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A ARMADILHA

Era magro, alto, estapafúrdio. Cabelos loiros, nariz adunco, olhar disperso. Vestia-se com primor. De nome Eugênio, julgava-se o espírito inspirador. Mais velho do que nós, esnobava qualquer gesto que imitasse seus artifícios. Esperto, namorador, conquistador das meninas do bairro. Nós, os da turma de baixo, não passávamos de crianças e devíamos como tal sermos tratados. Às vezes, aos sábados, em pé de conquista, passava como quem flutua, olhando ao longe, pesquisando os desafios e a melhor maneira de vencê-los. Era meu vizinho, mas somente se relacionava com os de sua idade. Nós, entre os 10 e 12 anos nos preocupávamos com o destino do Agente 86, das peripécias do Major Nelson da Jeannie, dos pequeninos de Terra dos Gigantes, das vilanias do Dr. Smith dos Perdidos no Espaço ou das brincadeiras de luta livre que faziam parte de nosso cotidiano. Eu sempre fui observador e no meio de toda a barafunda de aventuras, arriscava-me em analisar as atitudes dos que me cercavam: Seu Alencar da

A CASA OBLÍQUA - CAP. XXXII

NOSSO FOLHETIM ESTÁ CHEGANDO AO FINAL. FALTAM POUCOS CAPÍTULOS! Ao anoitecer, Clara já vestida com as roupas habituais saiu do quarto, esgueirando-se pelo corredor afora, tentando fugir do hospital. Sabia que se permanecesse ali, teria que constituir advogado para sair em liberdade. Faria isso, mas não agora, em que as coisas se encaminhavam. Devia ir ao banco que Dona Luisa tinha informado, abrir o cofre e descobrir o segredo que a aguardava. De gabardine, guarnecida até a cabeça, afastou-se rapidamente para a rua e chamou um táxi. Ao tomarem uma distância boa do hospital, ela pediu ao motorista que retornasse em direção ao centro. Bastava seguirem uma rótula que desembocaria numa avenida arborizada, na qual encontraria o que precisava. Ao parar o carro, desceu sem olhar para os lados, atravessando a calçada e entrando numa loja. Não demorou três minutos e voltava ao veículo com um pacote, que trazia junto à bolsa. No carro, olhava para fora, tristemente. Pensava e

Nunca ao entardecer

Nunca ao entardecer, pensava ela, estirando-se na grama do parque. Olhava para o céu, desconfiada de que choveria. Nuvens corriam, e a impressão é que se chocariam conforme o vento aumentasse. Mas ficava ali, quase adormecida, olhando para o céu. Se pudesse, ficaria até a noite. Mas não arriscaria a vida, num capricho desses. Por certo, seria melhor levantar-se, tirar as folhas das árvores que se grudavam no jeans, olhar para os lados, desapercebida, e seguir em frente. Talvez pegar o metrô, tirar da mochila aquele livro do Sartre e ficar folheando, fingindo que lê. Há tempos faz isso. Pensa que um dia acabará a leitura, mas não acaba nunca. Sartre pensa demais. Nada aproveitável, diria sua avó. O piercing recém colocado causava certa ardência no umbigo. Dava uma leve coceira, também. Nada que fosse levá-la ao desespero. Na verdade, se desesperava por poucas coisas. Ainda bem. Afinal a vida é uma eterna turbulência. Pra que ficar se angustiando. Ouviu o barulho do metrô na est

O painel do voo

Não sabia o que fazer. Lambuzava-se com a salada. Um olhar no celular, outro no painel do voo.   Não sabe por quanto tempo ficou ali, parado, meio perdido, preocupado em mudar a situação. Seu terno era surrado e as meias balançavam nos tornozelos. Andara muito.   A cidade plana e quente e seca. Brasília era assim. Incomodava. Incomodava a beleza e a feiura da imensidão.  Doía-lhe as costas. Esticou-se, pediu um café. Voltou a sentar-se no banco alto do bar.   Pessoas passavam com suas malas gigantescas. Tinha a impressão que levavam o mundo. Foi só uma impressão, pois seus pensamentos voltaram a voar para o problema. Olhou para o alto, esfregou os pulsos. Sentiu um leve calafrio, como um desandar da pressão, um mal-estar da comida, um temor de altura.   O café apareceu na mesa através de uma mão branca, um meio sorriso, um afastar-se rápido na direção oposta. Quis dizer qualquer coisa: um obrigado, talvez. Não pode. A moça sumiu como desapareceu de sua imagem o que re

Garrafas ao mar

Uma garrafa pode conter muitas coisas, além do líquido, do rótulo, da tampa, pode conter por exemplo, um segredo. Quem não tem vontade de mandar para outro continente, quem sabe, uma garrafa contendo algo estranho, como um bilhete. E se a garrafa atirada ao mar, trouxesse boas vindas de um tempo muito antigo, tantos anos atrás, que já nem reconhecêssemos o objetivo, o texto carcomido, com um letreiro cheios de esses e efes, quando se pediria apenas vogais. Palavras esquisitas, desejos tão inocentes que não mais teriam significado nos dias de hoje. Porém é uma garrafa que vem com um bilhete dentro e nos traz alvissareiras mensagens. É o que pensamos. É o que desejamos. Mas e se essas mensagens não passem de apenas um desejo individual? Como por exemplo, que o mundo saiba que em 1920 alguém comprou o seu primeiro automóvel e percorreu 35 km, a maior distância já percorrida por um carro numa estrada de carruagens? Talvez não significasse nada. Talvez apenas um regalo p

A CASA OBLÍQUA - CAP. XXXI

“Estava muito tensa nos últimos dias da gravidez. Meu pai arranjara um emprego para Júlio, no banco. Não era nada muito importante, mas preenchia as suas horas de solidão. Ele parecia sempre distante de nós, ensimesmado, sempre pensando no que lhe acontecera. Não se habituava à situação, como se a experiência o deixasse diferente do que era, hoje, um homem amargo e triste. Minha mãe às vezes, pensava tratar-se de Saymon ou outro clandestino que eu acolhera em casa. Deixara praticamente a lida da casa ao meu encargo. Tínhamos uma empregada, que nos ajudava, cuja presença me tirava um pouco da solidão. Infelizmente, naquele dia, não havia ninguém em casa, a não ser minha mãe e eu. Não tive a quem recorrer, a não ser a ela, que demonstrava um interesse inusitado por minha situação, o que produzia em mim um certo temor. Nunca esquecera a sua atitude, quando denunciara Saymon.” Moema ouviu os gemidos de Luisa. Sabia que as dores do parto não tardariam. Também as dores da alma era

A vida é bela

A vida e bela Um dia desses, eu pensei que participava de um reality show como a Fazenda ou o abominável BBB. À cada semana, uma eliminação do face. Vai ver, que faz parte de um jogo, algum aplicativo do face do qual desconheço. Não era nada disso. Era bem mais raso e simples. Mas não fiquei incomodado. Os motivos das eliminações nada tinham a ver com pendengas afetivas, aparentemente. Aos poucos, fui descobrindo e dando chance à liberdade. Afinal, todos temos que ser livres para escolhermos quem queremos ser nossos amigos. Isso é muito bom. Os motivos, enfim, variavam de tendências políticas discordantes e até posicionamentos sociais considerados um pouco avançados para as perspectivas. Libertários pra mim. Nada de vanguarda, nada de grandes avanços das concepções humanísticas ou de cunho restrito aos costumes, apenas o arroz com feijão do viva e deixe viver. Algumas lutas contra preconceitos, alguns desejos de igualdade, pelo menos, a possibilidade de alguma aproximação pela

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO XXX

Clara levantou-se, cambaleando. Uma estranha vertigem. Equilibrou-se como pôde, o olhar taciturno fitando a rua alagada. Chovia forte. Um frio intenso a dominava. Estava ainda vestida da noite anterior. Nem sabia ao certo que dia era hoje, mas era uma manhã, pensou. As manhãs sempre são mais suaves, recuperadas das impurezas do dia que já passou. Apertou com as mãos, a gola do casaco. Rosto próximo à janela, bafejo embaçando a vidraça. O amor vai embora, nem espera. – Resmungava. – Vem me consolar, pegar meus braços, sacudir minha vida. Pensava em Saymon. Na partida cadenciada do trem, afastando-se tão lentamente, para não mais voltar. Se pudesse resgatar o passado, voltar atrás, palmilhar aqueles mesmos caminhos. Atravessar o cais e levá-lo consigo. Por um momento, viu policiais lá fora, como na noite anterior em que a espreitavam, quando chegou à janela. Seriam os representantes da gestapo? Queriam aprisioná-la nos campos de concentração, como uma rebelde da

Nosso barco quase a esmo

Fonte da ilustração: Pintura de Evanoli Resende Corrêa Às vezes me pergunto o porquê das pequenas rusgas. Não falo das grandes intolerâncias, dos descalabros das discórdias, das quase tragédias. Penso nos pequenos desentendimentos, nas mágoas secretas por presumíveis falhas de quem nos quer bem, nos silêncios provocados para evitar a verdade, tendo em vista que a pós-verdade é o que interessa. Que importa que o amigo, o colega ou o companheiro de trabalho não tenha falado exatamente como nos foi contado, se o que pensamos é o que vale como verdade absoluta. O que existe de tão definitivo no pensar humano, que impõe apenas uma regra para o estabelecimento da verdade, cujas variantes se encerram em um único ponto de vista. O que vale é a intenção de censurar o outro, resultando no afastamento e definindo a distância como principal mecanismo para nossas desavenças. Por que não ouvir a outra pessoa em vez de ficar apenas com uma única versão? Talvez porque o homem defina pa

A CASA OBLÍQUA - CAP. XXIX

Clara releu várias vezes a última página. De repente, sente-se invadida por uma estranha euforia. Percebia naquelas linhas um recurso para o futuro afortunado de Luisa. Ela casaria com Saymon e juntos criariam o seu filho. Ficou pensativa, folheando as páginas para ver se adiantava outra descoberta. O que havia acontecido com este filho? Sempre a visitara no seu apartamento, tão solitária. Nunca falara no filho. De repente, a luz que iluminava outro cômodo mais ao fundo apagou-se e ela estremeceu. Por um momento, pensou que estava em seu apartamento e levantou-se rapidamente, dirigindo-se ao corredor, mas se deteve quieta. Uma bruma tomava conta do ambiente. Retrocedeu alguns passos, voltando para a poltrona. Ficou imóvel, assustada, na expectativa de que alguma coisa ruim acontecesse. Ouviu passos que ecoavam em outros pontos da casa. O som se aproximava, ficando cada vez mais elevado e próximo, atordoando-a. Clara encobriu os ouvidos com as mãos, encolhendo-se na poltrona, er

O detetive e a cerveja alemã

Samuel Smart era o nome dele. Dizia-se detetive particular e tinha tanto sigilo, que temia que o chamassem de detetive. Certa vez, estávamos num bar tomando umas cervejas e o chamamos, mas ele nem nos olhou. Ficamos nos perguntando o que estava acontecendo , eu e outro amigo que comemorávamos qualquer coisa, como o início do verão, ou apenas o simples motivo de nos reunirmos. Afinal, Samuel Smart era nosso conhecido há muito tempo, não que tivéssemos uma amizade mais próxima com ele, mas a intimidade se dava devido à pequena distância de seu escritório como o nosso trabalho. Às vezes, o encontrávamos ali mesmo, no bar, com uma história capciosa, mas aquele dia, especialmente ele nao queria a nossa presença. Tempo depois, voltou assoberbado e até ofegante, passando por nós e evitando conversa. Não deu outra: resolvemos tirar a limpo o que estava acontecendo. Levantamos da mesa e fomos ao seu encontro. Samuel disfarçava, olhava enviesado para os lados, procurando não dar na vista

ANTENA RG UMA RÁDIO DA WEB COM A MAIOR QUALIDADE

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A CASA OBLÍQUA - CAP. XXVIII

Luisa esperou atenta, sentada num banco de madeira. Nada a fazia voltar atrás, nem a demora que a sujeitavam, numa tentativa de confundi-la e fazê-la desistir. Uma parede envidraçada a separava das máquinas de escrever, dos policiais ao telefone, dando ou recebendo ordens, misturando a fumaça de seus cigarros no ambiente. Às vezes, a olhavam atônitos. Sacudiam a cabeça. Conversavam entre si. Ela desabotoava o fecho da bolsa, procurando uma caneta e um pedaço de papel. Escreveu o telefone da família, seu nome completo, para uma provável comunicação. Precisava tomar alguma atitude, mas não podia comprometer seu pai. Devia imputar toda a culpa em si, de forma que seus argumentos fossem bem convincentes para evitar qualquer envolvimento. O telefone tocava insistente num gabinete. Um rapaz saiu do compartimento maior, atravessou a sala onde ela se encontrava e entrou no cômodo onde se ouvia o tilintar do aparelho. Ela estava com as mãos frias e suadas. Tirou o chapéu, de

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO XXVII

Como hoje é terça, mais um capítulo de nosso folhetim rasgado "A casa oblíqua". Clara desceu do carro e dirigiu-se ao prédio. Entrou no elevador, evitando encontrar-se com algum vizinho, apesar do adiantado da hora. Estava suada e suja. Quando entrou no apartamento, correu para o quarto, guardando em seguida a chave, numa gaveta da cômoda, bem como os demais objetos, assim como estavam, empoeirados, jogando-os de qualquer maneira e fechando a gaveta, temendo ser observada. Correu para o banho, reservou-se um bom tempo, relembrando todo o cenário por onde andava. Vestiu um robe branco, atirando-se na cama. Ficou olhando para o teto, vendo nele as imagens da casa da praia. Estava ansiosa, embora satisfeita pelos resultados produzidos. Tinha consigo que nada mais a deteria. Jamais tomariam o apartamento sem que a justiça fosse feita. Estava de posse da chave, dos documentos, dos objetos que trazia de volta um passado glorioso. Esta seria a sua vida, a partir de hoje.