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A casa caiada de branco

Observava minha mãe andando de um lado para o outro. Parecia ansiosa. Punha umas roupas sobre a cama, examinava-as com cuidado, afastava-se do quarto, espiava pela janela. Chamava-me a atenção. Exigia que me arrumasse também. A vizinha aparecia, brejeira e eufórica. Cabelos muito loiros, tingidos. Voz fina, esganiçada. Olheiras pesadas sob os olhos. Saíram as duas, eu seguindo-as, chutando pedra, caminhando por entre os trilhos do bonde, minha mãe pedindo que saísse, era perigoso. Esquecia rápido as recomendações. Meu olhar, em seguida se detinha na velha casa caiada de branco, postigos verdes, de janelas sempre cerradas, aspecto meio sombrio. Minha mãe suspirava curto. Eu longo, na expectativa do desconhecido, no sorriso infantil da descoberta. A vizinha requebrava com a bolsa branca pendurada no braço. Minha mãe esfregava as mãos, suadas. Entramos, a porta quase não se abriu. Tudo em penumbra, pessoas que se mexiam pelos cantos, a sala completamente ocupada. Começaram os cân

O DOCE BORDADO AZUL - CAPÍTULO 10º

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir o 10º capítulo. Capítulo X A volta Lúcia percorreu sem pressa os jardins do convento, como se pretendesse retardar ao máximo o encontro. Estava e aflita. Não havia o que temer. Apenas, sentia-se insegura, como se o seu futuro se decidisse naquele encontro, considerado absurdo alguns dias atrás. Ao chegar na sala de reuniões, foi recebida por Irmã Carlota, que parecia ansiosa, segurando-a pelo braço, como e a poupasse de uma entrada desagradável. Talvez quisesse preparar-lhe o espírito. Conhecia Irmã Carlota há tantos anos e nunca a vira tão insegura. ––O que aconteceu Irmã? Parece que não quer que eu entre... Percebera que a freira estava pálida. Nunca esperaria a resposta tão incisiva. ––É verdade. Não quero que você entre. Estava esperando-a para impedi-la. ––Não estou entendendo. Foi a senhora que me convidou, quase me intimou. A freira conduzi

APRESENTAÇÃO E SINOPSE DO ROMANCE “O DOCE BORDADO AZUL” PUBLICADO ÀS TERÇAS E QUINTAS NO BLOG

Todas as terças feiras e quintas publico neste blog um ou dois capítulos em sequência do romance “O doce bordado azul “, de minha autoria. É um romance de 30 capítulos, os quais pretendo postar até o início do mês de dezembro, deste ano. Este romance foi uma tentativa de representar a alma feminina, o que foi bem difícil para mim, através de mulheres com histórias e perspectivas bem diferentes entre si. Começo com a protagonista Lúcia, que tem uma relação quase simbiótica com a mãe, ao mesmo tempo que se acha superior em suas atitudes, podendo inclusive manipulá-la, mas na verdade, o contrário ocorre, pois Laura, a mãe, parece ter ferramentas bem mais sedimentadas em sua mente perturbada. Compondo o universo feminino, temos Bárbara, a bailarina que volta de Minsk, a capital da Bielorrússia, cujo marido morrera num trágico acidente. Lá, morando num condomínio ocupado pelos foragidos do desastre nuclear de Chernobyl, onde criaram um bairro com vários prédios de apartamentos, e

O DOCE BORDADO AZUL - CAPÍTULOS 8º E 9º

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir dois capítulos, o 8º e o 9º capítulo.(20/10/2015) Capítulo VIII A morte é definitva Descia do ônibus às pressas e quase correndo, entrava em casa, aflita com a possibilidadede não mais ver Ana e pelo fato de desconhecer que havia morrido. Afinal, que espécie de amigas eram elas que nem se encontravam, nem sabiam nada umas das outras, que passavam o tempo completamente alienadas, preocupadas com o seu próprio umbigo. Não gostava da morte. E se ocorria, como no caso de Ana, era uma perda que não pudera cultivar, que não pudera chorar, ao menos. Não se despedira. Na verdade, foram amigas durante um tempo determinado, desde a infância até o final da adolescência, e aos poucos, foram se afastando. Ela que se acomodara a viver naquela casa, com a mãe, sem grandes ambições, participando de sua vida, vivendo-a como se fosse a sua. A sala estava às escuras, por isso,

O DOCE BORDADO AZUL - CAPÍTULOS 6º E 7º (em sequência)

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir apresentaremos dois capítulos, o 6º e o 7º capítulo. Capítulo VI O telefonema Lúcia acordou de madrugada, envolta em pesadelos estranhos, misturando imagens do dia, a visita de Madalena, o enterro de Irmã Dolores, a carta, a mãe na cirurgia, o cheiro de hospital, numa mistura de comida e medicamento. O coração pulsava descompassado e ela desconfiava que mais dia menos dia, ele lhe prepararia uma surpresa, tal era o desregramento de sua batida. Levantou, meio tonta, talvez pelos comprimidos de tarja preta ou pelo susto dos pesadelos. Afastou-se do quarto, dirigindo-se à cozinha e dando na passagem, uma espiada para a rua. Sentia frio e medo. Medo de ser assaltada, naquela casa, solitária, como estava, sem a presença da mãe. Se ao menos pudesse falar com os vizinhos, mas os muros eram tão altos e as janelas cheias de grades e ferrolhos imensos, jamais abertas. Ainda

O DOCE BORDADO AZUL - 5º CAPÍTULO

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir o 5º capítulo O chá Voltar para casa sozinha, após ter comparecido ao enterro de Irmã Dolores, foi muito doloroso para Lúcia, não por ter se sensibilizado com a morte da freira, mas pelo fato de a mãe permanecer no hospital, com traumatismo craniano, após a sua atitude imprevista. Estava frustrada ainda pelos projetos não realizados, tais como a mortalha que sonhara, no bordado magistral, engendrado pelas mãos hábeis da mãe. A tarde era longa e desagradável. Não voltaria ao hospital. Laura estava bem, se restabelecendo, afinal o golpe não fora tão forte assim. Sentia pena da mãe, longe da pasmaceira da poltrona em frente à janela, sem poder mexer nos seus bordados, sem espiar a vizinhança, sem espicaçar nenhum vizinho desagradável. Não poderia fazer nada, a não ser esperar pacientemente para que as coisas se ajustassem aos poucos, principalmente na expectativa da

A PALESTRA

Entrei inopinadamente na sala, pernas bambas, suor na testa, nas mãos, lábios trêmulos, vexado. Elaborei desculpas. Desviei das centenas de olhares que investigavam curiosos. Fazia calor e eu vestido da cabeça aos pés com agasalhos pesados, maleta na mão, celular no bolso, relógio descolando da pulseira. Investi até uma cadeira, abri a pasta, espalhei papéis, fiz barulhos estrondosos no silêncio absoluto. O palestrante pigarreou, deu alguns passos, me olhou de soslaio, retomou o tema, irritado. Juntei o que pude, caído ao chão, esparsos documentos, entre fotografias, pregos, alfinetes, alicate de unhas, chaveiros. A cadeira rangeu, eu me abaixei devagarinho, mas empurrei os pés de metal, riscando o piso. Foi o suficiente para cessar a palestra. Ele me olhou novamente, e quase em súplica, exigiu silêncio, apenas com os olhos. Todos os demais viraram os pescoços, narizes, ventas e resmungos em minha direção. Retorci-me levantando a pilha de objetos do chão, fazendo movimentos de mal