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Postagens

Tio Pedro e a Mangacha

Chamava-se Pedro. Tinha por hábito visitar-nos, mesmo que meus pais não estivessem em casa. Eu, embora adolescente, costumava prestar atenção as suas conversas. Por mais rebeldia que tivesse, não hostilizava as normas da família. Entretanto, intimamente, me incomodava a sua presença. Quando se aproximava e ao vê-lo, disfarçava o desconforto. Nunca era a visita esperada. Entretanto, me esforçava para recebê-lo e agir de forma semelhante a meu pai ou minha mãe. Ou ambos. Servir um café, um chimarrão, jogar conversa fora. O pior de tudo é que via de regra, suas conversas eram recheadas de lamúrias. Ou a vida estava cara demais, pela hora da morte, como dizia, ou os médicos sempre receitavam medicamentos desnecessários, bastava um melhoral para passar a febre, o refriado, a dor de ouvido e eles empurravam-lhe uma série de injeções com cálcio e vitamina c. Também se queixava do fígado. Se lhe doía a cabeça, o culpado era o fígado, se coçava a planta dos pés, o culpado era o fígado e se

Divagações de um futuro prefeito

Pescava às margens da lagoa, entre pequenas regiões escarpadas, formando uma enseada de rara beleza. Talvez pelo brilho do sol que se confundia pela luminosidade fraca, mas insistente da noite, ou pelo seu jeito de ver as coisas, especialmente naquele dia. Tinha consigo que as coisas mudariam e para melhor. Conversava com os peixes, em silêncio. Sabia que o escutavam. Encostou um pouco mais na ribanceira, soltou a barriga branca e empinada sobre o calção velho e deixou-se ficar assim, pensativo, malandreando no dia que findava. Passou a mão pelos cabelos grisalhos, enfiando os dedos desajeitados, puxando-os para trás. Este era o seu último dia sem a preocupação dos grandes gestos, das atitudes severas, dos compromissos inadiáveis. Deu vontade de dormir ali mesmo, deixar a mulher esticada na rede, como de hábito até que a aragem noturna a empurrasse para o interior da casa. Ficou ali, desistindo da pesca, desistindo de conversar com os peixes, pensando apenas no seu futuro. Um futuro

A dor

Tenho medo da dor. Da dor incólume dos que procuram o prazer. Da dor doída dos que abandonam. Da dor dos indefesos. Da dor estúpida dos perdidos e humilhados. Tenho medo sim, da dor. Não da dor física, somente, mas da dor da alma, esta que dilacera e corrói o espírito, que diminui o homem e institui o animal. Um animal que pode ser frágil, manso, passivo ou violento, inóspito, hostil. Um animal que luta, que esbraveja, que se vinga. Ou um animal que acolhe sem súplica o que a vida lhe dá, resgatando apenas o sentido da falta de sentido. O viver da não vida o quase zumbi do ser. Pudera quem sabe fugir da dor e assim, covardemente anunciar ao mundo uma vitória inglória de quem não vence mas finge. Uma vitória insossa de quem permanece vivo, mas não vive. Quem sabe pudera enfrentar a dor e abrir as entranhas, e mesmo morrendo deixar entrar a luz da esperança. Uma esperança acolhida e amada, mergulhada no insofismável perecer. Se perecer é dor, melhor escolher outra saída. Quem sabe en

A vida, de volta, por favor

Conto utilizando a personagem da ama de Julieta da peça de Shakespeare como protagonista nos dias atuais.Trata-se de um desafio literário. Encontrei-a dobrada em dois, na mesa, braços cruzados, nariz enfiado no livro. Quando levantou a cabeça, pude ver-lhe os olhos e nem percebi que havia uma gota de desilusão pelo que tinha lido. Nem uma lágrima mais pousaria tão rápido no papel, quanto aquela sentida, que nem parecia humana. Aproximei-me e sentei ao seu lado. Não compreendia o peso do infortúnio que parecia suportar aquela mulher, já ida nos anos. Girei o salto do sapato no ladrilho irregular e falei desprevenido. _Não pensei que este livro traria tantas recordações, e que tristes, me parecem. Levantou a cabeça sem jeito, mas examinou no olhar todas as intenções que tentava ocultar. A voz era sonora e forte. Os modos de quem viu neste mundo, o que não encontrava no outro. _Pois não, meu senhor, é que tenho que ficar assim, depois de quatro séculos. Se me pedissem para am

MEU CARRASCO INTERIOR

Este texto foi produzido para um desafio de uma oficina literária. A ideia era descrever conflitos similares aos do romance "O ateneu" de Raul Pompeia, ao conto, nos dias de hoje. Estava ofegante. Pudera, estava atrasado.Tentei passar pela hall sem ser notado, afinal, àquela hora, o Seu Miguel já teria abandonado o posto, para desfrutar do cigarro à porta do bar e jogar conversa fora com as atendentes. Empurrei com o tênis sujo a portinhola, atravessando a portaria em direção às salas de aula e meu coração se colocou em posição de defesa. Seu Miguel estava ali, patético, me observando dos pés a cabeça. Ao contrário do que imaginava, estava no seu devido lugar, às 8:30h cumprindo o seu dever de impedir a entrada dos retardatários. — O pirralho tá querendo me enganar, é? – e disparou um palavreado padrão que dispensava desculpa. Exigiu que eu sentasse na poltrona ao lado do balcão. Deu uma olhada na tela do monitor que registrava os corredores e salas de aula e infor

Crônica sobre o filme Mon Oncle

Esticando um olhar mais aprofundado sobre os hilários e às vezes, patéticos personagens de Meu tio, “Mon Oncle”, com a direção de Jacques Tati (1958), observa-se, numa análise, ainda que de forma despretensiosa, características marcantes de personagens que talvez servissem apenas de contraponto para o desenrolar da trama. Na verdade, todo o conteúdo e análise dos diferentes tipos que tecem a urdidura da história já foram exaustivamente explanados em muitos artigos espalhados na rede ou mesmo publicados em periódicos especializados. Fica-nos, portanto uma pequena abertura, um buraco na fechadura, que em algumas vezes passa desapercebido, mas que ao conduzirmos a linha do olhar até o horizonte, acompanha-se, por certo, a trajetória do fio que enverga e sustenta a pandorga no ar. Falo de Gérard, o filho do casal, que ao lado do tio considerado subversivo aos conceitos da sociedade burguesa, e alienado da comunidade familiar, descobre novos horizontes em sua vida rasteira. Ao reunir-se aos

OS TEXTOS MAIS LIDOS ENTRE 28/06/2015 a 05/07/2015

A seguir os textos mais lidos no período de Em algumas postagens durante o mês, disponibilizarei aqui a relação dos textos mais lidos no período de uma semana ou mesmo no de um mês. Agradeço aos internautas o grande número de acessos que a cada dia aumenta mais a estatística. Fico feliz em saber reconhecido o meu trabalho e deixo aqui o convite para que comentem, na medida do possível, o texto que leram. Aceitarei com carinho as suas críticas. 1º lugar: Metáforas cruéis : desqualificação das mulheres e negros 2º lugar: Não estava lá 3º lugar: O professor e o golpe 4º lugar: Eu e os carros antigos 5º lugar: Desafio : salve as florestas 6º lugar: Então, me explica 7º lugar: Vida empalhada 8º lugar: Saco de plumas 9º lugar: Sorri 10º lugar: A rebeldia dos guris e gurias da LES

Não estava lá

Como não sai de casa, não tive dificuldade em abrir a garagem e me deparar com dezenas de carros impedindo minha saída. Nem chegar ao centro e nas cercanias do porto velho, tentar estacionar exaustivamente e acabar desistindo e ficando tão longe, que o melhor seria ficar em casa. Mas como não sai de casa, não tive a urgência em entrar em filas, pagar contas e ajustar os saldos para desembolsar quantias que talvez precisasse transferir a credores ou a contas de empresas que vendem produtos online. Nem deveria importar-me com as voltas que daria para chegar à padaria ou correr ao supermercado para fazer as últimas compras do dia. Ou quem sabe, me aborreceria alarmado com os preços, acostumado que estava a sorrir com a baixa inflação. Mas como não sai de casa, evitei tudo isso e talvez evitasse olhar para trás e sorrir para um amigo na fila ou mesmo acenar para um colega que me aparecesse na calçada, enquanto esperava o cruzamento das vias proibidas. Ou talvez fosse ao shopping e tomass

Vida empalhada

Não sei se era noite de lua ou escuridão total, nem se as luzes artificiais da rua iluminavam as frestas das persianas. Sabia, no entanto, que suava frio e ouvia os escarros da velha, no quarto contíguo. Puxava um cigarro, certamente, ouvindo vozes, como de hábito. Doía-me sua solidão, suas horas contadas sem futuro. Mesmo que ouvisse suas histórias na infância, não me furtava em ouvi-la ainda hoje, embora desandasse em enfadonha canseira. Não tinha o que fazer com ela, a não ser esperar que se escoassem os dias, as noites, o tempo que lhe restava. Levantei-me devagar e espiei pela porta entreaberta. Estava como eu pensava, mascando aquele cigarro velho, babado, queimando os dedos, do que restava de chama. Aproximei-me, cauteloso, entre as aves empalhadas que simbolizavam a sua mais torpe herança. Avisto-a com pesar. Me parece aflita. Olhou-me por baixo dos olhos quase ocultos nas bolsas enegrecidas. Desviou-os rápido, como se quisesse esquecer de vez, a minha figura. Perguntei por q

Skinheads

Infelizmente, falar-se de skinheads no mundo atual, inclusive no Brasil, é deparar-se com uma maneira de pensar, que está cada dia mais presente nas nossas escolas, no bairro em que moramos, nas festas que comparecemos, até mesmo na própria família. Há endeusamento geral na internet, inclusive homenagens aos integralistas do passado. Os adeptos à ideologia neonazista se proliferam, sem que percebamos a sua presença. Mas basta que fiquemos atentos às investidas nos debates de alguns grupos, ou de pessoas que jamais imaginaríamos ter tais pensamentos reacionários e as surpresas se sucedem. O mundo parece que involuiu, os jovens em vez de avançarem, estão regredindo nos seus conceitos, com idéias cada vez mais retrógradas e conservadoras. Se não, lembremos do caso Geise, a moça de vestido curto que foi ameaçada na Universidade. Não nos cabe aqui julgar se ela queria mesmo ser assediada, se queria aparecer na mídia, se pretendia posar nua e tornar-se mais uma "celebridade" vazia

Desafio : Salve as florestas

O PROFESSOR E O GOLPE

O professor de filosofia observava a pequena multidão que se aglomerava em frente à prefeitura, naquele 31 de março de 64. Percebeu que na sacada, reuniam-se muitos representantes do partido trabalhista. Caixas de som ligadas, microfone instalado e discursos inflamados se seguiam. Havia um burburinho grande e vários carros estacionados próximos à praça. Um dos motoristas ouvia atento, a rádio nacional. As ondas curtas vinham e iam, produzindo ruídos na compreensão das notícias. O professor afastou-se de um grupo mais animado e aproximou-se do motorista que ouvia rádio, percebendo a dificuldade com que tentava assimilar o que ouvia. Mesmo assim, tentou saber se o que tinha apreendido das conversas itinerantes tinham algum fundamento. Conversaram alguns minutos. O assunto não podia ser outro. Brasília estava em pé de guerra e as notícias assinalavam que João Goulart seria deposto. Um dos políticos falava no microfone a altos brados. Parecia antecipar-se aos acontecimentos. O p

Eu e os carros antigos

Tenho esta mania de fotografar carros antigos. Nem é interesse por determinados modelos ou por conhecimento de motores ou marcas importantes. Nem tenho qualquer coleção, mesmo porque é preciso demandar um bom dinheiro para este tipo de hobby. Entretanto, sempre que vou a Montevidéu e noutras cidades do interior do Uruguai, tento fotografar aqueles automóveis datados de épocas tão antigas e que parecem contar muito de seu passado. Fico talvez, na minha posição de escritor, inventando histórias. Mas histórias plausíveis, que talvez fossem tão verdadeiras como se as vivêssemos. Uma lembrança que me vem em momentos, como num déjà vu de algo que nao vivi. Há os que falam em universo paralelo para este tipo de evento, mas evitarei este tema, até por não ter certezas absolutas. Deixo para os pesquisadores e os escritores de ficção científica. Penso, porém naquele carro verde e pequeno da década de 50, que deve ter servido por muitos anos a uma família de imigrantes italianos, que veio se i

METÁFORAS CRUÉIS : desqualificação das mulheres e negros

Certa vez, em uma disciplina de um curso de pós-graduação em linguística, avaliamos uma série de adjetivos ou substantivos adjetivados que soam lisonjeiros para os homens e ao contrário, para as mulheres produziam conotação pejorativa, pois a própria palavra utilizada possui juízo de valor, tanto para um lado quanto para o outro. Estas distorções linguísticas são foco de vários estudos de cursos de pós-graduação e muito bem explanadas em vários artigos. Sabe-se entretanto, que a língua é apenas um instrumento que é fruto da cultura dos cidadãos de um país. Estes adjetivos constituem metáforas que desquafilicam o sujeito feminino e qualificam o masculino. Se não, vejamos alguns exemplos, que foram exaustivamente avaliados em vários trabalhos, mas que cabe aqui, identificá-lo en passant. O adjetivo vadia, para a mulher tem a ver com promiscuidade, assim como vagabunda. No caso do homem, o termo vagabundo ou vadio, tem a abordagem do trabalho, mas pode incluir também um significado p

Registros

Não sou de guardar muitas coisas. Um texto aqui, um chaveiro ali, uma fotografia lá. Há coisas que não se guarda, na verdade, se resguarda do extravio. Há outras que nos parecem uma espécie de registro, uma lembrança de um acontecimento importante em nossas vidas, uma informação do passado, uma memória. Guardo alguns recortes que nunca leio. Fotografias que dificilmente olho. Guardo textos antigos que jamais analiso. Um coisa, tenho certeza, guardo sim e com prazer: cartões do dia dos pais e outros homenageando a minha profissão dados por minha filha, afilhados e sobrinhos. Estes, de vez enquanto, espio agradecido. Observo as letrinhas desenhadas, o jeito despojado de oferecer carinho e mais do que tudo, a espontaneidade do momento. É muito bom. Outras lembranças burocráticas, nem tanto. Em todo caso, há que se guardar. Guardar é esperar que algum dia, se utilize dessas pequenas relíquias para compor uma memória organizada, quem sabe? Uma coisa, tenho certeza, as lembranças de encon

A política e os palpites

Às vezes, me pergunto o que dizer em relação aos inúmeros posts que vejo nas redes sociais, especialmente no facebook. Na verdade, não há muito o que dizer: há a verdade de uns e a verdade de outros. Principalmente, no que se refere à política, as pessoas escolhem seus artigos ou piadas, ou mensagens, de acordo com a sua ideologia política ou mesmo a falta dela. Infelizmente, não há um consenso na maneira de exporem os fatos. Claro que nao vá se esperar que se pense de forma padronizada, mas que se pense observando os dois lados, examinando os vários â ngulos e as diversas hipóteses para os dados. E por fim, deve-se contextualizar o que se afirma. De todo modo, há divergências em todas as discussões, o que é sadio e natural. Entretanto, não se deveria apenas publicar temas que foram interpretados por outrem, manipulados de acordo com a ingerência do interesse pessoal ou institucional. Dever-se-ia pensar no bem comum, na realidade que abarcasse todos os pontos de vista ou pelo menos que

PAREDES APARENTES

Morena, ainda percorro em infinitos passos, cada taco do corredor. Sei que imaginas, mas não sentes o que sinto, nem percebes a aflição. Toco nas paredes, como se me ouvissem, e às vezes, tenho a impressão de que não estão aqui, de verdade. Paredes aparentes que me oprimem, me sufocam como mãos que se torcem e me agarram a garganta. Morena, falta-me o ar. Queria ver-te, bem perto, nem que para apenas receber o beijo frio, molhar minha boca no teu veneno e corromper minhas vísceras. Quisera vender a mobília, cerrar as janelas, impedir o vento que rola as folhas em rodamoinhos de nossa paisagem. Quisera não sentir o bafejo na vidraça, molhando os olhos, nariz e boca no frio do vidro. Preferia fugir e pisar nos insetos que infestam nossas soleiras. Ouço tua voz, teu cheiro, tua presença. Ecoam tuas palavras, às vezes doces, outras, duras, frias, cruéis. Moreno, arrisquei atravessar a lagoa, dei braçadas para vencer as marolas e não alcancei teu amor. Hoje, pra ti não sou nada, carta do