Nosso folhetim está chegando ao fim. Hoje, apresentaremos o 27º capítulo, faltando apenas dois para o encerramento. O último capítulo tem o número 29. Lúcia descobrirá o corpo de Gustavo no quarto amarelo? Ele terá realmente morrido? Quem matara Irmã Carlota? Que acontecerá a Lúcia? E a Laura? A quem se destina o doce bordado azul? Na próxima quinta-feira, a sequência desta história eletrizante, como se anunciava antigamente.
Capítulo XXVII
Quando a encontrou desmaiada, Lúcia sentiu uma fisgada no peito. Não tanto pela situação deprimente, vendo-a fragilizada, sozinha, estirada no chão, mas principalmente porque sentia-se culpada, como se a houvesse traído. Ali estava ela, com a boca entreaberta, os olho semicerrados, perdida em seu mundo interior. Fez todas as tentativas para acordá-la, mas era em vão. Por fim, pensando em chamar o serviço de emergência, ouviu um gemido. Correu ao seu encontro e a viu abrir os olhos. Laura sinalizava alguma coisa, levemente com a mão, mexendo os dedos, mas a impressão que se tinha é que não reconhecia o ambiente. Estava angustiada, querendo dizer alguma coisa que não se atrevia. Molhava os lábios com a língua, apertando-os, impulsiva. Nos olhos, pequenas partículas de vidro cortavam-lhe continuamente a córnea, opacificando-a e causando uma dor interminável. Era a sensação que lhe causava a luz da janela. Quando viu Lúcia, porém, seu coração sossegou. Sua filha, ao seu lado, significava o respaldo para as suas vicissitudes. Então não estava sozinha.
Lúcia a olhava com um traço de aborrecimento, uma nuvem que ela não conseguia identificar corretamente. Perguntou o que lhe havia acontecido.
– Por favor, mamãe, fique quieta. Eu vou logo ajudá-la a levantar-se.
Laura percebeu que estava no chão, então sorriu, fingindo uma serenidade que não possuía.
– Agora dei para ter estes chiliques. Imagine, você.
– Mas não é normal, mamãe. Precisamos averiguar isso. Logo que melhorar, precisamos fazer uma consulta.
Depois de um pequeno silêncio, Laura parece ter lembrado de uma coisa imprescindível, sobre a qual precisa tomar providências. Falou baixinho, os olhos arregalados, saltando das órbitas.
– Lúcia, não posso ficar aqui, parada. Tenho que fazer uma coisa.
Lúcia a ajudá a levantar-se. Arrastou uma cadeira e ajoelhou bem próxima, segurando-lhe o braço. Sabia que não poderia erguê-la, por isso exigiu que sustentasse o corpo no braço esquerdo, para poder sentar-se. Laura obedeceu e em seguida, estava sentada na cadeira, ofegante.
– Fique um pouco aqui, quieta. Vou lhe trazer um copo d’água.
– Eu preciso tomar uma providência.
Lúcia voltou-se, irritada – o mundo não vai acabar. Fique calma.
Laura resmungou – você é que pensa. Já acabou.
Lúcia não lhe deu ouvidos. Voltou com o copo d’água e puxou outra cadeira, sentando-se a sua frente. Ficou um tempo observando a mãe, via-lhe os cabelos revoltos, caídos sobre a face muito pálida. A boca enfiada no copo, cujos lábios em torno da borda davam a sensação de uma dificuldade extrema de engolir. O peito arquejava. Fitava-a desconfiada.
Lúcia abaixou a cabeça, contrafeita. Tinha a impressão de que Laura sabia de tudo. Ela era imprevisível, sempre pronta a dar a última palavra, conhecendo todos os segredos, fuçando os destinos, desatando os silêncios.
Laura entregou o copo, que ela pegou rapidamente, como se lhe fosse dada uma ordem intransferível. Ficou segurando o copo junto ao corpo, pensativa.
Laura comentou, desinteressada: – você está cansada.
Lúcia não respondeu. Olhou em torno, desconhecendo as paredes. Aquela peça estava deixando-a nervosa. Era uma situação constrangedora, ficar ali, na frente da mãe, sem ter o que dizer. Então, pensou que seria melhor se acomodarem na sala.
Laura concordou e afastou-se cambaleante, dispensando o braço que Lúcia oferecia. Lúcia a seguiu de perto, deixou que sentasse em sua poltrona. Observou que procurava os tecidos que estavam sempre por ali, espalhados pela mesa, pela poltrona e até alguns pelo chão, sobre o tapete. Mas havia um, em especial, cuja ausência ela reclamava com os olhos. Lúcia conhecia a mãe, sabia que se faltava algum bordado em que estava trabalhando, se tornava desvairada de raiva. Deixou-se ficar ali, na soleira da porta, observando a cena, sem nada dizer. A qualquer momento, a mãe lhe chamaria a atenção perguntando pelo bordado. Nestes momentos, ela parecia um animal qualquer imiscuindo em tocas, revolvendo-se no lixo, procurando a caça. Ficava assim perdida e cega em seu empenho que nada via a não ser o que registrava na mente, cada vez mais irada e irrequieta.
Então, Laura levantou a cabeça e exclamou com voz rouca e ofegante – o meu bordado azul!
Lúcia não se atreveu a responder. Limitou-se a acompanhá-la na busca, ajoelhando-se perto dela e revirando os panos que estavam no chão, examinando-os minuciosamente, tentando identificar o que procurava com tanto afinco. Laura a impediu, segurando-lhe com firmeza, o braço: – não está aqui!
– Como sabe?
– Porque é um tecido grande, de dois metros mais ou menos. Eu apenas bordei uma extremidade – nisto ela parou subitamente a frase, lembrando onde tinha deixando o bordado. Estava no quarto amarelo. Estava atirado à cama ou talvez caído ao chão, sujando-se de poeira e talvez até sangue. Ficou apavorada, sem saber que atitude tomar. Levantou-se e sentiu a cabeça girar, assustada, temendo perder os sentidos novamente. Voltou a sentar-se, repetindo sem cessar: – meu Deus, e agora? O que vou fazer?
– Mamãe, que está acontecendo? Que tanta importância tem este bordado para a senhora, para deixá-la tão tensa, como se o mundo fosse acabar?
Laura a encara com um olhar insano e doentio. Lúcia afasta-se um pouco, senta no sofá, a sua frente, esperando uma explicação, mas Laura a questionava, considerando espantosa a falta de sensibilidade da filha.
– O mundo já acabou, sua tonta. O mundo acabou e você nem percebeu! Como pode me fazer esta pergunta absurda. É o meu bordado azul, que estou trabalhando há dias, com tanta dedicação e carinho. E agora, você vem me perguntar que importância pode ter pra mim? Toda a importância do mundo, só você não enxerga.
Lúcia esfrega uma mão na outra, baixando os olhos e a encarando de vez em quando, tentando articular alguma coisa. Acrescenta displicente: – a senhora tem tantos aí, por que não pega outro?
Laura está desequilibrada. Se pudesse, atirar-se-ia ao pescoço da filha e a esganaria para que jamais repetisse tamanha estupidez. Mas, como não poderia isso, chorou desconsolada, repetindo que não poderia perder aquele bordado e que precisava resolver as coisas o mais breve possível. Lúcia, penalizada, aproximou-se dela e acariciou-lhe os cabelos, quieta, percebendo que ela a olhava, como se Lúcia jamais a pudesse compreender.
– Lúcia, me faça um favor. Me traga uma bebida forte, uma vodca, uma cachaça, qualquer coisa, que me acalme, que me limpe a garganta e me tire este soluço, que está me matando.
Lúcia ia refutar o pedido, mas não teve coragem. Pesquisou na geladeira uma cerveja e trouxe, num copo, com a espuma escorrendo pelos dedos. Laura replicou que queria uma bebida forte e ela lhe trazia uma cerveja.
– Não sabemos o que você tem. Está muito estressada, é melhor não beber nada forte agora. Até porque não comeu nada, você não almoçou, pelo que eu saiba.
Laura pediu que a deixasse sozinha. Lúcia obedeceu. Também ela não tinha nada a dizer, pelo menos por enquanto. Por isso afastou-se para o seu quarto.
Atirou-se na cama e deixou-se ficar assim, parada, olhando para o teto, respiração mais forte, sentindo o pulsar do coração bem próximo à garganta. Pensou na mãe, concluindo que Laura não é mais a mesma mulher forte que sempre esteve ao seu lado, tomando a atitude que bem entendia, fazendo coisas surpreendentes, intrometendo-se em sua vida. Agora ela estava ficando velha e decadente. O pote tinha chegado ao limite, ao extremo de sua capacidade. E o que ela fez em toda a sua vida, foi enchê-lo de ilusão, de sentimentos falidos, de uma vida falsa e fatalmente a estava conduzindo para esta loucura.
Lembrava os momentos que passara com Bárbara, olhando aqueles terraços vazios, ao longe, sentindo com ela a melancolia que envolvia a sua vida, tão triste e vazia quanto a dela. Lembra de suas palavras, da dor intensa que sentira quando confirmara tudo em relação à mãe, quando contara que em todos estes anos, Laura se passara por ela, sugara a sua vida, vivendo-a por ela.
Lúcia empalidecera. Ajeitava de maneira involuntária os cabelos que crescidos, caíam-lhe aos ombros. Apertava os lábios finos compulsivamente, quase fazendo-os desaparecer do rosto. Os olhos grandes pareciam maiores, surpresos que estavam, fitando a outra como se esperasse uma conclusão diferente do que pensava, que tudo não passava de uma brincadeira idiota e que sua mãe jamais teria cometido ato tão absurdo. Mas aquele telefonema confirmava tudo. Laura não tinha como. Nem imaginava que Lúcia estava ali, bem próxima à Bárbara, ouvindo tudo e descobrindo o que fizera.
Bárbara estava agitada. Os olhos fundos salientavam olheiras intensas. A dor não amenizava e esta volta ao passado a conduzia a um abismo que não tinha fim. Mas era necessário, não por ela, que já não ligava para quase nada, mas por Lúcia, que percebera tão só e desamparada quanto ela. Naquele momento, eram duas pessoas estranhas, com passados totalmente diferentes, embora ligadas por fatos comuns na adolescência.
Lúcia estremece relembrando aqueles fatos e embora se sinta culpada por ter enganado a mãe, fingindo ir ao convento e ter ido à casa de Bárbara, não consegue esquecer que ela sempre a dominou e sempre manipulou a sua vida. De repente, as histórias começam ter algum sentido e até a morte de Irmã Dolores lhe vem à mente como se pudesse haver alguma influência de Laura no acontecimento. Ela a acusou certa vez de a ter matado e parecia conhecer tudo a cerca do convento. Estas elucubrações a assustavam. Não podia imaginar a mãe uma mulher fria, capaz de cometer qualquer ato cruel. Aqueles pensamentos persistiam em atormentá-la, por isso havia tomado uma decisão. Iria até o fim e faria o que fosse necessário para descobrir toda a verdade, mesmo que a atingisse.
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