terça-feira, fevereiro 02, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO VII

HOJE, TERÇA-FEIRA, DIA 2 DE FEVEREIRO, RETOMAMOS A PUBLICAÇÃO DO NOSSO FOLHETIM. A SEGUIR, O CAPÍTULO 7.

Capítulo 7
Carmem chegou de mansinho, pisando macio no piso encerado. Usava saltos médios, num sapato preto, fechado, assim como todo o vestuário. Um conjunto preto, de saia e blusa, acompanhado do casaco que a deixava mais magra do que o habitual. O rosto pálido, lábios sem cor e olhos fundos e grandes, num castanho escuro que parecia fixar-se apenas por segundos, sem focalizar bem o que devia ver. Cumprimentou friamente Úrsula, percebendo o nervosismo da irmã, o que inevitavelmente a irritava. Não conseguia disfarçar o mau-humor, ao contrário, esforçava-se em mostrar o desconforto que ora a acometia. Úrsula convidou-a a sentar na poltrona situada em sua frente. Percebeu que a irmã girou o olhar rapidamente em torno, procurando um objeto fora do lugar ou algum resquício de poeira sobre os móveis. Era dada à perfeição, à limpeza extrema, ao cuidado com a organização, à arrumação da casa e qualquer coisa fora do lugar, a deixava apreensiva, oprimida, nervosa. Úrsula investigou rapidamente e retirou um copo de bebida sem qualquer utilidade sobre a mesa de centro, além de alguns guardanapos de pano, há pouco usados. Pediu que a empregada os levasse e imediatamente sentou-se ao seu lado. Esperou que a irmã lhe dissesse a que veio. Não havendo reação, experimentou perguntar pela filha. Carmem mostrou-se seca, restritiva. _Não vim aqui falar Maria Helena. Às vezes, tenho a impressão que você só pergunta para me agredir. Úrsula passou a mão pelo cabelo doirado, estirando para o alto, alguns cachos que lhe caíam na testa. Alongou o pescoço, empurrando uns portas-copo sobre a mesa, como se estes estivessem fora de lugar. Concluiu: _Não entendo esse seu aborrecimento. É natural que pergunte por ela. Há tanto tempo que não vejo minha sobrinha. _Você sabe o quanto me desagrada este assunto. Eu nunca concordei com esta viagem, logo ela, uma mulher solteira. Imagine o que devem dizer as línguas ferinas de nossa família. _Nossa família é tão pequena, Carmem. _Mas e os amigos, e o nosso grupo social? _E o que ela faz em Paris? _De tudo um pouco: arte, protesto, manifestações femininas... Gastando o dinheiro que o pai deixou! Eu fico possessa só em pensar. _Então não vamos mais falar nisso, Carmem. Vamos tomar um licor? Carmem estica o pescoço e a encara por um minuto. Seu olhar é ao mesmo tempo de desaprovação e ansiedade. _Esqueceu que eu não bebo? Eu vim aqui, para saber de você. Sabe que fecharam o congresso, que Brasília está virada num deus-nos-acuda! E o que você pensa que o Jaime foi fazer lá? Úrsula suspira, resignada. No fundo, sabe que a irmã tem um pouco de razão, mas não há nada que possa fazer pra mudar o rumo dos acontecimentos. _Eu não penso. Eu só imagino. Não se tem certeza de nada, você sabe. Carmem altera o tom de voz, mais agressiva. _Ele devia se abster de falar em política, em problemas sociais. Ele não tem que se meter nestes assuntos. Não é um bom jornalista? Que invente outra coisa! _Desculpe, Carmem, mas você não veio aqui apenas para criticar o trabalho de meu marido. Levanta-se num salto e passeia pela sala, triunfal. _Estou preocupada com você. E se ele for preso, exilado? O que você vai fazer aqui, nesta casa, sozinha? _E o que você faz na sua? _É diferente, você sabe. Tenho orgulho do meu marido, ele morreu, mas foi um homem que viveu dentro da lei, dentro da ordem social. Tudo que lhe aconteceu, foi uma fatalidade, que pode acontecer com qualquer um. Úrsula também se levanta, na tentativa inconsciente de pontuar uma interrupção definitiva no assunto. Enfrenta a irmã, avessa a discussões. Sabe que jamais concordarão em alguma coisa que se refira ao tema. Talvez jamais concordem em alguma coisa. _Carmem, se vamos continuar neste tom, acho melhor pararmos por aqui. É uma discussão estéril, que não leva a nada. Carmem se regozija com a indignação da irmã. Tanto, que revela-se subitamente tranquila. _Se você pensa assim... Eu só vim para ajudá-la. Mas você é cabeça dura, aliás, desde pequena. Sempre com a mania de ler aqueles livros idiotas, de saber mais do que todos, de pensar que conhecia muito do mundo. Deu no que deu. _Essas são conclusões suas. Eu nunca pensei que sabia mais do que ninguém. – afasta-se até a janela e responde absorta. De repente, uma brisa suave invade o ambiente. Uma vida que corre lá fora, um ar noturno que traz luzes intensas, de quem tem expectativas e esperanças. Observa o prédio defronte ao seu, finalmente construído. Um caminhão de mudança e pessoas felizes imaginam-se na casa nova. Carmem também olha pela janela, aproximando-se, descansando os cotovelos no parapeito. Prossegue no assunto, que talvez a tenha levado visitar a irmã. _E essa ideia agora, de morar em apartamento. Você, que tinha aquela casa maravilhosa que nosso pai nos deixou. Aliás, não sei porque que ficou com a sua família. _Não vamos retomar este assunto, por favor, Carmem. Você mesma na época concordou, porque estava bem casada com um homem potencialmente rico. Não lhe interessava aquela casa, nem o passado que havia ali. Tinha ojeriza por tudo que lembrasse a nossa família. _Mas a casa era minha também. Se você cuidou do velho até o fim, é problema seu. Eu não cuidava porque tinha meus afazeres, a minha vida de mulher casada com homem importante. Além disso, naquela época estava grávida. Mas, você foi namorar um cara sem eira nem beira – e falando em tom mais baixo, quase sussurro – um comunista. Úrsula ri, não sabe se pela expressão dissimulada da irmã ou pela aflição que o assunto provoca. _Por que está rindo? Porque estou dizendo a verdade? _Não, porque você confunde tudo, Carmem. _Mais uma vez, está me taxando de burra. _Não é isso. Você acabou de afirmar que o Jaime era comunista. _E não é? Por acaso estou mentindo? E aquelas baboseiras contra o governo, contra a revolução? – e diminui a inflexão da voz novamente – Meu marido era da Marinha, não se esqueça disso. Ele tinha todas as informações confidenciais sobre o Jaime. Úrsula ao contrário da irmã, aumenta o tom, incisiva. _Ele é um socialista sim, mas não pertence ao partido comunista, aliás, não é filiado a partido nenhum. Todo mundo que pensa diferente do que está aí, no poder, é comunista, pra vocês! _Olhe aqui, Úrsula. Não quero discutir política. Só vim para tentar botar um pouco de miolo bom nesta sua cabeça, mas parece que perdi o meu tempo. _E o que você veio me aconselhar? Carmem ficou em silencio. Não esperava aquela pergunta tão direta. Então, tangenciou na resposta. _Você mudou de assunto. Estava falando da casa, deste apartamento. Por que é que se mudou, afinal? Lá não era boa, o bastante? _É muito simples, minha irmã. Porque fica perto do jornal onde o Jaime trabalha. Além disso, acomodamos todos os nossos móveis, de modo a juntar conforto e praticidade. Aqui tem o gabinete dele, o escritório com toda a sua papelada, seus livros, sua máquina de escrever. Também tenho o meu piano, numa sala especial para ele, como reparou. É um bom apartamento, não acha? Aquela casa estava ficando grande demais, com muitos problemas para resolver. Uma casa antiga precisa de conservação, cuidado. E depois que papai morreu, tudo ficou mais difícil. Eu dando aulas de piano, Jaime não ganha muito bem. _Mas você não pode vender a casa. Ela precisa ser divida entre os herdeiros. Maria Helena já tem mais de 20 anos. Tem direito a uma parte da herança, assim como eu, o Carlos, nosso irmão. _Mas você esqueceu que papai doou para mim, antes de morrer? Você e o Carlos concordaram. Ele, inclusive nunca mais voltou do exterior, nem para o enterro de papai. _Mas aquilo foi um devaneio do velho. Estava fraco, doente. E só inventou esta doação porque você estava ali, dia a dia, cuidando dele, paparicando. A minha vida era atribulada, eu tinha meus compromissos com a família, com meu marido. _Mas não foi seu devaneio. Você aceitou. Seu marido estava presente. Havia testemunhas. _Mas não houve testamento. Não há documento registrado. Não há provas. _O que você quer dizer? _Que precisamos fazer o inventário da casa. Precisamos dividi-la legalmente. _Mas eu pretendia quitar o apartamento com a venda da casa. _Mas você acha justo, você sozinha tomar conta de um bem que é de todos? Não interessa se tenho fortuna, se meu patrimônio é maior do que o seu, se sou agraciada pela pensão de meu marido. Isso é um problema meu. A herança é de todos, não de uma única pessoa. Por acaso, eu sou culpada se você casou com um pé rapado? _Por favor, Carmem, vá embora. _Agora não lhe interessa me ouvir, não é mesmo? Quando se falou em dinheiro, aí as coisas mudam. Queria ver a cara do seu Jaime, se ouvisse isso, ele que é socialista, que quer ver tudo dividido, que quer os pobres no poder. É bem capaz de sonhar com um operário na presidência. Aí sim, o Brasil vai à bancarrota! _Saia daqui, Carmem. Saia daqui!

sexta-feira, janeiro 22, 2016

Mormaço de domingo

Sentia o cheiro acre das calçadas sujas. O encardido denso esquentava os paralelepípedos mal estruturados. Um sol de ressaca, quase mormaço, mas nada pior do que o constrangimento de vê-lo ali, estirado na esquina, encostado no átrio da porta. Parecia franzino, quando o avistei do outro lado da rua. Cabeça estirada nas tijoletas quentes, os cabelos revoltos, os braços escondidos sob o corpo. Por um momento, pensei em chamá-lo, acordá-lo do torpor, que me parecia, se encontrava. Outras pessoas passavam mais adiante, olhavam curiosas, como eu, mas se dispersavam logo: um mendigo, um drogado que se abateu na noite e se transformou naquela figura estática e indefesa.

Talvez não houvesse o que fazer mesmo. Para que acordá-lo? Por que trazê-lo ao mundo dos normais, se havia talvez muito mais intensidade na conduta que o levara ao abandono que ora demonstrava? Talvez uma noite de festa, bebedeiras, mulheres, alegria, e todos os prazeres da carne e da mente. Do físico, da alma?

Uma pequena inveja assolou minha alma, por um momento. Pudesse eu desfrutar daqueles momentos de derrame da vida, mesmo que o resultado fosse uma poça de baba na boca, uns olhos apertados no sol, o corpo doído na calçada suja.

Nem sei se pela inveja ou por piedade, ou mesmo medo de que fosse vilipendiado, roubado, ou mesmo assassinado, que o chamei. Afinal, não se tratava de um mendigo, haja vista as roupas que usava. Um paletó cinza, camisa preta, calça de um cinza mais claro e sapatos sociais. Não havia dúvida que foi o que me levou a tentar acordá-lo. Se fosse um mendigo miserável ou um craqueiro indesejável, eu como de resto, seguindo o senso comum das pessoas de bem, me afastaria rapidamente, provavelmente atravessando para o outro lado da rua e desaparecendo nas calçadas seguintes.

Então me aproximei devagar, dobrei o corpo para que me ouvisse e o chamei algumas vezes. Ele abriu os olhos, apertou-os com força em virtude da luz intensa, fechou-os rapidamente, virou o corpo em direção à parede e esticou as pernas, encolhendo-as novamente, deixando-se ficar na posição fetal. Dava a sensação que não queria conversa.

Insisti: companheiro, não pode ficar aí. É perigoso. Tens documentos, carteira?

Ele não respondeu. Resmungou alguma coisa sem sentido e encolheu-se ainda mais, escondendo a cabeça com as mãos.

Ia desistir do meu intento. Que se amolasse. Que roubassem o seu dinheiro, seus documentos, que o agredissem. O dia passaria rápido, e naquela rua vazia, numa tarde de domingo ensolarado, a solidão era propícia aos vândalos.

Voltei-me, abandonando a ideia de ajudá-lo, quando de repente, num salto, ele se levantou, como se imbuído de uma estranha energia. Então, insisti.

– Companheiro, é melhor ir pra outro lugar. Ficar aí, sozinho, deitado na calçada, não é bom. Alguém pode te assaltar.

Ele não me respondeu. Olhou-me atentamente, como se quisesse descobrir qual era a minha verdadeira intenção. Uma suspeita implícita.

Perguntei, intrigado.

– Escuta, cara, não tens nenhum amigo?

Ele foi taxativo. Olhos arregalados, uma certeza única: meu amigo é Jesus.

Talvez pretendesse dizer-me que não tinha amigos e que não confiava em ninguém. Achei melhor dar por encerrada a minha missão.

– Está bem, só insisto que não fiques aí deitado. Daqui a pouco, pode passar algum policial e vai implicar contigo – e conclui com um “até logo”, entredentes.

Ele voltou a deitar-se, agora sob a marquise do prédio ao lado. Pelo menos, estava na sombra do edifício. Afastei-me alguns metros e ele sussurrou, levantando a cabeça na minha direção.

– Não tenho documentos, não tenho dinheiro, não tenho nada.

Decidi não dar atenção. Estava cansado destas ladainhas. Pessoas que se mostravam incapazes de voltarem para as suas cidades porque perderam tudo, ou que pediam dinheiro porque haviam sido roubadas, ou porque precisavam de um medicamento com urgência. As histórias soçobravam em minha mente e aqueles textos amarfanhados se repetiam da mesma forma como os flanelinhas inventavam maneiras de agradar os presumíveis clientes.

Ele disse aquelas palavras, azulou os olhos aguados e deixou-se ficar na mesma postura, sem iniciativa. Era um convite ao desinteresse. Segui então o meu caminho e enquanto me afastava, lembrava de momentos em que passei sérias dificuldades. Situações absurdas em que fui envolvido sem qualquer lógica que justificasse os sacrifícios passados. Mas, eu era responsável, um homem que sempre trabalhou em toda a sua vida. Não podia ficar me comparando com um homem que fica na passividade permissiva do pedido, da esmola, da auto piedade. Mas volta e meia, surgia a tal da culpa cristã que me acompanhava.

Aos poucos, o mormaço me deixava cada vez mais cansado. O suor escorria pela testa e uma sensação estranha de frio me atingia, como se uma febre terçã se estabelecesse em meu organismo, tornando-me frágil e incapacitado para seguir adiante. Por sorte, havia o banco da pequena praça de esportes, no qual me sentei, estirando as pernas. Tinha a sensação que também as pernas esfriavam e se distanciavam do resto do corpo, como se não mais fizessem parte dele, antecipando-se à grama que ora cercava-me os pés.

Reflexos de histórias passadas, de situações vividas, vinham à tona e se misturavam com a realidade do dia de mormaço. Eram noites quentes que se revezavam com o frio que acompanhavam a rigidez de meu corpo, num desafio entre a vida e a morte. Mas podia ver, ao longe, como numa tela mesclada com vários filmes, mulheres que se aproximavam em danças orgíacas, oferecendo bebidas e sorrindo numa sensualidade mórbida, onde a boca vermelha se aguçava num sangue, que ora escorria derradeiro, como se as mordidas do amor, também fossem as da morte. Ao mesmo tempo em que homens se insinuavam e lambiam suas coxas e seus ventres enquanto prostitutas se aproximavam, misturando taças de champanhe com sugestões sexuais. Talvez meu corpo latejasse de frio e tesão. Talvez o frio que sinta agora seja o medo de aceitar a sexualidade estendida na bandeja, da incapacidade de amar e me relacionar, da infinidade de desejos preteridos e outros engajados em buscas que não eram minhas.

Talvez tenha medo de ajudar aquele rapaz e descobrir em suas vestes, os resquícios das noites dionisíacas, nas quais meu corpo se incendiava e temia descobrir verdades tão ocultas e bem colocadas no rol das intimidades bem aceitas. Talvez tema resgatar esta faculdade de amar, de viver de forma libertina e liberada, de enfrentar a verdade do desapego de meus conceitos, de encontrar nele, aquele que pretendi ser e não fui.

Talvez devesse voltar até a marquise e enfrentar o mormaço do domingo, quem sabe passaria este frio que me enrijece a língua e me impede de falar, como num pesadelo no qual, nos esforçamos em abrir e fechar a boca e o som nunca sai. Quisera ter a coragem de voltar, de encontrá-lo novamente e desafiar o medo que corrói minhas vísceras. Mas se voltar, não será tarde demais? Já passou tanto tempo. Já não existem as noites límpidas, a brisa suave abrigando a testa, o sorriso sincero e a vontade de viver. A vida foi passando assim pálida, assim deslocada da realidade, apenas compartilhando momentos roubados, obscenos, perdidos, alinhados a noites de fúria e medo. Para se tornar plácida, tranquila, morna, insossa, culminando neste mormaço de domingo.

fonte da ilustração: InfoKeywordsCommentsGeo CIMG5050 (2)ee.jpgBy endiku

quinta-feira, janeiro 21, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPITULO V E CAPÍTULO VI

HOJE QUINTA-FEIRA, 21 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS OS CAPÍTULOS QUINTO E SEXTO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.

Capítulo 5

Não poderia ter sido um dia pior do aquele. Ver aquela mulher na minha frente, me olhando enviesada, tentando dissimular o mal-estar, foi um deus-nos-acuda. Se tivesse forças e coragem, teria corrido. desordenada, mas firme, para bem longe. Mas não tive, nem uma nem outra. Susana ficou intrigada, não sabia o que pensar, o que dizer. Quando nossos olhos se encontraram, o meu e o daquela mulher, por certo nossos sentidos se chocaram com a fúria que emoldura e endurece nossas almas. Pudera ficar longe do espectro que me persegue, pudera nunca mais ter o desprazer de encontrar aquele entulho de maldades. Se permanecesse segura e precisa, a ponto de evitar qualquer confronto e dissipar a nuvem e me afastar. Mas não, minhas pernas estremeceram como a vi no velório de meu filho, assumindo uma dor que era só minha. Quanto a odiei naquele dia. Quanto a odeio agora. Ainda estava trêmula e vazia, quando dei por mim. Susana pegou-me a mão, ajudou-me a sentar na poltrona macia da casa de chá. Olhei em torno, mas era como se evitasse o mundo. Nada via, nada sentia, nada me confortava. Tudo agastava e me deixava à deriva.
_A senhora não acha que talvez merecesse uma segunda chance? Não sei a que se referia, não sei que tipo de apoio era esse que só despertava desconfiança, que me deixava irritada e sem paciência. Aquietei o coração e a ouvi, contrariada. Nada disse, nem um gesto efetuei. _Não me refiro a ela, mas sim à senhora. Por que não se dá uma segunda chance e chocalha o que tem por dentro? Grite aos quatro ventos que a odeia, que a quer ver longe, que matou o seu filho! Chore, esbraveje, mas reaja. O que a senhora fez foi um absurdo contra a sua saúde mental. Foi vil, foi covarde. A senhora se anulou. Se humilhou perante seus sentimentos. Na verdade não sei se realmente quer ajudar-me. Parece mais advogado do diabo. Fica assim, insinuando que sou uma idiota, que me deixei levar, que fiquei na janela, ausente do mundo, da vida. O que ela sabe da vida? O que ela sabe de perder um filho? O que ela pensa de mim? _Dona Úrsula, quero apenas que reflita, que se questione. Olhe bem, ela era a mulher do seu filho, mas acabou. Ele não está mais aqui. A senhora não pode cultivar um medo, quase pânico quando a vê. Tive a impressão que teria um infarto, tal era o seu desconforto. A senhora tem que superar isso, tem que enfrentar este passado com quem não tem nada da dever. A senhora não é uma criminosa. _Por favor, Susana. Não me dê mais sermão. Só quero que passe essa aflição, esta angústia para irmos embora. _Não vai tomar o seu chá? _Não. Quero que me leve para casa, logo que me sentir melhor. Se não puder, tomarei um táxi. _Claro que a levarei. Mas acho que deve relaxar um pouco. Tomar o chá, observar as pessoas. Ver a vida de forma diferente. _E há forma diferente pra mim? É tudo cinza. Tudo igual. _Não pode ser tudo igual dona Úrsula. A senhora tem um passado, foi casada com um homem maravilhoso, um jornalista célebre, que enfrentou como pôde a repressão. Teve um filho que foi uma benção. _Você tem razão. Eu tive tudo isso. Só me restou o passado, as lembranças. E as lembranças machucam. Recordar é viver só para os idiotas, não para mim. _A senhora tem o seu piano. Ela segura as minhas mãos com força, como se quisesse me trazer à tona, à realidade, como se pretendesse revirar a minha vida ponta-cabeça. Por um momento, lembro o meu piano, aquele que meu pai lutou para ficar comigo. Aquele que ele livrou da hipoteca. Aquele que me deixou como herança. _Que está pensando, dona Úrsula? _Que você está sendo cruel, Susana. _Sei que sou um remédio amargo. Talvez a pílula que não pediu, mas que pode ser a cura. _Por que diz isso? _Não sei. Talvez baseada no que vi, na sua reação, no seu medo de enfrentar o passado. _E você não teme o passado? Se ela não responde, aí está seu ponto fraco. Há alguma coisa que a importuna, que a deixa estupefata em relação à vida, que não consegue contornar ou sobrepor qualquer uma de suas considerações. Tão fáceis, tão ajustadas ao meu sofrimento. E ao dela? Por que não as usa como proveito? _Na verdade, não. Tenho mais medo de meu presente. O passado até que foi bom. Comum, sem atropelos, sem grandes acontecimentos. _E por que você não fala sobre o que a incomoda, assim como exige de mim. Por que não enfrenta seus fantasmas? _Talvez porque não sejam fantasmas. Estão presentes na minha vida. Mas espere, vamos pedir o chá, já que estamos conversando. Acho que a senhora não vai desistir, vai? _Sabe o que eu acho? É que você não quer falar sobre a sua vida. Agora, em casa, pressinto que alguma mudança se operou em nossas almas, talvez tanto em mim quanto nela. Por certo, uma leve brisa, uma pequena brecha, uma busca. Tudo porém vem acrescido de muito sofrimento. Uma dor que se constrói e se consome em si mesma. Quando mexe, quando revolve a areia, vira deserto, vira tempestade. Não devia ser assim. Não se devia mexer com os mortos. São ossos enterrados, se deteriorando num passado que tem vida própria, que vem e vai quando quer, principalmente quando se tem a minha idade e se fica esperando não sei o quê, pela janela. No final das contas, estendemos um tapete vermelho e passamos incólumes, sem nenhum arranhão, porque não tivemos coragem de mergulhar no conteúdo escondido, que nos propomos espiar. Espiar, afastar as teias, encontrar o fundo do baú, o fundo do poço, o inicio do túnel, a luz que se esvai. Como esta, tênue que se apaga, deixando riscos vermelhos ao longe, transformando-se num negrume esquisito de prenúncio de tempestade. Procela agitada por raios luzidios, afundando navios, derrubando recifes. Como diria o poeta, viver é navegar, mas saber navegar é muito difícil. _Dona Úrsula, eu to indo. Meu Deus, pensei que estava sozinha. Como Dulcina invade assim minha privacidade que já é pouca, como ultrapassa a barreira da civilidade e interrompe minhas idéias, com a sofreguidão do tempo. Sempre pronta às frivolidades, aos anseios da busca lá fora por coisa desconhecida, que nem ela nem ninguém consegue encontrar. E pensa que é feliz. _A senhora ouviu o que eu disse? _Ouvi, criatura. Você me assustou. Por que vai tão tarde? _Tava bom o passeio? _Que passeio, Dulcina? Fui ao cemitério, visitar o túmulo de meu filho. _Todo este tempo? _Sabe o que eu devia fazer? Era mandá-la embora, demiti-la! Você já ouviu esta palavra? _Tá bom, não ta mais aqui quem falou. O pobrema é o seguinte: eu tava aqui esperando a senhora, porque hoje é dia de pagamento. Esqueceu? ¬_Você é uma crioula atrevida, sabia? _Alto lá. Eu posso processar a senhora por racismo. _Pois faça o que quiser, desde que me deixe em paz! _E o meu dinheiro? _Não sei, hoje não fui ao banco. _E passou a tarde fazendo o que? Batendo perna com aquela branquela? _Por favor, Dulcina, vá embora. Amanhã eu vou ao banco na primeira hora e acertamos tudo, está bem? _Bem não ta, né. Se não tem dinheiro, não tem passagem, se não tem passagem, não posso ir embora, se vou embora, não posso voltar porque não tem passagem de volta. _E o que você quer que eu faça? _A senhora não sei. Eu sei que vou ter que ficar aqui. _Aqui? Você enlouqueceu? _Não tem remédio. Ou a senhora me paga o que me deve, ou eu passo a noite aqui. E já lhe aviso, encerrei o expediente. Não me peça nem um chazinho. _Então, minha querida, você vai pagar a estadia. _Como assim? _Quer que lhe dê alojamento de graça? Aqui não é hotel. Vou descontar do seu salário. _A senhora não ia fazer isso comigo. _Por que não? Você não vai ficar aqui, abusando da minha paciência? _Mas eu não posso ir a pé pra casa! _Vou resolver o seu problema. Vou lhe dar um cheque e você troca no posto de gasolina. _E se não aceitarem? A senhora sabe como é difícil, hoje em dia, acreditarem na gente. _Não é pra menos. _Como a senhora é confiada, né? Olhe aqui, me dê este cheque mas se não der certo, eu volto, hem? E não pense em não atender a porta, que faço um escândalo! E pra seu governo, nem pense em mandar embora, porque vou trabalhar no seu algoz! _Que meu algoz, você enlouqueceu?

_O velho aí defronte, ele ta planejando alguma coisa. Se cuide!

Capítulo 6

Finalmente, o silêncio, a solidão, o estar comigo mesma, sem a presença infame de Dulcina. A atrevida me ameaçou com o velho aí da frente, como se tivesse algum poder sobre mim. Eu até havia me esquecido dele. Tudo parece muito quieto em seu quarto. A mesma luz de penumbra, a cortina meio cerrada, embora transparente. O vento que a empurra pra lá e pra cá, quase rotina, dá uma sensação de abandono, solidão, dor. Pior do que a minha. O quadro na parede, uma cópia mal feita de Picasso, cuja guerra só me vem aos pedaços. Um dia, eu saberei alguma coisa da vida dele, algo terrível e avassalador. Ele não me engana, como não me enganam as pessoas sozinhas, que falam como se dirigissem a alguém. Que falam com flores, que fingem ter amigos, que se assemelham cada vez mais a fotografias antigas cheirando à naftalina. Imagine, Rita, se eu vivesse aí, às escondidas, indefinida, como ele, falando pelas paredes, pelas janelas, contando detalhes de minha vida, como se fossem fatos públicos. Eu li nos seus lábios. Eu sei o que fez com a mulher. Sei que aquela parede esconde um crime. Um crime hediondo. Um assassinato da mulher e se ele descobrir que li seus lábios, pode querer fazer o mesmo comigo. Talvez Dulcina saiba alguma coisa, por isso, me ameaçou daquela maneira. Você viu o que ela me disse? Basta juntar os fatos, fazer os nós e esticar o cordão na íntegra. Ela tem todos os dados, todos os recursos para me acusar. Para me trair. Preciso fazer alguma coisa, chamar a policia. Eles têm que me ouvir, saber o que está acontecendo no prédio da frente. Não posso telefonar, porque o pior está por vir. Se a minha linha for grampeada, ele descobrirá tudo e antes que a polícia apareça, naquela agilidade contumaz, ele já terá desferido centenas de golpes em mim, me destruído a machadadas e me sepultado no cano da chaminé. Se tivesse chaminé neste apartamento. Mas em algum lugar que jamais será descoberto, a não ser que alguém leia os seus lábios, como eu. Meu Deus, agora me lembro! Ela o chamou de algoz. Então sabe mais do que declinou. Sabe tudo. Talvez esteja em conluio com ele. Não posso deixar que volte, pois pode ser uma trama terrível, planejando o meu fim. Não posso morrer assim, nas mãos de assassinos cruéis, sem que ninguém descubra.

Meu Deus, o interfone, esta campainha funesta. Só podem ser eles, ou apenas ela, me levando para o cadafalso, cortando a minha cabeça, destruindo minha vida. Não posso atender, mesmo que meu coração dispare pela boca e minhas pernas se afunilem juntando-se na poltrona, empurrando-se involuntárias, temerosas de ensaiar um único passo. Mas preciso saber quem é, pode ser Susana, pode ser a polícia que descobriu alguma coisa, pode ser a minha salvação. _Dona Úrsula, sou eu. _Eu quem? Não espero ninguém numa hora destas! _Não seja boba, sou eu, Dulcina. Olha, o cheque não deu certo. O cara do posto não quis trocar e o Seu Vilmar da farmácia disse que se a senhora quiser trocar, tem que vir comigo. _Com você? Está louca! Eu não vou com você! _Mas só na farmácia. Escute, não dá para a senhora abrir a porta? Tenho medo de ser assaltada aqui na rua! _Não vou, não vou descer nem sairei com você. Isso é um golpe. _Golpe é o que a senhora está aprontando pro meu lado. Vai me deixar na rua? _Vou sim, sua... sua assassina... _Que disse? Assina? Mas a senhora já assinou o bendito cheque. O pobrema é que o cara não aceitou. Entendeu? _Entendi, entendi muito bem. Vá, vá até o meu algoz e peça pra ele o dinheiro da passagem. Não estão os dois de conluio, amiguinhos, pois então. Peça pra ele. _Ele quem? Eu não to entendendo nada! _O meu algoz, não foi o que você falou? _Ah, tá bom, desisto. Eu vou me ferrá, mas não quero mais ouvir asneira, não. Vou tentar com o cara da portaria. A senhora tá cada dia mais virada. _Sua insolente. Você não põe mais os pés na minha casa! Se ao menos tivesse um tranqüilizante, alguma coisa que me fizesse dormir e esquecesse toda esta trama miserável. Que será de mim? Que pretendem fazer com a minha vida? Pensando bem, não espero muito da vida. Talvez até seja o descanso que estou esperando desde que o Luisinho morreu. Só não quero sofrer, ser torturada, como na época do Ai-5. Jaime já tinha tantos problemas, tantos medos e sofria tantas represálias. Naquela noite em que ele viajou, num chamado oficial dos assessores de imprensa da presidência, meu coração ficou apertado. Durante muito tempo fiquei sem saber o que fazer, o que dizer, temerosa que alguma coisa ruim acontecesse com ele. Desconfiava de tudo e de todos. Quase não saía à rua, sempre à espera que o telefone tocasse, mas as horas passavam sem nenhuma notícia. Apenas minha irmã mais velha telefonou-me. Carmem estava viúva, a filha no exterior e sentia-se tão mal, tão sozinha, embora não confiasse isso a ninguém. Fiquei um pouco surpresa, porque não era dada a visitas, nem muito amiga de conversas que não tivessem um objetivo real, preciso, objetivo. Quase burocrática. Na verdade, naquela noite, não queria atendê-la. Não estava em condições emocionais de ver ninguém, nem minha irmã. Nada me consolava, me deixava esperançosa. Temia que as crônicas, os artigos ou as notícias comentadas de Jaime fossem censuradas e mais do que isso, que o transformassem num bode expiatório em retaliação aos manifestos que estavam ocorrendo em todo o país. Além disso, qualquer um que tive alguma ligação com integrantes da esquerda, era chamado de subversivo, pois compactuava com a ideologia oposicionista. Tinha voltado do quarto de Luisinho, que dormia tão tranquilo, sem entender nada do que acontecia a sua volta, quando Carmem bateu na porta. Embora soubesse que era ela, meu coração acelerou, assustado. Carmem era alienada de assuntos políticos. Para ela, a única importância era a família, a tradição da sociedade, os bons costumes, a religiosidade. Quando adolescente, afastava-se dos jovens de sua idade, preferia o silêncio, o estar em família, o fazer das lides da casa. Apesar de viver tão isolada, não era afeita às leituras e tinha por hábito censurar os romances que eu lia, considerando-os inúteis, tempo perdido, segundo suas palavras. Meu irmão mais moço, cedo foi para o internato e de lá para o quartel. Quando o revimos, já era um homem completamente diferente do menino ingênuo que conhecíamos. Estava envolvido com as namoradas, com as festas, as viagens, até afastar-se totalmente da família, arranjando um emprego de mestre de obras na Arábia Saudita. Minha mãe sofrera muito, mas aos poucos assimilou silenciosa o vazio do filho ausente. Eu continuava entre as minhas leituras e a aprendizagem no piano. Quando Carmem casou-se com um célebre representante da Marinha brasileira, eu ainda não havia conhecido o Jaime. Talvez um dia, escreva a minha história e exorcize os fantasmas que preenchem os meus dias e noites.

terça-feira, janeiro 19, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IV

HOJE TERÇA-FEIRA, 19 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O QUARTO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.A RELAÇÃO DE ÚRSULA E SUSANA, CADA VEZ A COLOCA FRENTE A FRENTE COM SEUS PROBLEMAS E COMO CONSEQUÊNCIA UM APRENDIZADO QUE VAI SE EFETUANDO. CONFLITOS QUE SURGEM E ENFRENTAMENTO COM SEUS MEDOS E ERROS DO PASSADO. UMA HISTÓRIA DE AMIZADE E AFETO.

Capítulo 4

Às vezes, me surpreendo pensando em meu pai. Nem sei se em virtude da visita, mas as lembranças me vêem tão nítidas, tão poderosas, que tenho a impressão de experimentar as mesmas sensações daquela época. Esta noite, eu até sonhei, imagine, eu sonhar, eu que permaneço eternamente em minha janela, olhando o mundo, deixando que as coisas aconteçam, esperando que os últimos rumores da noite sosseguem dando lugar ao silêncio perturbador. Você vê, Rita, como são as coisas: fico ouvindo os primeiros gorjeios das aves. Sabe aquela espécie de jacarandá, quase na esquina, defronte à farmácia, ela é um recanto de pássaros. Se eu dormisse, por certo me acordavam, não tenha dúvida. Eles começam devagarinho a fazer seus primeiros contatos. É um bem-te-vi daqui, uma alma de gato dali, uma tesourinha, lembra desse? Elas vivem aqui, nas cercanias. Mas esta noite, aconteceu algo impressionante comigo. Eu adormeci, nem sei quanto tempo, claro que não foi grande coisa, não. O fato é que desandei de minha janela. Adormeci sentada na poltrona, os braços apoiados no parapeito, como uma infeliz. Mas o bom disso tudo é que sonhei com meu pai. Há tanto tempo isso não acontecia comigo, que estou quase feliz. Nem Dulcina me tira do sério, hoje.

Meu pai era um homem extraordinário, tinha lá suas teimosias, suas crenças antigas, mas nós sabíamos qual era o seu limite. Como ele trabalhava na marcenaria, um galpão enorme que ficava no nosso quintal, estava sempre por perto. Tinha consigo que os móveis que reparava eram obras de arte. Usava de cuidado, esmero, carinho e nós nem sonhávamos em mexer em nenhuma daquelas peças. Quando punha o olhar numa peça, se detinha em cada detalhe, a ponto de transformar um móvel danificado, num outro objeto, que não aquele. Era perfeccionista, não arredava pé, até dar-se por satisfeito. Mas quando estava conosco, principalmente à mesa, quase não levantava a cabeça. Era muito severo, de poucas palavras, talvez o seu universo se resumisse no seu trabalho e as coisas da casa não inspiravam tanto desvelo. Chegava a ser ríspido, distante, mas eu o sentia sempre por perto. Talvez porque o compreendesse. São estas coisas, Rita, que somente a alma pode absorver.

Numa dessas noites em que nos preparávamos para a janta, ele apareceu à porta tão estranho que minha mãe virou-se de súbito de suas panelas, como se não reconhecesse aquele homem. Seu olhar pairou no ambiente, cenário taciturno, modelado ao momento de indecisão em que passávamos. Meu irmão nem percebeu nada de diferente e ficou manuseando soldadinhos de chumbo sobre a mesa, preocupado que estava com a estratégia de guerra que engendrava em sua mente. Eu larguei o livro da Senhora Leandro Dupré, quase escondendo-o como se o olhar de censura se dirigisse a mim, em virtude da história tratar-se de uma mulher desquitada. Aproximou-se e dirigiu-se a um canto da peça, encostando-se no parapeito da janela para dar uma última tragada no cigarro de palha. Ali, voltava o rosto para a rua e deixava-se ficar, perdido, perscrutando o silêncio da rua. Minha mãe aproximou-se e disse-lhe alguma coisa quase em sussurro, mas alertei os ouvidos e suas palavras ainda ressoam em minha mente.
¬

_Você está certo que deve abandonar o barco, homem? Você não é um rato que abandona o navio. Aquela casa é sua, é a sua vida.

_Mas não tenho como lutar. A hipoteca vence daqui um mês. Se não entregar, vão tomar o maquinário, as minhas ferramentas. De que a gente vai viver?

_Úrsula sabe do piano?

_Como assim? Ela é uma criança e eu proíbo a você que fale alguma coisa.

_Mas precisa saber do piano.

Eu estremeci, minhas pernas batiam uma na outra como se uma enfermidade produzisse aquele movimento involuntário. Não conseguia afastar os olhos daquele quadro, pendurado na janela, tendo como fundo os últimos raios do dia. A noite se dissipava, mas a penumbra não esmorecia com a lâmpada fraca que guarnecia nosso teto. Meu irmão voltou para os soldados de chumbo, aproveitando que a conversa não lhe interessava. Senti o olhar de meu pai pousado por um momento em nossas figuras, então baixei a cabeça e fingi folhear o livro.

_O piano não. O piano fica!

_Mas eles sabem que tem um piano na casa. Se está tudo hipotecado!

_Mas não vão hipotecar o sonho de Ursula! Ah, isso não.

_Você sonha demais, homem. Pois se é assim, lute, lute pra não entregar a casa. Vamos pensar numa maneira, tem que haver uma maneira!

Ao dizer isso, ela voltou para as panelas, encerrando o assunto. Provou o molho, temperando o dorso da mão e esbravejou, em seguida, impondo a arrumação na mesa. Que Carlos guardasse os soldados e eu levasse aquele livro para o quarto. Que pusesse a mesa, que a comida estava pronta. Meu pai jogou a bagana fora pela janela e afastou-se por algum tempo. Quando voltou, o rosto ainda molhado, sentou-se no lugar de costume, fez as orações de rotina e não mais levantou a cabeça. Eu suspirei aliviada, meu piano estava salvo. Na verdade, o que era de minha avó.

Mas, por hoje chega dessas lembranças de antanho, Rita. Quando a gente fica velha, parece que o passado bate a nossa porta, todo o tempo. Mas não pode ser assim, você não acha? O mundo precisa está aí, para mexer a sua engrenagem e tocar pra frente. Mesmo que pessoas como eu, não tenham mais esperança nesta vida. Pensando bem, viver do passado, ainda é uma forma de viver.

Daqui a pouco, sairei com Susana. Ela tem lá os seus problemas, suas dificuldades, mas nada que não possa ser resolvido, na idade dela, no mundo em que vive, na geração de liberdade em que foi criada. Somos mulheres muito diferentes, eu nasci num mundo em que a mulher era dedicada ao marido, que viera de uma escola de mãe para filha, em que a mulher vivia de suas lides domésticas, suas habilidades com o crochê, a culinária, o cuidado com os filhos. Imagine que a Senhora Leandro Dupre, assinava o nome do marido, nunca o de solteira para entregar-se à literatura. Mulher escritora era mal vista naquele tempo. A maioria usava pseudônimos. Eu gostava tanto dos livros dela. Diziam muito o que ia em nossa alma. E o romance de Tereza Bernad, ela discutia o tema da mulher desquitada, um escândalo para época. Depois, veio “Éramos seis” e eu não parei de lê-la. Dona Lola não era a mulher submissa que outros escritores pintavam, ao contrário, era uma mulher de sua época, que se dedicava ao marido e aos filhos, que compreendia o seu mundo, o mundo feminino sem questionar, apenas isso. Seus questionamentos eram contra a injustiça, a desumanidade, o poder da guerra, do dinheiro, do preconceito. Era uma mulher autentica.

Escute, Dulcina acaba de atender a porta. Não quero confianças com ela, é extremamente mal criada.

Dulcina afasta-se da cozinha, rapidamente, enxugando as mãos no avental e pára por um minuto e mira-se no imenso espelho do corredor. Limpa o suor da testa com o dorso da mão direita, enquanto que com a outra, ajeita a gola da blusa, por debaixo do avental. Imagina ser o entregador de gás e sente um certo frenesi. Aquele homem jambo, sorriso aberto, lhe desperta uma certa atração, que a desconcerta. Abre a porta e sorri, escancarada, mas logo cerra os dentes, irritada. Espantada, estica o pescoço, numa interrogação.

Abre a porta e pára espantada. Estica o pescoço numa interrogação.

_Bom dia, Dona Úrsula está me esperando.

_Pra que?

_Bem, temos um encontro.

_Aquela lá? Minha filha, ela não sai nem que o prédio pegue fogo.

_Mas eu posso falar com ela?

Dulcina faz um muxoxo. Em seguida, com a mão esquerda espalmada, pede que espere. Afasta-se alguns passos e acrescenta: _vou anunciar.

_Não é preciso, Dulcina.

Dulcina se surpreende com a chegada inusitada da patroa. Explica-se, embaraçada.

_Ah, a moça tá aqui, lhe esperando, eu ia...

__Não se preocupe Dulcina. Parece que você tem muito a fazer na cozinha.

_Ih, tem caroço neste angu! – e afasta-se rebolando os quadris.

_Não lhe dê importância, Susana. Dulcina é muito ousada. Às vezes, desconhece o seu lugar.
_Não estou nem um pouco preocupada, Dona Úrsula. Ela é um tipo bem engraçado. Mas como está a senhora?

Úrsula percebeu os traços negros sob os olhos acinzentados de Susana, que lhe realçaram sobremaneira a pele clara. Os cabelos, hoje melhor acomodados, num penteado despojado, sem aquele esticado para trás do primeiro dia. Caíam-lhe levemente no rosto, voltados para o lado esquerdo. Pareciam mais curtos.

_Você cortou o cabelo, Susana?

Susana sorri, um tanto desconcertada, não esperando a pergunta. Mas sente-se feliz, em ser notada.
¬

_A senhora percebeu?

Imagine, se eu perguntei... Às vezes, acho que esta menina não pensa o que diz. Mas vá lá, tenho que ter paciência. Tenho que ter tantos predicados, que me assusto. Como que ser paciente, sem ser arrogante, ser delicada, sem ser falsa, ser educada, sem ser bajuladora. Os velhos tinham de se libertar disso. Na verdade, acho que a mulher nunca se libertou de suas convenções. Por mais que se diga que a mulher evoluiu, ela nunca terá a mesma liberdade dos homens. Nunca teve uma liberdade real. Sempre deve alguma coisa.

_Então dona Úrsula, está preparada para sairmos? Por um momento, pareceu-me que ficou indecisa.

_Não, de modo algum. Estava apenas pensando. Na minha idade, a gente pensa muito, sabia? – já estou me justificando. Que fazer, fui criada para ser educada. Além disso, tenho os meus próprios valores. _ Estou até bem disposta.. Ainda há pouco estava dizendo à Rita ... – ah, não devia ter mencionado Rita, ela jamais entenderia – eu disse Rita?

_Disse.

_Ah, falava com minhas flores.

_Ah, sim.

_E dizia que há muito tempo não sonhava com meu pai. Hoje tive boas lembranças. Mas se está pronta, podemos ir.

Dulcina observa da janela do apartamento a saída das duas. Dona Úrsula encaminha-se até o carro, com dificuldade. Se não fosse tão esnobe, por certo levaria uma bengala. Uma velha daquelas não devia andar por aí, falseando o pé nas calçadas irregulares. Mas elas que são brancas, que se entendam. Dulcina desiste da cena e volta para a sua cozinha. Espera que o mundo lhe sorria com mais calma, mais leveza, principalmente porque está sozinha. Corre até a sala contígua, liga o aparelho e som e tira da bolsa um cd de pagode. Começa a canta e sacudir-se no sentido aivoso da música, à medida que pega uma almofada aqui, colocando-a na posição destinada, uma revista acolá, enquanto dirige-se para as atividades em que estava.

Da rua, Úrsula levanta a cabeça, através da janela do veículo, como se suspeitasse do descomedimento da empregada. Mas logo a esquece, afogueada pelos raios do sol que parecem queimarem-lhe a retina. Franze o cenho, destemperada, reclamando da dor, suspeitando precisar de oculista. Susana oferece-lhe óculos escuros, que recusa terminante. Aos poucos, se acostumará. É questão de tempo.

Susana tenta criar uma atmosfera amigável entre as duas, tentando ser espontânea. Fala de seu apartamento, do trabalho incessante na redação do jornal, da academia que costuma frequentar bem cedo. Úrsula, por sua vez, comenta sobre Dulcina, sobre o temperamento exacerbado, no despreparo nas atividades de empregada doméstica e finaliza falando de suas poucas qualidades. Sabe, que apesar de tudo, precisa de sua presença, mesmo que a incomode um pouco.

_Por que ela a incomoda?

Úrsula faz uma breve pausa. Certamente concluiria que a causa principal era o próprio comportamento de Dulcina, mas nem sabe porque motivo, resolve ser sincera.

_Na verdade, me sinto bem sozinha. Incomoda-me a presença de Dulcina, o seu vai-e-vem pela casa, a sua habilidade em contar histórias, em se relacionar com as pessoas. Sabe, Susana, talvez eu tenha um pouco de inveja dela.

_Inveja?

Úrsula observa as ruas atentamente, sem olhar para Susana. Fala como se confessasse a si mesma.

_Sim, esta peculiaridade em ser mais aberta, em relacionar-se com facilidade, até mesmo a ousadia... ela é uma mulher livre.

_E a senhora é livre?

_Você acha que existe alguma mulher livre neste mundo, na ampla acepção da palavra?

_Mas a senhora acabou de falar sobre Dulcina...

_Dulcina é exceção à regra. Talvez porque o seu mundo seja muito distante do meu, do seu. Dizem os sociólogos que há duas classes que se permitem a liberdade: a classe dos dominantes, a classe alta, dos muito ricos ou até mesmo artistas e os miseráveis, muito pobres. Obviamente, Dulcina se enquadra no segundo. Claro que ela não é uma miserável, mas vive no meio mais rude, mais tosco que um ser humano pode viver.

_E a senhora nunca pensou porque acontece isso?

_Acho que nunca pensei nisso. As coisas somente acontecem, não ficamos refletindo porque isso é assim, porque aquilo se dá daquela maneira.

_É verdade. Mas a mulher venceu muitas barreiras. Atualmente, nós buscamos a nossa liberdade.

_Você acha? Mas não quero fazer panfletagem. Não me interessa modismos, nem feminismos, nem levantar bandeiras de luta. Estou muito velha para isso.

_Mas voltando à Dulcina, diria que a senhora gosta muito dela, só não admite isso.

_É uma bobagem.

_Pode ser, concordo. Mas o fato de reconhecer que ela a incomoda, já é uma ponte para chegar até ela, para vir a gostar dela. Não acha?

_Dulcina é uma bárbara, inculta, grosseira.

_Talvez a incomode o fato dela ser assim, realmente. É um entrave para o relacionamento de vocês.

_E eu quero me relacionar com aquela lá? Só me interessa a faxina que faz na minha casa.

_Mas ela poderia ser uma companhia agradável. Não a deixaria tão solitária.

Úrsula irrita-se com a insistência de Susana. Intransigente, recusa-se a continuar com o assunto.

_Por favor, Susana, este é um tema encerrado pra mim. Não insista.

_Está bem dona Úrsula. Acho que me excedi.

_Se excedeu sim. Dulcina é problema meu. Aliás, nem é assunto a ser abordado.

Susana calou-se um tanto arrependida de ter insistido. Não quer causar danos à entrevista. Úrsula representa a principal fonte de sua pesquisa e precisa conquistá-la.

Ao chegar ao cemitério, descem no estacionamento. Úrsula, por um momento, torna-se de uma palidez intensa, fraquejando as pernas, encostando o corpo no carro, com dificuldade. Susana a ampara, perguntando se quer voltar atrás. Quem sabe voltam outro dia. Úrsula ressente-se da indisposição, pede uma água, mas não pretende desistir da visita. Na primeira melhora, resolve seguir caminho e desfilam pelos corredores em busca do mausoléu onde estão o marido e o filho sepultado. Susana segura-a pelo braço, apoiando-a. Por um momento, Úrsula retrai-se, considerando uma ajuda desnecessária. Mas evitou mostrar-se ingrata e deixou-se levar pela mão suave e firme da jornalista. Aos poucos, sentia-se protegida e segura.

No túmulo, separaram-se, porque Ursula se antecipou indo ao encontro da fotografia do filho. Aponta, mostrando-lhe, como se estivesse apresentando-o como se vivo estivesse.

Susana observa o comportamento metódico, a maneira cuidadosa como se aproxima, a mão clara e tremula que estende no granito escuro, acariciando levemente a fotografia do filho. Ao lado, uma foto do pai, que ela reconhece ser o grande jornalista, motivo de sua pesquisa. Fazem um silêncio cúmplice. Susana percebe que Úrsula enxuga uma lágrima, com o dorso da mão. Funga, ajeita-se no corpo frágil e faz uma pequena oração. Em seguida, volta-se para Susana e pergunta: _você já perdeu alguém, Susana?

_Sim, minha mãe. Faz muito tempo.

Abaixa os olhos e volta-se para a imagem na lápide.

_Ele é lindo, você não acha?

_Sim, era um rapaz muito bonito. Não lhe deixou netos?

Uma sombra perpassa o olhar de Úrsula, como se o sol se escondesse por minutos e a nuvem negra ocultasse as nuances da vida que brotavam aqui e ali, revelando apenas sombras. Não esconde o ódio que brota inevitável e se espalha pela face e todo o corpo, como um espírito maligno.

_Aquela lá era estéril, uma figueira maldita.

Susana não fez nenhum comentário. A ira já era de bom tamanho. Acomodou-se num degrau do mausoléu, sentando-se reticente. Procurava organizar as idéias, comportar-se de modo distanciado de suas aflições mais íntimas, mas o ambiente soturno a deixava ansiosa. De qualquer forma, respeitava a dor daquela mulher que de alguma maneira confiava seus sentimentos a ela. Procurou mergulhar no tema, como se fizesse parte de sua vida.

Úrsula prosseguiu no mesmo tom agastado, embora com alguma mágoa, um sofrimento escondido que não se limitava apenas ao filho.

_Ela nunca foi uma boa nora. Na verdade, nunca gostou de mim, apenas me aturava. Aliás, fez o que pôde para separar-me de meu filho. Por isso, ele morreu de desgosto.

_A senhora nunca mais a procurou?

_Não tenho motivos. Não vou lhe mentir, eu a procurei sim. Afinal, éramos duas abandonadas pela vida. Ela perdeu o marido, eu o filho. Achei que devíamos nos unir.

_E não o fizeram?

_Não houve clima. Até me aproximei, no inicio. Mas logo em seguida, acabamos discutindo. Não valia à pena. O único motivo que nos unia, não existe mais.

_Mas a lembrança pode uni-las. Talvez vocês tivessem coisas a resolver. Certamente, seriam mais felizes se conversassem, talvez até, se discutissem.

_Como você pode me sugerir isso? Você não sabe quem é aquela mulher.

_Realmente, não sei nada dela, mas diz a experiência que se houver diálogo, tudo pode se resolver.

_É muito fácil falar, é muito fácil. Na sua idade, tudo é possível, tudo se resolve na conversa. Mas não é bem assim, Susana. Há marcas intensas, que nada pode apagar. Há feridas que não curam.

Susana respira curto. Reflete que não é o caminho certo, que precisa de uma brecha para embrenhar-se no tema principal, que é motivo da entrevista. Então dispara à queima roupa. Quem sabe, uma sacudidela, resolve.

_Seu marido parecia um homem muito tranquilo.

_Jaime era um fascinado pela vida. Não deveria ter ido tão cedo.

_Mas foi um homem que viveu a plenitude da vida, que realizou-se como jornalista, como pai, esposo. A senhora o amava muito, não é verdade?

Úrsula adoça a voz. Fala em tom mais baixo e pausado.

_Sim, eu o amava muito – e retribui a pergunta, o que deixa Susana perplexa. Parece que há uma barreira, um obstáculo forte que ela interpõe, sempre que tenta aproximar o tema do marido – e você, ama alguém?

_Eu? Talvez não assim com esta intensidade.

_Mas o que sabe de minha vida? O que você sabe, Susana, leu nos jornais. Não é melhor ouvir mais fontes para conhecer melhor, para saber como era o meu relacionamento com Jaime?

_Sim, sem dúvida. Tem razão, tudo que sei é o que dizem por ai nas revistas, nos jornais ou até mesmo nas redações. Não se esqueça que ele sempre foi exemplo para muita gente.

_Mas você não me respondeu. Você tem namorado?

_Fui casada por dois anos. Felizmente, não tivemos filhos. Atualmente tenho um namorado, mas as coisas andam meio frias entre nós.

_Hoje em dia, as mulheres pulam de galho em galho, de cama em cama. Você acha isso liberdade? Querer ser igual aos homens?

–Não é um assunto para discutirmos neste ambiente, não acha?

_Talvez para você. Pra mim é o lugar ideal. Aqui estão os três homens que amei.

_Três?

_Sim, me refiro também a meu pai. Além disso, é aqui que quero ficar, quando morrer, ao lado de meu filho e de Jaime. Mas se aquela morrer, que fique bem longe de mim. Não a coloquem no mausoléu da família, ela não merece.

_A senhora se refere a sua nora?

_E quem haveria de ser?

_As perdas ficam maiores e mais pesadas, quando se tem amargura, rancor.

_E o que você sabe de amargura. Que experiência tem você da vida, para me dar lições? Ora vá pro diabo! – e afasta-se, resmungando, abandonando em definitivo a discussão que não admitia.

Susana percebe que o destempero de Úrsula é uma maneira de recusar-se a discussão do que considera ponto pacifico, do que não pretende afastar-se um milímetro em suas concepções. Tenta segui-la, mas um gesto de Úrsula a impede, deixando-a estagnada, sem mover um músculo. Empurra-a com o cotovelo, mexendo o corpo descompassado em direção a um banco de pedra, ali perto. Susana a acompanha com o olhar. Deixa-se ficar quieta, pensando numa provável saída. Talvez se pedisse desculpas, se voltasse a falar no filho, se perguntasse alguma coisa agradável sobre o marido. Mas o que dizer frente a uma atitude inóspita, inesperada? De repente, percebe que Úrsula a espia de soslaio, com uma expressão mais triste do que brava. Sente-se encorajada a aproximar-se. Ensaia alguns passos e pousa as mãos delicadas em seus ombros, produzindo uma leve massagem.

_Desculpe, Dona Úrsula. Não quis ofendê-la.

_Mas ofendeu. Eu não vim aqui pra isso, pra ficar escutando idiotices. O meu ouvido não é penico!

_A senhora tem razão. Meu objetivo não é esse, ao contrário, quero aproximar-me da senhora. Olhe, se deixar, posso ser sua amiga.

Úrsula levanta os olhos, amuada. Pergunta como uma criança emburrada. _E você acha que é possível? Não foi um bom começo.

Susana calou-se. Deu meia volta e perguntou: _Não trouxe flores?

_Não, apenas faço minhas orações.

Ficaram as duas, em silêncio. Úrsula se persignou e rezou por alguns minutos, no lugar onde estava. Depois, levantou-se lentamente, sugerindo irem embora. Antes que Susana respondesse, alguém exclamou o nome de Úrsula com indisfarçável surpresa.

sexta-feira, janeiro 15, 2016

O verão de nossos dias

Ilustração: pintura da artista Evanoli Resende Corrêa

Tanto se fala no verão. No sabor das águas, no saborear da brisa, quando não dos ventos do Cassino. Acima de tudo, o bate-papo com os amigos.

Verão é isso. Jogar conversa fora, sem muito compromisso.

Talvez seja mais do que um andar ao léu, ou margear a praia de bicicleta nos fins de tarde. Ou como diz Vinícius na música, “um velho calção de banho , o dia pra vadiar”. Talvez seja mais do que conversar sem compromisso. Talvez seja mais do que lagartear ao sol.

Talvez seja apenas viver. Viver plenamente, o que, às vezes, deixamos de fazer durante o ano.

Claro que não se quer um tempo exclusivo de fazer nada. Mas um tempo pra nós mesmos, onde nem nos olhemos tanto no espelho, nem nos preocupemos tanto com a sandália gasta.

Mas um tempo para ler aquele livro que prorrogamos sem a devida atenção, e que sempre nos vem à memória.

Um tempo para nos dedicarmos à natureza. Para pormos em prática a tranquilidade dos dias. Para esquecermos a rotina, a afobação dos bancos, das lotéricas, dos shoppings.

Para deixarmos o cidadão comum e sermos especiais. Especiais de um dia de verão.

Ah, as águas de verão. As chuvas de verão. Os amores de verão. O verão que temos em mente, na memória, no passado e no presente.

O verão de nossos dias.

Os dias que virão.

gcgilson4@gmail.com

quinta-feira, janeiro 14, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I I I

HOJE QUINTA-FEIRA, 14 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O TERCEIRO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.

Capítulo 3

Agora que Dulcina foi embora, sinto-me mais à vontade para viver a minha vida. Ela jamais me entenderá, como você. Tem a cabeça fraca, desorientada. Quase uma boçal.

Agora, posso observar a escuridão das ruas, as luzes ao longe, o vaivém de lâmpadas que se acendem nas escadas dos edifícios, quando alguém acaba de entrar nos prédios. Em alguns, quase participo de suas vidas. Vejo-os entrar, deslocarem-se para seus quartos, seus locais de trabalho ou lazer. Um menino passa metade da noite na frente da tela do computador. A mulher do prédio da esquina se acomoda numa poltrona que quase desaparece, hipnotizada pela tv. Cada um faz uma atividade que lhe faz bem, que lhe proporciona prazer.

Eu cá, fico na minha janela. Daqui vejo o mundo, do qual não posso partilhar. O velho aí da frente, ainda não se deitou. Já devia tê-lo feito, pelo menos, de acordo com a sua rotina diária. Como pode ser tão metódico. Fica perdido lá por dentro do apartamento, talvez na cozinha ou na sala assistindo tv. Isso, não posso descobrir, não tenho olhar de raio-x. Às dez horas, porém, costuma deitar, após o banho. Via de regra, já aparece de pijama. Coloca a calça passada na cadeira, ao pé da cama, o casaco, a camisa e as meias e se deita, esquecido do mundo. Que pensará um homem como aquele? Será que ele tem algum drama na vida? Será que perdeu um filho? E aquele homem, que aparece, além do enfermeiro? O enfermeiro passa algumas horas medicando-o e vai embora. O filho, raramente. Hoje, ele ainda não veio deitar-se. Sempre dá uma olhadinha na janela para baixo, antes de ir para a cama. A lâmpada, só a da cabeceira. Passa a noite na penumbra, deve temer o escuro. Acho que no prédio dele, não tem gente muito decente, não. Aquela prostituta bate o ponto invariavelmente às 6 da manhã. Como é que deixam uma mulher da vida, morar num prédio familiar? Mas quem disse que é familiar? Hoje em dia, elas estão em qualquer lugar, até nas igrejas.

Houve um tempo em que fui religiosa, acho que foi antes do Luisinho morrer. Acabei abandonando os santos ou eles me abandonaram. Meu destino é passar as noites a olhar para fora, a investigar a vida dos outros, a perscrutar seus relacionamentos, suas atividades noturnas. Não são muito criativos. Aos poucos, todos fazem a mesma coisa: vão apagando as luzes dos apartamentos e tudo vai ficando às escuras. Mas daqui, eu vejo as ruas. Estas não dormem jamais.

Meu Deus, quem diria! Lá está ele, como de praxe. Está atrasado, meu amigo. Certamente, vai fazer a revista na tropa. Espia para baixo, examina as esquinas, as pessoas que passam apressadas ou não, os que ficam na calçada, conversando ou os que entram na farmácia. A visão dele é melhor do que a minha, porque fica quase na esquina e do outro lado da rua, é possível observar toda a região de comércio pesado. Os botequins, os bares, as livrarias. Estranho, ele não voltou para dentro. Que está havendo com este velho? E está falando novamente! À noite, ele se abstém destas caduquices. Mas o que pretende?

Quando Gustavo ainda era menino, tínhamos a impressão que ficaríamos eternamente juntos. Sabíamos que preparávamos o seu futuro, mas o seu destino já estava traçado. Nada que fizéssemos mudaria o que estava escrito. Não imaginávamos, porém que a mudança seria tão radical.

A quem ele se refere? Ao filho? Então não sabe que o futuro não pode ser decidido por ninguém, muito menos pelos pais. Provavelmente, fora um homem autoritário, um machista que mandava e desmandava na família, que pretendia escolher até a carreira do filho. Por esta razão, o rapaz desistiu de visitá-lo, de aproximar-se, de compartilhar seus desejos, seus sofrimentos e alegrias. Este velho nunca me pareceu coisa boa.

Se ao menos Sarita estivesse ao meu lado, teríamos uma vida para recordar e quem sabe, reviver o passado. Não fosse o ciúme mortal, a dose de veneno que engoli, dia a dia, e que aos poucos fui expelindo, enchendo o ar, entornando o copo até alcançar o ápice da explosão.Sempre fui um homem exaltado, de orgulho próprio, de forte auto-estima. Jamais admitiria uma transgressão. Por isso, fui aos poucos te enjaulando, emparedando, te prendendo como o joão- de-barro traído. Não devias ter feito isso, não devias ter me transformado no que sou hoje. Oh, Sarita, se pudesse, se Deus me permitisse, eu desfaria tudo, eu retornaria ao passado e jamais cometeria o mesmo ato.

O que ele quer dizer com isso? Será que é o que estou pensando?

Sei que meu filho me abandonou porque acabei com a sua vida. Agora estás lá, emparedada naquele mar de cimento e brita. Morreste em pé e para sempre ficarás, enquanto tuas carnes não desprenderem de teus ossos e desaparecerem como pó.

– Meu Deus! Assassino! Assassino!

Ai, tenho que calar-me, ele pode ouvir-me. Como pude expressar com voz alta. Você ouviu, Rita? Não pude conter a indignação. Eu sabia que o maldito tinha alguma coisa a esconder. Então ele enterrou a mulher na parede, em pé, cheia de cimento e brita. Ele é um monstro e pode querer matar-me também, se souber que sei de tudo.

Quisera poder voltar atrás, sair desta masmorra que se transformou a minha vida ou o que restou dela. Sei que você me perdoou Sarita, mas não tive escolha. O desespero era intenso, a dor que sentia era maior do que tudo.

Velho miserável. Agora chora. Depois de matar a mulher sufocada num saco de cimento! Queria por acaso que o filho concordasse com ato tão covarde? Pois que o deixe sozinho, abandonado e que apodreça naquele apartamento! É por isso que ainda não se deitou, consciência pesada. Por isso, está na janela, como eu. Só que meus motivos não foram produzidos por mim, mas pela vida, que me traiu. Ele, ao contrário, traiu o filho. Este velho deveria estar preso, o que faz neste edifício, ao lado de pessoas de bem?

Olhe, Rita, olhe. Saiu da janela, sem encarar-me. Teme, por certo, meu olhar de censura. Intimamente sabe, que qualquer pessoa pode acusá-lo. Basta olhá-lo, basta ouvir-lhe a voz, os pensamentos.

Eu sabia, Rita, que hoje seria uma noite diferente. O velho escureceu o quarto, completamente. Pela primeira vez, apagou a luz da cabeceira. Certamente, não quer distinguir um só objeto, nem a própria sombra. Ou talvez esteja me espiando, às escuras, analisando a minha sala, tentando descobrir a minha fisionomia para marcá-la e cometer o mesmo homicídio cruel. É um psicopata perigoso, preciso fazer alguma coisa. E se eu ligasse para a polícia? Não, não acreditariam que eu sei de tudo e como vou provar que consigo ler os seus lábios e até pensamentos? Tenho que pensar num plano, um plano que me leve a alguma descoberta. Quem sabe, uma investigação? Sim, se a jornalista me ajudasse. Ela tem a mídia nas mãos, podemos acusar o velho, colocar a foto no jornal e denunciar toda a sua história. Ele não pode ficar impune.

Fonte da ilustração:columbo.jpgBy Prawny

terça-feira, janeiro 12, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I I

HOJE TERÇA-FEIRA, 12 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O SEGUNDO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM DERRAMADO. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.

Capítulo 2

_Pois não?

_A senhora é dona Úrsula?

Tive vontade de responder, sim, tal como a matriarca dos Cem anos de solidão do Gabriel Garcia Marques. Mulher de fibra, mesmo cega, se mostrava forte, valente. Mas não disse nada. Talvez nem conheça o livro. As jornalistas de hoje em dia são feitas a martelo, como dizia o meu pai. Ele sempre se queixava dos ajudantes. Detestava gente incompetente.

_Desculpe, não entendi o que disse.

Não disse nada, só pensei. Às vezes, penso demais e falo de menos. Também, nesta solidão em que vivo. Costumo falar com minhas plantas. Certamente, me dão mais atenção do que qualquer jornalista interessada em bisbilhotar. Desculpe, Rita, às vezes sou assim, ingrata.

_E quem é você?

_Meu nome é Susana Medeiros. Nos falamos ao telefone, lembra?

_Sim, mas falei com tantas pessoas. E não a conheço pessoalmente.

_Trabalho no Diário de Hoje.

_Não a esperava. É que vem tanta gente aqui, este apartamento está sempre cheio.

_Que bom. Nós combinamos que seria hoje, mas se tem outro compromisso, trocamos de dia.

_Não, não, por favor, entre.

Nunca pensei que seria assim, dissimulada. Na verdade, nem sei porque agi desta forma, talvez para demonstrar que não sou uma mulher solitária, que a casa vive cheia tal como a de Dona Júlia. Detesto a piedade alheia.

Mando-a sentar na poltrona a minha frente, propositalmente, para que tenha a visão da parede como um todo, repleta de quadros, e certificados. Seu olhar pode desviar-se após a sala e ter uma visão gratificante do piano. Logo vai avistar seus olhos intencionalmente perdidos, sua boca entreaberta, revelando um desejo oculto. Femme fatale. Os homens a adoravam, Rita. As mulheres a invejavam.

Agora percebo que é uma moça bem vestida, elegante, mas tem um quê de humilde que não sei muito bem identificar. Talvez a maquiagem inexpressiva, quase transparente e o cabelo penteado para trás, parecendo uma freira recém saída do convento. A roupa é impecável. Um conjunto de blazer e calça na mesma cor, um tom escuro, me parece verde musgo ou azul petróleo, não sei bem – meus olhos já não são os mesmos! Pouco sorri, mas os dentes são claros e muito alinhados. Entretanto, ela não tem nada de glamour, de sedução, de elegância interior.

Será que sirvo alguma coisa? Talvez um chá, é de bom tom. Daqui, posso me olhar no espelho. Bem estratégica esta minha posição na poltrona. Estou perfeita, apesar de todas fragilidades. Depois do banho, soube me ajeitar com cuidado, você não acha? Meu cabelo está penteado, comprido a mais do que devia e a tinta está escassa. Infelizmente, foi difícil esconder a raiz branca. Além disso, as minhas joias não realçaram nesta blusa branca. Talvez contrastassem com uma cor viva, até mesmo o preto daria melhor efeito. Fiquei tanto tempo escolhendo a roupa e não chegava a nenhuma conclusão...

_Muito bem, Susana, o que você quer saber? Espere, espere. Antes de começar, não gostaria de tomar um chá comigo?

_ Aceitaria um cafezinho mais tarde.

Um cafezinho. Estas jovens de hoje não sabem o que é tomar um chá com elegância, Rita. Não se esmeram em pelo menos parecerem finas. Certamente, quer um cafezinho para acompanhar um cigarro. Mas aqui, no meu apartamento, não admito que fumem. O Jaime fumava tanto, mas naquela época, fumar era um deleite, um prazer, um ato quase imponderável, como a vida ou a morte. Você sabe. A redação era uma névoa só. Uma fumaça que se espalhava e se acumulava. Fazia parte do clã. Um grupo de fumantes. Eu, ao contrário, detestava aquele cheiro de nicotina. Mas não me aborrecia tanto quanto hoje. Talvez pela falta de ar que às vezes, sinto.

_Não se preocupe com isso. Na verdade, gostaria de começar a nossa entrevista. Não se assuste, não é nada formal, apenas uma conversa espontânea, sem qualquer constrangimento. A senhora falará apenas o que lhe for conveniente.

_Jaime era um homem muito querido.

_Se a senhora permitir, eu gravarei a entrevista, ou melhor, a nossa conversa. Ficará mais fácil para eu organizar os textos.

_Você pretende escrever um livro sobre ele?

_Sim, sobre a vida dele. Um grande jornalista que foi de certa forma, esquecido. Que viveu no tempo da repressão, que fez grandes reportagens.

_É verdade.

Não consigo acrescentar nada. Não sei o porquê, mas fiquei nervosa, de repente. Talvez por mexer no passado. Não é bom ficar relembrando o passado para estranhos.

_A senhora ficou pensativa...

_De repente, achei que devia mostrar-lhe o meu apartamento. Quero que saiba mais sobre a minha vida.

Ela me encara de uma maneira estranha. Talvez pense que enlouqueci, mas não quero falar sobre o Jaime agora. De qualquer modo, obedeceu, sorrindo. Ela sabe que precisa agradar-me. E sei que precisa de mim. É um jogo, no qual tentamos compor as peças, dar as cartas sem blefar. Com cuidado, atenção. Uma depende da outra e ela muito mais de mim, do que eu dela. Reparei que tem os olhos claros, nem verdes, nem castanhos, uma cor indefinida.

Ao meu lado, mostro-lhe o piano, falo das inúmeras apresentações que dei, em toda a minha vida, do tempo em que lecionava no conservatório, até de pequenos saraus, que se realizaram em minha casa. Sinto que ela olha para você com sincera curiosidade.

_ É Rita Hayworth?

Apenas fiz um gesto de assentimento. Não quero falar de você. Não deveria ser óbvio para ela. Quase uma invasão de privacidade.

_A senhora sempre morou aqui?

_Não, nós morávamos numa casa imensa, um verdadeiro paraíso: com jardins, árvores, muito espaço. Herança de meu pai, um homem esforçado que se ocupava de marcenaria, sabe? Estava sempre repleta de amigos. Houve um tempo em que alguns se hospedaram em nossa residência. Não lembro muito bem o ano, mas Jaime havia voltado de uma viagem da Serra dos Carajás.

_A serra pelada?

_Exatamente. Mas veja, aqui costumávamos ficar horas e horas olhando o pôr-do-sol. Eu, sentada ao piano e... – não consigo prosseguir. A voz falha, a emoção domina. Pudesse tomar distância do passado e tocar de leve, com cautela, apaziguando a ferida.

_Alguma lembrança má?

_Não, uma lembrança muito boa, mas triste.

_Então, não vamos falar nisso. Quem sabe, voltamos para sala?

_Não, eu quero falar. Não se trata de Jaime.

_Não?

_De Luisinho, meu filho.

Não conto em detalhes, apenas comento: quando ele vinha, as noites eram menores, mais felizes. Costumava ficar ao meu lado, até as luzes da cidade ficarem intensas, visíveis. Vez que outra, me ouvia ao piano ou apenas confidenciava um problema, uma preocupação. Seus silêncios nunca eram interrompidos por mim, pois quando aconteciam, eu sabia que alguma coisa estava errada. Se quisesse, me contava. Não o forçava, mas via de regra, acabava abrindo a alma. Somente eu o entendia. Quando a noite caía, examinávamos com cuidado, a lua. Mas não por muito tempo, porque era a hora de voltar para casa. Às vezes, eu percebia que ele escondia algum sofrimento.

_Seu filho não vem mais?

Não se devia exigir tanto dos velhos. Como explicar que ele morreu há cinco anos? Como revelar a dor que senti e que sinto todo este tempo? Como dizer que não sei o que é dormir à noite, há tanto tempo? Depois de falar-lhe rapidamente, vou preparar o maldito cafezinho.

_Eu a acompanho, se não se importa.

Quem diria? Será que ela está sendo gentil apenas ou teve pena do meu sofrimento? Que seja gentileza, mesmo falsa, é menos doído.

Ela me segue batendo o salto no parquê. Devia ser mais comedida. Pelo menos, se esforçar em ser delicada. Caminhar com nobreza, mal tocando o salto no piso. Quase pairando no ar, tal como você. (Eram outros tempos, Rita). Ao contrário, parece caminhar aos atropelos. Quem sabe está aflita, porque ainda não conseguiu nada de mim. De qualquer maneira, está ao meu lado e já aciona a cafeteira.

_A senhora mora sozinha?

Ela não parece jornalista, só faz pergunta idiota. Mas hoje em dia, todo mundo pensa que sabe tudo. Vai ver que é o caso dela. Não respondo, mudo de assunto.

_Sabe que daqui eu só posso ver os fundos dos outros apartamentos? Diferente da sala de música, que dá para a esquina. Mas é bem divertido. Desta janela, vejo centenas de pombais, gente que entra e sai fazendo nada. Às vezes, só as empregadas aparecem, outras vezes, alguns fumantes. Você fuma?

_Não. Mas a senhora, me parece, gosta muito de ficar na janela. Na frente do apartamento também tem uma bela vista.

_Se você considera uma bela vista, um prédio imenso que encobre o meu sol, com um velho parado na frente da minha janela...

_Um velho?

_Um dia, eu falo sobre ele. Mas sente-se aí. Vamos tomar o café aqui mesmo, na cozinha. Trouxe o gravador?

_Sim, está comigo.

_Imagino que você como todo jornalista é uma pessoa muito curiosa e crítica. Então, o que me diz de pessoas que falam sozinhas? Mas por favor, sem demagogia, não vá me dizer que é coisa de solitário.

_A senhora tem este hábito?

Não sei porque ela tem o dom de me tirar do sério. Sempre responde com outra pergunta. Que pretende dizer, que sou uma velha caquética como o outro aí da frente?

_Pela sua expressão, vi que não gostou muito da minha pergunta. Mas não quis ofendê-la. Para mim, é muito natural. Não se refere a pessoas solitárias apenas. Pessoas sozinhas, não obrigatoriamente solitárias.

_Na verdade, falo com minhas plantas. Tenho centenas de violetas, samambaias, azaleias, inclusive uma mini roseira num vaso. Conheço cada uma, sei o que sentem quando me aproximo, quando as acaricio. Elas conhecem a minha voz. Não pense que sou louca.

_Imagine, isso é fabuloso. A senhora é uma pessoa rica, criativa. Uma pessoa de valores.

_Quando perguntei, não pretendia falar de mim.

_Não?

_Do velho aí da frente. Ele costuma falar sozinho, olhando para a rua. Às vezes, até ri. Nunca me encara e quando o faz, desvia os olhos rapidamente.

_Então, no caso dele, deve ser solidão profunda.

_É verdade... Deve ser. Sabe que uma vez eu o vi pelado?

_E o que a senhora sentiu?

_Nada, ou melhor, nojo! Um velho magrela, descarnado. Parece um espectro, quase um espírito. Você me respeite!

_Desculpe-me dona Úrsula, não me interprete mal.

_Aqui não tem outra interpretação, moça. Não se faça de idiota.

Acho que me calando alguns minutos, permanecendo assim, emburrada, ela perceberá que tem que escolher as palavras quando se referir a mim. Provavelmente, se esforçará em pedir desculpas e tentar me conquistar de alguma forma. Pois que faça, porque não deixarei que inspire qualquer sentimento desavergonhado em relação a mim. Ora, que diabo. Pensar que eu poderia sentir alguma coisa por aquele velho! Ela está brincando comigo!

_Dona Úrsula, nós tomamos café, aliás, maravilhoso. Conversamos sobre várias coisas, mas não falamos ainda sobre seu marido.

_Você já cansou de mim, não é mesmo?

_De modo algum. Acho, inclusive que vamos nos encontrar diversas vezes, talvez irmos a lugares que a senhora costumava ir com o seu marido. Acho que uma boa razão para ficarmos juntas.

_Praticamente não saio de casa. Apenas, para visitar o túmulo do meu filho. Ele morreu há cinco anos. Ele era a vida desta casa. Quando estava aqui, era uma casa cheia. Bastava a sua presença. A mulher, era uma desqualificada, mal-educada. Não servia pra ele.

Depois que ele morreu, tentei me aproximar dela. Acho que deveria perdoar tudo que me fez sofrer. Ela o separou de mim, sabe? Ou melhor, tentou me separar, mas ele foi forte, nunca cedeu. Esteve sempre ao meu lado, embora vivessem às turras.

_Faz muito tempo que isso aconteceu?

_Cinco anos. Cinco anos que não durmo, que caminho por entre estas salas, esperando as horas passarem, para chegar o novo dia e começar o que nunca terminou. A vida pra mim, não tem intervalo, interrupção, não tem começo nem fim. É tudo uma coisa só.

_Talvez a senhora precise de ajuda.

_Preciso de uma luneta potente.

_O que disse?

_Um binóculo, uma luneta. Bobagem minha. Mas tenho pensado muito nisso. Já que passo as noites acordada, nada mais justo do que olhar o mundo.

_Quando todos dormem.

_Mas por hoje chega. Não quero falar mais nada.

_Está bem. Não quero que a senhora se aborreça. Amanhã, voltamos a conversar.

Quando ela se prepara para pegar a bolsa e a pasta de documentos, volto-me para o corredor e vejo o reflexo do velho na vidraça da porta que divide a sala de estar com a do piano. Estou certa de que está na postura habitual, olhando o nada e falando ao mundo. Quase sem querer, chamo-lhe a atenção.

_Espere, o velho está na janela debruçado. Está falando sozinho, e observe que não há nenhuma flor por perto.

_Mas é do outro lado da rua. E a senhora não pode vê-lo daqui, da cozinha.

_Venha comigo. Tenho certeza de que está lá. Eu posso entendê-lo pelos lábios. Vamos tentar descobrir.

Você viu o aconteceu, Rita? Quando fomos à janela, não consegui me concentrar na fisionomia do velho, pelo menos um bom tempo. Percebi que Susana estremeceu. Seus lábios, de súbito ficaram descorados. Quando o seu cotovelo gelado tocou-me o braço, pensei que fosse desmaiar. Talvez uma lembrança, um fato triste do passado tenha lhe despertado um sentimento de fuga, de medo e angústia.

_O que você tem? Está chorando? Se emocionou com a história dele?

_Não sei qual é a história dele.

_Você não ouviu?

_Não ouvi nada. Não sei ler os lábios, dona Úrsula.

_Mas viu o enfermeiro chegando, não viu?

_Por favor, Dona Úrsula. Nós combinamos um outro dia.

_Escute, eu posso ajudá-la. O que aconteceu?

_Nada, não se preocupe.

_Mas você chorou. Se não foi pelo velho...

_É que, por um momento, eu lembrei meu pai. Mas não há nada que se possa fazer.

_Ah, meu Deus, só me faltava esta, uma jornalista com um drama.

_Exatamente por isso, dona Úrsula. Não devo misturar as coisas. Estou aqui, como profissional.

_Mas quem sabe, eu possa ajudá-la. O que aconteceu com ele?

_É uma longa história. Outro dia, lhe conto.

_Se você quiser, eu posso sair com você. Amanhã, vou visitar o túmulo do Luisinho. Você pode vir aqui, me buscar eu falarei sobre Jaime, prometo.

Às vezes, ela me observa como se avaliasse um vaso velho de porcelana. Não sei se quer realmente sair comigo. Se não quiser, que o diga e, se não precisa de minha ajuda, que se ajeite sozinha.

_Está bem, dona Úrsula, a princípio não há nenhum inconveniente. Podemos marcar uma hora?

_Pode ser às três. Você liga meia hora antes, para eu me aprontar. Sabe que também fiquei com pena do velho? Nunca ele falou tanto em toda a sua vida.

Estou assim, pensativa, que embora Susana tenha ido embora, ficou alguma coisa nova aqui dentro. Nem sei explicar o quê, mas uma pequena mudança, um sopro de vida. Por um momento, me senti útil, como se a tranquilidade daquela menina dependesse de minha ajuda, do meu apoio. Sinto que ela precisa de mim. Talvez todos precisemos uns dos outros em algum momento da vida. Pode ser a vez dela. Aquela humildade que surpreendi em sua fisionomia não passava de uma sombra, um sofrimento denso que ela tenta ocultar.

De qualquer maneira, é bom que eu esqueça este assunto e retome as minhas coisas. Quem sabe, desenrolar aquele novelo de lã velha e retomar o meu tricô. É uma boa maneira de passar o tempo e aliviar o peso das horas.

Sempre que o interfone toca, sinto um estremecimento. Acho que ando ansiosa. Será que Susana esqueceu alguma coisa?

_Quem? Susana?

_Sou eu, dona Úrsula. Dulcina.

_Que Dulcina? Não conheço nenhuma Dulcina!

Esta gente tem mania de se apresentar com tanta intimidade, como se eu fosse obrigada a conhecer todo o mundo. Imagine, não estou interessada em comprar nada, nem atender ninguém, muito menos receber santinho de candidato. Já basta a visita que tive hoje. Valeu pelos próximos meses!

_Moça, não sei do que está falando. Deve ter errado de apartamento.

_Só se a senhora me despediu. Sou a empregada! Esqueceu?

_Não esqueci, atrevida. Você fala como uma doente! Vá, vá entrando e não se demore, porque a casa está imunda!

Como o tempo passou depressa, a ponto de esquecer que Dulcina estava a caminho. Pronto. Acabou o meu dia. Agora, precisamos nos separar, Rita. Me fecho na vida.

Não confio nesta Dulcina e não quero intimidades. Acabou. Falo só o que interessa. Se possível, nem penso.

Úrsula abre a porta, afastando-se em seguida para a poltrona mais próxima, onde afunda-se lentamente deixando as pernas na banqueta. Deixa-se ficar absorta, articulando cuidadosamente os nós de um novelo de lã usada. O silêncio pesa, absoluto. Para ela, a cortina caiu e o espetáculo acabou. O auditório esvazia. Sente-se caminhando entre os corredores, ainda aspirando o odor recente das pessoas nas cadeiras. Os ruídos, as vozes que se despedem, as risadas longínquas, o empurrar de móveis nos bastidores. Observa, vez que outra, a parede dos certificados e quadros e fotografias, sem perceber a presença de Dulcina. Mas esta enche um ambiente. Estabanada, voz grave e em tom avantajado, braços carregando sacolas e uma bolsa sintética vermelha. Esbraveja, ofegante.

_O ônibus tava uma loucura. Fiquei presa entre a porta e o cobrador. Quem disse que eu passava pra frente? Parece que o povo todo resolveu sair pra rua, nem é feriado nem dia santo, meu Deus!

Sem obter resposta e talvez sem preocupar-se com isso, dirige-se à cozinha, solta as sacolas sobre a mesa, guarda a bolsa num armário na área de serviço e retorna, vestindo um avental xadrez. O suor envolve a testa, vindo da nuca, fazendo-a apertar os olhos doídos.

_Que bicho lhe mordeu? A senhora tá esquisita! Toda maquiada, parece que vai a uma festa. E estas joias do fundo do baú? Aconteceu alguma coisa? Esquecer que o meu nome é Dulcina, que trabalho nesta casa, é normal.

Ela levanta, dá alguns passos até a o piano e a encara com os olhos sublinhados a lápis, olhar afiado.

_A rotunda precisa de uns ajustes. Não sei se reparou.

_Rotunda? Por que a senhora não fala língua de gente? Já sei, se refere ao mural da sala de troféus.

_Você realmente nunca entenderá Dulcina – e levantando-se, passeia pela sala, deixando a linha de lã seguir-lhe os passos – rotunda é o pano de fundo. O veludo está ruço, branquicento. Dê uma escovada nele, só isso que lhe peço.

Na porta, ainda ouve a censura rotineira de Úrsula.

_Você não faz juz ao nome que tem. Já lhe disse que Dulcina foi uma grande atriz de teatro? Dulcina de Moraes, uma diva.

_Sei também que Ursula foi a mulher do tal Gabriel Marques. Mulher de fibra, cega e valente. Se tivesse que pegar uma condução até aqui, aturar o cheiro de estivador de banho vencido há três dias se esfregando na gente, não ia ter tempo pra essas baboseiras!

Úrsula empurrou o novelo com o pé, fazendo rolar até a poltrona. Voltou a sentar-se e puxou o fio devagar, tentando levantá-lo do piso, mas inevitavelmente o desenrola. Resmunga, baixinho: – esta imprestável. Não serve nem pra me pegar o novelo.

Desiste do novelo, deixando-o sob o pé da poltrona. Esquece-o e abaixa a cabeça, desconfortada. O cheiro de realidade que Dulcina traz da rua a incomoda. Tudo a irrita: desde seus passos descontrolados pela casa até a música que ouve na rádio. Os ruídos de uma vida sem glamour.

fonte da ilustração: Chelli http://mrg.bz/86qRjl

domingo, janeiro 10, 2016

EU E A POLÍTICA

Tenho observado através de conversas com amigos e por comentários das redes sociais, que algumas pessoas que não são engajadas politicamente ( condição a qual não são obrigadas a sê-lo), possuem restrições e até, salvo engano, me parecem temerosas com os que professam o regime de esquerda.

Eu, na verdade, sou praticamente leigo na seara da política, e tudo o que sei faz parte de minha experiência, enquanto cidadão, com os diversos governos que ocuparam o maior cargo da nação, entre vários partidos políticos, entremeado por uma ditadura feroz de direita.

Entretanto, atenuando esta minha ignorância, debrucei-me em diversas leituras, com autores reconhecidos e acho que adquiri, senão uma expertise na ciência política, pelo menos um conhecimento razoável de nossa história e nossas maneiras de conceber a cidadania de um país.

Não sou político no sentido estrito da palavra, nem filiado a nenhum partido, mas tenho minhas percepções do que considero certo ou errado, adequado ou incorreto nas decisões que influenciam a nossa vida.

Deixando este adendo, retomo o tema que abordei no início, sobre à má concepção pelas pessoas quanto ao sistema de esquerda. Talvez, essa deformação do pensamento ocorra em virtude da colossal propaganda política, que ligava os partidos de esquerda exclusivamente ao comunismo praticado na União Soviética, principalmente na época da guerra fria. Claro, que a propaganda dirigida pelos Estados Unidos e plenamente acolhida aqui em nosso País, retratava a esquerda como portal do inferno, onde somente havia governos totalitários, cuja meta principal era  aniquilar as formas de pensar diferente, isso discutindo apenas de uma maneira rasa.

Sendo assim, ocultavam sorrateiramente o perfil antidemocrático da ultra-direita, que grassava nos países detentores do poder no mundo, como a Inglaterra e os Estados Unidos.

O império americano se notabilizava em favorecer o racismo,  na tortura de dissidentes ou espiões presumíveis de outros países, na busca desenfreada pelos comunistas locais, como atores, escritores, filósofos e outros e ainda se interpunha em países ameaçadores econômica ou politicamente (inclusive no Brasil pela CIA e outras intervenções).

Partilhavam da ideologia de que as guerras encomendadas, as invasões aos países, o controle do petróleo e manutenção do status quo do povo americano era a receita adequada para o poderio que pretendia alastrar pelo mundo, não importando a miséria dos outros povos, desde que seu privilégio fosse respeitado.

Eram dois mundos distintos, mas com objetivos até semelhantes, quando segregavam a liberdade, e impunham as suas regras totalitárias.

Tanto a direita totalitária, como a que enfatizou o nazismo, como a esquerda stalinista foram nefastas para a humanidade.

Há porém uma direita que se vale do capitalismo, do estado mínimo, da privatização das empresas estatais, objetivando a geração de riquezas, sem a participação do estado. É uma política excludente, que privilegia a burguesia, os grandes latifundiários, o setor bancário, promovendo a  riqueza na mão de poucos e impedindo a circulação do capital pela população mais pobre. Esta direita privilegia os grandes grupos e como consequência, aumenta a miséria. A sua ideia de  crescimento do país se dá através de um processo de especulação do capital, e quem ganha mais é a elite que possui contas no exterior e que, na maioria das vêzes, como num passado recente, não investia as suas riquezas no país.

De todo modo, não há como negar que  há medidas corretas, desenvolvimentistas, e que segundo a ótica do neoliberalismo, os resultados advém de um processo de ampliação do poder aquisitivo das grandes corporações, respingando na população, em virtude do  progresso de   seus investimentos.

Certamente, podem ter resultados, dos quais evito opinar por desconhecimento econômico, e inclusive acredito, que em certos governos de direita ou centro-direita, possa haver um processo com lisura e competência.
J

á, na esquerda, o foco principal é a valorização da classe mais carente, é o ajustamento das camadas sociais, transformando em iguais aqueles que são desprezados pela sociedade.

É o direito à cidadania, ao poder de compra, ao acesso ao trabalho e aos meios de produção, à inclusão das pessoas em diversos níveis de atividade, tanto no âmbito escolar, quanto na democratização da comunicação, dos direitos humanos e sociais. E tudo acontece a partir de medidas sociais e o aumento do capital, através da distribuição de renda, melhoria do mercado e oportunidade de oferta e procura dos bens.

Numa sociedade de consumo, como a nossa, é normal que os bens sejam distribuídos e que a indústria, o comércio, as empresas, os bancos e a população sejam contemplados.

É obvio que há grandes corporações que injetam grandes fortunas e absorvem o mercado, às vezes de forma abrangente e até agressiva. Mas, o fato de observar que centenas de pessoas saíram da linha de miséria, que a bolsa família é uma oportunidade para ingressarem no mercado de trabalho e dos bens e serviços, que os filhos estão incluídos neste processo, com a obrigação de manterem seus estudos, que os negros são respeitados e que leis de apoio às mulheres são elaboradas para a sua proteção, já capacita o sistema em ser o mais indicado para o país.

Como citei, não sou político, muito menos economista. Sou um escritor, que tenta expor aquilo que o emociona ou angustia, ou mesmo o instiga a exercitar a sua opinião. Utilizo a política, como um cidadão, como todo mundo. Tenho a pecha de ser de esquerda, como se fosse uma cicatriz ferrenha, como um estigma, visto que,  na maioria das vezes, as pessoas acreditam na balela de que os de esquerda tiveram uma lavagem cerebral para serem assim, seres tão radicais (sic).

Na verdade, não sou filiado a nenhum partido político, já votei no pt, no psd e até  no pdt.

Sempre digo que sou orientado à esquerda, mas prioritariamente humanitário, um cara que acredita nas medidas sociais, no acesso da sociedade à leitura, à internet, à universidade, à cultura, e acredito piamente que as cotas sociais e as medidas de ajuda financeira ou alimentar, são transitórias, até que a miséria seja afastada definitivamente de nosso pais.

Posso ser um idealista, mas tenho os pés bem no chão. Sei até onde os governos podem ir.

E se há corrupção, se há roubalheira, se há malfeitos, que sejam punidos, mas punidos de acordo com a justiça do país, sem maniqueísmos, que sigam  um modelo político ditado por uma mídia manipuladora, regida pela ideologia reacionária e econômica.

Em tempo, hoje em dia, as pessoas se manifestam no sentido de que não há mais diferença entre esquerda e direita. Não é verdade. Há conchavos políticos sim que integram estes dois regimes, há acordos com os quais, em sua maioria não aprovo, mas as diferenças são explícitas, a ponto de não haver convergência quando o assunto é a igualdade social. Estes argumentos, na verdade querem desestabilizar os poderes constitucionais do Brasil, através do descrédito da população, colocando em risco a democracia.

Portanto, quando os meus amigos me classificarem de esquerdista, o façam com a parcimônia dos sensatos e educados. Sou antes de tudo, um humanitário, que deseja que o povo de seu país seja o protagonista da história e não apenas um coadjuvante da riqueza de poucos.

sábado, janeiro 09, 2016

SEDUÇÃO

Saiu à noite, pelas vielas escuras. Um impulso indefinido. Talvez sentir-se vivo. Impulso, pulsão, compulsivo. Tudo que milhares de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, até autores de autoajuda já tinham informado. Sabia, entretanto que precisava seguir o ritual. Um sentimento de busca, uma verdade inconteste que latejava no peito e respondia no sexo, o degrau inferior que percorria pensamentos, mas que o impelia a sentir-se alguém.

Talvez fosse um louco, destes que andam às escuras, escondidos nas brumas das árvores dos parques, prontos a atacar ou serem atacados. A praça o seduzia; uma atração tão forte, que não ousava fugir.

Lembrava-lhe brinquedos, dias ensolarados, o avô ao seu lado, o carinho seguro, o passo certo e a certeza de que a vida se resumia na firmeza da mão. Nada os separaria, estariam sempre juntos, ele, ouvindo suas histórias enfadonhas, que o transportavam a sua vida rural: um modelo tão estranho e diferente do seu. Aos dez anos, tinha poucos amigos.

O pai, distante, executivo sempre temeroso da falência aviltada eternamente a seus ouvidos, a mãe envolvida na sua vida social e decadente.

Nada mais restava a não ser o avô, um velho marginalizado pela pouca cultura, narrador de histórias rudes, baseadas no manuseio dos animais, cercado por gente simples como ele, considerada desprezível pelo pai e por toda a família. Também não se importavam com a sua presença, desde que se mantivesse contida no elo familiar do menino. Este aprendera quase tudo sobre cavalos, éguas no cio, vacas prenhes e caças proibidas. Mas o que mais o fascinava não era o enredo inverossímil das histórias, mas o ambiente lúdico da praça, que ficava próxima a sua casa, onde tudo acontecia, onde elas se desenrolavam em narrativas fantásticas. O que o encantava era a intimidade com o avô, naquele espaço de liberdade e paz, onde pombas sobrevoavam, atrevidas, e palhaços produziam publicidade dos circos que chegavam à cidade. Onde percebia nos olhos do avô um certo ar de inocência.

Agora, aos trinta anos, o velho já enterrado há mais de dez, não lhe importavam as luzes da praça, nem o ensolarado dos recantos, nem a mágoa ressentida de se afastar dos meninos mais corajosos, que se arriscavam na gangorra, em pé, ou na roda gigante, da qual se avistava o topo das árvores. Nem a humilhação de se sentir confortável apenas no carrossel, com a certeza de que colocaria os pés em terra firme. Bobagem. Nada disso causava qualquer emoção, apenas lembranças distantes, nos quais a verdade se escondia em seu coração e o refúgio maior era o coração do velho.

Viver pelos becos sombrios, atravessar as vielas sórdidas, envoltas no negrume dos desejos mais recônditos produzia um prazer muito maior do que o gozo que procurava. No entanto, um vazio imenso se instalava em seu peito, que sentia o suor escorrer gelado através das roupas grossas de lã, um frio intenso de bater joelhos, parceiro nestas buscas intermináveis. Via em cada olhar entre as sombras, uma provável fonte de prazer, mais forte do que o medo de ser atacado ou cruelmente humilhado. Em todos, talvez avistasse os meninos que o desprezavam, e por isso, quisesse agradá-los, para se sentir um igual. Ou talvez, as imagens sombrias e disformes traduzissem a rudeza do avô, que mesmo no ensolarado do sol, carregasse com ele, a crueza de um mundo marginalizado, que o atraía intensamente. Olhos passeavam nas sombras agitadas, de rumos diferentes, que se cruzavam a todo momento, que se aproximavam, se tocavam, pedindo sexo. Homens, mulheres, prostitutas, vadios, mendigos, ladrões, traficantes, drogados, policiais, travestis, garotos de programa, todos em fila, à espera de um beijo seu. Uma confirmação que finalmente cederia a sua sina. Coração alerta, as pernas trêmulas, doente de frio.

Noite límpida. Só estrelas no céu e a lua se inseria entre aqueles galhos retorcidos, desenhando imagens absurdas. Ali, próximo, seres que se esgueiravam no ambiente insípido, molhados de sereno e suor, bocas úmidas que procuravam outras bocas e outros corpos. E ele, ali, como um malabarista entre os galhos secos e disformes, meio escondido, obedecendo à hierarquia da sedução, temeroso de ceder também, de se sentir um igual, tão igual que jamais voltasse a ser o que deveria. Alguns sorriam, outros se masturbavam indecentes, na noite vazia de sonhos e ilusões, outros se locupletavam com as moedas que proviam a miséria de seus cofres sem dono. Ladrões de corpos e almas. Ladrões de si mesmos, de suas vidas, seus destinos, desafiados a cada momento no brilhar de facas, no tilintar de faróis oficiais, no disparar de pistolas.

Se pudesse fugir, mas estava preso ao chão, realizando o ritual que ousava repetir.

Foi assim, que percebeu um olhar mais forte, a voz que não se produzia na boca, mas no corpo inteiro, que o deixou tão atraído que pensou que fosse morrer. Até sorriu, quando a beleza se alternou entre a miséria humana e pensou ser um dos seus. Com sonhos, esperanças, ideais, quem sabe, um dia evadir-se daquela vida e se transformar num novo homem, esquecer este universo avesso à realidade dos outros de bem. Então o acompanhou, tropeçando, a voz embargada, o coração aos pulos, a boca estremecida. Excitado. Sua chance. Só uma vez. Um homem como ele não se atreveria jamais a prosseguir naquele caminho. Bastava ser feliz, por alguns momentos e esquecer para sempre. Seguiu-o para uma touceira, desfiou o blusão nos nódulos do tronco, entorpeceu os braços, estendido no alto e, sem ação, enlevou-se em frases bonitas, gestos sedutores que certamente outro homem não faria, pelo menos não um como o avô. Sentiu-se apalpado, invadido. Foi beijado com lascívia e aflição. Suas pernas aconchegavam o sexo vigoroso e deixou-se ficar quieto. Manteve-se como o menino à procura de amigos, frustrando-se por ser covarde, agarrado na figura firme e segura do avô. Não precisava mais dele, porém. Estava seguro, quando o encarou, seduzido na voz sussurrante. Até quando avistou a arma brilhar e pairaram exigências rápidas, como cartão de crédito, dinheiro ou chave do carro. Nada dizia, pois nada acreditava. O torpor impediu a voz. A mãe sorria, afirmando que a página policial não era para a sua família; o pai por sua vez não acreditava na exiguidade da hora, no confronto da conversa, no contra-argumento e por isso se afastava, acenando a cabeça, enfadado.

Apenas o avô, com suas histórias, no ensolarado da praça, contando como se sacrificava o porco e como o sangue jorrava, lavando a mesa improvisada, após gritos dilacerantes de dor. Então, sentiu o sangue correr na mão, oriundo do pescoço, como o porco sacrificado e pensou que encontraria o avô e certamente, seria novamente feliz.

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