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O DOCE BORDADO AZUL - 18º CAPÍTULO

Nosso folhetim como se fazia no século XIX, nos jornais brasileiros, continua em todas as terças e quintas, na sequência dos capítulos. Hoje, como é quinta-feira, senhoras e senhoritas, e também senhores, apresentamos mais um capítulo.

Capítulo XVIII

A ajuda

Lúcia acordou pressentindo uma coisa líquida e pegajosa aproximando-se do quarto. Mal percebia as luzes da persiana, que se estendiam sobre a cama e abriu os olhos vigorosamente. Devia tratar-se de um pesadelo, desses de deixar a gente aterrorizada, percebendo sons inexistentes, ruídos aterradores, águas poluídas que fundem o corpo e a alma, numa afogamento fétido. Arbustos gigantescos, algas que se alinhavam ao corpo, como agulhas cerzindo o tecido. A mãe empunhando a agulha como arma cheia de veneno, instilando na pele, espalhando pelos dentes, amortecendo a gengiva. Doía-lhe o ouvido, o maxilar, a boca. Sentia um peso enorme na cabeça, como se carregasse pedra e aquela impressão da água suja se aproximando do quarto.

Acordou de vez. Empenhou-se em ficar em pé, uma perna dormente não obedecia, os olhos registravam sombras na parede, figuras de roupas esvoaçantes no varal. Gatos miando nas redondezas. Telhados imundos.

Aprumou-se como uma régua na mão de bêbado, ergueu um braço e segurou-se na parede mais próxima, que não era tão próxima assim e por isso, quase desandou chão abaixo.

Mesmo assim, ficou em pé. Olhou para o rasgo de luz sob a porta.

Teve a impressão de que passos leves da mãe pisavam o assoalho do outro lado. Chinelos de pano arrastados. Mas foi só a impressão.

Abriu mais os olhos e viu-se no espelho. Cabelos desgrenhados, olhos fundos de calmante, boca ressequida, mãos trêmulas.

Deu alguns passos e aproximou-se do banheiro, assim como estava, de calcinha e sutiã, sem importar-se com nada a não ser fazer as primeiras necessidades do dia. Em seguida, tomou um banho, lavando-se demoradamente, consumindo o tempo na água. Quando saiu do banho, desenhou ligeiras poças no piso do quarto, despreocupada em que estava com a limpeza. Pensava em si, no mundo terrível que teria que suportar a partir daquele momento. Não esperava muito da vida. Mas sabia que da mãe não poderia esperar nada.

Olhou novamente para o rasgo de luz. Não havia mais, como se a luz do corredor houvesse apagado para sempre. Janelas fechadas. Escuridão absoluta. Dedicou-se a procurar uma roupa, pentear os cabelos, arrumar-se com a disposição escassa que tinha.

Apesar disso, quando abriu a porta parecia outra pessoa. Cabelos penteados para trás, bem lisos e tom mais escuro por estarem molhados, um vestido leve sobre o corpo magro e pés descalços. Não havia ninguém no corredor e as portas e janelas, como pensara estavam fechadas.

De onde vinha aquela luz, então? E aquela água que a acordara como um presságio ameaçador? Voltou para o quarto, calçou os chinelos de lã.

Passou pé ante pé pelo quarto da mãe. Ela devia estar dormindo, a casa estava em silêncio. Que ficasse lá, sonhando com o seu caixão de defunto. Que coisa mais absurda!

Aproximou-se da cozinha e teve um sobressalto. Gritou um “Meu Deus” que saiu sem som, a voz emudecida, a garganta latejando. Não acreditava no que via. A cozinha alagada, como se jorrasse água durante toda a noite. Largou os chinelos e andou em desespero pelas poças d’água. Ela que havia limpado tudo com tanta engenharia, com tanto cuidado. Ela que tinha tornado a cozinha um ambiente agradável, agora esta parecia um verdadeiro rio!

Lágrimas vinham-lhe aos olhos, a boca engolia o ar que faltava, enquanto se perguntava o que tinha acontecido.

Passeou os olhos indecisa, sem saber o que fazer primeiro, pesquisando a causa do incidente. Observou que a pia estava seca, a não ser algumas gotas de vinho espalhadas pelo tampo de granito. Devia ter sido a mãe que mais uma vez se esbaldara na bebida. Mas isso não tinha a menor importância agora, não influenciaria o que tinha acontecido.

Examinou a torneira, os registros, o filtro, nestes não havia o que se preocupar. Tudo funcionava normalmente. Precisava desvendar o mistério. Não era possível que surgisse água de uma fonte desconhecida. Correu os olhos atentos pela borda do balcão, desceu-os até os armários debaixo da pia e enxergou o que tanto temia: um cano quebrado que exorbitava na demonstração tácita de como encher um espaço. Era água que não acabava mais. Como ela consertaria aquilo? Como arrumaria o maldito cano, depois de tudo que fizera, todo o trabalho inútil que executara durante um tempo precioso de seu dia.

Então, de repente, uma idéia iluminada. Alguém poderia ajudá-la. Alguém que sua mãe conhecera e que se mostrara interessado em seus assuntos banais. O tal do vizinho que aparecera todo arranhado, como um gato vagabundo de rua, assim socorrido por ela. Pois ele pagaria o esforço da mãe em ajudá-lo, só que desta vez, a moeda de troca seria o seu serviço. Deve ser um homem experiente, que entenda de canos e todo este tipo de infiltração.

Teria de procurá-lo e pedir-lhe ajuda. Seria a sua solução. Segundo o que a mãe comentara, ele estava morando no condomínio novo, da esquina. Pois ela, o encontraria. Enquanto imaginava onde encontrá-lo, calçou uns sapatos rapidamente e colocou o plano em prática.

Em poucos minutos, estava na porta de Gustavo, esperando ansiosa que ele atendesse.

Gustavo apareceu à porta, franzindo a testa pela luminosidade que incomodava os olhos. Olhou para Lúcia, sem conhecê-la.

–Desculpe, acho que o senhor não me conhece. Quem o conhece mesmo, é a minha mãe.

–Mas de quem se trata? – perguntou com a voz empolada.
¬

–De Laura, ela é a minha mãe. Ela o conhece bem.

–E como!

–O que disse?

–Nada, não. Apenas concordei que já nos conhecemos. Ela até me ajudou.

–Pois é, em nome deste conhecimento, deste auxílio que ela lhe prestou, que eu vim pedir-lhe um favor.

–Um favor?

–Sim, vou direto ao assunto. O encanamento da minha cozinha quebrou ...

–Ah, eu sabia que ia dar merda.

–O que disse?

–Ãh? Não se preocupe com as minhas rabugices. É que estou com a cabeça pesada, sabe, de ressaca, tomei uns vinhos ontem à noite.

–Vinhos? – por um momento, Lúcia lembrou das gotas de vinho no balcão da pia. Será que ele e a mãe haviam bebido juntos? Não, é um absurdo, refletiu.

Gustavo interrompeu os seus pensamentos, perguntando-lhe qual era a ajuda que ela realmente queria, porque na verdade, de encanamento não entendia nada. Ele era um advogado, um homem das leis e além de tudo, aposentado.

Lúcia replicou, atrevida. –Aposentado, mas não morto.

–Muito vivo, minha filha. Muito vivo. Mas se veio aqui, é porque está muito precisada, mesmo. Se acha que eu posso ajudá-la...

Ele sorriu com malícia. Afinal, além da mãe, a filha também se interessara por ele! E sem dúvida, ela era muito mais bonita do que Laura.

–Mas se o senhor não pode ajudar-me, não se preocupe, eu darei um jeito.

Gustavo mastigava alguma coisa, na ponta do dente e às vezes, com mais afinco, como se o nervosismo da situação o motivasse a agir de maneira mais incisiva.

–Não, por favor, não se aborreça. Vamos ver o que eu consigo fazer.

Pediu que ela esperasse um pouco, o tempo para ajeitar o cabelo, trocar a camisa e pegar algumas ferramentas.

Não muito tempo e já estavam os dois, passeando pela cozinha, evitando as pequenas lagoas que se formavam e escorriam para a área.

Gustavo queixava-se de dores nas costas, resmungava a água que gotejava em abundância, encharcando-lhe a camisa recém trocada. Lúcia perguntou se não era melhor fechar o registro. Uma ideia que não se podia evidentemente dispensar. Aos poucos, meteram-se num emaranhado de canos, tentando ajustar o que havia sido quebrado, amarrando como podiam com arames, fitas adesivas, usando ainda cola e qualquer outro objeto que solucionasse o problema. Ao abrir os registros, Lúcia percebeu o quanto o convite a Gustavo tinha sido providencial. Pelo menos, até chamar um profissional de verdade, a água havia sido barrada. Riam os dois assim, molhados, desajeitados, que se admitiam na nova atividade. Lúcia pediu que esperasse, pois logo que providenciasse a secagem do piso, faria um café para comemorarem o sucesso da empreitada. Gustavo sentava-se numa cadeira, pelo caminho, observando-a ajoelhada no extenso piso, enxugando-o vigorosamente e fazia comentários sobre a sua atitude. Jamais se julgaria capaz de consertar um encanamento quebrado.

–Veja você, um homem na minha situação. Nunca sujei minhas mãos em nada, quanto mais molhá-las num cano furado. Isso não foi o máximo?

Lúcia o considerava presunçoso, mas devia aturá-lo. Afinal, ela o trouxera até ali e de certa forma, jactando-se, ele se autorrecompensava. Então secou toda a cozinha, dirigindo o pano até o corredor. Ia e voltava naquele gesto massante, mas necessário. Em seguida, asseou bem as mãos e se pôs novamente na lida, desta vez, para fazer do café.

Gustavo ainda a observava atentamente e lembrava no que Laura se referiria à filha, como uma pessoa doente. Então resolveu fazer o seguinte comentário:–você me parece uma boa filha, não é mesmo?

Lúcia não respondeu nada. Ficou pensativa. Nunca tinha se imaginado nem boa, nem má. Na verdade, achava-se um estorvo para Laura. Ela parecia sempre desdenhar de suas atitudes, considerando-as infantis, improdutivas, sem objetivos conclusivos. Para Laura, não passava de uma criança dependente, que não arrumara marido, que se mantinha às custas da mísera pensão que recebia. Gustavo ainda prosseguiu, fagueiro. Estava feliz por ter sido convidado, sentia-se útil e isso tornava o seu dia dignificante.

–E pensar que eu estive aqui ontem.

–Esteve aqui?

–Sua mãe não lhe disse?

–Não, na verdade, ela nem acordou ainda.

–Uhm, deve estar dormindo como um anjo.

Lúcia o encarou por um instante, indignada. Com que direito aquele homem dirigia-se a sua mãe com tamanha intimidade? Percebia que ele usava de uma astúcia que não conseguia identificar muito bem, dirigindo-se à mãe de uma forma um tanto desrespeitosa. Sentia-o demasiadamente confiado. Gustavo adivinhando os seus pensamentos, corrigiu-se de imediato.

–Olhe, percebi que você se melindrou com o que eu disse, não leve a mal. Só me referi a sua mãe dessa maneira – e não pode evitar um sorriso maroto – porque imaginei, afinal, ela parece que trabalha tanto!

–O senhor se refere aos bordados?

Ele rapidamente concordou com a solução ao problema criado. Na verdade, pouco ou quase nada sabia de Laura, a não ser o que conhecera na noite anterior.

–Ela tem paixão pelo que faz. Faz um bordado com uma maestria ímpar. Conhece cada detalhe do tecido, cada linha do desenho, enche com o ponto, transformando em imagem, quase uma pintura.

–É verdade. Sua mãe é primorosa!

–O senhor viu os bordados de minha mãe?

–E como vi! Preciosos!

–Quando? Pelo que eu saiba, o senhor somente veio aqui naquele dia em que, se não me engano, teve um problema de assalto.

–Sim, sim, não. Ou melhor, eu vi assim, de passagem, sabe? Quando entrei na sua casa e me acomodei naquela poltrona, ah, foi maravilhoso!

–Não sabia que o senhor gostava tanto de bordados, geralmente, homem não se liga nestas coisas!

–Mas é preciso ter sensibilidade. Perceber nas curvas, a beleza que está ali, escondida.

Faz-se um silêncio. De repente, o assunto havia esgotado, pois não mantinham a mesma freqüência. Lúcia então resolveu encerrar o tema por ali. Aquele homem, às vezes lhe parecia estranho, causava-lhe desconfiança.

– Olhe, já está no adiantado da hora, tenho alguns compromissos. Se o senhor tomou o seu café, eu gostaria que fosse embora.

Gustavo a fitou surpreso, mastigando com força o canto da boca, desta vez sem nenhuma bala de gengibre. Perguntou se tinha sido indelicado alguma vez e já antecipadamente, pedia-lhe desculpas. Ela insistiu apenas que tinha compromissos agendados e que não tinha muito tempo para ficar conversando. Agradecia a ajuda e o dispensava categórica.

–Está bem, está bem. Então eu já vou indo, o café estava delicioso.

–Obrigada.

–Quando sua mãe acordar, diga a ela que adorei conhecer a filha, assim como conheci a mãe. Foi um prazer.

Lúcia não teve tempo de fazer qualquer observação, porque Laura irrompe inesperadamente, perguntando a Gustavo de maneira ríspida, o que ele estava fazendo lá, aquela hora da manhã.

Gustavo gagueja, balbucia uma frase inexpressiva. Então Lúcia explica a situação. Laura, entretanto, continua olhando-o, sem encarar a filha.

–Não quero que você me explique nada. Lúcia. Quero saber deste cara, o que ele pretende.

–Laura, não estou entendendo. Parece que cometi um crime. Só vim aqui para ajudar a sua filha.

–Então está bem, você já ajudou, já consertou o cano como ela falou, agora por favor, vá embora. Conversamos outro dia.

–Mas...

–Outro dia.

Gustavo acenou a cabeça, desconsolado. Aquelas duas já tinham lhe enchido a paciência. O melhor mesmo era partir em retirada. Lúcia ainda o acompanhou até a porta, sob o olhar desconfiado de Laura. Quando voltou, tentou pedir esclarecimentos à mãe, mas antes que dissesse alguma palavra, Laura a interrompeu, friamente.

–Parece que ele conhece muito bem o caminho. Você não precisava tê-lo levado até a porta.

–Mãe, não estou entendendo você.

De maneira instantânea, Laura mudou a fisionomia. Tornou-se risonha, a voz mais suave e mostrava um estado de espírito novo, como se o mal já houvesse passado.

–Vamos, filha. Esqueça estas bobagens. Vá me trazer um café. Estou morrendo de fome!

Abancou-se à mesa do modo rotineiro, à espera de ser servida logo.

Lúcia parou um instante, pensativa. Laura, logo a acordou: –vamos, vamos menina. Quem pensa não casa. Faça o que eu lhe pedi!

Ela a odiava quando a mãe a tratava como uma imbecil. Mas decidira calar-se, apenas obedecer. Nada tinha mais a dizer ou a fazer, do que trazer-lhe o café, como tinha pedido. Depois afastou-se devagar, em direção ao quarto. Antes porém, deu mais uma olhada para a mãe, que mastigava uma bolacha com um olhar sorrateiro, perdido na janela, espiando o nada.

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