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A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO XII

Com o passar do tempo, as coisas pareciam se ajustar, embora as circunstâncias não favorecessem em nada à tranquilidade de Clara. Se por um lado, Cida subitamente desaparecera do prédio, por outro, as investigações se tornavam cada dia mais intensas. Entretanto, não havia nenhum indício que pudessem associar o evento à Clara. Tinha a impressão, entretanto de que a tempestade se aproximava lentamente. O mar estava aparentemente calmo e um abrasamento do ar que se resumia em comportamentos estranhos que davam o que pensar. Gustavo, por exemplo, afastara-se dela, tratando-a, inclusive com absoluta indiferença. Os demais colegas também mantinham uma determinada distância, como se fossem orientados para agir assim. De qualquer forma, Clara procurava não pensar nestas atitudes, despendendo todas as suas energias no trabalho e na elaboração de sua monografia. Preocupava-se exclusivamente com o fim de semana que chegava e tentava prosseguir a sua rotina, envolvendo-se em compras de vestuário

O VERÃO AGONIZA

Nem sempre a noite clara, a brisa entre o arvoredo, a avenida com luzes esparsas pairando sobre bancos e jardins, parecem a plenitude da paz no fim de verão. Pode ser sim o reflorescer das esperanças dos que se reencontram, o harmonizar do mate solitário no banco de madeira, o gorjear dos pássaros noturnos que sinalizam o início do descanso. Ou a emboscada da solidão que martela de leve os que carregam na mochila pesada de vazios, a busca insensata das bebidas e drogas, do ser não sendo quase nada, dos que mendigam amores e dinheiro no chão das esquinas desenhado entre folhas e luar. Outro dia, o vi recolhendo latinhas perto do parque infantil. Fumava uma bagana e parecia procurar alguma coisa indefinida, talvez uma dúvida da qual não se livrava. Olhou-me de soslaio e sem vacilar, disparou: o que é cupincha? Surpreso, respondi indeciso: comparsa. Ele reagiu com um grunhido e silenciou. Pensei em afastar-me, mas perguntei se juntava muito material à noite. Ele repetiu cismado:

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO XI

Aquele sentimento de paz a reportava há alguns anos atrás quando ainda conhecera Bruno e passara a descobrir a experiência da vida de Dona Luisa. A princípio, acercando-se devagar, talvez revelando uma carência mais intensa do que a dela. Sempre se julgara a amiga que provinha, que ajudava, que apoiava em sua solidão e não que esperasse dela qualquer conforto. Luisa, ao contrário, sentia-se cada dia mais confiante. Encontrava na vizinha, uma amiga a quem podia expressar seus sentimentos e suas verdades mais recônditas, no recordar o passado, aflorando as emoções como se fossem atuais. Estava assim, naquele entardecer, servindo um chá para Clara e finalmente tendo a coragem de contar a sua história. Clara encostava-se no sofá confortável. Olhos atentos, observando cada gesto, cada emoção que brotava, como se fosse uma terapeuta. Percebia que o passado de Luisa estava presente em sua vida, como se tivesse existido um impedimento, uma falha para o desfecho de sua história. Como se

A CASA OBLÍQUA - CAP.ITULO X

Em seu trabalho, Clara não conseguia esconder o nervosismo, principalmente após a notícia do jornalístico da TV, que informava a busca por um clandestino, chegado à cidade num navio mercante e que desaparecera como por encanto. Presumiam, inclusive que havia grupos constituídos no Brasil, para facilitarem a sua fuga. Tanto ela, quanto ele estavam amedrontados. Clara tentava concentrar-se em suas atividades, mas sabia de antemão que era uma tarefa impossível. Suas mãos estavam trêmulas, seu olhar desorientado, observando as ondas escuras do mar dava mostras de cansaço. Ao sentir a presença de Gustavo, empurrando a porta, sem pedir licença, teve a impressão de que ele sabia de tudo. Via nas maçãs sumidas do rosto, a ironia estampada nos olhos pequenos e vivos. Com as mãos segurando o cinturão, e as pernas meio abertas, balançava o corpo, como se quisesse marcar a presença de forma definitiva. Clara prosseguiu digitando alguns dados no computador, fingindo cuidado com a tarefa. Lev

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO IX

Capítulo IX Clara temia que os fatos acelerassem alguma atitude extrema que precisasse tomar. Não podia abandonar Nael à própria sorte, mas ao mesmo tempo, sentia-se constrangida pela revelação de Cida. A sua situação se agravava, arriscava-se a ser parte de um processo administrativo que poderia afastá-la do trabalho, inclusive ser demitida. Na verdade, sentia-se uma tola, por ter deixado que os sentimentos sobrepujassem a razão, a ética profissional e os seus deveres de funcionária. Mas por outro lado, aquela situação havia preenchido uma lacuna de sua existência. Resgatando a liberdade de Nael, estava resgatando também um pouco de sua liberdade, sua condição de mulher, que se sentira ultrajada. Estava tão frágil e dependente quanto ele. Talvez por isso, tomara a decisão sem compromisso com a realidade. Ele por sua vez, estava envolvido em muitas dificuldades e lutava, como ela, para sobreviver. Percebera a maneira aflita de Clara, após a conversa com Cida. Mostrara-lhe o

Alguns comentários sobre o filme irlandês " Life’s a breeze"

O filme Life’s a breeze conta a história de uma família irlandesa que tenta unir-se na crise. O desempregado Colm (Pat Shortt), sua mãe idosa Nan (Fionnula Flanagan) e sua sobrinha Emma (Kelly Thornton) devem superar suas divergências e lutar contra o tempo para resgatar uma fortuna perdida pelas ruas de Dublin. Trata-se na verdade de uma comédia suave e em muitos momentos, com forte apelo dramático, sobre a família de Nan, uma senhora idosa e seu mundo caótico, que abriga seu filho desempregado e preguiçoso e por vezes, quase toda a família. Os filhos de Nan decidem fazer-lhe uma surpresa no dia de seu aniversário. Para tanto, elaboram uma limpeza em sua casa, por acreditarem que ela acumula muita coisa inútil, tranformando, segundo eles, o ambiente num caos. Neste processo de limpeza, porém, eles se desfazem de um colchão que abrigava todas as economias de sua vida. A partir daí, começa a luta desesperada em procurar o colchão pelas ruas de Dublin. Neste momento, per

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO VIII

Capítulo VIII Clara estava satisfeita com o resultado das pesquisas e o desenvolvimento da dissertação. Estava no caminho certo. Almoçou na universidade e trouxe uma marmita para Nael. Voltou para casa, estacionando à frente do prédio. A temperatura aquecera um pouco e ela foi se desfazendo das roupas ainda no carro. Tirou o casaco, já havia se desfeito das luvas, ficando apenas com o cachecol. Ela desceu rapidamente, cumprimentou a síndica que se preparava para sair exatamente quando ela abria a porta. Tratava-se de uma senhora de baixa estatura, caminhar arrastado e voz grave. Costumava olhar sempre para o alto, embora o interlocutor fosse da mesma altura. Raramente encarava a pessoa, e quando o fazia, olhava de soslaio, parecendo preocupada com alguma coisa alheia a sua vontade. Clara a achava estranha, mas não se preocupava muito com isso. Percebeu que ela queria falar-lhe alguma coisa, por isso perguntou do que se tratava. — Pois é verdade, eu queria falar com voc

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO VII

CAPÍTULO VII Ao acordar na manhã seguinte, o primeiro pensamento que ocorrera à Clara se referia à conversa que tivera com Nael. Durante todo o tempo, teve a impressão de que eram velhos conhecidos, embora a dificuldade da língua. Não podia se furtar aos pensamentos que se dispersavam, estava inquieta, motivada pelo diálogo que mantiveram tão animados. Entretanto, não era uma inquietude que se traduzisse em ansiedade, ao contrário, sinalizava uma convicção de que agira corretamente. Já de banho tomado, colocou as lentes de contato, ritual de todas as manhãs e guardou cuidadosa, os óculos na bolsa que levaria para a Universidade. Antes de sair do quarto, acessou seus e-mails. Nada de novidade, a não ser as mensagens de seu orientador, algumas newsletters que a encaminhavam a textos de artigos de revistas ou jornais e muito lixo eletrônico. Ela não se concentrava em nada. Pensava nas expressões peculiares de Nael, no seu jeito amistoso de falar, no esforço de se fazer entender.

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO VI

Agora, porém Clara não poderia voltar atrás, nem abandonar o estrangeiro à própria sorte, além do que estava comprometida até a raiz dos cabelos.   No momento em que decidira ocultá-lo das autoridades, tornava-se cúmplice de qualquer ato ilícito que ele houvesse praticado, além de ferir a ética profissional. Ela arriscara o seu emprego que a habilitava a prosseguir os estudos e manter a situação financeira regular que possuía.   Clara estava preocupada, quando o viu aparecer na porta do gabinete. Teve a estranha sensação de reconhecer nele uma pessoa conhecida, como se fosse um de seus pares, um colega da faculdade, um companheiro de infância. Mas havia algo singular : o sorriso franco, o olhar penetrante, o gesto afetuoso de quem pede ajuda e reconhece com gratidão.  Via nele uma alma instigante, mais do que um homem que agora lhe parecia bonito, vestido naquelas roupas emprestadas, no blusão que comprara, inclusive os sapatos esportivos, que sem dúvida, ficaram enormes em seu