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O VIGÉSIMO ANDAR

Às vezes, tenho a impressão de que as paredes do elevador se aproximam e me acolhem com delicada impaciência. Passam por meu corpo faminto e suado e me dizem coisas desconexas, que somente elas entendem. Seguro-as com força: as mãos espalmadas, o peito encostado em suas carnes metálicas. Sinto um leve arrepio. Não consigo afastar-me, como se estivesse irremediavelmente preso, quase fundido em suas fibras e entranhas. O elevador para no décimo andar. Um homem entra e finge não me ver. Ao mesmo tempo, as paredes se afastam, tal como eu, que me encosto no ângulo da esquerda. Ali, a minha visão é privilegiada. Olho em torno, retribuindo a distração. Ele abre uma maleta, retira um notebook e examina qualquer coisa, sem muita atenção. Observo-o firmar os olhos na direção da porta. Parece ansioso. Reparo que tem olhos claros e frios. Talvez seja um executivo, um professor de línguas, um advogado. Não é, porém, um cidadão de bem. Percebo a aflição que paira inquieta em

Isto é Natal

Hoje, acordei, nem sei porquê, tendo como imagem a presença de um buraco ou talvez, a ausência da areia, que ao ser retirada, para constituir a cavidade, aumente cada vez mais a lacuna. E me veio à mente, o que é natural, que cada vez que se retira a areia, ou a terra, ou a lama, ou o entulho, o buraco fica maior, vira cratera e parece invencível, com sua boca enorme, pedindo mais. Na verdade, quanto mais se tira, mais se precisa e nos parece que a cavidade que estamos produzindo, nunca chega ao seu termo. Então, relacionei a areia retirada com os prazeres, que ao serem desfrutados, cada vez mais se precisa de outros maiores, mais intensos e complexos para satisfazer o vazio que se forma. Os prazeres precisam alimentar a fome que se tem da vida, esse enorme buraco que se forma, pedindo mais, tornando-se o vácuo maior, como uma grande boca sedenta ou faminta. É o que frequentemente se faz no Natal, queremos tapar esta boca imensa, essa cratera que temos através de presentes,

A avalanche de sons

Hugo acordou com um certo zunido nos ouvidos. Na verdade, nem sabia se o ruído vinha de fora ou era um som interno, que não conseguia identificar. Aos poucos, diferentes sons eram ouvidos e tinha a impressão que várias pessoas falavam ao mesmo tempo, bem perto de si, além de outros barulhos. As paredes estalavam, os cabos de luz produziam pequenas alternâncias de ruídos, como movendo-se levemente e até mesmo os plugues das tomadas emitiam sonoridades estranhas. Parece até que borboletas batiam asas próximas ao seu rosto e um cri-cri de grilos se alternava com zumbidos de mosquitos. Estaria sonhando, pensou. Levantou-se rápido e foi até a janela. Viu pequenos agrupamentos de pessoas na calçada e um burburinho intenso, como se estivessem à espera de algum acontecimento grandioso. Puxou os óculos da ponta do nariz e tentou enxergar no outro lado da rua. As sacadas do prédio da frente estavam repletas de homens, mulheres e crianças, todos envolvidos numa balbúrdia animada. At

Meu avô : existir é compartilhar

Alimentava-se de nossas pequenas arruaças, brincadeiras inusitadas para quem passara a infância na labuta. Tinha no olhar uma pureza quase infantil, mas cheio de perspicácia, sagacidade e curiosidade por nossas vidas. Corríamos pelas vielas empoeiradas, empurrando aros de bicicleta, equilibrando-os com uma pequena haste de ferro ou arame dobrado, fazendo voltas, escolhendo caminhos próximos aos seus pés, desviando, riscando o solo arenoso. Ou jogávamos bolinhas de gude, desenhando arcos no chão, ou cavando o imba. Noutras vezes, corríamos organizando gangues, constituindo quadros de polícia e ladrão, onde o ladrão, na maioria das vezes era pego e massacrado com centenas de sopapos na cabeça, quase uma instituição, um dogma. Quando havia meninas, uma ou duas, seguíamos o recatado amarelinha, que chamávamos de pula-boneco, sempre vigiado pelo olhar complacente e generoso de sua presença. Em outros momentos, não perdíamos as chance de imitar os reis do ringue, artistas de luta-l