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A CASA OBLÍQUA - CAP. XVIV

Clara acordou ainda recordando a visita à Dona Luisa. Tinha a impressão de vê-la assim, tão próxima, que a imagem ficava na retina e custava a dissipar-se. Mas agora, devia tomar suas providências. Assumir o que de fato lhe pertencia: o apartamento ao lado. Não deixaria que o tomassem, principalmente pessoas que nunca a procuraram, que nunca se importaram com a sua vida. Muito menos, Cida, uma sem-teto, que agora cismava em surgir à janela, desafiando-a. Levantou-se com uma tontura que a atingia e a deixava sem tino, como se desconhecesse os caminhos de sua casa. Esforçou-se em tomar um banho rápido para acordar-se de vez. Antes de despir-se, Clara ainda avistou os livros atirados no chão, cópias de artigos espalhadas e a monografia por fazer. Sentiu um empuxo como se aquela visão a obrigasse a retornar à realidade. Foi só um segundo. Deu de ombros, desleixada. Passou pelos objetos, chutando-os, como se os retirasse para sempre de sua vida. Avançou para o banheiro e organizou

Dessolidões

Meu vizinho sofria de uma doença estranha. Foi ao médico, ao curandeiro, ao pastor, leu todos os livros de autoajuda, e nada. A tal da moléstia não o deixava em paz. Era um vazio no peito, uma fome de não sei o quê, um vagar assustado pela casa, um temor de qualquer coisa que não se parecesse com movimento e folia. Não tinha o que se queixar, sua vida era perfeita, muito amado nas redes sociais, vivia em noitadas, antecipada aos happy-hours cercados por amigos. Mas o que acontecia que o aporrinhava tanto? Não passava um minuto sozinho, não tinha nada que o aborrecesse de verdade, até no trânsito costumava se divertir: carro potente, som atordoante, quase um trio elétrico. A vida se lambuzava de prazeres e o mundo nada mais era do que o seu portal de acesso. Estava sempre entre os melhores, aparecia com as mulheres mais lindas, era conceituado como um grande executivo, um homem de negócios e de valor. Até que apareceu aquela dor no peito, aquela quase falta de ar, aquela opacidade

A CASA OBLÍQUA - CAP. XVIII

Hoje prosseguimos nosso folhetim rasgado “A casa oblíqua”que mostra a vida de duas mulheres diferentes, mas que em datas distintas tiveram experiências muito parecidas: Clara e Luisa. Entretanto, parece que Clara a cada dia, confunde o seu presente com o passado da amiga e começa a tomar o seu lugar, numa história que não é sua. No capítulo passado, Clara lembra a conversa que tivera com Luisa, que falava sobre uma fotografia. No capítulo a seguir, temos a história de Luisa apresentada, desde o momento que dirigira-se à igreja, como mencionara à Clara. A seguir, o capítulo XVIII. Luisa fizera o percurso, reservada, procurando manter-se calma. Saymon não devia ter se atrevido a sair de casa, em meio a tantas ameaças. Ele além de arriscar a sua vida, com a possibilidade de ser descoberto e entregue às autoridades militares, colocava em perigo a segurança de sua família, o emprego do pai, que apesar de todas as contrariedades, o havia acolhido em sua casa. No fundo, Luisa es

As cores de abril

“As cores de abril, os ares de anil, o mundo se abriu em flor. E pássaros mil, nas flores de abril, voando e fazendo amor.” O poeta Vinícius de Moraes identifica nestes versos, o início do outono, numa perspectiva de beleza e paixão, na qual a natureza tinge suas cores, dando voz à poesia. É abril que começa. É o outono que chega, a estação, a meu ver, mais suave e plena de matizes, cantos e poesia. Plenitude. Como se a paz reinasse por um período até chegar o inverno. O inverno, que para nós, gaúchos, em regra é rigoroso, em meio a ventanias e frio intenso. Entretanto, no inverno, resiste com grandeza a flor símbolo de nosso Estado, o brinco-de-princesa. Uma flor que vence as intempéries e justifica a sua resistência pela beleza que acolhe nossos jardins e praças. Uma flor que viceja durante todo o ano e tem a forma de um brinco, como os usados pela mulher gaúcha. Suas cores vão do azul, violeta, ao vermelho, branco e rosa, cujas nuances se mesclam aos coloridos

A CASA OBLÍQUA - CAP. XVII

Quando o interfone tocou, Clara deu um salto. Espiou pela janela e teve a impressão de ver luzes no apartamento de Dona Luisa. Estremeceu, imaginando que Cida havia voltado. Um ódio insano se apoderou dela. Sentia-se invadida em sua privacidade, em seus segredos, em sua vida. A campainha insistia e antes que Nael aparecesse à porta, aborrecendo-a, levantou-se imediatamente da cadeira, guardando as fotos na gaveta, empurrando-as para o seu interior, negligente, investindo contra a porta, como se fosse se defender de um assassino. Em seguida, passou por ele pelo corredor e antecipou-se rápida, para a porta de entrada. Ajeitou os cabelos, puxando-os com energia para trás e abriu a porta. Quando avistou Gustavo do outro lado, tentou fechá-la, indignada, mas ele impediu-a com o pé. — Ué, Clarinha, não quer a minha visita? Clara controlou-se. Perguntou o que queria àquela hora, pois ela não estava esperando visitas. — Pois é, mas eu posso entrar, não? — Você já entrou. O que acont

A cicatriz de uma época

Nunca a realidade deveria superar a ficção, entretanto, o homem extrapola a sua humanidade, para tornar-se apenas uma ideia, um conceito, expressado a partir de quem está no poder. Talvez aqueles objetos observados em Auschwitz fossem apenas um signo linguístico nos quais observaríamos o que representam os sons e imagens que estão em nossa mente. Ali portanto, os objetos abrangem muito mais do que representam na realidade, pois sua memória é impregnada de sentimentos, dores, sofrimentos das pessoas ali representadas. Quantas vezes, a menina não imaginou um lar cuja boneca fazia parte do sonho, orquestrado por mãos pequeninas e frágeis que a transformavam no ícone do prazer infantil. Uma menina e sua boneca. A mãe e a filha. A professora e a aluna. Quantos sonhos e esperanças. Quantas vezes aqueles sapatos passearam pelas avenidas e torceram seus saltos nos paralepípedos ou se aproximaram dos degraus das igrejas ou se afastaram por trilhos procurando saídas, transmudando-os em

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO XVI

Clara passava as cartas sucessivamente nas mãos, como se as animasse num filme, vendo as cenas acontecerem ante seus olhos. Como uma cartomante cuidadosa, que retira uma carta do baralho, enquanto pensa na interpretação, puxou uma delicadamente, estendendo-a sobre a escrivaninha. Ficou ali, admirando o casal de mãos dadas na frente de casa. Dona Luisa, certamente ficaria contente, em vê-la tão entusiasmada com a sua história e principalmente tão interessada em cumprir a missão que lhe coubera. Sabia o quanto havia sofrido, tanto quanto ela, com a ajuda que dispensara a um homem desconhecido, em situação perigosa. Que dia teriam tirado aquela fotografia? Teriam vencido todos os conflitos, todas as dificuldades e oposições, ficando finalmente juntos? Após uma conversa demorada com o marido, Moema fechou-se em si mesma. Viu o médico afastar-se do porão, subindo com dificuldades as escadas que davam para a cozinha e ficou no quarto, imóvel. Até mesmo quando o marido explicou q

A CASA OBLLÍQUA - CAPÍTULO XV

Capítulo xv Clara passeou pela sala, observando as paredes velhas, desbotadas. Ficou algum tempo assim com a sensação de que Dona Luisa a conduzia pela casa, indicando o caminho para encontrar o caderno e o baú envernizado. Sentia-se satisfeita na tarefa que se incumbira. De repente, uma música tocava na vitrola. Uma daquelas canções antigas que lembravam os anos 40. Caminhou pelo corredor semelhante ao de seu apartamento, apenas com a diferença de que as paredes nuas simbolizavam um abandono natural e sóbrio, que Dona Luisa tanto prezava. Tudo para ela era desnecessário, desde que significassem a morte do passado, um passado que conservava em sua memória. Clara sabia disso, e ao mesmo tempo que lembrava destes detalhes, adaptava-se a eles, aceitando-os como seus próprios princípios. Então, dirigiu-se ao quarto, revirou as gavetas, examinou a cômoda, o roupeiro, mas nada encontrou que facilitasse a sua busca. Subiu displicente na cama, olhando por cima do roupeiro, pesquisou no

Não me perguntes

Não me perguntes porque o mundo gira, porque o tempo passa, porque os ventos sopram e o calor não se atenua. Não me perguntes porque ficamos mais velhos, porque as crianças se deseducam e os pais se desobrigam em seus princípios. Não me perguntes porque as coisas se substituem e o homem não vence as batalhas cotidianas e tudo se aproxima do caos. Não me perguntes quem se corrompe ou é corrompido, quem se deixa corromper ou corrompe. Não me perguntes se os rios secam e as indústrias expelem produtos nocivos. Não me perguntes quem polui ou quem colabora com o mau aproveitamento da natureza. Não me perguntes quanto volume possui cada gota de chuva que se espalha no parabrisa do carro. Nem se posso juntá-las com as mãos. Pois o que sei, é que não posso medir jamais. Os hidrogênios, oxigênios e metais pesados não podem ser medidos mecanicamente, assim como não se pode avaliar nada sem comparar com nossas próprias ações, porque somos deste mundo caótico, cheio de falhas e perversões. S

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO XIV

Clara acordou e já não se reconhecia como a mulher centrada e responsável que era. Estava arrependida por ter tomado uma atitude impensada, moldada pelo momento, inspirada nas confidências e a confiança que aumentava com a convivência com Nael. No entanto, não devia deixar que as coisas acontecessem daquela maneira. Ela já havia sofrido muito, já se frustrara demais com Bruno. Não podia cair na mesma armadilha da paixão, da ilusão de que estava apaixonada, de que iriam construir um futuro juntos. Não, ela não devia se iludir daquele modo, como uma adolescente, principalmente depois de tudo que havia passado. Além disso, Nael não era um homem que poderia levar consigo ao cinema, fazer compras no shopping, casar, ter filhos. Era um homem marcado, um clandestino, que devia à justiça de seu país e permanecia ilegalmente no Brasil. O tempo se esgotava rapidamente e mais dia, menos dia, estariam à cata dele, como um criminoso e ela estaria seriamente prejudicada. Foi aí, que teve uma idéia,

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO XIII

Um retrato em preto e branco. Cenário romântico. Luisa sentada num banco de praça. Vestido branco, gola em vê, enfeitada com uma corrente de ouro, com uma pequena medalha que lhe caía no colo. As pernas juntas, oblíquas, numa postura comportada. No ângulo detrás, um lago e patos enfiando a cabeça sob a água escura ou passeando garbosos, pontos brancos em movimento. Rápidos, aos olhos inquietos de Clara. Ele, a sua frente, com a máquina fotográfica, fazendo dela a sua musa. Aqueles rolos deveriam estar no baú, que nunca tivera acesso. Cida tomara conta, desfizera o segredo que aos poucos fora acalentado por Luisa. Odiava aquela mulher que a subjugara aos seus caprichos, tomando conta do que lhe era de direito. Imaginou que aquela fotografia deveria ter sido tirada por Saymon, numa tarde de primavera, talvez a mesma que Luisa lhe narrara com pormenores e tão cheia de emoção. E tudo acontecera tanto tempo depois da noite fatídica em que o salvara e por ele sofrera a discriminação da f

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO XII

Com o passar do tempo, as coisas pareciam se ajustar, embora as circunstâncias não favorecessem em nada à tranquilidade de Clara. Se por um lado, Cida subitamente desaparecera do prédio, por outro, as investigações se tornavam cada dia mais intensas. Entretanto, não havia nenhum indício que pudessem associar o evento à Clara. Tinha a impressão, entretanto de que a tempestade se aproximava lentamente. O mar estava aparentemente calmo e um abrasamento do ar que se resumia em comportamentos estranhos que davam o que pensar. Gustavo, por exemplo, afastara-se dela, tratando-a, inclusive com absoluta indiferença. Os demais colegas também mantinham uma determinada distância, como se fossem orientados para agir assim. De qualquer forma, Clara procurava não pensar nestas atitudes, despendendo todas as suas energias no trabalho e na elaboração de sua monografia. Preocupava-se exclusivamente com o fim de semana que chegava e tentava prosseguir a sua rotina, envolvendo-se em compras de vestuário

O VERÃO AGONIZA

Nem sempre a noite clara, a brisa entre o arvoredo, a avenida com luzes esparsas pairando sobre bancos e jardins, parecem a plenitude da paz no fim de verão. Pode ser sim o reflorescer das esperanças dos que se reencontram, o harmonizar do mate solitário no banco de madeira, o gorjear dos pássaros noturnos que sinalizam o início do descanso. Ou a emboscada da solidão que martela de leve os que carregam na mochila pesada de vazios, a busca insensata das bebidas e drogas, do ser não sendo quase nada, dos que mendigam amores e dinheiro no chão das esquinas desenhado entre folhas e luar. Outro dia, o vi recolhendo latinhas perto do parque infantil. Fumava uma bagana e parecia procurar alguma coisa indefinida, talvez uma dúvida da qual não se livrava. Olhou-me de soslaio e sem vacilar, disparou: o que é cupincha? Surpreso, respondi indeciso: comparsa. Ele reagiu com um grunhido e silenciou. Pensei em afastar-me, mas perguntei se juntava muito material à noite. Ele repetiu cismado:

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO XI

Aquele sentimento de paz a reportava há alguns anos atrás quando ainda conhecera Bruno e passara a descobrir a experiência da vida de Dona Luisa. A princípio, acercando-se devagar, talvez revelando uma carência mais intensa do que a dela. Sempre se julgara a amiga que provinha, que ajudava, que apoiava em sua solidão e não que esperasse dela qualquer conforto. Luisa, ao contrário, sentia-se cada dia mais confiante. Encontrava na vizinha, uma amiga a quem podia expressar seus sentimentos e suas verdades mais recônditas, no recordar o passado, aflorando as emoções como se fossem atuais. Estava assim, naquele entardecer, servindo um chá para Clara e finalmente tendo a coragem de contar a sua história. Clara encostava-se no sofá confortável. Olhos atentos, observando cada gesto, cada emoção que brotava, como se fosse uma terapeuta. Percebia que o passado de Luisa estava presente em sua vida, como se tivesse existido um impedimento, uma falha para o desfecho de sua história. Como se