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O DOCE BORDADO AZUL - 13º CAPÍTULO

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir o 13º capítulo.

Capítulo XIII

A alma ferida de Laura

A alma ferida de Laura

Laura espeta o dedo com a agulha e larga o bordado rapidamente sobre a poltrona, chupando o sangue, evitando sujar o tecido. Está ansiosa, os dedos imprecisos, a mente conturbada. Embora já seja tão tarde, não consegue levantar da poltrona e dirigir-se à cama. Na rua, avista apenas sombras que se movem pela calçada, pessoas que passam rápidas, voltando para as suas casas, temerosas de assaltos, mãos nos bolsos, noite fria, vento forte, poeiras que voltam e rodopiam perto da janela, iluminadas à luz dos postes. Tudo o que Lúcia lhe contou, deixou-a humilhada, como se ela fosse a protagonista da história. Como a tinham atingido assim, tão rudemente, como se estivesse num tribunal da santa inquisição. Odiava aquela gente. Odiava aquelas freiras. Odiava aquele círculo fechado, um exército ditatorial que se arregimentava há tanto tempo. E pensar que as visitava regularmente, levando os seus bordados, vendendo-os às vezes, ou até mesmo usando-os para rifas, para ajudar na escola, para os órfãos que eventualmente estudavam lá. Ao pensar nisso, sente-se um inseto. Um inseto amassado de modo impiedoso por aquelas patas pretas de freiras funestas, envolvidas em suas preocupações umbilicais. Odiava-as sim, com todas as forças de seu coração, de sua alma, de todo o seu ser. Mas agora, àquela hora da noite, não podia fazer nada a não ser esquecer que elas existem. O mundo gira, as coisas passam inevitavelmente e elas daqui há pouco não passarão de pó, que não valerá de nada, a não ser ser jogado ao relento, desaparecendo entre os vermes ou no fundo dos esgotos.

Voltou a enfiar a agulha e desta vez, vestiu o dedal, como sempre o fazia, quando estava disposta a cometer uma bela figura, que daria forma ao bordado. Procurava se acalmar. Lúcia já estava combalida em sua cama, cheia de tarja preta na cabeça. Ela não, o melhor seria prosseguir no seu bordado, suavizar com ele a mente impregnada de raiva, destravar a alma, investir na proeza de transformar o tecido numa imagem cheia de altos-relevos, onde pudesse expressar alguma sensibilidade. Estava assim absorta, no vai-e-vem da agulha, trazendo-a ao encontro do peito e com ela o risco que se formava no colorido da linha, quando teve um sobressalto. A campainha da porta tocou e a deixou paralisada, temendo tratar-se de um desconhecido, um maluco destes que andam à solta nas ruas, nas madrugadas ou mesmo um bandido disposto a assaltar duas mulheres sozinhas e indefesas. Quase não respirou, na iminência da ameaça que a assombrava. Não poderia chamar Lúcia, esta jamais acordaria depois do efeito prolongado do comprimido que tomara. Precisava aquietar-se, não fazer nenhum gesto que a identificasse sentada naquela poltrona, tão próxima à janela que para seu infortúnio estava semi-aberta, com a cortina apenas sobre a vidraça, sem que pudesse enxergar para fora, mas que poderia ser observada. Bateram então na janela e um calafrio percorreu o corpo gordo, que desandava trêmulo na poltrona, as carnes soltas contraíam-se e as pernas pesavam, tornando-se mais inchadas do que de costume. Precisava então tomar uma atitude, afastar-se dali, chamar a polícia, antes que ocorresse alguma desgraça. Mas uma voz quase inaudível a fez parar. Seu coração que já disparara descontroladamente, agora investia um batuque estranho e descompassado. Fungou e arriscou um “quem é?” ou “o que quer?”.

– Não se assuste. Desculpe incomodá-la.

Era a voz de um homem. Mas o que queria, deixando-a apavorada. Custou-lhe articular a frase, mas o fez com galhardia: – o que quer na minha casa? Vou chamar a polícia!

A voz foi mais nítida e mais angustiada: – por favor, não faça isso. Sou eu, seu vizinho!

Será que tinha ouvido bem? Vizinho? Mas ela não tinha nenhum vizinho que aparecesse àquela hora da noite. Ao menos, que houvesse uma tragédia. Indagou um pouco mais calma.

– Quem é o senhor? Não consigo reconhecê-lo!

– Nós conversamos hoje à tarde. Sou o vizinho novo, do condomínio, lembra?

Do condomínio, claro, como poderia esquecer. Era o sessentão do cabelo pintado, o cara distinto que via passar pela sua janela. Mas pelo adiantado da hora, ele estava sendo inoportuno, não se dava conta disso? Perguntou se não sabia que já era muito tarde para visitas, conversariam no dia seguinte. Mas ele insistiu: – eu sei de tudo isso e lhe peço desculpas, mas é um caso meio urgente.

Então ela resolveu abrir a janela. O homem sangrava da cabeça aos pés.

– Mas o que está acontecendo aqui?

O homem em nada parecia o que conhecera à tarde, pelo contrário, estava descontrolado, a voz sumida, os cabelos em desalinho e a roupa rasgada. Sangrava no rosto, com arranhões, que se prolongavam até o pescoço. Gotas de suor e sangue misturavam-se nos sulcos afundados da pele. Laura quase não o reconhecera, não fossem os olhos claros que tinha reparado muito bem, e dos quais percebera uma luminosidade estranha e particular, que definia certa distinção. Era realmente o vizinho que se anunciara e então, pediu que esperasse abrir a porta. Entreabriu devagar e ainda o olhou de alto a baixo, como se para se certificar da figura que reconhecera. Em seguida, ele entrou, afoito, olhando para os lados, como um cão assustado se acostumando com o ambiente. Laura pediu que sentasse e antes que tomasse alguma providência, como curativos ou coisa semelhante, pediu que explicasse o que acontecera.

O homem sentou-se desolado. Um olhar de súplica avivada pela risca que lhe vinha do olho esquerdo e se delineava até metade da face. Ela o fitou agora, estupefata. Estava em estado deplorável. O melhor é que não falasse nada e partisse para o cuidado de enfermaria. Adiantou-lhe que fosse até o banheiro, lavasse o rosto para retirar a sujeira dos ferimentos, mesmo que doesse bastante, era necessário. Apontou-lhe o corredor e a porta, ao que foi obedecida em seguida. Sentia que ele tropeçava nas pernas, mas não percebera nenhum sinal de bebida alcoólica. Esperou que ele lavasse o rosto e o que viu era um quadro ainda mais deplorável. Os ferimentos surgiram realçados no rosto limpo, que ainda sangrava em virtude das feridas abertas. Ela pediu que voltasse à sala, enquanto pegaria a caixa dos primeiros socorros, que estavam no banheiro. Voltou rápida, quase exultante por sentir-se dona daquela situação inusitada, mas que de alguma forma dava-lhe sentido à vida. Ela, que há pouco estava com tanta mágoa e ressentimento. Percorreu o corredor arrastando os chinelos da maneira mais rápida que conseguiu, com a caixa sob o braço direito. Largou-a sobre a mesa e a abriu, deixando à mostra gases, esparadrapos, tesoura, água oxigenada e outros medicamentos que tinha sempre à mão para estas horas imprevisíveis. Aproximou-se do homem, olhando detidamente o ferimento e com um algodão encharcado na água oxigenada, espremeu-o no ferimento. Ele suspirou de dor. Empurrou com delicadeza o seu braço com a mão e pediu-lhe que parasse.

– Desculpe, estou incomodando. Agora que já lavei o rosto, acho que posso fazer o resto sozinho. Eu só precisava descansar um pouco. Agora, devo ir.

Laura tomou-o pela mão, decidida e colocou-a sobre o colo, numa atitude tão determinada, que não deixava dúvidas que continuaria o tratamento. Além disso, ele já tinha dado trabalho suficiente, o que vinha pela frente não passavam de ninharias. Muito pior do que o cuidado que estava tendo era o susto que havia levado. O homem calou-se, baixando a cabeça. Ela retomou a lida com o mesmo esmero que se dedicava ao bordado. Limpou exaustivamente as feridas, os arranhões próximos à boca e observou que sob a camisa, havia outros mais profundos, como se uma fera o houvesse atacado. Não disse nada. Prosseguiu na tarefa árdua a que submetia o pobre homem, estremecido de dor e de todos os sentimentos que lhe condoíam a mente. Ela usou todos os medicamentos que possuía, desde os líquidos até os cremes, aliados a curativos, gazes e todos os artefatos que dispunha, como se produzisse uma obra de inalienável valor. O homem que já se despojara do paletó, agora era solicitado a tirar a camisa. Afirmou quase em súplica que era desnecessário, o pior estava no rosto e o restante, curaria com seus próprios recursos. Mas Laura não estava disposta a ceder ao cliente. Exigiu que a obedecesse. Era a sua chance de curar-se sem grandes traumas e depois, como poderia cuidar dos ferimentos nas costas, que ela percebera que ele tinha. Sem alternativa, ele a obedeceu, constrangido. Ela deu um leve sorriso. Era bom ter uma presa assim, nas mãos, mesmo que lhe curando as feridas, dando-lhe vida nova, para caçá-la de uma única e definitiva vez. Sorriu mais forte consigo e resmungou: – é, a fera foi mesmo violenta. A gente vai ter que descobrir isso.

Ele perguntou com a voz desfigurada, a que ela se referia. Ela o olhou fixamente por um momento, depois, afirmou, destemperada.

– Coisas estranhas aconteceram com você. Vai me dizer, mais cedo ou mais tarde!

Ele calou-se. Não estava em condições de refutar qualquer imposição, muito menos descrever o acorrido. Suspirou profundamente, não se sabe se de dor ou autopiedade.

Laura insistiu: –vai me contar, não vai?

Não obtendo resposta, concluiu: – deve ter sido assalto.

O homem desta vez, levantou os olhos para ela e fez um gesto afirmativo. Mas Laura não acreditava nesta hipótese. Nenhum assaltante arranharia um homem daquele jeito. Isso era coisa de mulher. Mas calou-se. Sabia a hora certa de fazê-lo. Precisava dar linha, deixar que o peixe engolisse a isca, para içá-lo definitivamente e descobrir toda a verdade. Era uma história que começava e ela teria uma participação muito importante. Sem dúvida.

– É você está mesmo ferido. Mas não pense que é só você. Todos estamos muito feridos. Hoje, eu estava dilacerada e na verdade, só melhorei um pouco.

Ele a fitou por baixo dos olhos num tom inquisidor, não entendendo o recado.

Laura prosseguiu, enérgica.

– Estava como você, só que rebentada por dentro. A alma ferida. Tinha tanto ódio dentro de mim, que se tivesse uma bomba naquele momento, eu a explodiria, colada no meu corpo, como fazem estes terroristas suicidas. Nem sei como pude acalmar-me e ainda prestar ajuda a alguém.

O homem não tirava os olhos dela, intrigado. Era uma mulher estranha, que parecia, por momentos, possuída por um espírito devastador, capaz até de causar-lhe algum mal. Mas por que lhe dizia isso, com que interesse? Ele, que procurara ajuda, que pedira socorro, de repente, parece que de vítima, passara a ser o algoz. Laura deixava isso cada vez mais evidente.

– Vir aqui, a esta hora da noite, é um absurdo. Você não acha? Eu quase tive um colapso nervoso. O meu ódio se transformou em medo, em pavor, em verdadeiro pânico. Um medo de ser molestada, de ser assaltada, de ser assassinada. Tudo vinha à tona com a sua aparição, principalmente quando bateu na janela, bem ao lado da poltrona onde eu estava!

Ele expressou um “desculpe” desconsolado. Ela prosseguia cada vez mais exaltada: – já me preparava para o ataque, não sabia como, mas não morreria em vão. O pior de tudo é que minha filha estava dormindo no quarto, atolada nos travesseiros, babando tarja preta pelos poros. Como é que eu ia me virar sozinha?

O homem tentou levantar-se e cambaleou, meio tonto. Mas precisava sair dali, não tinha o que dizer, apenas agradecer a atenção, embora percebesse que estava sendo alvo de uma ira incontrolável. Laura desaguava toda a mágoa contida naquela aparição, que de momento, tornava-se extremamente desagradável. Mas ele não conseguia levantar-se, as pernas não ajudavam, a mente conturbada, os joelhos fracos, as mãos desobedientes da vontade insistiam em manter-se caídas sobre o colo, desanimadas. Laura prosseguia a explanação, vigorosa, permanecendo às suas costas e impedindo-o que se levantasse.

– Fique quieto. Não pode sair. Agora você é a presa, eu, o caçador. Não esqueça. Um predador o caçou e o entregou para mim.

Ele perguntava, entre ressentido e assustado.

– Mas o que pretende? Aprofundar mais as minhas feridas?

Laura riu, desenfreada. Depois, parou de súbito, repentinamente séria.

– Não seria uma má idéia, pelo transtorno que me causou!

Em seguida, com voz suave, acrescentou: – não se preocupe, meu amigo. Você não representa a ira para mim, pelo contrário. Ajudá-lo, curar-lhe as feridas, o corpo, ajudou curar-me a alma. Eu melhorei, não é incrível? Agora estou muito bem, e posso ajudá-lo muito mais!

Ele se aquietou, mostrou-se mais seguro e falou refletidamente, como se para chegar à conclusão, tivesse examinado detidamente todos os pontos de vista. _Acho que agora você fez o que podia. Eu só tenho a agradecer-lhe.

– Mas não vai me contar o que aconteceu?

Ele empalideceu rapidamente, o pouco do corado que rajava na face, desapareceu, como reflexo dos pensamentos que voltaram.

–Não é o momento... Está muito tarde.

–Agora você acha tarde, não pensou nisso quando bateu a minha porta, não é?

–É verdade, mas estou exausto. Não me sinto em condições.

–E está em condições de caminhar? Você quase caiu da cadeira, tentando se levantar.

–Você tem razão, mas estou um pouco melhor, tenha certeza. Voltarei para minha casa e nós nos encontraremos novamente.

–Espere ai, não me disse o seu nome. Na verdade, não nos apresentamos. Vou lhe adiantando, chamo-me Laura, Laura Franchesi, a vizinha mais antiga deste bairro. Você, ao contrario, é o mais novo morador. Como é o seu nome?

–Gustavo. Gustavo Sanches.

–Muito bem Gustavo, então faça um esforço e tente ir para a casa. Se não conseguir, pode ficar por aqui mesmo.

Mas, você é quem sabe, não quero forçá-lo a nada. Já teve prejuízos demais por esta noite.

Ele esforçou-se para enrijecer-se, encostando como pode na parede mais próxima. Esperou alguns segundos para o cérebro oxigenar e se refazer do mal-estar, e afastou-se devagar, enquanto respondia à afirmação de Laura.

–É verdade, é verdade. Vou fazer o possível para voltar para casa. Obrigado, muito obrigado Dona Laura, desculpe fui tão inoportuno, desculpe se...

–Por favor, pare de tantas desculpas. E me chame de Laura. Pra mim, você é apenas Gustavo.

Naquela noite, Laura dormiu com a alma aliviada.

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