-se na janela, enquanto acende o cigarro. Olha para baixo, sem nenhum interesse. Após a primeira tragada, jogando a fumaça para a rua, prossegue, contrita – eu sei que não vou conseguir. Não sou forte como você. Não tenho coragem, ousadia, força de vontade. Sou uma fracassada, sabe?

Susana sente-se importunada com o assunto, mas não tem como impedi-la. Sabe que Roberta Célia invade a sua privacidade, fazendo um jogo, do qual ela não conhece ainda o motivo. Tenta, pelo menos, mostrar-se interessada, evitando parecer ansiosa.

– Você está exagerando. Todos somos capazes de deixar o vício.

_Não. Há pessoas especiais, como você, outras são comuns, como eu.

_Se você pensar deste modo derrotista, nunca vai conseguir mesmo.

Roberta Célia dá uma última tragada e atira displicentemente o cigarro pela janela. Ensaia alguns passos em direção à Susana e teatralmente, segura-lhe as mãos.

_Que bom, Susana, que bom que quer ajudar-me. Eu sinto que você quer me passar esta força, esta vontade e lhe agradeço muito por isso!

_Ora por favor, Roberta – intervém, embaraçada - não cheguemos a tanto. Sente-se e vamos conversar. Espere, quem sabe você toma alguma coisa? Um licor, um vermute, talvez? – afasta-se, livrando-se da situação. Dirige-se a um armário antigo, com algumas bebidas.

Roberta Célia, por seu lado, revela-se muito à vontade com o diálogo.

_Se você tiver um licor de abricó, eu serei eternamente grata! Adoro, acho que é em virtude de um sabor da infância, uma coisa natural do subconsciente.

_Mas como assim? Como pode associar um sabor de licor à infância?

Roberta Célia dá uma risada exagerada, mostrando a gengiva vermelha e novamente, ajeitando o cabelo com as mãos.

_Ah, menina, não pense bobagens. Sou viciada no cigarro, mas em bebida, não.

_Eu não afirmei isso. Apenas estranhei esta sua lembrança.

Roberta Célia junta os joelhos e pousa as mãos delicadas, baixando a cabeça, mostrando-se triste. As unhas são vermelhas e longas. Raspa suave a meia de náilon.

_Na verdade, trata-se de uma mistura de emoções. Lembro de minha avó, que era de São Luís do Maranhão. Quando a visitava, tinha contato com a fruta, que ela adorava. Até costumava fazer doce de abricó, também o licor, sem dúvida. Sabe Susana, ela me pegava no colo, com suas pernas imensas, suas ancas gordas, fortes, me aninhava daquele jeito gostoso, gentil. Eu, pequenininnnnha – estica a sílaba, num sibilo de voz – ali, me ajustando naquele corpanzil, um conforto só. Ela tinha o cheiro doce, sabe daquele sabor do abricó, da fruta macia e agradável. Ah, lembranças da infância – enxuga uma lágrima com a ponta do mindinho – desculpa, não dá para evitar.

Susana procura uma bebida qualquer, tentando satisfazer a mulher e acabar de vez com o assunto. Não possui o licor de abricó e serve-lhe o primeiro que encontra.

_Se não se importa, vou lhe servir um Cointreau.

_Você só bebe coisa de primeira, heim? Dizem que este licor é um dos melhores! É feito de laranja. O Luis Afonso me explicava que a fruta não podia tocar no álcool, por um bom tempo, até desprender o seu bouquet, é assim que se diz, o aroma, não é?

_Me parece que você entende mais do que eu. Este licor ganhei de um amigo da redação.

_Você tem muitos amigos, né? É bom a gente ter amigos, sempre tem uma mão pronta a nos ajudar. Não é o meu caso. Depois que morreu o Luis Afonso, fiquei meio perdida no mundo.

Susana entregou-lhe o licor e dirigiu-se à poltrona. Ficou em silêncio, observando-a deliciar-se com a bebida. Tudo em Roberta Célia parecia desproporcional, desde os expressões dos sentimentos até os gestos triviais. Que pretendia aquela mulher na sua casa? Que troca era essa que supunha poder aceitar? Havia, no entanto, alguma coisa oculta, que não estava bem esclarecida. Resolveu então, clarear a situação.

_Bem, Susana, conversamos sobre vários assuntos, mas não está explícito o que deseja de mim. Eu sei que você quer a minha ajuda para convencer Dona Úrsula a fazer o inventário, ou desistir da casa. Mas, há algo mais. Você aludiu à dependência minha em relação à Dona Úrsula, estabeleceu-a, inclusive como uma tábua de salvação. Por quê?

_Susana! O seu licor está divino! Sabe que o Luis Afonso tinha razão? O Cointreau é melhor que o de abricó. Naturalmente, que o sabor da minha infância é que predomina no meu sentimento, mas...

_Mas chega deste assunto, Roberta Célia.

Toma o último gole, olhando nos olhos de Susana. Replica: apenas, Roberta, por favor.

_Então seja clara. O que quer de mim?

Roberta Célia larga o cálice sobre a mesa e coloca a carteira de cigarros dentro da bolsa. Volta-se para Susana e conclui: se estivesse nervosa, era o momento de pegar outro cigarro. Mas não se preocupe – antecipa-se, rápida, ante o olhar intrigado da outra – não é o caso.

_Então?

Susana funga, assoando uma inesperada alergia nasal. Silencia. Suspira fundo e encara Susana com serenidade.

_Bem, Susana, já que precisamos abrir o jogo, vou ser sincera com você.

–Estou esperando isto desde o primeiro momento – responde impaciente. A outra concorda, tranquila: eu sei. Mas há um tempo para tudo. A bíblia não diz que há um tempo para plantar e outro para colher?

–Roberta, me poupe dessas alusões à bíblia, por favor.

_Então está bem, Susana. Vou ser objetiva. Me parece que tem problemas demais. Problemas que podem evoluir para uma situação muito perigosa.

_Seja mais clara.

_Na verdade, eu só tenho você pra convencer a velha, mas você deve ter mais confiança em mim, porque sei coisas muito graves do seu passado.

Susana dá um salto da poltrona.

–Eu não tenho nada a esconder, você está louca?

–Não se desespere.

–Não estou desesperada. Estou achando tudo isso um grande absurdo, você vir na minha casa para fazer-me ameaças. O que você sabe sobre mim, afinal?

–A história triste de seu pai.

Susana sente um soco na boca do estomago, sem esboçar qualquer reação. Ensaia alguns passos, afastando-se de onde estava, juntando-se ao móvel das bebidas. Roberta Célia, ao contrário, continua na poltrona, fitando-a tranquilamente.

–Não culpo você, talvez na sua situação, eu agisse da mesma forma. Não é fácil tomar uma decisão que pode ceifar uma vida – Susana a interrompe mais uma vez, agora quase em desespero – o que você está dizendo, que história é esta? – Roberta prossegue convicta e serena – por isso, eu disse naquele momento que você era especial, que você toma as decisões com coragem, ousadia. Mas tudo tem um preço, Susana. Você deve à justiça, você sabe. Você não está limpa como todo mundo pensa. Então, eu pensei, podemos fazer uma troca. Eu não conto a ninguém o que sei e você convence a velha a dividir legalmente a casa. Quem saber doá-la em memória do Luis Afonso.

Desta vez, é Susana que mexe no cabelo, puxando-o num rabo, envolvendo-o numa única madeixa, logo desmanchando-a por completo. Volta-se para ela, os olhos congestionados, a voz rouca, insegura.

– O que você sabe?

–Tudo, minha querida, tudo.

– Não há nada contra mim. Eu não devo nada à justiça –defende-se, indecisa.

–Você tem certeza, Susana?

– O que você quer? Fazer-me chantagem, é isso? Pois saiba que não vou entrar na sua, não sou louca para entrar neste delírio.

_Se você pensa assim.

_Eu não penso assim, as coisas são assim. Sou uma mulher honesta. Quem é você para me dar lições em moral, para me ameaçar?

_Você está exagerando, amiguinha.

_Exagerando? Você quer usurpar-me, quer convencer-me a tirar os bens de outra pessoa e diz que estou exagerando?

_Você está me insultando, Susana.

_Pois estou sim. Você é uma idiota, se pensou que eu ia cair nesta sua paranoia, nesta armadilha que está tramando! E se me dá licença, saia da minha casa.

Mas Roberta Célia é fria, precisa. Joga a isca com objetivo, com certeza: se você considera uma paranoia matar o próprio pai, então...

Susana não se controla e a xinga, com ódio, correndo até ela e segurando-a pelo braço, agressiva – o que está dizendo, sua vadia?

_Me largue, não me insulte. Eu não sou vagabunda. Aliás, não sou a divorciada, cheia de amiguinhos, ganhando presentes...

Susana aplica-lhe um tapa com raiva. A outra enche os olhos de lágrimas e se afasta alguns passos, em silêncio. Tenta recuperar-se, pega a bolsa que estava estirada num canto da poltrona e retira novamente a carteira que havia guardado. Por fim, acrescenta.

– Eu fiz a minha parte. Tentei ajudá-la, certo, que queria a sua ajuda em sua contrapartida, mas você é cabeça dura, que nem a velha. Então dane-se. Você sabe onde procurar-me, se voltar atrás.

_Saia da minha casa.

_Se quiser saber detalhes, me procure. Não descobri tudo à toda. Tudo tem um motivo. É a minha chance e também a sua. Nossos destinos estão relacionados. Agora, depende de você, tocar o barco, ir à frente ou retroceder.

_Eu já pedi que saia da minha casa. Se ficar mais um minuto, vou chamar a policia.

–Isso, faça isso. Chame a policia. Quem sabe eu falo agora o que está aqui, engasgado na minha garganta, mas não quero brigar com você, pelo contrário, quero paz. Sou uma mulher de paz, da concórdia, do amor ao próximo. Não sou o que você esta pensando.

–Ah, tenho certeza de que não. É muito pior. É uma cobra cascavel.

–Que pena, Susana, como baixou o nível. Só para encerrar: eu ainda não desisti de ajudá-la. Me procure. Eu vou explicar tudo a você. Vou livrá-la deste carma, desta culpa, deste sofrimento. Sei que o que você fez foi por amor, foi o melhor para ele, coitadinho. Eu, ao contrário, não teria coragem de tirar a vida de um animal, quando mais de um ser humano, mesmo porque nunca se sabe se ele não teria alguma chance, a ciência está aí para comprovar a todo instante que as pessoas se recuperam. Mas sua alma, sua palma. – Susana digita rapidamente no celular. Roberta Célia a interrompe, aproximando-se e colocando-lhe a mão no ombro – não, por favor, não chame a policia, não se exponha. Eu vou embora. Mas tenha certeza de que vou procurá-la. Ainda seremos grandes amigas.

E afasta-se empurrando a porta com delicadeza. Susana a fita com um sentimento de impotência que atiça ainda mais o seu ódio. Quando a outra desaparece, desaba num choro convulso, em absoluto desespero. Corre ao banheiro, abre desajeitada, a porta do armário, as mãos tremulas, indecisas. Suas pernas parecem não obedecer o corpo, bamboleando no assoalho frio. Retira uma pílula de um vidro de remédios e engole em seco. Põe as mãos na cabeça por alguns segundos, olhando-se desorientada, no espelho. Depois, lava o rosto várias vezes, tentando apagar da mente a imagem absurda de Roberta Célia acusando-a. Dirige-se ao seu quarto com o celular na mão e digita o número de dona Úrsula. Não consegue evitar o choro, enquanto fala.

–Dona Úrsula, me ajude, preciso da senhora, preciso muito da senhora, por favor!

– Minha filha, que está acontecendo?

–Não posso explicar-lhe agora, por telefone. Precisamos conversar. Não tenho ninguém nesta minha vida, só a senhora.

– Então, que farei?

–Sei que não pode vir, mas não tenho condições de sair....estou muito abalada – interrompe-se, arrependida por ter envolvido a pobre velha em seu drama íntimo. Então, tenta desfazer a preocupação – espere, estou sendo egoísta, o que me aconteceu vai passar daqui a pouco, vou melhorar e logo que nos encontrarmos, eu lhe explicarei tudo. Não se preocupe comigo.

– Aconteceu alguma coisa grave? Você perdeu um ente querido?

–Não, não é nada disso.
¬

–Então eu vou aí.

– Não, a senhora não pode sair a esta hora da noite. Por favor, não. Lembra-se como é perigoso? Se for preciso, eu vou aí.

–Não seja boba, eu tomo um táxi. Não sou uma velha inútil. Só me dê o endereço, que esqueci. Se guardei na agenda, já perdi. Por favor, Susana, se quer ajudar-me também, deixe-me ir. Deixe-me ajudá-la, não pense que é só por você. É um gesto egoísta meu. Quero provar que sou útil a alguém. Por favor, deixe-me ajudá-la. Quero provar a mim mesma, que sou um ser vivo.

Susana cala-se, pensativa. Sente um ardor, uma força inexplicável na voz de dona Úrsula, que teme humilhá-la. Ela ainda insiste.

–Por favor, você acredita em mim, não? Acredita que eu sou capaz de alguma coisa?

–Está bem Dona Úrsula. Eu concordo, mas tome todo o cuidado, chame o taxista da esquina da farmácia, aquele que já a conhece.

Do outro lado da linha, ouve a voz inspirada, quase feliz de dona Úrsula.

–Pode deixar. Estamos combinadas. Eu vou até ai. Sabe que independente do seu sofrimento, você proporcionou uma certa alegria, me desculpe dizer, mas, me lembrei de Luisinho. É como se eu estivesse fazendo alguma coisa por ele, entende?

–Entendo.

–Então, vou desligar. Achei o seu endereço. Está bem aqui, na primeira página. Me espere ai, quietinha, está bem?

–Dona Úrsula...não desligue.

–O que foi?

–Quero dizer que a amo. Que a amo muito.

Úrsula sorri, emocionada. Reclama, com voz fraca – sua boba – desliga o telefone e prepara-se para sair.

quarta-feira, fevereiro 17, 2016

A FAINA DA BRASA

Animais dão-se as mãos nas campinas

verdes, que se espraiam olhar afora.

Vozes que flutuam em zumbidos longínquos

Homens se agrupam na prática eufórica.


Quando eles chegam de mansinho,

deixam os pastos repousar

Deitam as arestas de seu sono

e dormem em flores sem vicejar.


Humanos acendem fogueiras


Perpetuam fogos, parecem lutar

por vitórias que chegam com os arreios

e ferramentas que lá vão provar.


No dia da desova das paixões

Agitam-se, desesperados na rotina

e animais afastam-se, em vão

Da brasa que lhes cede a alma ferina.


Homens violentam seus bordões

Riem, na luta da guerra à vida

Gritam, rudes, na faina da brasa

A morte que chega, sem saída.


Animais caem ao relento

Esbaforidos, sedentos e sofridos

Olhares perdidos nas vagas madrugadas

que anseiam, mas que nada

Se sonham, nem sabem decifrar


A morte é certa, a berrar

na brasa ardente escaldando as carnes

O sangue transbordado na terra ferida


A morte é certa, a berrar


Homens dão as mãos nas campinas

Entoam canções e gritos de guerra

Vibram pelo sangue que mediram

no sereno da fatigada terra.


Animais fracos, mortos em vida

na luta do rodeio desonesto

onde o forte esquece o fraco no labirinto

e a vida se perde no sangue derramado.


Animais caem ao relento

Esbaforidos, sedentos e sofridos

Olhares perdidos nas vagas madrugadas

que anseiam, mas que nada

se sonham, nem sabem decifrar

A morte é certa, a berrar

a brasa ardente escaldando as carnes

o sangue transbordado na terra ferida


Homens dão as mãos nas campinas

Cantam canções de vitórias e gritos de guerra

Vibram pelo sangue que mediram

nos serenos da terra gripada


Animais fracos, mortos em vida

na luta do rodeio desonesto

onde o forte esquece o fraco no labirinto

e a vida se perde no sangue derramado


terça-feira, fevereiro 16, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XI

HOJE, TERÇA-FEIRA 16/02/2016, SEGUE O NOSSO FOLHETIM RASGADO "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 11º CAPÍTULO.

Capítulo 11


Às vezes, penso em escrever um livro. Um livro que contasse a história de minha família, mas ao mesmo tempo em que me acomete esta idéia, sei que não ousarei seguir adiante. Relembrar os meses em que Luisinho ficou em coma naquele hospital é reviver a dor em toda a sua intensidade. É proclamar o dia da execução final. Não, não devo mais sofrer, já bastam as lembranças diárias que tenho dele, desses seus últimos momentos. Pudesse voltar os ponteiros do relógio e fazer a minha vida retroceder a um tempo anterior àquele acontecimento. Se pudesse impedir tudo aquele nefasto acidente. Se pudesse argumentar pra mim mesma, que tudo tem um motivo, um fim, uma conseqüência. Mas não consigo acreditar que fosse preciso ele morrer, ele que era tão cheio de vida, de amor ao próximo, de idealismo.

Isso não devia acontecer assim, com os velhos. Não devíamos prosseguir esta última etapa. Devia ser adiada. Cortada com a lâmina. Um fim digno a quem não mais tem interesse em viver. Se ao menos, eu tivesse a coragem de acabar com tudo, esquecer este céu negro que acoberta minhas noites e fechar de vez meus olhos cansados.

Veja o velho aqui da frente. Me parece que está no mesmo barco. Acho até que em situação pior, pelo menos no que se refere à saúde física. Naturalmente, nada que se compare à saúde emocional, porque não há dor maior do que perder um filho. É uma saudade doída, que esmaga o coração, que enrijece os membros, que afeta o raciocínio. Não acredito nestas mulheres que lutam pela memória dos filhos perdidos, que se vestem de estrelas para fazer campanhas, angariar fundos, transformar a dor. Devo ser uma velha ranzinza mesmo, nem sou politicamente correta, como a maioria que as elogia. Não. Elas só querem reviver o passado, mentir a si próprias que são felizes, que estão vivendo, quando estão mortas por dentro.

A noite está mais escura e as poucas luzes da esquina parecem amarelas, fracas, pintando portas envoltas em penumbras, repletas de vultos que produzem coreografias estranhas, mesclando seus corpos com sombras, deixando-os no vazio. Talvez um vazio tão grande como o de suas vidas. E a minha, não é tão vazia e inútil quanto a deles? Pelo menos, são jovens e fazem do seu corpo o que querem.

O vigilante do estacionamento dá seus primeiros sinais. Por certo, conversará com alguém que avance pelas redondezas, misturará a erva tranquilamente, mexendo com a bomba, ajustando o pó e sentará no degrau da calçada, cevando as horas, pedindo que o tempo passe. Será que ele gosta do que faz?

O velho não tem aparecido no quarto. A mesma penumbra tapando a poeira da cadeira desarrumada, com roupas atiradas, perdida num canto. Nem se aproxima da cama e puxa a cortina de filó como faz de costume. Por certo, piorou em suas dificuldades. Se ele morrer, quem ficará na janela, olhando para baixo, contando a sua vida, como se conversasse com um amigo? Talvez crianças correndo pela casa, batendo janelas, esticando-se no parapeito, pais assustados, colocando grades, enfurnando-as na sala do computador, desligando-as do mundo. Não é pra menos. O perigo ronda cada passo. No meu tempo era diferente. Mas daqui a 30, 40 anos, estas mesmas crianças talvez digam a mesma coisa. Que será do mundo, daqui pra frente?

O relógio do quarto bate 3 horas. Madrugada se adianta e sinto um estremecer no corpo, um pequeno calafrio que me percorre os braços. Sempre esfria neste período, mas especialmente hoje, há uma atmosfera sombria, que me assusta. Parece-me um frio interno, uma coisa orgânica, uma febre. Uma febre que me queima os miolos e me estremece a pele. Bobagem. Se eu morrer, não vai ser de febre. Sem dúvida, será de solidão. A velhas como eu, não é permitido desejar outra coisa, porque as perdas já esgotaram todo a adega de esperança. Falar em adega, e se eu tomasse um vinho? Sim, um vinho, ai,ai, ai, que idéia extravagante, Úrsula. Nem que fosse um vinho vagabundo, desses que a gente compra em queima de estoque. Desses aviltados pelo tempo, que não possuem rótulo de validade. E pensar que vinho bom é vinho antigo. Isso para os das safras nobres. Também pudera, a minha validade já tá vencida, já to usurpando o tempo. Nada mais justo do que tomar um vinho vagabundo.

Será que Susana gosta de vinho? Amanhã mesmo, vou comprar um bom vinho e guardar pro momento adequado. Ela merece. Também tem lá seus segredos e me parece que sua vida na é nada fácil. Mas quem não tem problemas, hoje em dia?

A mulher tinha que tomar tino de sua força. Tinha que se conscientizar que o seu poder está na sensibilidade, na possibilidade de abranger várias responsabilidades, diferentes do homem. De juntar e dividir ao mesmo tempo, sem prejuízo à causa. Mas preferem ser a mulherzinha, a mulher que se indigna pela submissão, mas pouco luta pelos seus direitos. Sabe, Rita, na verdade, não deveriam ser direitos, não deveria haver leis para proteger as mulheres, porque elas são seres iguais. São mesmo? Puta que pariu! Esta história de homem intelectual, que compreende a mulher, que julga que ela deva levantar bandeiras e lutar contra as vilezas do mundo, é tudo baboseira. Homem é tudo igual, na hora da cama, eles não pensam em igualdade. Querem submeter a mulher aos seus caprichos. E essa aí, a Susana, vem fazer a biografia do Jaime, como se fosse o defensor das mulheres. Ele era um homem bom, sem dúvida, um homem que me amava. Mas pra ele eu tava em Roma ainda, ou na Grécia antiga, sei lá. Era uma dama, fora da vida política, à margem da ordem social. O que eu era, afinal? A mulher que devia ficar em casa, cuidando dos filhos e dele, o filho maior! Pro homem, a mulher é mãe, a outra, ou mulher de malandro. Se a gente, você sabe Rita, demonstra que também sente prazer, é puta. Bom, isso era no meu tempo, com toda a intelectualidade, a inteligência e o discernimento do Jaime. Agora, as coisas mudaram. Mas mudaram demais, você não acha? Foram pro lado extremo. As mulheres estão com postura de homem e até assustam os pobrezinhos. E essa coisa de levantar bandeira, de lutar pelos direitos da mulher, esse feminismo retrógrado, é tudo sandice! Sei... sei, Rita. Sempre é preciso o exagero no início, na vanguarda de qualquer movimento, mas queimar sutiã na praça, convenhamos!

Lembro agora como se estivesse acontecendo neste momento. Ele andava envolvido com a política investigativa, na tentativa de encontrar furos no governo. Imagina, naquela época dura, da repressão. Tava pedindo. Mas as conversas, os encontros não se resumiam nisso, não. Como todo homem que se preza, estava entre os amigos, no bar mais bem frequentado da cidade, onde os boêmios e as mocinhas pintavam que nem mosca na.... você sabe. Eu estava grávida do Luisinho. Era um dia especial, porque eu havia recebido um convite. Você não vai acreditar, Rita, um convite para gravar o meu primeiro disco instrumental. Você sabe que eu tocava piano. Ele simplesmente não lembrou do fato. Quando ele chegou, eu estava furiosa, um rubor me tingia o rosto, um torpor me calava a boca. Ouvi o barulho do carro, um som de pneus riscando o piso e batidas desmanteladas pra todo o lado. Via o perfil se encaminhando na penumbra e chegando na sala, trocando as pernas. Não parecia o homem que eu amava, era um ser maltratado, amarfanhado, olhos fundos, em mangas de camisa, braços tão suados que prendia os pelos produzindo manchas escuras na pele.

¬– Meu amor, você preparou tudo isso aí, por que me esperou?

Ele sorria. O danado tinha um sorriso pra lá de bonito: franco, aberto, dentes emparelhados, à mostra. Sorria a ponto de me fazer recuar, de hesitar na minha ira, de abaixar as turbinas e aterrissar de mansinho. Meu coração romântico, meu amor contido me diziam coisas opostas à ira que avançava extrema, afirmavam que tudo que fazia era para ele, pra não me abandonar, pra ficar comigo, pra agradar minha alma.

–Desculpa, amor, não sabia. Que dia é hoje? – se equilibrava nas palavras, se desculpava na insanidade da vida alheia que vivia, longe de mim. Tentou me abraçar, cheirando a alho e bolinho de bacalhau. Me afastei do abraço desengonçado. Respondi absorta, apenas sentindo o cheiro forte que exalava, uma mistura de suor e comida.

–Não importa. Vou preparar um prato. Você comeu alguma coisa ou só bebeu?

–Só bolinho de peixe.
Me deu nojo o hálito de peixe, de bolinho chafurdando na banha. A cerveja comungando do cenário. Me afastei devagar. No móvel, ao lado do piano, a sua fotografia me fitando, naqueles olhos claros, intensos. Senti um desejo absurdo de beijá-lo, de vivenciar apenas o sonho, o ideal que aquele homem representava naquela imagem. E me envergonhei por isso. Parecia a outra, a vagabunda que não lavava suas cuecas, mas que ardia de desejo e paixão. Retirei-me devagar, afastando-me em direção à cozinha. Algumas lágrimas inevitáveis se insurgiam inoportunas em meus olhos. Sequei-as, rápido, com o dorso da mão esquerda. Voltei-me por um minuto e percebi que ele lia o convite para o contrato de meu primeiro disco. Acho até que chorou, pois fungou de um jeito estranho. Me seguiu até a cozinha, como uma sombra. Parou no umbral da porta, ainda se equilibrando nas pernas e nos pensamentos. Ouvi um resmungo, alguma coisa familiar que entendi como te amo. Nem sei se disse isso, mas me virei e abri meus braços pra ele.

Veja Rita, que feminista de meia-tigela eu era. E que canalha ele se mostrava! A Susana vai se decepcionar, não tenha dúvida. Também não sei. A mulher, por mais que se emancipe, quer um ninho, um aconchego, um abraço. Mesmo que de um canalha, feito o Jaime. Você não acha?

Fonte da ilustração: artigo Meu corpo, minhas regras do site http://maishistoria.com.br/meu-corpo-minhas-regras/

sábado, fevereiro 13, 2016

Arnildo na Mostra de Talentos da Biblioteca do HU

Houve a Mostra de Talentos da Biblioteca, no HU. Eu sugeri o seu nome e ele foi convidado. E entre talentos, havia crônicas, poesias, livros, desenhos, música. Ele então chegou devagarinho como é seu jeito, investigando de soslaio o cenário meio caótico. Além das exposições, das visitas e conversas animadas, chegara o momento musical constituído por um grupo de colegas que ousara desafiar os tímpanos e cordas vocais, num emaranhado de sons, ritmos e gêneros. Era um samba do criolo doido. Muito bom, de acordo com a euforia geral que até ensaiou uns passos de dança, nos quais, diga-se de passagem, me incluí. De todo modo, percebi a sua presença, talvez um tanto apreensiva, o que corroborou com minha percepção, pois confessara mais tarde. Afinal, no meio daquela algazarra musical, onde todos cantavam em altos brados e a plateia participava em uníssono, seria de bom tom as suas baladas mais lentas, mais reflexivas e o seu conteúdo pensante? Talvez se perguntasse, vou dar uma de Caetano Veloso e arriscar aqui um Cucurrucucu Paloma para agradar a galera?

Mas, aos poucos, espontaneamente o cenário foi harmonizando e cedendo o seu lugar ao nosso artista convidado. Ele se aproximou, interagiu com as pessoas e lentamente, assumiu o seu lugar. E aquele guri tranquilo dos poemas do "Poetas de Pijamas” foi surgindo e revelando a sensibilidade e a complexidade de seus questionamentos, como na poesia “Canção sem graça que compus para passar o tempo”, em que sua alma de artista se pune por não compor versos simples e rimas fáceis, mas palavras complexas e fonemas impróprios que parecem ocultar a face sublime que os inspiram. Mal sabia ele que a complexidade vai muito além da simples sintaxe dos versos ou da semântica de seu conteúdo. Vai além, através da imaginação, do sonho e sensibilidade, amparados não só na melodia, na letra, mas na interpretação e poder de interação. Muito mais, manifesta-se na vida prenhe de sonho e portanto, a complexidade se dilui na alma dos que sonham. Foi assim que interagiu do seu jeito e foi logo assumindo o seu lugar. Não imaginava ele que o povo que cantava e dançava no resfolegar dos sambas, emudeceria para ouvi-lo, que os tons e matizes nítidos e plangentes, vindo das canções talvez fossem aprrendidas em seu ritmo e conteúdo profundo, encantando-os num mergulho de poesia, onde antes havia apenas exarcebada euforia. Era outro ponto. Outra batida. Outro roçar de corações. Outro tinir dos sentidos. E do grupo heterogêneo, ele transformou o sussuro intimista no encontro. Música é isso. É alegria e reflexão. Gesto e abandono. Desafio e sonho. E Arnildo chegou de mansinho, se acercou de nosso grupo, apresentou com cuidado e atenção o que nosso coração pedia. Certamente, ali se estabeleceu um elo, no qual a troca se deu pela energia, pela partilha da arte pela a amizade. Talvez pontes foram criadas, nas quais as trajetória se cruzem e se enriqueçam.

Arnildo, hoje é nosso formando, nosso médico e tenho certeza, para os que como eu, conviveram com ele, o guri compositor, poeta, cantor e amigo e finalmente, para a mostra cultural da biblioteca, o nosso principal artista.

Biblioteca do HU: Biblioteca do Hospital Universitário, FURG, Rio Grande, RS

.

sexta-feira, fevereiro 12, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO X

HOJE, QUINTA-FEIRA 11/02/2016, CONTINUAMOS O NOSSO FOLHETIM "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 10º CAPÍTULO.

Capítulo 10


Cruzes! Então o velho não se aguenta sozinho, precisa de alguém pra fazer a higiene. Também pudera, aquela mania de falar sozinho em plena janela do apartamento, olhando para a rua, deve ser fraqueza mental. Os neurônios não se coadunam. Pobre diabo! Depois de saber disso, me dá até dó, afinal é um homem doente e tudo que diz talvez não passe de simples imaginação. Coisa da cabeça dele. Esta vida é muito triste para velhos como ele. E como eu, também. Não fosse você, Rita, eu já teria enlouquecido nesta casa, sozinha. Quando Carmem enviuvou ainda me visitou algumas vezes, embora mais preocupada com a casa do que comigo, revirando o passado, criticando o Jaime, censurando até meus pensamentos. A filha que estava no exterior, de feminista radical se transformou em mulher de milionário e esqueceu todas as ideias avançadas que tinha na época. Carmem, aos poucos, foi me abandonando. Quando o Jaime morreu, ela não esteve ao meu lado, não me procurou para dar-me algum conforto, algum carinho. Ao contrário, apareceu apenas para consolidar o que pensava, justificar a ideia de fatalmente este seria o seu fim. O tempo passou, ela foi morar com a filha e praticamente me esqueceu. Uma carta aqui, uma mensagem ali. Nem mesmo quando Luisinho morreu, ela se tornou menos fria. Ficou cada dia mais distante, mais amarga, preocupada extremamente com os negócios orquestrados pela filha, com as vantagens de ter um genro rico. Alguns meses atrás, ela me surpreendeu com um telefonema. Mas acabou, nunca mais nos falamos. Nem sei o que é feito de minha irmã. Quando o telefone toca, o que é muito raro, fico meio alarmada, achando que aconteceu alguma coisa trágica. Sei lá. Esses pensamentos me vem, assim, aos atropelos. Não tem como evitar. Apesar de tudo, ela é minha irmã. Ai, meu Deus, e pensar que o Carlos se perdeu no mundo, imagine, o mundo não é mais inacessível, para um homem com a estrutura econômica dele. Não dizem por aí que o mundo é uma aldeia, mas para o Carlos, parece que não é bem assim. Nunca se casou, viveu exclusivamente para ele, para a sua privacidade. Acho que não queria que nós nos intrometêssemos em sua vida. Tinha lá suas manias, seus caprichos. Se bem que sempre morou tão longe! Às vezes, me vem à lembrança a carinha dele, tão risonha, tão extrovertida, cheia de malícia. Sempre engendrando alguma travessura. Ah, lembro dele, quando menino. Era tão diferente. Como as pessoas podem mudar tanto? O que a vida lhes apronta, que as torna aborrecidas, enfastiadas, amargas? Afinal, hoje em dia, é quase um estranho.

Era menino tão esperto, tão querido. Não podia ter esquecido assim, da gente. Gostava muito de me assustar, mais ainda a Carmem, que era mais boba do que eu. Certa vez, ele inventou uma estratégia de colocar nós duas em pleno acesso de terror. Estávamos deitadas em nosso quarto. Naquela época, a noite começava mais cedo, talvez por volta das 9 horas. Nós estávamos animadas com um tema da aula, que se estendia à freira e suas punições, aos meninos que ficavam em frente da escola. Por um tempo, ficamos no internato e só voltamos para casa nas férias. Minha irmã detestava as colegas, as freiras, o uniforme, as aulas, tudo que se relacionava à escola. Eu, ao contrário, me divertia com o que tinha. Afinal, estava ali, porque era tempo de guerra e papai talvez quisesse proteger-nos, sei lá o que imaginava naquela cabecinha dele. Acho que tinha medo que os alemães invadissem pelo porto e fizessem alguma maldade conosco. Coisas de meu pai. Minha mãe, por outro lado, tinha outros pensamentos bem menos nobres. Veja você, Rita. Ela praticamente forçou o meu pai a matricular-nos nesta escola caríssima, usada exclusivamente pela elite. Na minha idade, Rita, a gente tem em mente coisas assim, inexpressivas, nada relevantes para os dias atuais. Mas me lembro como se fosse hoje, de minha mãe, lendo o regulamento da escola para meu pai. Sei de cor as palavras, frases e expressões. Se não, ouça:

“Aprende-se na escola uma concepção do masculino e do feminino que possibilita julgar natural que meninos e meninas desenvolvam determinadas competências, habilidades e sensibilidades. Aprende-se também que ocupamos uma posição nas hierarquias sociais, ou seja, uma escola constituída por gente que o próprio nome apresenta a pessoa.”

Você percebe a malícia da coisa, Rita? A perspicácia de minha mãe? Ela sabia muito bem que aquela escola distinguia muito bem as habilidades entre homens e mulheres, que segundo o seu pensamento, eram criaturas diferentes, que tinham objetivos distintos. Homem era homem, tinha seus privilégios, liberdade, podia namorar quem quisesse, ter seus casos, andar com as putas da vida e tudo estava arranjado. Como dizia a minha avó, depois do ato, sacudia as cuecas e estava tudo bem. Não respingava nada na sua reputação, mas a mulher, Deus me livre, ou ficava mal falada ou embuchada! Meu Deus, como estou ficando obscena. Deve ser a convivência com a Dulcina.

Mas o que eu estava falando mesmo? Ah, da minha mãe. Coitada, no fundo, ela só queria o nosso bem, mas do jeito dela, você sabe. Mãe tem dessas coisas, de escolher o futuro dos filhos. De pensar que pode pintar o quadro segundo a sua ótica. Mas, na maioria das vezes, o quadro vira um caos, uma mistura de tintas que não tem vanguarda que aceite! Eu, por exemplo, se pudesse interferir na vida do Luisinho, ele nunca tinha casado com aquela lá. Mas isso, é outra história, aliás, bem mais adiante daquele tempo!

E tem outro aspecto, Rita. Além disso, minha mãe identificava a riqueza das famílias que punham seus filhos naquela escola e queria esta vivência para nós também. Queria que fôssemos diferentes daqueles pés rapados que frequentavam a nossa casa, principalmente os amigos de Carlos, os quais deplorava. No fundo, o seu desejo era que nos uníssemos às pessoas de classe alta, para que crescêssemos, tal como eles. Um sobrenome conhecido tinha prestígio, abria portas, trazia dividendos. Some-se a isto, o fato de que as escolas católicas significavam o criadouro por excelência da formação de grupos de elite no Brasil, isto desde o período colonial. Imagine, devia pensar ela, matricular as meninas num estabelecimento renomado como esse, representava uma dupla operação de agregação e segregação social, pois mantinha a distância espacial e social dos grupos populares e nos mantinha no seio das famílias renomadas. Finalmente, para fechar o quadro, costumavam casar-se no mesmo grupo para perpetuar o bom nome da família e não arriscar misturas extravagantes.

Sabe Rita, lembro do primeiro dia em que tivemos que usar o uniforme. Pior do que usá-lo era o ritual de despirmos, na hora de dormir, pontualmente às 22 horas, as freiras apagavam as luzes do dormitório. Ah, era realmente muito engraçado. Imagine uma coisa dessas nos dias atuais. A meninada se revoltaria, na certa.

Minha mãe desceu do carro de praça e nos apresentou à Madre Superiora. Ela estava convenientemente vestida. Trazia na cabeça um chapéu de feltro, pequeno, estilo militar, que pela posição produzia uma leve sombra nos olhos. Mamãe era muito bonita. Os olhos claros, azulados. A boca bem desenhada, com um batom não muito forte, evitando parecer artificial. A pele branca de pó de arroz. Trajava um vestido do tipo que imitava uma saia com casaco, em tweed com pregas finas e envolto num cinturão de verniz. O sapato era fechado, preto, de salto grosso e um laço que fazia as vezes de cadarço, cujos pés ocultavam as meias de náilon que lhe emolduravam as pernas longas e firmes. Para completar, uma bolsa marroquin e Karoseal estampado, em preto e branco. Ela em nada destoava das demais mães que frequentavam a escola: estava muito elegante.

Conversaram um longo tempo e em seguida pareciam grandes amigas. A madre superiora apresentou a escola, após descrever toda a metodologia pedagógica tanto nos aspectos acadêmicos quanto religiosos. Interessava-nos, porém, o pátio que nos parecia imenso, num estranho formato em u, repleto de bancos sob árvores frondosas e um pequeno chafariz vindo da França dividia o hall distinguia o pátio da entrada aos prédios, à capela, aos apartamentos das freiras, aos dormitórios, enfim, a planta geral da escola. Algum tempo depois, alegando outras atividades, deixou-nos sozinhas.

Sentamos as três num dos bancos da escola praticamente deserta, por tratar-se num período de fim de ano. Minha mãe mostrava-se forte, mas eu percebia que seu olhar estava pesado, suas mãos até tremiam. Carmem chorava muito, agarrada em seu pescoço. Eu ensaiei algumas lágrimas, por pura imitação. Estava triste, mas ao mesmo tempo, muito animada com aquele ambiente novo, aquelas novidades que se me apresentavam. Na verdade, só uma coisa me deixava triste: o meu piano, que ficaria abandonado, à mercê da poeira diária, no qual somente tocaria quando voltasse para casa. Quando minha mãe saiu e a vi afastar-se no carro de praça, foi o único momento que senti meu coração apertado, como se a realidade se antecipasse ao sonho, ali, dura, petrificada, sem volta. Mas, logo em seguida, ao sermos chamadas e apresentadas aos nossos uniformes, já me dei por satisfeita. Carmem os detestou, e com razão. Eram um estorvo aos movimentos. A começar pelas roupas íntimas. Devíamos usar calçolas, cujos elásticos se prendiam às pernas, formando uma espécie de balão. Sobre os seios, havia uma faixa, não recordo muito bem o nome daquele veste, cujo objetivo era transformar-nos numa tábua. Imagine, aquela espécie de atadura envolvendo todo o nosso corpo. Carmem costumava sentir falta de ar. Na verdade, sempre achei que era fita dela. Não era pra tanto. Depois desses primeiros vestuários, colocávamos uma anágua de algodão que descansava nos joelhos. Sobre tudo isso, o uniforme azul-marinho. Uma saia pregueada casaco marinho sobre a blusa branca, de gola e punhos engomados. Nas pernas, meias que iam até os joelhos e nos pés, sapatos pretos, de salto baixo, bem lustrosos.

Ai,ai, ai, Rita, que engraçado... Eu já lhe contei sobre a hora de dormir, quando tínhamos de despir tudo aquilo? Ah, pois bem. Ficava uma freira na porta, aguardando que todas se acomodassem. Nós naturalmente nos despíamos do casaco, mas as demais peças exigiam um verdadeiro protocolo para serem retiradas. Enfiávamos a camisola imensa, de cambraia, que ia até os pés e em seguida, retirávamos por debaixo as demais peças, a blusa, a saia pregueada, a cinta que cobria os seios e nos deitávamos. Quando tudo estava quieto, a freira apagava a luz e se afastava. Não admitia um sussurro.

Mas imagine você, que certa vez, eu sonhei em ser freira! Acho que em virtude daquele cerimonial todo, aquela disciplina quase sagrada, aquela religiosidade... mas foi passageiro. Logo que botei o pé na rua e conheci o Jaime, percebi que o meu mundo era outro. Mas isso é história para outro dia.

Me parece que ia lhe falar alguma coisa sobre o Carlos, mas dei de ter estas falhas de memória – deixa pra lá, a gente ainda tem muito o que conversar, Rita.

terça-feira, fevereiro 09, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IX

HOJE, TERÇA-FEIRA 09/02/2016, CONTINUAMOS O NOSSO FOLHETIM "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 9º CAPÍTULO.

Capítulo 9


Susana temia demonstrar o caos que estava sua mente e em seu coração. Quantas vezes viera à clínica, quantas vezes entrara naquele quarto de reflexos nas paredes, um quarto despido de vida, de sensibilidade, de sensações. Um quarto nu.

Entrou devagar, passos imprecisos, falseando o salto, como se obstáculos ocultos a impedissem de avançar, de se aproximar do homem que vivia distante, alienado, transbordando de dor e mágoa, ou apenas inerte, como uma poça dágua inatingível, escondida sob o alpendre, se deteriorando dia a dia.

Estava lá, na cadeira isolada na sala branca, de sombras esparsas na parede, como se o sol de vez em quando aparecesse entre as nuvens e produzisse figuras que passeavam indiscretas, incontestes sem qualquer censura. Figuras que não significavam nada, apenas a solidão, a apatia, o desapego dos vivos.

Ele a olhou como quem avista um objeto qualquer, um móvel, um livro já lido, um brinquedo velho, uma roupa usada. Logo desviou o olhar e se deteve nas mãos, examinando-as com cuidado, observando-lhes talvez as reentrâncias das veias que modelavam mapas frágeis, quase apagados. Mãos brancas, descarnadas, transparentes. Assim como a face, na qual Susana observava as veias azuladas, os olhos fundos, claros, com um brilho aquoso, disperso. A boca entreaberta, com falhas de dentes, o nariz saliente, vermelho, contrastando com a palidez do rosto. Examinava as mãos em direção à luz da janela, ora uma, ora outra. Às vezes, juntava-as em gesto de prece e punha-as no queixo, por alguns segundos. Logo desistia e prosseguia na posição anterior. Quando muito, cansava-se e abandonava-as sobre as pernas, vestidas em pijamas de algodão. Tão finas, tão frágeis, que escapavam da cadeira, os pés vez que outra, desandavam ao solo, caindo do suporte e assim, perdendo os chinelos de couro. Seus pés também tinham veias azuis e eram tão brancos e transparentes quanto as mãos.

Susana aproximou-se mais e pousou delicada, a mão nos cabelos raros, brancos sobre o couro róseo e talvez se observasse atenta, também veria veias azuis, como pequenos fios na iminência de serem rompidos.

Ele sorriu, reflexo do carinho inesperado. Mas ela não se animou: sabia tratar-se de reação instintiva. Doía ainda mais aquele sorriso desdentado, aquele olhar enfermo, quase infantil. Uma larva que se soltava do casulo, lentamente, metamorfoseando-se, despedindo-se da vida medíocre; quem sabe alcançando outra dimensão, tal como a borboleta, cujas asas pousam perpendiculares ao corpo, mostrando ao mundo o equilíbrio jamais acessado.

Em seguida, esqueceu o carinho. Voltou-se para a janela que jogava luz do pátio, fabricando sombras e deixou-se ficar, absorto, alheio a tudo, sem lembranças, sem passado, sem futuro.

Susana ficou ali, tentando lembrar a imagem do pai, no passado e carregar consigo apenas aquela, que lhe transmitia segurança, integridade, virtuosismo. Um homem que emancipara mentes, que programara padrões de comportamento, que nunca prescindira da realidade, que tratara os pacientes como indivíduos, revelando neles as capacidades que temiam enxergar. Agora estava ali, como um trapo inerte, um objeto obtuso, sem qualquer valor, a não ser deixar o tempo passar e consumir os momentos conclusivos de sua existência.

Afasta-se alguns passos e enxuga as lágrimas com o dorso da mão. Sente-se vergar como bambu ao vento, arremessado pela força invisível, cujas estratégias e comandos desconhece. Um peso que não consegue carregar com dignidade. Uma dor que corrói, avassala, destrói.

Suspira e passeia pela sala, tentando ver o que seu coração não admite: o mundo particular em que o pai se escondeu e dali não encontra saída, labirinto execrável, que também a envolve, que a esconde do passado, que a afasta do presente. Um mergulho irreal no cotidiano, vivendo do jeito disforme, estranho, de quem perde a fé, a esperança, o amor. De quem desconhece o sabor do carinho, do afeto, da chegada. De quem só avista partidas, cujas voltas nada significam a não ser o desvio da realidade para uma vida virtual que não é a sua. Nem a dele.

Aproxima-se novamente e o beija no rosto. Mais um carinho na fronte, mais um olhar nos olhos. Ritual que cumpre, apenas factível e rotineiro. Não queria permanecer ali, não queria aquela lembrança do pai, não queria assistir um fantasma, um corpo quase objeto. Repetiu os passos de volta, rapidamente e abriu a porta com cautela, sem fazer barulho. Ao torcer a maçaneta, porém, teve a impressão de uma presença, como se ele tivesse reagido de algum modo. Era apenas uma impressão, sabia. Um devaneio, um delírio. Mas havia algo estranho, um som inaudito, um sussurro, um suspiro inesperado. Largou a maçaneta, esfolando os dedos afoitos, voltou-se estarrecida. Ele virava o rosto em sua direção, fixando o olhar com ternura. Sua voz soou trêmula, sumida, mas com uma verdade tão lúcida, que a fez estremecer, segurando-se à porta. Suas pernas fraquejaram, seu coração antecipou-se, batendo desordenado. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Seus ouvidos alertaram-se.

_Por favor, minha filha. Não me deixe perder a lucidez. Quando acontecer novamente, faça alguma coisa para o meu coração parar. Eu lhe peço. É um ato de amor.

Naquele momento, não conteve a explosão de soluços, como se as lágrimas se espalhassem, comportas fossem abertas, deixando evadir toda a mágoa e sofrimento. Era muito doído o que ele expressava. Mas ao mesmo tempo, muito humano e muito digno.

Não continha as lágrimas enquanto deixava o estacionamento do jornal. Naquele dia, especialmente, sentia-se desprotegida e só. O passado que revirava em virtude das conversas com Úrsula, inclusive a imagem desfocada do homem do prédio defronte, produziam em seu íntimo uma angústia que a oprimia. De repente, todas as culpas, todos os sentimentos estranhos de quem tomou uma atitude decisiva e inevitável, surgem em polvorosa, descambando por caminhos íngremes, irregulares, povoando a sua mente. Como se pisasse em charcos, moldando a lama, insurgindo-se entre ratos fugidios de bueiros ocultos, olhos reluzentes sob faróis inesperados. Sentia um arrepio estranho. Enxugava as lágrimas, tentando se recompor na presença do manobrista. Fez do pequeno espelho seu escudo, retocando a maquiagem, de modo a produzir um semblante tranquilo, escondendo o que seu coração oprimido revelava. Despediu-se rapidamente, enquanto outros colegas se aproximavam de seus veículos. O editor que havia discutido a pauta diária e ainda sugerido pressa na conclusão da biografia, correra ao seu encontro. Um homem magro, rosto fino e longo, olhos claros, argutos, de quem possui a sagacidade como instrumento preponderante de suas atitudes. Susana fingiu não vê-lo, mas o manobrista fez sinal com o apito, obrigando-a a frear o carro próximo a uma coluna.

O que aconteceu, Vinícius?

–Susana, acabei de obter uma informação importante sobre a sua biografia. Não podia deixar de avisá-la. Nem desci pelo elevador, pra poder alcançá-la mais rápido.

–Por que não ligou?

–Queria falar pessoalmente, é que se você quiser, podemos ir juntos. O lugar onde a fonte mora não é lá estas coisas de segurança. Um lugar meio mal afamado.

–De quem se trata?

–Um amigo do seu biografado. Parece que conhecia muito bem o Jaime. Pode ser até que você consiga outro viés da imagem dele.

–Você está muito interessado no meu trabalho.

–Sou o editor de reportagem, esquece? Que há com você Susana, to prestando um favor e parece não estar interessada!

–Desculpe, Vinícius. Estou muito interessada, sim. É que hoje foi um dia daqueles, você mesmo viu na discussão da pauta. Com a barafunda econômica que está o mundo, nós é que sofremos. Sim, porque atualmente, não há um especialista por área, todo mundo faz tudo, qualquer dia, um cara especializado em literatura, vai discutir economia.

–Que rebelião é esta, menina? Não se esqueça que sou o seu chefe.

–Está bem, chefe. Podemos conversar amanhã sobre a tal fonte?

–Eu pensei que poderíamos falar nisso mais tarde.

–Mais tarde, eu vou dormir. Agora, eu vou pra minha casinha e você pra sua. Só me diga o nome da pessoa, dona Úrsula pode conhecer.

–Parece que é um professor aposentado. Um tal de Gregório, se não me engano.

Quando se afastou do prédio, sentia a alma livre. Ainda observara a figura de Vinicius, conversando com o manobrista, todo sorrisos, como é do seu feitio.

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO VIII

Capítulo 8

HOJE, QUINTA-FEIRA 04/02/2016, CONTINUAMOS O NOSSO FOLHETIM "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 8º CAPÍTULO.


–Cruz credo! A senhora ta com espírito ruim! Eu nem bem cheguei e a senhora ta me mandando sair. Que aconteceu dona Úrsula?

Úrsula abre os olhos, ainda estirada no sofá, sem entender muito bem o que está acontecendo. Dulcina a sua frente, falando sem cessar e uma luz forte invade a sala, ferindo a retina. Um olhar apalermado de quem não teve uma boa noite de sono.

–Tá com cara de quem tava na gandaia. Parece que passou a noite de porre!

–Me respeita, Dulcina. Não seja atrevida.

– Desculpa, dona Úrsula, mas me diga uma coisa, a senhora dormiu?

– Não sei, acho que dormi. Agora dei pra dormir, não sei se fico feliz ou assustada. Eu, que não saía da minha janela, que passava a noite vendo o céu escurecer e clarear, agora, fico dormindo no sofá. Será que você não me deu nada pra dormir?

–Ei, me tira dessa jogada. Não me mete em fria. A senhora quase me ferrou, ontem à noite. Agora que me acusar de envenenamento.

– Eu nem sei porque aturo você.

–Porque gosta de mim. Porque só tem eu pra conversar, pra brigar, pra botar os bicho pra fora.

–Você é muito convencida, mesmo. Mas como você entrou?

–Dona Úrsula, esqueceu que eu tenho a chave? Só não tenho a do prédio, lá de baixo, mas a do apartamento está aqui, comigo.

–Como é que eu fiz uma loucura destas, dar a chave pra você, que perigo estou correndo.

–Perigo nenhum, ao contrário, se bate as bota, de repente, tem que ter alguém pra abrir a porta.

–Ora, não diga bobagens, sua atrevida. Principalmente depois do que você me disse.

–O que eu disse?

–Eu não vou repetir.

–A senhora é quem sabe, mas tenho certeza de que não disse nada de mal. Muito pelo contrário, tudo que lhe digo é pra lhe deixá bem, pra cima!

–E sobre o meu algoz?

–Sobre o quê?

–Deixa pra lá.

–Ah, não, se começou, tem que terminá. Mas, eu to ligada. Se refere ao velho do prédio da frente, né? Eu tava brincando, não vou trabalhar com ele, não – sorri, acariciando a voz, outrora robusta e altiva, agora doce e suave –ta louca, pensa que vou limpá bunda de marmanjo? Gosto de trabalhar com gente assim, que nem a senhora, elegante, culta, artista.

–Por que você disse isso?

–Isso o quê? Que é artista? Ué, a senhora não toca piano?

–Me refiro ao velho, sua tonta. Nem me atrevo repetir o que você disse.

–Ah, sobre limpá a bunda dele? A Marielsa do 42, aquela pretinha nanica, sabe quem é ela, a que trabalha com o casal do banco – está bem, está bem. Não interessa, fale do velho – pois é, a Marielsa disse que ele faz as necessidades nas calças, parece que não dá tempo. Sabe como é, o cérebro não comanda. Um tico não bate com o outro, entende?

–Bem feito!

–Credo, como a senhora é má!

–Só eu sei o motivo. Mas parece que você não gosta dele, também.

– Ele fica cuidando a senhora. Não pense que ele não fica planejando alguma coisa, falando sozinho, de vez enquanto, dando uma olhada.

–Planejando o quê?

–E eu vou saber? A senhora também tá sempre matutando. Coisa de velho, ora. Agora, se me dá licença, vou pro meu trabalho.

–Você é muito desrespeitosa, Dulcina, sabia?

terça-feira, fevereiro 02, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO VII

HOJE, TERÇA-FEIRA, DIA 2 DE FEVEREIRO, RETOMAMOS A PUBLICAÇÃO DO NOSSO FOLHETIM. A SEGUIR, O CAPÍTULO 7.

Capítulo 7
Carmem chegou de mansinho, pisando macio no piso encerado. Usava saltos médios, num sapato preto, fechado, assim como todo o vestuário. Um conjunto preto, de saia e blusa, acompanhado do casaco que a deixava mais magra do que o habitual. O rosto pálido, lábios sem cor e olhos fundos e grandes, num castanho escuro que parecia fixar-se apenas por segundos, sem focalizar bem o que devia ver. Cumprimentou friamente Úrsula, percebendo o nervosismo da irmã, o que inevitavelmente a irritava. Não conseguia disfarçar o mau-humor, ao contrário, esforçava-se em mostrar o desconforto que ora a acometia. Úrsula convidou-a a sentar na poltrona situada em sua frente. Percebeu que a irmã girou o olhar rapidamente em torno, procurando um objeto fora do lugar ou algum resquício de poeira sobre os móveis. Era dada à perfeição, à limpeza extrema, ao cuidado com a organização, à arrumação da casa e qualquer coisa fora do lugar, a deixava apreensiva, oprimida, nervosa. Úrsula investigou rapidamente e retirou um copo de bebida sem qualquer utilidade sobre a mesa de centro, além de alguns guardanapos de pano, há pouco usados. Pediu que a empregada os levasse e imediatamente sentou-se ao seu lado. Esperou que a irmã lhe dissesse a que veio. Não havendo reação, experimentou perguntar pela filha. Carmem mostrou-se seca, restritiva. _Não vim aqui falar Maria Helena. Às vezes, tenho a impressão que você só pergunta para me agredir. Úrsula passou a mão pelo cabelo doirado, estirando para o alto, alguns cachos que lhe caíam na testa. Alongou o pescoço, empurrando uns portas-copo sobre a mesa, como se estes estivessem fora de lugar. Concluiu: _Não entendo esse seu aborrecimento. É natural que pergunte por ela. Há tanto tempo que não vejo minha sobrinha. _Você sabe o quanto me desagrada este assunto. Eu nunca concordei com esta viagem, logo ela, uma mulher solteira. Imagine o que devem dizer as línguas ferinas de nossa família. _Nossa família é tão pequena, Carmem. _Mas e os amigos, e o nosso grupo social? _E o que ela faz em Paris? _De tudo um pouco: arte, protesto, manifestações femininas... Gastando o dinheiro que o pai deixou! Eu fico possessa só em pensar. _Então não vamos mais falar nisso, Carmem. Vamos tomar um licor? Carmem estica o pescoço e a encara por um minuto. Seu olhar é ao mesmo tempo de desaprovação e ansiedade. _Esqueceu que eu não bebo? Eu vim aqui, para saber de você. Sabe que fecharam o congresso, que Brasília está virada num deus-nos-acuda! E o que você pensa que o Jaime foi fazer lá? Úrsula suspira, resignada. No fundo, sabe que a irmã tem um pouco de razão, mas não há nada que possa fazer pra mudar o rumo dos acontecimentos. _Eu não penso. Eu só imagino. Não se tem certeza de nada, você sabe. Carmem altera o tom de voz, mais agressiva. _Ele devia se abster de falar em política, em problemas sociais. Ele não tem que se meter nestes assuntos. Não é um bom jornalista? Que invente outra coisa! _Desculpe, Carmem, mas você não veio aqui apenas para criticar o trabalho de meu marido. Levanta-se num salto e passeia pela sala, triunfal. _Estou preocupada com você. E se ele for preso, exilado? O que você vai fazer aqui, nesta casa, sozinha? _E o que você faz na sua? _É diferente, você sabe. Tenho orgulho do meu marido, ele morreu, mas foi um homem que viveu dentro da lei, dentro da ordem social. Tudo que lhe aconteceu, foi uma fatalidade, que pode acontecer com qualquer um. Úrsula também se levanta, na tentativa inconsciente de pontuar uma interrupção definitiva no assunto. Enfrenta a irmã, avessa a discussões. Sabe que jamais concordarão em alguma coisa que se refira ao tema. Talvez jamais concordem em alguma coisa. _Carmem, se vamos continuar neste tom, acho melhor pararmos por aqui. É uma discussão estéril, que não leva a nada. Carmem se regozija com a indignação da irmã. Tanto, que revela-se subitamente tranquila. _Se você pensa assim... Eu só vim para ajudá-la. Mas você é cabeça dura, aliás, desde pequena. Sempre com a mania de ler aqueles livros idiotas, de saber mais do que todos, de pensar que conhecia muito do mundo. Deu no que deu. _Essas são conclusões suas. Eu nunca pensei que sabia mais do que ninguém. – afasta-se até a janela e responde absorta. De repente, uma brisa suave invade o ambiente. Uma vida que corre lá fora, um ar noturno que traz luzes intensas, de quem tem expectativas e esperanças. Observa o prédio defronte ao seu, finalmente construído. Um caminhão de mudança e pessoas felizes imaginam-se na casa nova. Carmem também olha pela janela, aproximando-se, descansando os cotovelos no parapeito. Prossegue no assunto, que talvez a tenha levado visitar a irmã. _E essa ideia agora, de morar em apartamento. Você, que tinha aquela casa maravilhosa que nosso pai nos deixou. Aliás, não sei porque que ficou com a sua família. _Não vamos retomar este assunto, por favor, Carmem. Você mesma na época concordou, porque estava bem casada com um homem potencialmente rico. Não lhe interessava aquela casa, nem o passado que havia ali. Tinha ojeriza por tudo que lembrasse a nossa família. _Mas a casa era minha também. Se você cuidou do velho até o fim, é problema seu. Eu não cuidava porque tinha meus afazeres, a minha vida de mulher casada com homem importante. Além disso, naquela época estava grávida. Mas, você foi namorar um cara sem eira nem beira – e falando em tom mais baixo, quase sussurro – um comunista. Úrsula ri, não sabe se pela expressão dissimulada da irmã ou pela aflição que o assunto provoca. _Por que está rindo? Porque estou dizendo a verdade? _Não, porque você confunde tudo, Carmem. _Mais uma vez, está me taxando de burra. _Não é isso. Você acabou de afirmar que o Jaime era comunista. _E não é? Por acaso estou mentindo? E aquelas baboseiras contra o governo, contra a revolução? – e diminui a inflexão da voz novamente – Meu marido era da Marinha, não se esqueça disso. Ele tinha todas as informações confidenciais sobre o Jaime. Úrsula ao contrário da irmã, aumenta o tom, incisiva. _Ele é um socialista sim, mas não pertence ao partido comunista, aliás, não é filiado a partido nenhum. Todo mundo que pensa diferente do que está aí, no poder, é comunista, pra vocês! _Olhe aqui, Úrsula. Não quero discutir política. Só vim para tentar botar um pouco de miolo bom nesta sua cabeça, mas parece que perdi o meu tempo. _E o que você veio me aconselhar? Carmem ficou em silencio. Não esperava aquela pergunta tão direta. Então, tangenciou na resposta. _Você mudou de assunto. Estava falando da casa, deste apartamento. Por que é que se mudou, afinal? Lá não era boa, o bastante? _É muito simples, minha irmã. Porque fica perto do jornal onde o Jaime trabalha. Além disso, acomodamos todos os nossos móveis, de modo a juntar conforto e praticidade. Aqui tem o gabinete dele, o escritório com toda a sua papelada, seus livros, sua máquina de escrever. Também tenho o meu piano, numa sala especial para ele, como reparou. É um bom apartamento, não acha? Aquela casa estava ficando grande demais, com muitos problemas para resolver. Uma casa antiga precisa de conservação, cuidado. E depois que papai morreu, tudo ficou mais difícil. Eu dando aulas de piano, Jaime não ganha muito bem. _Mas você não pode vender a casa. Ela precisa ser divida entre os herdeiros. Maria Helena já tem mais de 20 anos. Tem direito a uma parte da herança, assim como eu, o Carlos, nosso irmão. _Mas você esqueceu que papai doou para mim, antes de morrer? Você e o Carlos concordaram. Ele, inclusive nunca mais voltou do exterior, nem para o enterro de papai. _Mas aquilo foi um devaneio do velho. Estava fraco, doente. E só inventou esta doação porque você estava ali, dia a dia, cuidando dele, paparicando. A minha vida era atribulada, eu tinha meus compromissos com a família, com meu marido. _Mas não foi seu devaneio. Você aceitou. Seu marido estava presente. Havia testemunhas. _Mas não houve testamento. Não há documento registrado. Não há provas. _O que você quer dizer? _Que precisamos fazer o inventário da casa. Precisamos dividi-la legalmente. _Mas eu pretendia quitar o apartamento com a venda da casa. _Mas você acha justo, você sozinha tomar conta de um bem que é de todos? Não interessa se tenho fortuna, se meu patrimônio é maior do que o seu, se sou agraciada pela pensão de meu marido. Isso é um problema meu. A herança é de todos, não de uma única pessoa. Por acaso, eu sou culpada se você casou com um pé rapado? _Por favor, Carmem, vá embora. _Agora não lhe interessa me ouvir, não é mesmo? Quando se falou em dinheiro, aí as coisas mudam. Queria ver a cara do seu Jaime, se ouvisse isso, ele que é socialista, que quer ver tudo dividido, que quer os pobres no poder. É bem capaz de sonhar com um operário na presidência. Aí sim, o Brasil vai à bancarrota! _Saia daqui, Carmem. Saia daqui!

sexta-feira, janeiro 22, 2016

Mormaço de domingo

Sentia o cheiro acre das calçadas sujas. O encardido denso esquentava os paralelepípedos mal estruturados. Um sol de ressaca, quase mormaço, mas nada pior do que o constrangimento de vê-lo ali, estirado na esquina, encostado no átrio da porta. Parecia franzino, quando o avistei do outro lado da rua. Cabeça estirada nas tijoletas quentes, os cabelos revoltos, os braços escondidos sob o corpo. Por um momento, pensei em chamá-lo, acordá-lo do torpor, que me parecia, se encontrava. Outras pessoas passavam mais adiante, olhavam curiosas, como eu, mas se dispersavam logo: um mendigo, um drogado que se abateu na noite e se transformou naquela figura estática e indefesa.

Talvez não houvesse o que fazer mesmo. Para que acordá-lo? Por que trazê-lo ao mundo dos normais, se havia talvez muito mais intensidade na conduta que o levara ao abandono que ora demonstrava? Talvez uma noite de festa, bebedeiras, mulheres, alegria, e todos os prazeres da carne e da mente. Do físico, da alma?

Uma pequena inveja assolou minha alma, por um momento. Pudesse eu desfrutar daqueles momentos de derrame da vida, mesmo que o resultado fosse uma poça de baba na boca, uns olhos apertados no sol, o corpo doído na calçada suja.

Nem sei se pela inveja ou por piedade, ou mesmo medo de que fosse vilipendiado, roubado, ou mesmo assassinado, que o chamei. Afinal, não se tratava de um mendigo, haja vista as roupas que usava. Um paletó cinza, camisa preta, calça de um cinza mais claro e sapatos sociais. Não havia dúvida que foi o que me levou a tentar acordá-lo. Se fosse um mendigo miserável ou um craqueiro indesejável, eu como de resto, seguindo o senso comum das pessoas de bem, me afastaria rapidamente, provavelmente atravessando para o outro lado da rua e desaparecendo nas calçadas seguintes.

Então me aproximei devagar, dobrei o corpo para que me ouvisse e o chamei algumas vezes. Ele abriu os olhos, apertou-os com força em virtude da luz intensa, fechou-os rapidamente, virou o corpo em direção à parede e esticou as pernas, encolhendo-as novamente, deixando-se ficar na posição fetal. Dava a sensação que não queria conversa.

Insisti: companheiro, não pode ficar aí. É perigoso. Tens documentos, carteira?

Ele não respondeu. Resmungou alguma coisa sem sentido e encolheu-se ainda mais, escondendo a cabeça com as mãos.

Ia desistir do meu intento. Que se amolasse. Que roubassem o seu dinheiro, seus documentos, que o agredissem. O dia passaria rápido, e naquela rua vazia, numa tarde de domingo ensolarado, a solidão era propícia aos vândalos.

Voltei-me, abandonando a ideia de ajudá-lo, quando de repente, num salto, ele se levantou, como se imbuído de uma estranha energia. Então, insisti.

– Companheiro, é melhor ir pra outro lugar. Ficar aí, sozinho, deitado na calçada, não é bom. Alguém pode te assaltar.

Ele não me respondeu. Olhou-me atentamente, como se quisesse descobrir qual era a minha verdadeira intenção. Uma suspeita implícita.

Perguntei, intrigado.

– Escuta, cara, não tens nenhum amigo?

Ele foi taxativo. Olhos arregalados, uma certeza única: meu amigo é Jesus.

Talvez pretendesse dizer-me que não tinha amigos e que não confiava em ninguém. Achei melhor dar por encerrada a minha missão.

– Está bem, só insisto que não fiques aí deitado. Daqui a pouco, pode passar algum policial e vai implicar contigo – e conclui com um “até logo”, entredentes.

Ele voltou a deitar-se, agora sob a marquise do prédio ao lado. Pelo menos, estava na sombra do edifício. Afastei-me alguns metros e ele sussurrou, levantando a cabeça na minha direção.

– Não tenho documentos, não tenho dinheiro, não tenho nada.

Decidi não dar atenção. Estava cansado destas ladainhas. Pessoas que se mostravam incapazes de voltarem para as suas cidades porque perderam tudo, ou que pediam dinheiro porque haviam sido roubadas, ou porque precisavam de um medicamento com urgência. As histórias soçobravam em minha mente e aqueles textos amarfanhados se repetiam da mesma forma como os flanelinhas inventavam maneiras de agradar os presumíveis clientes.

Ele disse aquelas palavras, azulou os olhos aguados e deixou-se ficar na mesma postura, sem iniciativa. Era um convite ao desinteresse. Segui então o meu caminho e enquanto me afastava, lembrava de momentos em que passei sérias dificuldades. Situações absurdas em que fui envolvido sem qualquer lógica que justificasse os sacrifícios passados. Mas, eu era responsável, um homem que sempre trabalhou em toda a sua vida. Não podia ficar me comparando com um homem que fica na passividade permissiva do pedido, da esmola, da auto piedade. Mas volta e meia, surgia a tal da culpa cristã que me acompanhava.

Aos poucos, o mormaço me deixava cada vez mais cansado. O suor escorria pela testa e uma sensação estranha de frio me atingia, como se uma febre terçã se estabelecesse em meu organismo, tornando-me frágil e incapacitado para seguir adiante. Por sorte, havia o banco da pequena praça de esportes, no qual me sentei, estirando as pernas. Tinha a sensação que também as pernas esfriavam e se distanciavam do resto do corpo, como se não mais fizessem parte dele, antecipando-se à grama que ora cercava-me os pés.

Reflexos de histórias passadas, de situações vividas, vinham à tona e se misturavam com a realidade do dia de mormaço. Eram noites quentes que se revezavam com o frio que acompanhavam a rigidez de meu corpo, num desafio entre a vida e a morte. Mas podia ver, ao longe, como numa tela mesclada com vários filmes, mulheres que se aproximavam em danças orgíacas, oferecendo bebidas e sorrindo numa sensualidade mórbida, onde a boca vermelha se aguçava num sangue, que ora escorria derradeiro, como se as mordidas do amor, também fossem as da morte. Ao mesmo tempo em que homens se insinuavam e lambiam suas coxas e seus ventres enquanto prostitutas se aproximavam, misturando taças de champanhe com sugestões sexuais. Talvez meu corpo latejasse de frio e tesão. Talvez o frio que sinta agora seja o medo de aceitar a sexualidade estendida na bandeja, da incapacidade de amar e me relacionar, da infinidade de desejos preteridos e outros engajados em buscas que não eram minhas.

Talvez tenha medo de ajudar aquele rapaz e descobrir em suas vestes, os resquícios das noites dionisíacas, nas quais meu corpo se incendiava e temia descobrir verdades tão ocultas e bem colocadas no rol das intimidades bem aceitas. Talvez tema resgatar esta faculdade de amar, de viver de forma libertina e liberada, de enfrentar a verdade do desapego de meus conceitos, de encontrar nele, aquele que pretendi ser e não fui.

Talvez devesse voltar até a marquise e enfrentar o mormaço do domingo, quem sabe passaria este frio que me enrijece a língua e me impede de falar, como num pesadelo no qual, nos esforçamos em abrir e fechar a boca e o som nunca sai. Quisera ter a coragem de voltar, de encontrá-lo novamente e desafiar o medo que corrói minhas vísceras. Mas se voltar, não será tarde demais? Já passou tanto tempo. Já não existem as noites límpidas, a brisa suave abrigando a testa, o sorriso sincero e a vontade de viver. A vida foi passando assim pálida, assim deslocada da realidade, apenas compartilhando momentos roubados, obscenos, perdidos, alinhados a noites de fúria e medo. Para se tornar plácida, tranquila, morna, insossa, culminando neste mormaço de domingo.

fonte da ilustração: InfoKeywordsCommentsGeo CIMG5050 (2)ee.jpgBy endiku

Postagem em destaque

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

PULICAÇÕES MAIS VISITADAS