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O DOCE BORDADO AZUL - 5º CAPÍTULO

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir o 5º capítulo O chá Voltar para casa sozinha, após ter comparecido ao enterro de Irmã Dolores, foi muito doloroso para Lúcia, não por ter se sensibilizado com a morte da freira, mas pelo fato de a mãe permanecer no hospital, com traumatismo craniano, após a sua atitude imprevista. Estava frustrada ainda pelos projetos não realizados, tais como a mortalha que sonhara, no bordado magistral, engendrado pelas mãos hábeis da mãe. A tarde era longa e desagradável. Não voltaria ao hospital. Laura estava bem, se restabelecendo, afinal o golpe não fora tão forte assim. Sentia pena da mãe, longe da pasmaceira da poltrona em frente à janela, sem poder mexer nos seus bordados, sem espiar a vizinhança, sem espicaçar nenhum vizinho desagradável. Não poderia fazer nada, a não ser esperar pacientemente para que as coisas se ajustassem aos poucos, principalmente na expectativa da

A PALESTRA

Entrei inopinadamente na sala, pernas bambas, suor na testa, nas mãos, lábios trêmulos, vexado. Elaborei desculpas. Desviei das centenas de olhares que investigavam curiosos. Fazia calor e eu vestido da cabeça aos pés com agasalhos pesados, maleta na mão, celular no bolso, relógio descolando da pulseira. Investi até uma cadeira, abri a pasta, espalhei papéis, fiz barulhos estrondosos no silêncio absoluto. O palestrante pigarreou, deu alguns passos, me olhou de soslaio, retomou o tema, irritado. Juntei o que pude, caído ao chão, esparsos documentos, entre fotografias, pregos, alfinetes, alicate de unhas, chaveiros. A cadeira rangeu, eu me abaixei devagarinho, mas empurrei os pés de metal, riscando o piso. Foi o suficiente para cessar a palestra. Ele me olhou novamente, e quase em súplica, exigiu silêncio, apenas com os olhos. Todos os demais viraram os pescoços, narizes, ventas e resmungos em minha direção. Retorci-me levantando a pilha de objetos do chão, fazendo movimentos de mal

MINHA APREENSÃO DA VIDA E A DOS OUTROS

Custou-me entender como se processam os pocionamentos e suas repercussões na mente das pessoas. Como enfim, acontece ou não o entendimento das discussões que colocamos em pauta, seja nas redes sociais, no grupos em que interagimos, nos encontros com amigos, etc. Custou-me perceber que as coisas não fluem com a delicadeza das flores da primavera, pelo menos, aquela de nossos sonhos. As coisas seguem o seu caminho muitas vezes tortuoso e árduo, de acordo com a experiência, conhecimento, tradição, cultura e apreensão da realidade de cada um. Então, entendi que cada pessoa reage de acordo com a sua realidade interior, apreendida, assimilada e traduzida segundo os seus princípios e maneiras de pensar. Há muitas formas de expressar o que sentimos ou pensamos, mas para que haja a comunicação na íntegra, é preciso que os canais não sejam obstruídos por quaisquer ruídos. É preciso que o que pensamos ou sentimos não se manifeste apenas como um simples palpite ou uma opinião sem fundamento hi

A MENSAGEM

Camilo tinha esta desagradável mania de não gostar do que tinha ou do que havia para fazer. Se levava merenda de casa, para a escola, preferia a comprada, de preferência a dos amigos. Se havia futebol, preferia jogar dama, num canto do pátio e para isso, incitava um de nós a ficar com ele, possessivo que era, fingindo sempre precisar de um amigo. Caso tivéssemos educação física, a malfadada ginástica, dava um jeito de investirmos num futebol de salão, convencendo o professor, seja em que pé estivessem os seus humores. Mas ele era assim, alegre, persuasivo, companheiro. Gostávamos de andar juntos, dar boas risadas de tudo e de todos, imaginar a professora assustada, puxando a saia godê, ao passar na esquina, fugindo do vento insolente que insistia em desafiar a sua paciência. E agradar nossa fantasia. Tínhamos prazer em assistir o filme que a escola proporcionava nos finais de semana, especialmente, nos domingos, como continuidade da educação religiosa, obrigando-nos desta forma a

O DOCE BORDADO AZUL - 4º CAPÍTULO

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir o 4º capítulo Capítulo IV Adágio Naquele momento, nem o escasso sol em Minsk, produzia algum indício de esperança para Bárbara. Tão inóspita quanto o clima era a sua alma perturbada e triste. Voltar para casa sozinha, sem o aconchego do parceiro, trazia-lhe à alma um vazio urgente, que seus olhos revelavam, assim perdidos na vidraça do táxi. Registrada na retina, ainda alguns poucos amigos se despedindo, falando entre si a tragédia inesperada, um zum-zum dos alunos que se espalhava, vozes abafadas comentando num linguajar alterado e despretensioso, como se ela não pudesse decifrar. O pouco que conhecia da língua russa, permitia-lhe entender o que comentavam. Observou que o taxista falava sobre a proximidade do verão, mas não comentou nada. Deixou-se ficar quieta, quase imóvel. O homem a fitou pelo retrovisor e calou-se, também pensativo. Quando chegou no quar

O DOCE BORDADO AZUL - 3º CAPÍTULO

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir o 3º capítulo A vara verde Quando a mãe chegou já passavam das quatro horas. Lúcia havia desistido de procurá-la, de telefonar aos conhecidos, procurar nas farmácias próximas, arriscar-se fisicamente. Afinal, uma mulher sozinha, como ela, andando pelas ruas, altas horas da noite, poderia sofrer um assalto, tomar parte numa batida policial, exigirem seus documentos, desconfiarem de suas atitudes. Sua mãe não deveria sair sem avisar-lhe. Foi um despropósito, uma desconsideração. Agora estava estirada na cama, resguardada pelos anjos, sonhando sabe lá Deus com quê, e ela, Lúcia, acordada, incapacitada de dormir, tão agitada se encontra. Tinha vontade de acordá-la, impedir-lhe o sono tranquilo intercalado de roncos assustadores, interceptar-lhe a paz. Mas nada resolveria, a não ser prolongar o seu sofrimento, a sua raiva. Além disso, viera com a desculpa infantil que

REFUGIADOS EM SEUS SONHOS

Nem que se diga, que lhes faltou o peito, nem que a fome durou; nem que se saiba que a vida é árdua e a escola seja talvez o único acesso à dignidade. Nem que os pais não lhes provejam o amor ou que o abandono se torne perene. As crianças deveriam sempre vencer as dificuldades, sobreviver e se tornarem homens e mulheres mais fortes e guerreiros. No entanto, às vezes, o homem no seu poder canhestro e torpe, investe na vida dos povos, interferindo em sua trajetória. E o poder se revela na intolerância religiosa, na ganância dos modelos econômicos, no imperialismo dos governos. Gostaria de falar de nossas crianças em seu dia, de seus sorrisos, suas procuras pelo abraço e carinho, seus encontros e descobertas. Mas como esquecer as que aparecem em nossos monitores diariamente, pedindo socorro ou registrando a sua falência. Como esquecer entre tantas, a menina praticante de Candomblé que foi agredida na escola, vítima de preconceito religioso, por outras de sua idade, que

O DOCE BORDADO AZUL - 2º CAPÍTULO

Todas as terças-feiras e quinta-feiras publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir o segundo capítulo.(quinta-feira 01/10/2015) Capítulo II O estorvo Lúcia estirou-se na cama desfeita, talvez pensando em dormir e esquecer tudo que havia acontecido: a morte de Irmã Dolores, a visita de Irmã Carlota, o comunicado, a carta. Não queria saber nada daquilo, por enquanto. Mas os pensamentos a induziam ao problema, por mais que quisesse dispersá-los, estavam em sua mente, alertas, viçosos, firmes, à espera de uma solução. Pensou no bordado primaveril da mãe. Percebia nele, os caminhos suaves, bem demarcados, conduzindo a um mundo ensolarado, de paz e alegria. Gostava dos bordados. Tinha carinho por eles. Conhecia-os desde que se tomara por gente. A mãe bordando, sentada na poltrona, encostada na janela, olhando de vez em quando para a rua, para a vida. Raramente a via sair, e quando o fazia, parece que escolhia o momento em que ela não se encon

Que venhas logo

"Elaborei este poema antes que ela viesse. Agora já está por aí, meio parecendo outra." Quero esta mulher perto de mim, ouriçando meus cabelos Sentindo seu bafejo próximo, tão próximo que o aroma arrepia-me os pelos Quero-a mais próxima, levando tudo por diante Não a quero calma, pacata, silenciosa Quero-a guerreira, firme e enérgica Quero que espalhe a luz, que empurre as folhas, que vergue os troncos Quero-a resistente, alvissareira e alegre. Quero-a, sobretudo num clima ameno, que antecipe o verão. Quero que passe o inverno e que chegues rápido, primavera!

OS DEZ TEXTOS MAIS LIDOS NO MÊS DE SETEMBRO DE 2015

Agradeço aos amigos do blog pelo sucesso dos textos. Muito obrigado. 1º lugar : Vida de gado 2º lugar: As rádios locais e as tvs regionais : os sonhos e as mudanças culturais 3º lugar : A lua, a Apollo 11 e minha avó 4º lugar: Para quem "a paz de Cristo”, não passa de um cumprimento social 5º lugar: Como se desenvolve a criação 6º lugar: Desenhos, história e castigo 7º lugar : Um natal distante 8º lugar: Metáforas cruéis : desqualificação das mulheres e negros 9º lugar: A fuga de meu cão 10º lugar: Noite eterna

O DOCE BORDADO AZUL 1º CAPÍTULO

Todas as terças-feiras e quinta-feiras publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul ". A seguir o primeiro capítulo . O DOCE BORDADO AZUL Capítulo I A mortalha Chegava em casa, ofegante. Os cabelos em desalinho, a pele esbranquiçada, brilhante pela luz artificial do hall. Abriu a porta devagar, com os dedos trêmulos, as pernas ainda doíam pelo excesso de subir a ladeira, o salto do sapato titubeava no portal de pedra. A mãe lá dentro, absorta no bordado. Sentada na poltrona, perto da janela, mãos delicadas deslizando rápidas a linha branca, misturando-a com violeta, azul, amarela. Tudo ficou turvo nos olhos de Lúcia. Nem viu o bordado. Nem o deslizar suave da agulha, nem a voz enfadonha da mãe, perguntando se tinha chegado. Correu em direção ao quarto. Lavou várias vezes o rosto, ajeitou os cabelos, tentando se recompor. Respirou fundo e ficou observando o espelho embaçado por alguns minutos. Uma dor lancinante nas costas a fez gemer. Tentou dobrar