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A bolha

Quisera contar coisas felizes. Quisera imaginar uma cerca brilhante, arrebatada por uma luminosidade paralela que me permitisse ultrapassá-la sem os medos normais. Quisera antecipar-me à dor e vencer a morte. Quisera saber viver, como os príncipes. Quisera participar. Usar todos os verbos em todos os tempos para explicar o que já nem tem sentido. Ultrapassar a cerca, pular a dor, liberar o ódio, alavancar o amor. Deve ser possível, não neste momento. Tomara que eu durma e acorde levitando, pois aí verei lá de cima, o mundo que deixei para atrás. Um mundo de intolerância, racismo, fascismo, ódio. Um mundo onde grassa a ignorância de mãos dadas com o retrocesso. Quem sabe desço e desmancho a bolha que ainda me impede de lutar?

EMBLEMA DA MORTE EM VIDA

O conto a seguir, Emblema da morte em vida , foi publicado na Antologia Metamorfoses, como um desafio de se criar um diálogo intertextual com Kafka reescrevendo a frase inicial de sua novela Metamorfose "Quando certa manhã, Gregor Sansa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso". O meu conto está na páginas 53-57 da antologia, que está à venda no site da editora: www.editorametamorfose.com.br. Quando certa manhã Lauro Sampaio acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num cadáver. Tinha consigo que a vida passava rasante ante seus olhos, mas não argumentava. Percebia as olheiras do médico de plantão e as enfermeiras que ciscavam em suas roupas disformes. Ouvia as vozes de raspão. Ora sumiam e um peso terrível abalroava suas pernas. Afinal, onde estava? No hospital? Sentia-se aprisionado em seu corpo, mas ouvia o que diziam. Uma das enfermeiras enfiou-lhe um tubo na boca. Tudo parecia em diapa

Acertar a mão

Segundo Antônio Cândido, em seu brilhante ensaio Direito à literatura, “... as palavras organizadas são mais do que a presença de um código: elas comunicam sempre alguma coisa que nos toca porque obedecem à certa ordem.” E mais adiante, ele sugere que o material bruto da linguagem, oriundo do processo de elaboração, torna-se um caos originário deste material a partir do qual o produtor escolheu uma forma e que se torna ordem. Por isso, segundo ele, o caos interior do leitor também se ordena e a mensagem pode atuar. “Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido. Seguindo esse princípio do grande sociólogo e crítico literário, eu trampus a técnica para o meu trabalho, como produtor de narrativas. Deste modo, produzi a expressão adequada para dar forma e sentido do eu e do mundo no meu texto, quando organizei o caos. Sempre que inicio um romance, uma novela ou conto, há uma gama de temas que

A bandeira e o eclipse

Minha mãe era muito zelosa com as atribuições da escola. Na primavera de 66, estávamos mais preocupados com o provável eclipse que ocorreria no Brasil, especialmente na região sul, do que outros eventos cotidianos, como por exemplo confecionar bandeiras brasileiras. Eu já tinha tudo pronto em minha mente, usaria uma chapa de raios x para observar o céu, até que o sol desparecesse e a terra se alinhasse com a lua, escurecendo a cidade. No balneário Cassino, no entanto, a situação seria ainda mais eufórica e esperada. Afinal, a Nasa lançaria 14 foguetes na praia com a intenção de investigar o fenômeno. Havia muita gente no Cassino, inclusive mais de 300 cientistas do exterior. Minha mãe, entretanto estava disposta a cumprir a sua tarefa. Levou-me à loja Isaac Woolf e com a paciência das mulheres em escolher tons para os tecidos, permanecemos na loja mais de uma hora. Eram matizes que não acabavam mais. Tons que iam do verde escuro ao mais claro, azul que deveria compor um cé

Os dez países com mais leituras em outubro de 2017

1. Brasil 2. Estados Unidos 3. Rússia 4. Alemanha 5. Ucrânia 6. Irlanda 7. Portugal 8. Romênia 9. França 10. Polônia

Os dez textos mais acessados em outubro de 2017

1. A essência da vida 2. SOU DO CONTRA! 3. PIOLHOS DE RICO 4. TRABALHO VOLUNTÁRIO NO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO : UMA PROVOCAÇÃO PARA A VIDA 5. A catarse do escritor 6. O bibliotecário e o escritor 7. Um olhar instigador 8. Sonhos na lagoa 9. Onde chegará o homem? 10. Triste Brasil

A catarse do escritor

Pedro Nava, o grande escritor mineiro, autor de "Baú dos ossos", afirmava que a memória é uma coisa inextinguível, com suas coisas boas e ruins, mas pode-se fazer uma catarse, enquanto se escreve. Para isso, ele explicava: “eu tenho esquecido certas coisas que eu tinha completamente vivas dentro de minha memória depois que as pus por escrito. Depois delas escritas, desapareceram certas datas, certas pessoas. Certos aborrecimentos que eu tinha com determinadas pessoas desapareceram completamente. Eu fiz uma espécie de pazes com muita gente através da minha literatura um pouco vingativa sobre algumas pessoas que me desagradaram”. De certo modo, todo escritor se vale de suas experiências pessoais, de características de familiares, amigos, conhecidos e até mesmo desconhecidos. Em geral, estas nuances de personalidade ou aparência física ou características especiais ficam na memória e são mescladas para construir determinado personagem. É no fazer literário, na comunhão com se

Triste Brasil

Lendo uma das citações de Bertold Brecht, o dramaturgo alemão do século XX, cujos trabalhos artísticos e teóricos influenciaram o teatro contemporâneo, percebemos que seus pensamentos são tão universais e de nosso tempo, que parecem vaticinar o que viria acontecer no futuro. Senão, vejamos suas palavras: "Nada é impossível de mudar.Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar." Observamos, portanto, que este pensamento se encaixa na situação que estamos vivendo, de arbitrariedade e golpe na democracia. Pense bem, desconfie do "simplinho", do falso humilde que vota pela pátria, pela democracia, pelo amor a Deus e à família. Sabemos que não vivemos num

Luta por quem está contigo

Eu costumo comentar com colegas ou amigos, que sempre que havia um desentendimento de alguém que de algum modo me feria, eu não ficava me lamuriando, caso a pessoa fosse apenas um colega ou conhecido. Claro que sentia, mas sentiria muito mais se eu gostasse realmente da pessoa, se fosse minha amiga ou parente. Ficaria muito triste. Afinal, essas me tocavam de perto. Em 2014, o Papa Francisco disse a frase que corrobora com o que penso: “Não chores por quem te abandonou, luta por quem está contigo. Não chores por quem te odeia, luta por quem te quer.” Eu acrescentaria o verso do Quintana “eles passarão, eu passarinho”. Sem ódio, sem tristeza, apenas exaltar a alegria dos que a compartilham. Vida que segue.

Um pouco sobre mim e meus livros publicados

Eu trabalhei na FURG como bibliotecário. Lecionei também Português, Inglês e Literatura em escola pública. Formado em Letras Português/Inglês, Biblioteconomia e Especialista em Ciências da Informação. Atualmente, sou membro da Academia Rio-grandina de Letras. Escrevo no blog letras-livres.blogspot.com.br e participo da página literária do Jornal Agora, no caderno O Peixeiro, pela Academia Rio-grandina de Letras. A página literária no facebook é: https://www.facebook.com/guilsonlitteris/ Sobre os livros publicados: Como escritor, participei da Coletânea de Conto, Poesia e Crônica, Edições EG da All Print Editora, 2009. Ainda em 2009, integrei a Antologia de contos “Outras águas”. Participei da antologia Contos Vencedores 2013 de Araçatuba, com o conto “A margem oposta e na Antologia de Contos de Santo Ângelo, 2014. Em 2017, Antologia de contos “Metamorfoses”, com o conto “Emblema da morte em vida”. Publiquei dois romances: “O eclipse de Serguei”, pela editora Biblioteca

A essência da vida

Por volta dos anos 50, Sartre proclamara que "cada homem é singular porque constrói sua essência ao longo de sua existência". Talvez esta procura da definição de si mesmo, seja o sentido da vida. Ou não? Eu, como não gosto muito de falar em público, fiquei pensando nesta imagem de Sartre que me diz de perto o que sinto. É preciso construir a essência, não importa em que cubículo nos escondamos ou em que janela nos espelhamos. Construindo a nossa essência, identificamos quem somos e talvez seja este o sentido da vida que passamos a existência procurando. E para que o sentido da vida? O fato de ser feliz, de procurar a felicidade de todas as maneiras. No entanto, a busca pela felicidade plena não faz sentido. O que podemos almejar é a serenidade, algo completamente diferente. Só se atinge a serenidade vencendo o medo. É o medo que nos torna egoístas e nos paralisa, que nos impede de sorrir e de pensar de forma inteligente, com liberdade. Os filósofos gregos costumavam

Onde chegará o homem?

Não gosto de comentar notícias policiais, muito menos ficar dissecando as informações, investindo em cada detalhe e transformar o fato numa dramaturgia barata. Mas às vezes, a realidade dura nos obriga a pelo menos refletir e sofrer as consequências da falta de humanidade. O bebê baleado no útero da mãe e que não resistiu e acabou morrendo, em Caxias, na Baixada Fluminense vai contra qualquer percepção de realidade, como se o surrealismo ou a ficção concentrasse seus valores em nossa realidade. Como não se comover, como não sentir na pele o arrepio da dor e do medo ao assistir um fato tão doloroso. Isso apenas citando dois fatos, embora ocorram diariamente todos os tipos de assassinatos e perdas terríveis ao povo brasileiro. Como acreditar na humanidade e imaginar que ainda há futuro? Quando vemos nossos filhos longe, ficamos com o coração na mão e quando estão perto permanecem em total abandono, porque as balas perdidas não são excessões, ao contrário, são a regra em muitos recanto

O bibliotecário e o escritor

O cuidado em encapar os livros, não é coisa de bibliotecário que evita a descaracterização da obra, mas é coisa de escritor que tem o cuidado, o zelo e o carinho com este suporte maravilhoso de lazer , informação e cultura. Virginia Woolf era acima de tudo, uma grande escritora e uma cuidadora da cultura. Bibliotecário protege para a disseminação da obra, o escritor cuida. Os dois se completam.

Um olhar instigador

Muito se fala sobre o livro e com muita propriedade. Há expressões das mais variadas que ilustram com perfeição a finalidade, a valorização e a importância do livro. Kafka fala sobre o livro com certa dureza, mas seu intuito é o de inspirar uma transformação no homem. Vejamos: "Deveríamos apenas ler livros que nos mordem e nos espicaçam. Se a obra que lemos não nos desperta como um golpe de punho no crânio, qual é a vantagem de ler?”. Os livros devem provocar sensações, deixar marcas, fazer a alma voar e a mente repensar, repensar e deglutir com paciência, quase intolerância, o que recebe. Assim é a arte em geral, que deve instigar, mexer com o nosso conforto existencial e impulsionar um olhar novo no que se vê e sente.

Total desassossego

Quando a vida lhe parecia sorrir, sentia-se em total desassossego. Sampaio não era de se envolver nos problemas alheios, ainda bem, dizia consigo, já lhe bastavam os seus. Mas de uma hora para outra, passou a ter desejos estranhos, que não lhe cabiam em seu pensamento conservador. O que poderia lhe causar mal a melhoria no emprego, o galgar melhores condições de trabalho, inclusive de salário? Sei lá, o tal do desassossego, o temor de que alguma coisa lhe acontecesse, sempre vinha a cabresto. Trabalhava numa empresa de informática e seus conhecimentos na área nunca decepcionavam a chefia. Sua vida familiar era tão estável como água parada. Tinha mulher e filha que completavam um ciclo de ajustamento doméstico. Tudo muito certo, muito adequado, bem nos trilhos. Sampaio também não saía da linha, como costumava dizer um dos colegas mais chegados, que lhe cabia na categoria de amigo. Com ele, fazia até confidências. Mas Sampaio andava inquieto. Quando deixava o carro no estacionamen

Pode ser

Pode ser que a vida passe, que os números se sucedam produzindo estatísticas inverossímeis. Pode ser que os mortos falem, se expressem de algum modo, identificando realidades desconhecidas. Pode ser que existam mundos paralelos, que vivamos duas vidas ao mesmo tempo. Pode ser que experienciamos novidades e que o fim não seja o fim, talvez o começo. Pode ser. Pode ser que eu me engane, que tu te enganes, que o mundo prove de alguma forma de que somos feitos de barro e sal. Pode ser que tudo derreta, que o sal não conserve, que o barro se misture nos tsunamis da vida. Pode ser. O que não deve ser é a verdade absoluta, a certeza sobre todas as coisas e sobre tudo. O que não deve ser é a falta de discernimento, o desprezo por caminhos incertos, não compatíveis com a realidade do senso comum, que preza o padrão e a mesmice. O que não deve ser é amar acima do humano, é ser pós- humano neste mundo insensato e prever a necessidade apenas de um grupo, aquele que vive junto feito gado e não

O barco à deriva

Greg olhou para a estante de poucos livros. Por um momento, pensou até que ficaria, mas já não havia tempo para discutir qualquer assunto, muito menos permancer naquela casa. Os livros pareciam chamá-lo, pedindo que observasse suas capas, a contra-capa, o miolo costurado de uma maneira estranha para a época. E o conteúdo, o conteúdo viria por acréscimo. Não importava a ninguém o conteúdo e eles, os livros, pareciam ter vida. Greg afastou-se um pouco em direção à janela que dava para o jardim dos fundos. Na verdade, não era um jardim, era apenas um amontoado de flores de todos os tipos e alguns arbustos. Olhava para baixo e tinha uma sensação de vazio, uma melancolia que não tinha como explicar. O psicanalista dizia que era normal, ele era um homem melancólico, um cara acostumado com os sentimentos, o sofrimento, a dor que deveria ser exaltada, extrapolada, sentida e liberada na escrita. Quase catarse. Talvez o psicanalista tivesse razão. A melancolia era o seu ganha-pão. Co

O COVIL

Saímos meio às escondidas, desviando dos pingos grossos da chuva, sentindo na pele uma batida intermitente ao nosso encalço. Causava-me um certo prazer, misturado com temor, um temor desconhecido, de que alguma coisa não andava bem. Era frio e escuro e as ruas desertas, como se o mundo todo se escondesse em suas casas, temerosos de uma investida qualquer, uma agressão da qual não tinha como desconfiar. Apenas as palavras reticentes de meu pai, os dedos frágeis e estremecidos da mãe segurando a bolsa branca, iluminada de vez em quando por algum raio preguiçoso que surgia ao longe. Os olhos de meu pai brilhavam também, mas de ansiedade. Olhava para os lados, sondava a esquina que desembocava na avenida, ouvia apitos, esfregava a ponta do sapato no paralelepípedo escorregadio que limitava a calçada. Atrás de nós o muro alto do cemitério. Seria este o temor deles? Não, era de alguma coisa mais palpável, muito mais perigosa e parecia que a cada minuto do atraso do ônibus, o monstro

As escolhas

De olhos abertos observa-se a vida. De olhos abertos percebe-se o mundo. De olhos abertos descobre-se os medos. Mas de olhos fechados, absorve-se a plenitude da vida. De olhos fechados, avalia-se as trajetórias que nos revelam o nosso mundo interior. De olhos fechados refletimos, nomeando os medos, concedendo-lhes voz e tamanho, despojando-os de força e poder. Pensei nestas maneiras de apreender a vida, em virtude de uma conversa com uma senhora, que me fez refletir sobre os nossos devaneios em cumprir as tarefas e avançar o tempo. Eu, aproveitando a sombra no parque, afogueado por um calor abrasante, ela, tranquila, com um olhar límpido de quem manifesta a profundidade de seu mundo interior. Por um momento, me encarou com uma generosidade que me desconcertou e falou sobre o tempo e como o dispõe através de alguns princípios, dos quais prioriza as escolhas. Disse-me que costuma meditar e o que vê durante o dia, absorve de uma forma distinta, em que as verdades são aprofundada

A roda parou de girar

Um carro quase sobrevoava a calçada. Noite escura. De repente, parou. Um homem de branco desceu, examinou os pneus, deu dois giros em torno e permaneceu quieto, em frente da casa que parecia abandonada. Não fez um gesto. O carro ainda pairava na calçada, a roda traseira no ar, se alguém a empurrasse faria várias voltas. Não havia ninguém. A noite se adiantava e a cidade, naquele bairro, morria. Ele moveu-se um pouco. Faiscou os olhos na luz intensa do celular. Ficou ali, perdido numa mensagem. Em seguida, aproximou-se do muro e encostou-se devagar. Olhou para os lados. Nada. Ninguém se aproximava. Nem um sinal. Nem mesmo a brisa costumeira da cidade litorânea desenhava algum movimento. Tudo parado. Morno. Suspirou, ansioso. Meteu as mãos e o celular nos bolsos. Por um momento, pensou em afastar-se, bater no portão de ferro, chamar alguém. Não teve coragem. Algo o segurava no chão. Um chão bolorento, de musgo e ervas que se erguiam pelas frestas das lajotas. Um chão sujo. Um lu