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Recuerdos

Deixara-o assim, esquecido, empoeirado. Pudera, nunca mais o tinha visto tão próximo. Não mais havia sentido o seu aroma, seu aspecto meio decadente, suas pequenas partículas se evaporando no ar, brilhando no rastro de luz da janela; a estrutura cada vez mais frágil, como se braços e pernas se desmembrassem aos poucos, perdendo a coesão. Transformava-se, é claro, como todos os seres, ao longo do tempo. Percebia suas fraquezas, seu cheiro de coisa passada, água estagnada. Entretanto, tinha comigo, que ele não perdera as propriedades completamente. Não era aquele deus cheio de conteúdo do passado, mas ainda revelava integridade, força e sabor. Restava o dna de sua natureza. Produzia uma ternura intrínseca que arrepia os cabelos, pousar-lhe a mão, acariciar seu corpo em frangalhos, lendo nele os traços oníricos de outrora. Agora, sem a vitalidade de sentimentos que no passado, divisava. Não, acariciá-lo agora era palmilhar com cuidado sua existência e ver através dela os ecos há ta

DIA DE LIMPEZA

Dei alguns passos pela calçada suja, enlameada pela enxurrada, sem imaginar que fugiria dali tão rapidamente. Modo de dizer, meus pés doíam e meus passos tinham a medida certa de fugir das poças. Sacos plásticos entulhavam-se nas bocas de lobo. Carros passavam próximos à calçada, aumentando ainda o caos que se alimentava de nós, mendigos, pedintes, marginais, prostitutas, acostumados a fazer da deformação geral, o nosso modo de vida. Mas chegar àquele ponto de ser chamuscado, quase queimado, quando uma mão sinistra com isqueiro se aproximou do banco em que estava e tacou fogo como pôde, foi o portal do inferno. A sorte foi a chuva. A sorte foi estar acordado. A sorte foi ter forças ainda para levantar, examinar a cara do bandido e esborrifar nele um cuspe que me vinha da alma. Ele fugiu, dando risada da minha cara. Eu fiquei, ali sentado, ali sozinho, ali maldizendo o que não tinha pra maldizer. O que não tinha que esperar. Quem sabe morrer ali, na rua, queimado, transformado e

A CASA OBLÍQUA - CAP. XXXIV

A SEGUIR O PENÚLTIMO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM: Clara estacionou o carro numa garagem coletiva e em seguida, tomou um taxi, afastando-se em direção ao centro da cidade. Usava a peruca loira e óculos escuros. Determinou-se certa sobriedade para demonstrar segurança, mas na verdade, estava ansiosa, quando entrou no banco. Comunicou ao atendente que necessitava utilizar o cofre, cuja chave carregava consigo. Este avisou a outro funcionário, que lhe pediu um documento de identidade. Clara entregou uma procuração assinada por Dona Luiza e o seu próprio documento. A cada silêncio do funcionário, ela ficava mais nervosa, inclusive porque era procurada pela polícia e seu documento poderia ter sido objeto de pesquisa, através da interações entre instituições bancárias, mas precisava arriscar. O rapaz afastou-se com a procuração e seu documento. Ela esperava, quieta. Observava o arbusto artificial num vaso enorme, sobre o piso. A sala ampla, vazia. Na parede, tijolos de vidr

ISSO NÃO DEU NA TV

No meio do quartinho, Nízia passava roupas numa mesa adaptada. O ferro quente tinia e o calor se propagava também no seu rosto, no colo suado, no qual punha a mão para assegurar-se de que estava viva. O coração batia forte e descompensado, mas que fazer? Não podia parar o trabalho. Dezenas de camisas do patrão, roupas dos filhos e da patroa, principalmente os vestidos de tecidos finos e leves, aos quais devia prestar muita atenção para não estragá-los. As mãos dificultavam o estender do tecido, trêmulas e quase incapazes de cumprir a tarefa. Será que seu corpo todo desandaria assim, de uma hora para outra, quando precisava tanto de sua energia. Sempre fora uma mulher forte. Era elogiada pela patroa, pelos poucos amigos, por alguns parentes. Embora solitária, soubera dar um rumo a sua vida. Pretendia estudar um pouco, pelo menos sair daquele b-a-b seboso que não levava a caminho nenhum. Queria ir mais longe, mas quanto mais pensava, menos tempo tinha. Era praticamente da fa

A CASA OBLÍQUA - CAP. XXXIII

Clara examinou os textos, se perguntando porque Dona Luisa nunca se referia ao filho. O que teria havido com a criança? Haveria alguma fato relatado naquelas páginas, que ela ocultou durante tantos anos? Lembrou a chave do cofre. Se ao menos pudesse ir até lá, descobrir o que realmente existe guardado com tanto critério. Entretanto, seria uma temeridade afastar-se do hotel. Precisava acalmar-se e encontrar uma saída. Deveria constituir um advogado para elaborar um hábeas corpus, que possibilitasse a sua liberdade. Por um momento, ela pensou em Nael. Ele estava numa situação mais difícil ainda. Estaria ele pensando nela, com o mesmo carinho que lhe dispensou quando esteve ao seu lado? Não queria voltar a iludir-se como acontecera com Bruno. Não era uma adolescente. Era uma mulher adulta, que sabia o que queria, os seus objetivos na vida. Mas agora, de uma hora para outra, se transformara noutra pessoa: uma mulher frágil, insegura, assustada e ao mesmo tempo, obstinada c

A ARMADILHA

Era magro, alto, estapafúrdio. Cabelos loiros, nariz adunco, olhar disperso. Vestia-se com primor. De nome Eugênio, julgava-se o espírito inspirador. Mais velho do que nós, esnobava qualquer gesto que imitasse seus artifícios. Esperto, namorador, conquistador das meninas do bairro. Nós, os da turma de baixo, não passávamos de crianças e devíamos como tal sermos tratados. Às vezes, aos sábados, em pé de conquista, passava como quem flutua, olhando ao longe, pesquisando os desafios e a melhor maneira de vencê-los. Era meu vizinho, mas somente se relacionava com os de sua idade. Nós, entre os 10 e 12 anos nos preocupávamos com o destino do Agente 86, das peripécias do Major Nelson da Jeannie, dos pequeninos de Terra dos Gigantes, das vilanias do Dr. Smith dos Perdidos no Espaço ou das brincadeiras de luta livre que faziam parte de nosso cotidiano. Eu sempre fui observador e no meio de toda a barafunda de aventuras, arriscava-me em analisar as atitudes dos que me cercavam: Seu Alencar da

A CASA OBLÍQUA - CAP. XXXII

NOSSO FOLHETIM ESTÁ CHEGANDO AO FINAL. FALTAM POUCOS CAPÍTULOS! Ao anoitecer, Clara já vestida com as roupas habituais saiu do quarto, esgueirando-se pelo corredor afora, tentando fugir do hospital. Sabia que se permanecesse ali, teria que constituir advogado para sair em liberdade. Faria isso, mas não agora, em que as coisas se encaminhavam. Devia ir ao banco que Dona Luisa tinha informado, abrir o cofre e descobrir o segredo que a aguardava. De gabardine, guarnecida até a cabeça, afastou-se rapidamente para a rua e chamou um táxi. Ao tomarem uma distância boa do hospital, ela pediu ao motorista que retornasse em direção ao centro. Bastava seguirem uma rótula que desembocaria numa avenida arborizada, na qual encontraria o que precisava. Ao parar o carro, desceu sem olhar para os lados, atravessando a calçada e entrando numa loja. Não demorou três minutos e voltava ao veículo com um pacote, que trazia junto à bolsa. No carro, olhava para fora, tristemente. Pensava e

Nunca ao entardecer

Nunca ao entardecer, pensava ela, estirando-se na grama do parque. Olhava para o céu, desconfiada de que choveria. Nuvens corriam, e a impressão é que se chocariam conforme o vento aumentasse. Mas ficava ali, quase adormecida, olhando para o céu. Se pudesse, ficaria até a noite. Mas não arriscaria a vida, num capricho desses. Por certo, seria melhor levantar-se, tirar as folhas das árvores que se grudavam no jeans, olhar para os lados, desapercebida, e seguir em frente. Talvez pegar o metrô, tirar da mochila aquele livro do Sartre e ficar folheando, fingindo que lê. Há tempos faz isso. Pensa que um dia acabará a leitura, mas não acaba nunca. Sartre pensa demais. Nada aproveitável, diria sua avó. O piercing recém colocado causava certa ardência no umbigo. Dava uma leve coceira, também. Nada que fosse levá-la ao desespero. Na verdade, se desesperava por poucas coisas. Ainda bem. Afinal a vida é uma eterna turbulência. Pra que ficar se angustiando. Ouviu o barulho do metrô na est

O painel do voo

Não sabia o que fazer. Lambuzava-se com a salada. Um olhar no celular, outro no painel do voo.   Não sabe por quanto tempo ficou ali, parado, meio perdido, preocupado em mudar a situação. Seu terno era surrado e as meias balançavam nos tornozelos. Andara muito.   A cidade plana e quente e seca. Brasília era assim. Incomodava. Incomodava a beleza e a feiura da imensidão.  Doía-lhe as costas. Esticou-se, pediu um café. Voltou a sentar-se no banco alto do bar.   Pessoas passavam com suas malas gigantescas. Tinha a impressão que levavam o mundo. Foi só uma impressão, pois seus pensamentos voltaram a voar para o problema. Olhou para o alto, esfregou os pulsos. Sentiu um leve calafrio, como um desandar da pressão, um mal-estar da comida, um temor de altura.   O café apareceu na mesa através de uma mão branca, um meio sorriso, um afastar-se rápido na direção oposta. Quis dizer qualquer coisa: um obrigado, talvez. Não pode. A moça sumiu como desapareceu de sua imagem o que re