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O medo intrínseco

Não gosto de comentar notícias policiais, muito menos ficar dissecando as informações, investindo em cada detalhe e transformar o fato numa dramaturgia barata. Mas às vezes, a realidade dura nos obriga a pelo menos refletir e sofrer as consequências da falta de humanidade. O bebê baleado no útero da mãe, em Caxias, na Baixada Fluminense vai contra qualquer percepção de realidade, como se o surrealismo ou a ficção concentrasse seus valores em nossa realidade. Como não se comover, como não sentir na pele o arrepio da dor e do medo ao assistir um fato tão doloroso. Como acreditar na humanidade e imaginar que ainda há futuro? Quando vemos nossos filhos longe, ficamos com o coração na mão e quando estão perto permanecem em total abandono, porque as balas perdidas não são excessões, ao contrário, são a regra em muitos recantos do Brasil, como na escola em Porto Alegre, onde os alunos precisaram fugir para não ser atingidos. Parece que o homem fica cada vez menos homem, menos ser humano e t

Havia flores em Lisboa

Havia flores nas janelas e outras que se acomodavam em espaços menores, juntando seus galhos e pétalas e espécies diferentes e inúmeros brotos que surgiam à luz primeira da manhã. Eram rosas, jasmins, gerânios e se estendiam pelas janelas, pelos pequenos canteiros, pelas intersecções das ruas, pelas rótulas, pelos caminhos, pelos passeios. Eram lindas as flores e alvissareiro o dia que mergulhava mais e mais nas horas da manhã que aos poucos se adiantava. Foi ali, que parei um momento, sentado num banco verde, observando as construções antigas ao longe, as igrejas seculares, as ruas estreitas e o rio que se desenhava ao fundo. Não poderia ser diferente. Acomodar-me naquele ambiente valorizado pela natureza cultivada, era reviver um pouco das memórias ocultas que se restabeleciam com a beleza. Memórias de um passado que esquecemos, mas que ressurge quando invocados pelo sentimento. Talvez devesse ficar ali todo o dia, se outros compromissos não me absorvessem, não me chamassem para a

ATUALIZAÇAO DA ENTREVISTA DADA AO BLOG DO SIB

 Atualização da entrevista dada ao blog do Sistema de bibliotecas FURG para a Bibliotecária Simone T. Przybylski. Foi atualizada apenas para efeito de divulgação dos últimos livros publicados. A entrevista original está no link: http://bibliotecafurg.blogspot.com.br/search?q=entrevista+bibliotecário 
 1)    Com que idade começou a escrever ? Teve alguma influência de alguém ? Acho que comecei a escrever quando aprendi a ler. Ficava muito tempo tentando descobrir o significado das palavras, principalmente nos jornais e revistas que meu pai lia. Ele me incentivava muito nesta descoberta. Também ganhava muitos livros, lembro que na 4ª série primária, ganhei “Aladim e a a lâmpada maravilhosa” e devorei o livro em pouco tempo. Em seguida, veio “Tiradentes e o aleijadinho : as duas sombras de Ouro Preto”, de Sérgio d. T. Macedo, livro que possuo até hoje. Também lia as histórias do Sítio do Picapau Amarelo (esta uma coleção de minha irmã). O que eu adorava mesmo eram as histórias de mistério

Quem é este homem?

Que é este João? Quem é este eremita que viveu recluso no deserto para pregar às margens do Rio Jordão? Que destino extraordinário por bem lhe coube de anunciar a chegada do Messias? Quem era este homem que batizava, mergulhando as cabeças dos seguidores, tornando-os cristãos, e trazendo para o “reino” os que não acreditavam? Quem era esse homem sem meias palavras, sem maniqueísmos ou dissimulações, que exigia a conversão verdadeira e o arrependimento real dos pecados? Que exigia uma vida digna e honrada dos que o seguiam? Que denunciava os vícios e as injustiças? Quem era este menino que ficou em segundo plano, mesmo tendo vindo antes, com uma mensagem austera e fiel aos seu princípios? Quem era este homem, que não se sentia digno de atar as correias das sandálias de Jesus? Que afirmou que Jesus viria com maior poder do que ele, e que não batizaria na água, mas com o Espírito e em fogo? Quem era este homem humilde que batizou o Mestre, induzido a ser o precursor, aquele que

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO XXXV - FINAL

A SEGUIR ÚLTIMO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM DRAMÁTICO – A CASA OBLÍQUA Clara correu ao escritório, juntou rapidamente os documentos,examinando-os por um momento, verificando se não havia nenhuma falha na escritura e na procuração efetivada por Dona Luiza, guardando-os com cuidado. Depois, descontrolada, escancarou a janela, fixando-se no outro apartamento. Do outro lado, Cida sorria, irônica. Tomada de ódio, Clara fechou as venezianas, machucando os dedos nos ferrolhos e imaginou que todos estavam em concordância com Cida. Juntos, se preparavam para dar o golpe fatal, pra tomar o que era seu. Não permitiria, lutaria até o fim, nem que para isso fosse necessário matar aquele impostor. Era uma mulher livre, mais dia, menos dia, tudo seria arquivado. Não tinha o que temer: era uma trabalhadora e cumpridora de seus deveres. Respirou fundo, para acalmar-se. Empurrou a veneziana lentamente para se certificar que Cida ainda se encontra lá. Não havia ninguém. Clara sorriu. Ela havia de

Recuerdos

Deixara-o assim, esquecido, empoeirado. Pudera, nunca mais o tinha visto tão próximo. Não mais havia sentido o seu aroma, seu aspecto meio decadente, suas pequenas partículas se evaporando no ar, brilhando no rastro de luz da janela; a estrutura cada vez mais frágil, como se braços e pernas se desmembrassem aos poucos, perdendo a coesão. Transformava-se, é claro, como todos os seres, ao longo do tempo. Percebia suas fraquezas, seu cheiro de coisa passada, água estagnada. Entretanto, tinha comigo, que ele não perdera as propriedades completamente. Não era aquele deus cheio de conteúdo do passado, mas ainda revelava integridade, força e sabor. Restava o dna de sua natureza. Produzia uma ternura intrínseca que arrepia os cabelos, pousar-lhe a mão, acariciar seu corpo em frangalhos, lendo nele os traços oníricos de outrora. Agora, sem a vitalidade de sentimentos que no passado, divisava. Não, acariciá-lo agora era palmilhar com cuidado sua existência e ver através dela os ecos há ta

DIA DE LIMPEZA

Dei alguns passos pela calçada suja, enlameada pela enxurrada, sem imaginar que fugiria dali tão rapidamente. Modo de dizer, meus pés doíam e meus passos tinham a medida certa de fugir das poças. Sacos plásticos entulhavam-se nas bocas de lobo. Carros passavam próximos à calçada, aumentando ainda o caos que se alimentava de nós, mendigos, pedintes, marginais, prostitutas, acostumados a fazer da deformação geral, o nosso modo de vida. Mas chegar àquele ponto de ser chamuscado, quase queimado, quando uma mão sinistra com isqueiro se aproximou do banco em que estava e tacou fogo como pôde, foi o portal do inferno. A sorte foi a chuva. A sorte foi estar acordado. A sorte foi ter forças ainda para levantar, examinar a cara do bandido e esborrifar nele um cuspe que me vinha da alma. Ele fugiu, dando risada da minha cara. Eu fiquei, ali sentado, ali sozinho, ali maldizendo o que não tinha pra maldizer. O que não tinha que esperar. Quem sabe morrer ali, na rua, queimado, transformado e

A CASA OBLÍQUA - CAP. XXXIV

A SEGUIR O PENÚLTIMO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM: Clara estacionou o carro numa garagem coletiva e em seguida, tomou um taxi, afastando-se em direção ao centro da cidade. Usava a peruca loira e óculos escuros. Determinou-se certa sobriedade para demonstrar segurança, mas na verdade, estava ansiosa, quando entrou no banco. Comunicou ao atendente que necessitava utilizar o cofre, cuja chave carregava consigo. Este avisou a outro funcionário, que lhe pediu um documento de identidade. Clara entregou uma procuração assinada por Dona Luiza e o seu próprio documento. A cada silêncio do funcionário, ela ficava mais nervosa, inclusive porque era procurada pela polícia e seu documento poderia ter sido objeto de pesquisa, através da interações entre instituições bancárias, mas precisava arriscar. O rapaz afastou-se com a procuração e seu documento. Ela esperava, quieta. Observava o arbusto artificial num vaso enorme, sobre o piso. A sala ampla, vazia. Na parede, tijolos de vidr