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Pode ser

Pode ser que a vida passe, que os números se sucedam produzindo estatísticas inverossímeis. Pode ser que os mortos falem, se expressem de algum modo, identificando realidades desconhecidas. Pode ser que existam mundos paralelos, que vivamos duas vidas ao mesmo tempo. Pode ser que experienciamos novidades e que o fim não seja o fim, talvez o começo. Pode ser. Pode ser que eu me engane, que tu te enganes, que o mundo prove de alguma forma de que somos feitos de barro e sal. Pode ser que tudo derreta, que o sal não conserve, que o barro se misture nos tsunamis da vida. Pode ser. O que não deve ser é a verdade absoluta, a certeza sobre todas as coisas e sobre tudo. O que não deve ser é a falta de discernimento, o desprezo por caminhos incertos, não compatíveis com a realidade do senso comum, que preza o padrão e a mesmice. O que não deve ser é amar acima do humano, é ser pós- humano neste mundo insensato e prever a necessidade apenas de um grupo, aquele que vive junto feito gado e não

O barco à deriva

Greg olhou para a estante de poucos livros. Por um momento, pensou até que ficaria, mas já não havia tempo para discutir qualquer assunto, muito menos permancer naquela casa. Os livros pareciam chamá-lo, pedindo que observasse suas capas, a contra-capa, o miolo costurado de uma maneira estranha para a época. E o conteúdo, o conteúdo viria por acréscimo. Não importava a ninguém o conteúdo e eles, os livros, pareciam ter vida. Greg afastou-se um pouco em direção à janela que dava para o jardim dos fundos. Na verdade, não era um jardim, era apenas um amontoado de flores de todos os tipos e alguns arbustos. Olhava para baixo e tinha uma sensação de vazio, uma melancolia que não tinha como explicar. O psicanalista dizia que era normal, ele era um homem melancólico, um cara acostumado com os sentimentos, o sofrimento, a dor que deveria ser exaltada, extrapolada, sentida e liberada na escrita. Quase catarse. Talvez o psicanalista tivesse razão. A melancolia era o seu ganha-pão. Co

O COVIL

Saímos meio às escondidas, desviando dos pingos grossos da chuva, sentindo na pele uma batida intermitente ao nosso encalço. Causava-me um certo prazer, misturado com temor, um temor desconhecido, de que alguma coisa não andava bem. Era frio e escuro e as ruas desertas, como se o mundo todo se escondesse em suas casas, temerosos de uma investida qualquer, uma agressão da qual não tinha como desconfiar. Apenas as palavras reticentes de meu pai, os dedos frágeis e estremecidos da mãe segurando a bolsa branca, iluminada de vez em quando por algum raio preguiçoso que surgia ao longe. Os olhos de meu pai brilhavam também, mas de ansiedade. Olhava para os lados, sondava a esquina que desembocava na avenida, ouvia apitos, esfregava a ponta do sapato no paralelepípedo escorregadio que limitava a calçada. Atrás de nós o muro alto do cemitério. Seria este o temor deles? Não, era de alguma coisa mais palpável, muito mais perigosa e parecia que a cada minuto do atraso do ônibus, o monstro

As escolhas

De olhos abertos observa-se a vida. De olhos abertos percebe-se o mundo. De olhos abertos descobre-se os medos. Mas de olhos fechados, absorve-se a plenitude da vida. De olhos fechados, avalia-se as trajetórias que nos revelam o nosso mundo interior. De olhos fechados refletimos, nomeando os medos, concedendo-lhes voz e tamanho, despojando-os de força e poder. Pensei nestas maneiras de apreender a vida, em virtude de uma conversa com uma senhora, que me fez refletir sobre os nossos devaneios em cumprir as tarefas e avançar o tempo. Eu, aproveitando a sombra no parque, afogueado por um calor abrasante, ela, tranquila, com um olhar límpido de quem manifesta a profundidade de seu mundo interior. Por um momento, me encarou com uma generosidade que me desconcertou e falou sobre o tempo e como o dispõe através de alguns princípios, dos quais prioriza as escolhas. Disse-me que costuma meditar e o que vê durante o dia, absorve de uma forma distinta, em que as verdades são aprofundada

A roda parou de girar

Um carro quase sobrevoava a calçada. Noite escura. De repente, parou. Um homem de branco desceu, examinou os pneus, deu dois giros em torno e permaneceu quieto, em frente da casa que parecia abandonada. Não fez um gesto. O carro ainda pairava na calçada, a roda traseira no ar, se alguém a empurrasse faria várias voltas. Não havia ninguém. A noite se adiantava e a cidade, naquele bairro, morria. Ele moveu-se um pouco. Faiscou os olhos na luz intensa do celular. Ficou ali, perdido numa mensagem. Em seguida, aproximou-se do muro e encostou-se devagar. Olhou para os lados. Nada. Ninguém se aproximava. Nem um sinal. Nem mesmo a brisa costumeira da cidade litorânea desenhava algum movimento. Tudo parado. Morno. Suspirou, ansioso. Meteu as mãos e o celular nos bolsos. Por um momento, pensou em afastar-se, bater no portão de ferro, chamar alguém. Não teve coragem. Algo o segurava no chão. Um chão bolorento, de musgo e ervas que se erguiam pelas frestas das lajotas. Um chão sujo. Um lu

Cinema de rua e sonhos de primavera

Uma noite de primavera. A brisa leve sussurrava em nossas testas suadas. Meu pai vestia paletó azul, meio gasto. O olhar se perdia ao longe, como se aguardasse o galardão de ouro. O longe que se perdia, na verdade era a tela de parede caiada. Ele parecia mais ansioso do que eu. Sua boca entreaberta sorria. De repente, fitou-me e ficou sério. Eu é que deveria estar feliz e ter muitas expectativas naquele momento. Seria uma noite e tanto: uma noite só de homens. As mulheres ficaram em casa. Daqui a pouco, chegaríamos na rua onde seria projetado o filme. As pessoas se aglomeravam entre vendedores de algodão-doce e pipoca, enquanto atravessávamos ruas de paralelepípedos e trilhos. O caminho habitual agora atingia um ar festivo e uma euforia se rendia a nossas mentes curiosas. Aos poucos, o cenário quase onírico se formava. Na calçada, paramos sob uma árvore, já apinhada de meninos à espera do espetáculo. Para meu pai, eram apenas meninos de rua, sem disciplina. Ele era assim:

Uma história em comum

Ele fechou a porta devagarinho e ficou se perguntando se era capaz. Capaz de olhar aquele quadro degradante. Capaz de perguntar-se a si mesmo se havia tido uma história em comum. Se tomara café junto. Se partilhara dos mesmos sonhos, mesmas esperanças, mesmas expectativas. Lágrimas corriam involuntárias. Mas não tinha aquele sofrimento todo. Uma náusea incólume, que inundava a alma, o espírito. Vontade de sair, de respirar, de tomar ar puro. Temia abrir a porta e presenciar a cena, ver o corpo estendido no chão, a garrafa de bebida ao lado, espargindo-se entre os ladrilhos brilhantes, límpidos, impolutos. Os dedos longos, frios, finos, anéis, comprimidos, cenário grotesco, comum, teatro barato. Pena. Sentia pena dela. Pena pela fragilidade, penúria. Ainda ontem, haviam se encantado pelas calçadas, avistado luzes novas no horizonte, ventos favoráveis que sopravam. Deram esmola a pedintes, abrigo a velhos desamparados. Sorriram felizes com a desgraça alheia. Estavam quase felizes

Impressões de uma Romênia tradicional e bela = Impresii ale unei Românii tradiționale și frumoase

Luisa estabeleceu-se num vagão meio vazio. O trem passava por pequenos vilarejos e ela podia avistar, além deles, Cárpatos, a cadeia de montanhas que domina a paisagem da Romênia. Havia algumas pessoas e num banco na lateral esquerda, um casal conversava quase em sussurros, ao contrário de algumas senhoras que não paravam de confabular, quase uma discussão política. No entanto, percebia-se um aconchego familiar, risadas e vozes aflitivas, querendo dizer coisas que somente a elas interessavam. Uma outra senhora de lenço azul, com alguns desenhos geométricos coloridos, o ajeitava o tempo todo, tentando cobrir o cabelo, talvez pelo hábito ou por alguma espécie de coceira não identificada. O homem, que devia ser o marido, mexia nos bolsos e mostrava alguns documentos, manifestando um certo nervosismo e discutia o assunto com energia e logo em seguida, os guardava com cuidado. Ficava pensativo e logo examinava os papéis novamente. Discutiam um pouco e ficavam em silêncio, perdendo-se

Pai de menina

Pai é ser paciente, é apoio, é conciliação, é encontro, é busca, é espera, mas é sobretudo presença. Pois, pensando bem, ser pai é passear ao lado do filho pela calçada, sugando o ar da manhã e contando histórias enquanto se encaminha para a escola, é talvez empurrar a bicicleta e soltar antes que a criança pare de pedalar e pense estar ainda apoiada e ao mesmo tempo imaginar que já conduz sozinha, quando o pai ainda segura a bicicleta. Talvez seja também levá-la à praia, conduzi-la ao mar, perpassar as ondas, segurá-la e fingir que aprende a nadar. É ser criança de repente, como ela e fingir que é adulto. Ser pai, talvez seja uma moldura ativa que corre pela cidade, afoita e embriagada de ar puro, quando avista a menina, esperando a foto, na entrada do teatro em que dança, ou na academia, ou na volta do passeio. A moldura que espera a foto para ser personificada e guardada na lembrança. O pai e a bailarina. Ser pai é esperar que as horas passem no vestibular e agradecer a ajuda do

Sexo, erotismo e ...novo estilo?

Ela estava sempre às voltas com o fazer doméstico, preocupada que era com as mazelas do pouco tempo em que ele se esbaldava na poltrona, controle remoto na mão, zapeando desatinado pela mediocridade digital. Mas era seu direito, depois de um dia estafante, remoendo as contas do chefe, os passos desenfreados dos clientes, os argumentos insossos dos colegas. Era seu direito também, agitar-se no emaranhado de notícias e artigos interessantes no jornal assinado pelo fim de semana. Não que se lambuzasse assim, de qualquer jeito, na chafurdice que via de regra, embotava os sentimentos mais puros, atirando tudo e a todos no mar de lama, de acordo com as prioridades do editor. Não, relegava-os a segundo plano. Tinha consigo que a beleza das leituras estavam no que se encontrava nos cadernos, descartando as críticas das artes plásticas, cinema, música ou literatura, podia-se enveredar em caminhos ousados, às vezes, através de alguns incansáveis fazedores de estruturas renovadas, arejada

De cara com o monstro

O monstro se aproximava devagar. Ninguém sabia de onde viera e qual o seu objetivo. Todavia era um monstro singular. Um monstro que se moldava de acordo com nossos desejos ou esperanças, às vezes tentativas de mudança. Certa vez eu caminhava pela avenida que atravessava a cidade de ponta a ponta, o trânsito já diminuira e a iluminação começava a ficar precária, conforme eu me afastava do centro. Sabia que mais cedo ou mais tarde, eu o encontraria por ali. Diziam que ele costumava ficar naquelas redondezas do grande canalete que dividia a cidade. Talvez entrasse pelas águas turvas e se lambuzasse na sujeira que por dias alimentava aquela travessia aquática. Eu nem tinha certeza se o canalete tinha como objetivo livrar a cidade das enchentes, porque o povo costumava jogar entulhos, garrafas plásticas e além da poluição gerada, por certo um daqueles objetos iria parar numa saída de água obstruindo-a e facilitando a inundação. Fiquei assim pensativo e decidi sentar num dos banco

A pedra

Ao terminar de fazer as compras da feira, Maria Emília voltou para casa. Não tinha outra alternativa a não ser tomar o ônibus superlotado porque já era horário de meio-dia. Com dificuldade, passou a roleta e desviando-se de um e de outro, foi até o fundo do ônibus, já que a sua parada era bem distante. Com sorte, conseguiu um lugar, espremida entre as sacolas de compras e uma caixa trazida por um homem ao lado, além de outras pessoas que se equilibravam em pé, ocultando-lhe a frente, sem poder ver por onde o ônibus seguia. Na verdade, não precisava. Conhecia aquela rota como a palma de sua mão. Um suor forte empapava o rosto e o pescoço. Sentia uma certa vontade de urinar, mas esta necessidade não era adequada para aquele momento. Tinha que esforçar-se em pensar em alguma coisa bem diferente para a vontade não apertar ainda mais. As pessoas se acotovelavam e tentavam se mover de um lado para o outro, tentando adequar-se ao ambiente sufocante. Uma das sacolas, com aquele atropelo

UM GOLPE NO OUVIDO

Juntou as chapinhas de bebida e sentou-se à sombra, olhando para o nada, mas com a certeza de que aquela árvore o acolheria para sempre. Puxou um real do bolso e pensou no que poderia fazer dali em diante. Quem sabe, voltar à oficina, juntar os seus pertences, pegar a mochila farrapada e tomar um rumo na vida. Entretanto, sentia-se impotente, até assustado com a situação. Voltar a juntar latas de alumínio, chapinhas de refrigerante, limpar as lixeiras e esconder-se embaixo de qualquer marquise era uma onda que não queria reviver. Lembrou-se do Guto, com aqueles olhos esbugalhados e a boca aberta, o sangue escorrendo pelo chão visguento de diesel. Sentiu um arrepio. Tinha mesmo que dar o fora, antes que alguém chegasse e o acusasse de ter matado o negrão. Por que ele tinha voltado àquele lugar? Tinha passado tanto tempo e tudo ficava na mesma. A mesma galera, as bebidas de sempre, a maconha, a farra, mas nada tão pesado e difícil. Havia um líder e não era ele. Ele era um pobre coit

A esquina iluminada

Fabrício desceu os vinte e cinco andares do prédio, tateando pela luz fraca do celular. Ainda bem que não tomara o elevador, pensara, ainda aturdido pela queda de luz. Dirigiu-se ao carro e em seguida afastou-se, passando pela portaria e cumprimentou com um meio sorriso os dois funcionários, que pareciam olhá-lo surpresos. Já chegando à rua, ouviu um “oh” festivo pelo retorno da iluminação. A noite se antecipava e ele continuava no bairro tão próximo ao de sua infância, olhando pelo retrovisor do carro, como se a qualquer momento um personagem desavisado voltasse para o cenário antigo. Coração atribulado. Desceu do veículo e caminhou rápido, atravessando ruas, dobrando esquinas, sentindo o frio produzido pelo sereno que molhava do paletó aos cabelos. Em seguida, deparou-se com um bar muito parecido com o de seu pai. O frontispício com aquelas ramadas sobre a porta de duas abas, expressando o tempo passado. Havia música ruidosa anunciada por um apresentador, espécie de show

Meu padrinho, o turfe e a laguna

Meu padrinho estava sempre disposto a levar-me ao hipódromo, a sua paixão. Eu, guri de 12 ou 13 anos, não me interessava muito pelo esporte, entretanto, aquele passeio de certo modo, representava uma liberdade de ação, da qual não tinha acesso à época, em virtude da severidade da disciplina paterna. Meus pais muito severos no encontro com os colegas ou na eventualidade de passeios com desconhecidos, não permitiam passeio sozinho pela cidade, principalmente em lugares diferentes dos que frequentava. A possibilidade de me relacionar com meninos desconhecidos, de jogar bola nos campinhos de várzea, de me embrenhar pelas dunas próximas à laguna, geralmente criavam muitos conflitos. Pois bem, meu padrinho significava essa liberdade, essa possibilidade de passear com ele, mas com o direito de fazer o que quisesse, ou seja, não participar das carreiras com as quais tanto se encantava. Eu aproveitava o momento para encontrar os amigos. Naquela tarde domingueira, fui como de hábito ao j

O VIGÉSIMO ANDAR

Às vezes, tenho a impressão de que as paredes do elevador se aproximam e me acolhem com delicada impaciência. Passam por meu corpo faminto e suado e me dizem coisas desconexas, que somente elas entendem. Seguro-as com força: as mãos espalmadas, o peito encostado em suas carnes metálicas. Sinto um leve arrepio. Não consigo afastar-me, como se estivesse irremediavelmente preso, quase fundido em suas fibras e entranhas. O elevador para no décimo andar. Um homem entra e finge não me ver. Ao mesmo tempo, as paredes se afastam, tal como eu, que me encosto no ângulo da esquerda. Ali, a minha visão é privilegiada. Olho em torno, retribuindo a distração. Ele abre uma maleta, retira um notebook e examina qualquer coisa, sem muita atenção. Observo-o firmar os olhos na direção da porta. Parece ansioso. Reparo que tem olhos claros e frios. Talvez seja um executivo, um professor de línguas, um advogado. Não é, porém, um cidadão de bem. Percebo a aflição que paira inquieta em