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O DOCE BORDADO AZUL - CAPÍTULOS 6º E 7º (em sequência)

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir apresentaremos dois capítulos, o 6º e o 7º capítulo.

Capítulo VI

O telefonema

Lúcia acordou de madrugada, envolta em pesadelos estranhos, misturando imagens do dia, a visita de Madalena, o enterro de Irmã Dolores, a carta, a mãe na cirurgia, o cheiro de hospital, numa mistura de comida e medicamento. O coração pulsava descompassado e ela desconfiava que mais dia menos dia, ele lhe prepararia uma surpresa, tal era o desregramento de sua batida. Levantou, meio tonta, talvez pelos comprimidos de tarja preta ou pelo susto dos pesadelos. Afastou-se do quarto, dirigindo-se à cozinha e dando na passagem, uma espiada para a rua. Sentia frio e medo. Medo de ser assaltada, naquela casa, solitária, como estava, sem a presença da mãe. Se ao menos pudesse falar com os vizinhos, mas os muros eram tão altos e as janelas cheias de grades e ferrolhos imensos, jamais abertas. Ainda bem que não chovia, pensava. Mas, sentia-se acuada, temendo que alguma coisa ruim lhe acontecesse.

Ventava, as árvores desenhavam figuras animadas nas lajotas e no muro, um gato disparava muro à fora, vibrando as patas no cimento penteado, atirando-se no solo e desaparecendo na escuridão. A tudo Lúcia observava, enrolada num roupão da mãe, o primeiro que encontrara na cesta de roupas limpas, e talvez o fizesse, para sentir-se um pouco protegida. Não conseguia tirar os olhos do quintal, pressentindo que veria a qualquer momento alguma figura humana, talvez um ladrão ou assassino que viesse procurá-la, sabendo que estava sozinha, que não havia ninguém para protegê-la. Naquele momento, estava irremediavelmente só e sentia-se deprimida, e por isso começou a chorar. Não mais era a mulher forte, altiva, arrogante, ao contrário, era uma criança frágil e submissa, dependente da mãe, acuada num mundo estranho, de sombras e ventos de maus agouros.

Quando o telefone tocou, ela estremeceu. Pensou em não atender, em não afastar-se da janela. Talvez fosse uma provocação, para afastá-la dali e deixá-la desprevenida. Precisava tomar uma decisão urgente.

O telefone não cessava, o barulho era ensurdecedor, como os sinos no carrilhão do mosteiro.
Decidiu. Correu até o quarto, atenderia de lá. Entrou resvalando os pés no tapete, tirando-o do lugar e quando estendeu o braço para pegar o fone, somente o silêncio. Demorara demais. Ficou ali, inerte, quieta. Quem sabe, tocaria novamente? Quem sabe estavam apenas esperando que se afastasse para o quarto, a fim de arrombar pelos fundos da casa? Por isso, fechou a porta do quarto cuidadosamente, lembrando-se do dia em que vira a varinha verde levantar suavemente o lençol de sua cama. Até hoje tinha dúvidas de que sua mãe fizera aquela presepada com ela. A mãe, gorda como uma porca, espalhada por baixo da cama, ajeitando graciosamente uma vara verde, cheia de nódulos e pequenos brotos, para arranhar-lhe delicadamente as pernas, com o único objetivo de fazer uma brincadeira. No fundo, acreditava que a mãe assumira a conduta de alguém. Então, a havia espancado em vão, embora, jamais devesse ter feito isso, por tratar-se de sua mãe. E se fosse realmente ela, como tivera uma atitude cruel e impensada. Mas agora era tarde demais. Amanhã visitará a mãe naquele hospital fedido e quem sabe, logo, tenha alta. Então, tudo voltará a ser como antes.

Desvencilhou-se do roupão, mais calma. Pensar na mãe produzia sempre um certo conforto. Sabia que havia alguém que a amava, que zelava por ela e que lá mesmo, naquele hospital, ela deveria estar pensando nela. Talvez com ódio, desprezo e até medo. Mas certamente, com uma pontinha de amor. Afinal, era a sua mãe. E ela a conhecia muito bem. Ficou apenas de pijama, que embora bem encorpado, não a safava do frio que fazia no quarto. Então deitou-se e agasalhou-se entre os cobertores, deixando apenas a cabeça de fora e os olhos bem abertos, atentos, a qualquer movimento. Foi neste momento, que o telefone novamente tocou. Exasperou-se, já não mais assustada, nem temerosa pelas sombras produzidas pelas árvores vergadas pelo vento, mas irritada por se levantar novamente, enfrentar o frio do quarto e imaginar que seja alguma notícia do hospital. Teria a sua mãe piorado? Morrido talvez? Oh, não. Se isso acontecesse, ela não se perdoaria jamais. Uma tragédia; não podia pensar nisso.

Então aproximou-se com a mão trêmula, o braço adormecido, não querendo atender. Percebeu pelo bina um número de celular estranho e a voz que ouviu, não era do hospital.

–Lúcia, sou eu. Pensou no que lhe propus?

Lúcia de imediato reconheceu a voz meio fanhosa de Madalena. Como se atrevia a telefonar-lhe àquela hora, depois de ficarem tanto tempo afastadas? Como se atrevia a molestá-la, ela que já tinha problemas demais para toda uma vida. Sentiu um rancor inesperado, uma vontade de desligar o telefone e afastar-se daquela situação enfadonha. Mas recuou em suas decisões e atendeu.

–Mas a esta hora da noite? Você sabe que horas são?

A outra gaguejou, desculpou-se, mas mesmo assim argumentou que o assunto requeria certa urgência. Lúcia sabia de antemão que ela se referia à conversa que tiveram à tarde e nada disso tinha tanta importância para ela. Por isso, pediu para se falarem no dia seguinte, no lugar combinado. Traduziria a carta de Irmã Dolores, afinal, o recado da freira não era um repositório de acusações para que se sentissem ameaçadas. Parece que Madalena não pensava da mesma forma, pois insistia.

–Por favor, eu estou muito nervosa. Tenho medo que caia nas mãos de meu marido... Meus filhos.... Não sei o que aquela louca pode ter falado de nós...

Lúcia a interrompeu impaciente, afinal, não havia uma vírgula que justificasse uma ameaça a sua reputação ou coisa que o valha. Se havia algum problema, era em relação à Madalena. Então, que se acalmasse e fosse dormir. Amanhã seria um novo dia e elas conversariam em paz, como tinham combinado. Madalena não teve outra alternativa a não ser desligar o telefone. Lúcia estava determinada. Desligou e esboçou um leve sorriso. De qualquer modo, gostava da fragilidade das pessoas, do temor incontido, de se sentirem ameaçadas. Tinha um prazer inconsciente ao saber que precisavam de sua ajuda, de suas decisões, de seus planos engendrados. Sentia um prazer quase inabalável em ver o quanto eram frágeis e dependentes, tais como Irmã Dolores, nos seus últimos momentos. Neste caso, não evitava certa náusea pela mediocridade da velhice doentia, da dependência exacerbada, da impossibilidade de ter um domínio sobre a própria vida. Mas ela morrera e certamente, deixara uma surpresa muito grande, que estava assustando a todos. Aquela velha não dava ponto sem nó. Ela tinha um segredo, um segredo muito bem guardado que as unia de alguma forma. Precisava descobrir e tirar partido disso. Uma oportunidade para a sua vida vazia, sem grandes expectativas, sem sonhos. Agora sim, planejaria cuidadosamente o seu futuro. Tudo parecia estar muito bem tramado, mas ela induziria a trama a sua maneira.

Pensou na mãe. Amanhã após ir ao hospital, encontraria Madalena no lugar acertado. Entretanto, não diria nada à mãe. Laura era muito enxerida e por certo, se intrometeria em seus planos. Que ficasse com a trama de seus bordados tão bem tecida. Talvez sentisse em tê-los abandonado. Se ao menos, ela pudesse levá-los até ao hospital, sua mãe teria como passar o tempo, abrandar o espírito, sentir-se boa, produzindo uma coisa bela. Mas ela sentia tantas dores na cabeça, além de ter um braço machucado, cheio de hematomas. Não, não era conveniente aguçar a sua disposição ao bordado. Devia deixá-la quieta, à espera da melhora definitiva, para voltar a ser a mesma Laura de sempre, sentada na sua poltrona, imersa na pasmaceira da tarde, envolta nos fuxicos da rua, mesclando a fantasia da tv com a realidade, mergulhada numa lata de refrigerante. Quem sabe, telefonar para lá, saber algum detalhe, se tivera febre, dor de cabeça, falta de ar. Quem sabe melhorara e voltaria amanhã para a casa. Foi o que fez. Ligou ao hospital.
Capítulo VII

O encontro

Madalena estacionou o carro, olhou para os lados desconfiada, temendo ser seguida. Na verdade, sentia-se assim, no íntimo, tão desprotegida, amargurada, perplexa com o que a vida lhe reservava nos últimos dias. Não faz muito tempo, era uma mulher despreocupada, protegida no seu lar, cuidando dos filhos pequenos, apoiada pelo marido, um engenheiro de uma firma de alimentos, situada na cidade vizinha. Ela, uma pedagoga, que trabalhava há muito tempo numa escola modelo, sem grandes inquietações no trabalho, imersa em sua vida rotineira, quase medíocre, sem grandes ambições. Agora sentia-se invadida por um turbilhão do passado. Na verdade, nem tinha certeza de haver relatos na carta de Irmã Dolores que mencionasse alguma coisa desabonadora de sua reputação, enquanto adolescente. O temor que se instalara após o e-mail enviado era o suficiente para deixá-la transtornada, causando-lhe forte desequilíbrio interno. Não tinha condições para as atividade normais, para os filhos, o marido, às tarefas da escola, às da casa. Sentia-se completamente abalroada em seus sentimentos e um medo que a atingia: uma espada pendia sobre a sua cabeça, prestes a atingi-la. Estava assim, indefesa, dependente, assustada. Não tinha como negar. Os colegas de escola notavam, o marido quando voltava à noite, percebia nela uma agitação que não era rotineira, os filhos a julgavam intolerante. Sua vida tinha virado de ponta-cabeça. Por isso, procurara Lúcia, que conhecia detalhes bem íntimos de sua história. Entrou na galeria e aproximou-se, como combinado da loja de sucos. Olhou em torno e pressentiu o olhar acusador da balconista, como se a esperasse naquele momento, conhecedora de seu passado. Estremeceu. Ela como pedagoga, uma mulher experiente, embora nunca deixasse de ser uma pessoa introvertida e preservada, não podia dar-se ao luxo de ter este tipo de pensamento inseguro, de perseguição. Naturalmente que a pobre mulher desconhecia qualquer traço de sua personalidade, muito menos a história de sua vida.

Sentou-se em uma das mesas redondas, de metal e tampo de vidro, enfeitada com um pequeno vaso azul, com ramos verdes, artificiais. Dentro do balcão ficavam mais duas moças, com lenços rosa na cabeça, acomodadas entre frutas, centrífugas, extratores de sucos, liquidificadores, torradeiras, num esforço intenso para atender os clientes. Entretanto havia apenas três mesas com fregueses: em uma delas, a que ficava bem próxima da parede, ornamentada por um espelho que duplicava o ambiente, estava um homem de óculos, absorto aparentemente na leitura num tablet. Junto aos cotovelos, vestidos em mangas de lã, tecidas em vários números oito verticais, um copo de suco, que parecia ser de manga ou laranja. Na mesa que ficava ao lado da porta de entrada, de costas para a de Madalena, estavam duas mulheres conversando animadas, olhando catálogos de produtos por encomendas, enquanto esperavam o pedido. Logo atendidas, as duas pararam e se organizaram nos copos e nos sanduíches naturais. Uma delas aparentava ser mais velha, talvez a mãe e a outra, adolescente, nos seus 17 ou 18 anos, Madalena pode verificar melhor, quando esta levantou-se, exigindo guardanapos. Na terceira mesa, apenas um rapaz vestido num uniforme cinza, identificado com letreiros de alguma empresa de serviços, tomava sôfrego, um refrigerante, ao lado de uma enorme e suculenta torrada, certamente, aproveitando o intervalo de folga.

Madalena ficou assim, um bom tempo, observando toda aquela gente e nem percebeu que a garçonete estava ao seu lado, perguntando pela enésima vez o que pretendia tomar. Madalena a fitou de um modo estranho, como se não esperasse ser atendida. Por fim, disse que esperarava uma amiga e logo após, faria o pedido. A moça afastou-se amuada. Ainda do balcão, de maneira deseducada, insistiu: – não quer pedir alguma coisa, enquanto espera? Pode ser que a sua amiga demore!

Madalena enrubesceu. Achou que todos a olharam no mesmo tempo em que a garçonete falou. Não disse nada, apenas acenou negativamente e abaixou os olhos, tentando ler não sabe o que, talvez, o que estava oculto dentro de si mesma.

Começou a ficar ansiosa, levantou-se e dirigiu-se ao toalete. Talvez Lúcia não viesse e ela estava fazendo papel de boba. Olhou-se demoradamente no espelho. Tirou uma escova da bolsa e arrumou os cabelos, de modo que ficassem para trás, pendentes levemente nos ombros. Ajeitou o batom vermelho-escuro, lambeu os lábios demoradamente, firmando o brilho. Percebeu que as olheiras ainda estavam fundas e por isso, espalhou um pouco de base sob os olhos e acentuando, em seguida, o olhar com uma pincelada mais densa de rímel. Analisou o serviço, viu que estava bem e fez uma tentativa de afastar-se, quando foi impedida por uma mão potente, a qual não conseguiu impor qualquer resistência. Voltou-se assustada, o coração atingido de súbito, o corpo todo estremecido, quase em torpor. Era Lúcia, num riso irônico, zombeteiro, como se praticasse uma brincadeira, como nos tempos de criança.

Madalena puxou o braço, exclamando que ela a tinha assustado. Por que demorara tanto afinal? Lúcia respondeu com calma: – não se preocupe. Dê tempo ao tempo, tudo vai tomar o rumo certo. Voltaram para a mesa onde ela estava sentada. Madalena nervosa, passos incertos, inseguros, bambaleando o salto fino no piso. Lúcia, segura, ousada, firme.

Sentaram e Lúcia foi a primeira a falar, pedindo um suco de maracujá, acrescentando que fazia bem aos nervos. Madalena emendou que não tinha nenhuma preferência, mas que tomaria qualquer coisa. Ao dizer isso, percebeu que o rapaz de uniforme, levantava-se rápido da mesa, dirigindo-se ao balcão para pagar a conta. Ao levantar-se, olhou-as por um instante, um gesto casual, mas que chamou a atenção das duas. Lúcia acrescentou, sorrindo: – é um gato, você não acha?

Madalena se esquivou, mexendo em alguma coisa desconhecida na bolsa, enquanto afirmava que era uma mulher casada, que respeitava o marido e que não ficaria por aí, dando bola a qualquer um.

Lúcia desta vez deu uma gargalhada que chamou a atenção do restante dos clientes. As mulheres que apreciavam os catálogos, olharam de relance e comentaram quase num sussurro, enquanto o homem que pesquisava no tablet, ficou por um instante, encarando-as, como se esperasse alguma coisa mais. Depois desistiu e voltou para a sua leitura.

Lúcia prosseguiu em tom de deboche.

–Eu não disse que você deveria cantar o rapaz, apenas dar uma olhada. Sabe que eu adoro homens de uniforme!

Madalena ouviu calada, depois pediu que iniciassem o assunto que as levaram até ali. Estavam um pouco afastadas dos demais, mas ainda assim, ela pretendia falar com discrição, num tom mais baixo. Lúcia sorveu o suco devagar e Madalena ficou olhando o seu copo, talvez esperando que a conversa tomasse corpo, para investir no seu e tomá-lo de rapidamente. Foi o que fez, como se assim se livrasse daquele empecilho, quando Lúcia, entre um gole e outro, introduziu na conversa um fato novo, inesperado. Madalena a olhou fixamente, percebendo naqueles olhos negros, um certo ar de malícia e satisfação.

–Eu tive uma ideia. Uma ideia que acho sensacional, mas para isso preciso de uma contrapartida.

Madalena permaneceu calada, esperando o desenlace. Estava aflita para que tudo chegasse a termo, mas no que competia a Lúcia, a coisa ia se arrastar da mesma forma como degustava o suco.

–Vou direto ao assunto. Estou desempregada, a minha mãe está no hospital, com um traumatismo craniano, não sei se se livrará desta. Preciso de dinheiro e acho que você pode ajudar-me.

Madalena se surpreendia a cada frase despejada de forma inusitada. Lúcia que demorava tanto a desenrolar o assunto, não entrara exatamente no tema e falava em seus problemas, pedia-lhe ajuda. Estaria fazendo algum tipo de chantagem? Não tinha coragem de perguntar. Mas Lúcia prosseguia, resoluta.

–Sei que você trabalha numa escola, é uma pedagoga influente, tem muitos amigos por lá.

Desta vez, Madalena retorquiu. Precisava entender a que ela realmente se referia.

–Não sou tão influente assim, não sei do que você está falando, afinal.... o nosso assunto, tudo aquilo que me aflige...

Lúcia assegurou que chegaria no ponto crucial do problema, era uma questão de tempo, mas que para isso acontecesse, precisava da compreensão e ajuda de Madalena. Esta temia qual seria o real objetivo de Lúcia. Entretanto, para Lúcia, as coisas pareciam muito claras, tanto que ela até abusava de metáforas, como se o tema abordado fosse apaixonante.

–Sabe, quando minha mãe borda, ela faz um movimento admirável com a agulha. É um movimento completo, que enfia cruelmente a agulha no tecido, mas que ao voltar, produz um trabalho manual que é uma obra de arte. Ela fere o tecido, mas em contrapartida confere vida àquele pano insosso. Entretanto para que isso aconteça, ocorre um sofrimento intenso. Um lindo sofrimento.

E deixou-se ficar assim, olhando para o nada, como mastigando na mente o eco das próprias palavras. Só se desconsertou, quando Madalena respondeu que não entendera nada. O pensamento rápido de Lúcia a insultou internamente, tachando-a de burra e insolente, qualidades que conservava desde a infância. Mas exteriormente, apenas sorriu e disse: – você vai entender. Basta ser paciente.

Madalena a interrompeu, exigindo que voltasse à história do dinheiro. Ela queria que ela lhe emprestasse, era isso?

–Não, Madá, não se preocupe.

–Madá, não, eu já pedi a você.

–Está bem, é o hábito. Mas não vamos nos deter em ninharias, vamos direto ao assunto: é verdade, preciso de dinheiro, mas não quero que você me dê qualquer quantia, não é isso. Eu quero um emprego na sua escola.

A outra se perguntou o que Lúcia realmente sabia fazer, pressentindo que ela havia muito bem planejado a conversa, preocupada exclusivamente consigo.

–Um emprego? E o que você sabe fazer?

–Ah, minha querida, muitas coisas que você nem imagina. Mas, ultimamente, eu havia trabalhado numa clinica, antes do serviço voluntário no mosteiro. Passei algum tempo lá, porque sou uma auxiliar de enfermagem. Sei tudo que uma enfermeira formada faz, mas só não tenho canudo.

–Mas o que uma enfermeira faria na minha escola?

–Não sei, arranje-se. Ou melhor, arranje um cargo de enfermeira. Vai dizer que as crianças não se machucam, não se ferem nos brinquedos, nos intervalos? Nenhuma adolescentezinha desmaia na TPM? Madalena percebia que a amiga era bem rápida para achar soluções e sem que argumentasse qualquer coisa, esta parecia advinhar-lhe os pensamentos, concluindo, segura.

–Eu sou uma pessoa pragmática, minha querida. Então, vai me conseguir o emprego ou não?

–Há uma pessoa na escola que vem três vezes na semana, ela também é enfermeira.

–Pois despeça-a.

–Eu não tenho todo este poder.

Lúcia fuzilou-a com fúria, encarando-a com frieza. Discutia em voz alta, possessa.

–Então, nada feito. Se quiser a minha ajuda, tem que me ajudar também. Como eu lhe disse, para se fazer uma obra- prima, é preciso sofrimento. Só furando o tecido é que a agulha consegue trazer a linha, fazer a laçada e finalmente enfeitá-lo. Se quiser enfeitar a sua vida, minha querida, ajeite este laço da agulha. Para isso, é preciso fazer um bom estrago, não se esqueça.

A outra sacudiu a cabeça, incrédula.

–Você está maluca!

–Tanto quanto você, quando teve aquele relacionamento esquisito. E depois disso, aquela morte estranha, nunca devidamente explicada. Agora juntando os fatos, pode-se fazer belas deduções. Madalena esticou o corpo sobre a mesa, aproximando-se extremamente de Lúcia, arfando.

–Pelo amor de Deus, cale a boca. Eu não tenho nada a ver com isso. E depois, não temos certeza de que naquela carta exista alguma coisa relacionada a isto. Eu estou limpa, fique sabendo.

Lúcia não perdeu a calma, pelo contrário, todo o desenlace da conversa produzia mais alento, como se se alimentasse da insegurança da outra para reagir.

–Mesmo que não exista nada, você me confessou tudo e eu já tinha lá as minhas dúvidas.

–Mas se não houver nada naquela carta, nem naqueles malditos e-mails criptografados, você não pode provar nada!

–Mas posso fazer pequenas laçadas, urdir suaves tramas que vão amarfanhar o seu lindo tecido. Quem sabe, rasgá-lo, definitivamente.

Madalena levantou-se, exaltada, aparentemente desistindo da conversa.

–Você está completamente louca.

Lúcia a segurou pelo braço e pediu que sentasse, que reconsiderasse. Havia um vínculo muito forte entre elas e não podiam se esquecer que as demais estavam envolvidas na história. Por que a arrogância? Por que não tentar ajudá-la, seria tão mais fácil. Ela traduziria a carta e se fosse o caso, queimariam todas as provas, e cada uma voltaria a sua vida normal.

Madalena sentou-se, as mãos pequenas trêmulas, mais brancas do que pareciam quando chegara. A garçonete voltara, indagando se estavam bem atendidas. O homem do tablet prosseguia na leitura e vez que outra, olhava para os lados por sobre os óculos e em alguns instantes, se detinha nas duas, como se aquela dupla lhe despertasse interesse. As mulheres que comentavam sobre os catálogos já haviam sido substituídas por um bando de adolescentes, que conversavam agitadas sem se voltarem para elas, entretidas em que estavam em seus assuntos. Alguns fregueses aproximavam-se do balcão e faziam os seus pedidos ali mesmo, sentando-se nos bancos altos, acompanhando os murais dos preços.
Madalena avalizou que não tinha sido uma boa escolha, não era um local tranquilo, onde pudessem conversar com calma. Lúcia sorriu, descrente de que alguém se interessasse pelos assuntos de duas mulheres que tomavam suco num bar. Mas se ela pensava assim, o problema era dela. Então, ensaiou o retorno ao tema, perguntando se não era uma boa alternativa, a proposta que fizera? Acabar com as provas se houvessem, esquecer o assunto e ela, em compensação, teria o seu emprego para poder sustentar a mãe. A pobre mãe, uma verdadeira artista do bordado, estendida numa cama de hospital, com o crânio partido.

– Crânio partido?

–É, depois do acidente. Eu já lhe disse, ela está com traumatismo craniano. Sabe Deus, quando sairá daquela pocilga!

Em seguida, exagerou, com raiva, alongando-se em detalhes tétricos e desqualificando os bons.

–Está lá, atirada, entre milhares de pedintes, sim, porque aquela gente mais parece uns mendigos. Ficam felizes porque estão hospitalizados e ganham um prato de sopa rala. Pelo menos comem, mesmo que morram de infecção hospitalar – e com algumas lágrimas nos olhos, emendou – pobre de minha mãezinha, horas no corredor frio, sobre uma maca, cheia de agulhas nas veias, com soro pendurado no braço. Ela que espeta os tecidos para enfeitá-los, está lá, como um pano velho, surrado. Mas para você, isto realmente não significa nada.

Madalena pediu que parasse, impressionada. Para que alimentar aquela indignação, descrevendo cenas tão tristes.

Lúcia levemente sorriu, só por um segundo, sentindo que a presa estava prestes a cair na armadilha. Pobre Madá, não passa de uma lontra doce e suave, de pele macia, mas que costumava virar casaco sempre que caçada.

Madalena percebeu-a calada e presumiu que sua tristeza se ligava ao problema da mãe. Por isso, acrescentou, arrependida: – não pense nisso agora. Sua mãe vai ficar bem.

Lúcia suspirou e sorriu, agradecida. Piscou os olhos, emocionada. Interiormente, sorria, animada, principalmente quando a outra prosseguiu.

– Na verdade, a preocupação está na carta que pensei que você tivesse traduzido, mas a gente não chega nunca neste detalhe. Você entende o meu nervosismo, não?

Lúcia segurou-lhe as mãos com carinho, incutindo-lhe uma serenidade que estava longe de sentir.

–Não traduzi, mas não se preocupe. Vamos rememorar todos os passos. Eu recebi a carta escrita numa língua estranha, semelhante ao russo. Acho até que é realmente. Além disso, uma outra que pedia que nos encontrássemos, as quatro.

–Eu sei, você se refere à Ana.

–Sim à Ana e à Bárbara. Mas esta está longe. Era bailarina, lembra-se? E eu descobri que ela está numa cidade, uma tal de Minsk, se não me engano. Nem me lembro o país, mas é um daqueles que pertenciam à União Soviética. Você lembra, que eles se desmembraram e surgiram várias nações independentes?
Madalena desconhecia o fato. Nunca se preocupara com política, muito menos conhecia a geografia daquela região do planeta. Surpreendia-se com o conhecimento de Lúcia, afinal, nunca se formara em nada, nunca cursara uma faculdade, mas não vinha ao caso. O que interessava neste momento, é que ela tinha muito mais informações do que ela. Então, acrescentou o que lembrava.

– Bárbara foi embora com uma academia de dança que esteve no Brasil. Isso eu me lembro, gostava muito dela. Era... – interrompeu-se, temendo ofender a outra. Lúcia afirmou que deveria completar a frase, compreensiva. Sabia muito bem que Bárbara era a sua melhor amiga. Das quatro, era com quem se relacionava melhor.

Em seguida, no silêncio de Madalena, continua relembrando todos os fatos.

–Eu recebi outra carta, quase um bilhete informando que deveríamos nos encontrar. Ao mesmo tempo, você recebe e-mails criptografados, que podem muito bem ser interpretados. Deve imprimi-los, trazer-me e depois deletá-los de seu computador. Basta que encontremos Ana e Bárbara, que devem ter as mesmas cartas, as mesmas informações.

Madalena esquivou-se na mesa, como se tivesse uma informação importante para dar, mas não tivera a oportunidade. Antes, assegurou que conseguiria o emprego que Lúcia tanto ansiava, se por acaso não conseguisse na escola, procuraria um outro lugar. Lúcia assentiu, sossegada. Sentia-se mais forte para prosseguir no plano para se comunicarem com as amigas.

Desta vez, Madalena não refreou a informação contida: – Lúcia, Ana morreu.
Lúcia abriu a boca escancarando um “o quê ” com todos os pontos de interrogação que tinha direito, mostrando no semblante a surpresa estampada. A outra repetiu que Ana havia morrido há mais de três anos, suspirando, em seguida.

– É menos uma para ter este segredo nas mãos.

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