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Trajetórias

Para ir à escola, eu devia pegar três ruas, a Av. Pelotas, a João Manoel e seu seguimento, a Dr. Nascimento. No meio de tudo isso, ficava a Praça Saraiva, que era parte de minha rotina, a qual fazia questão de atravessar. Nela, os sentimentos sempre despertavam de algum modo, geralmente sensações conhecidas das manhãs outonais ou das longas tardes de inverno. Na verdade, gostava daquela sensação de frescor, mesmo em manhãs frias, dos assobios incessantes dos bem-te-vis, que se misturavam nas folhas dos imensos eucaliptos e de outros pássaros, dos quais desconhecia o nome, do sereno que ainda restava na grama, até às 7 e meia, mais ou menos, os caminhos de areia e saibro vermelho. Era um mundo especial, o meu mundo matutino na ida à escola. O São Francisco ficava logo ali, indo pela Nascimento, mas me parecia tão longe! Antes, devia ir pela João Manoel até o canalete. Lembro das calçadas irregulares, do silêncio da rua que parecia não morar ninguém, do sol que despontava meio longe

O Natal de Michael José

Michael José surgia na rua morna naquela tarde de dezembro. Nem uma lufada de ar, nem uma brisa desavisada para uma véspera de Natal. Era de um ar apertado, quase desconforto. Digo que ele surgia, porque pessoas como ele não transitam pelas ruas, não passeiam, não caminham por um objetivo específico. Michael José surgia do nada, porque para nada ele era designado. Na verdade, achava-se um ninguém, no meio daquela apatia e desapego. Nada o acolhia, nada o libertava de si mesmo, nada mexia com o seu interesse. Era um desamparo que o consumia desde muito cedo, provavelmente desde a infância, se é que a tivera. Também não havia ninguém nas ruas do centro. A cidade estava morta, esperando as celebrações da noite. Ele também estava morto, há muito tempo. Talvez para ele, a data estivesse errada e em vez de Natal, fosse sexta-feira santa, sem ressureição. A vida, para ele, não passava de um eterno domingo de ramos, no qual festejavam o Mestre, para o apedrejarem depois. Ele, ao contrári

O VIGÉSIMO ANDAR

Às vezes, tenho a impressão de que as paredes do elevador se aproximam e me acolhem com delicada impaciência. Passam por meu corpo faminto e suado e me dizem coisas desconexas, que somente elas entendem. Seguro-as com força: as mãos espalmadas, o peito encostado em suas carnes metálicas. Sinto um leve arrepio. Não consigo afastar-me, como se estivesse irremediavelmente preso, quase fundido em suas fibras e entranhas. O elevador para no décimo andar. Um homem entra e finge não me ver. Ao mesmo tempo, as paredes se afastam, tal como eu, que me encosto no ângulo da esquerda. Ali, a minha visão é privilegiada. Olho em torno, retribuindo a distração. Ele abre uma maleta, retira um notebook e examina qualquer coisa, sem muita atenção. Observo-o firmar os olhos na direção da porta. Parece ansioso. Reparo que tem olhos claros e frios. Talvez seja um executivo, um professor de línguas, um advogado. Não é, porém, um cidadão de bem. Percebo a aflição que paira inquieta em

IOLANDA

Fonte da ilustração: Aravind kumar, do site https://pixabay.com Iolanda desceu as escadas lentamente. Na rua, um silêncio absurdo parecia isolar a praça do resto do mundo. Espiou pela porta do prédio e viu o ambiente amplo, completamente vazio. Sombras de árvores deitavam em bancos de pedra. Alguns caminhos irregulares. Afastou a porta devagar, deslocando-se em ritmo lento pela calçada. Estava sôfrega. Um cansaço parecia acumular-se nos ombros. Aflita dirigiu-se à praça, atravessando a avenida deserta. Que horas seriam? Mais de 3 horas num numa madrugada qualquer da semana, sem qualquer possibilidade de movimento. Um cão ladrava ao longe e uma pequena brisa começava a sacudir as folhas das árvores. Olhou para o alto. A lua desaparecia lenta, por entre nuvens e o céu tomava um negrume extraordinário. Se não fossem as luzes da cidade, tudo estaria numa escuridão total. Decidiu sentar-se e a madeira do banco martirizava a sua coluna. Mexia o corpo para frente, de vez enquanto par

SEDUÇÃO

Saiu à noite, pelas vielas escuras. Um impulso indefinido. Talvez sentir-se vivo. Impulso, pulsão, compulsivo. Tudo que milhares de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, até autores de autoajuda já tinham informado. Sabia, entretanto que precisava seguir o ritual. Um sentimento de busca, uma verdade inconteste que latejava no peito e respondia no sexo, o degrau inferior que percorria pensamentos, mas que o impelia a sentir-se alguém. Talvez fosse um louco, destes que andam às escuras, escondidos nas brumas das árvores dos parques, prontos a atacar ou serem atacados. A praça o seduzia; uma atração tão forte, que não ousava fugir. Lembrava-lhe brinquedos, dias ensolarados, o avô ao seu lado, o carinho seguro, o passo certo e a certeza de que a vida se resumia na firmeza da mão. Nada os separaria, estariam sempre juntos, ele, ouvindo suas histórias enfadonhas, que o transportavam a sua vida rural: um modelo tão estranho e diferente do seu. Aos dez anos, tinha poucos amigos. O

A primavera e a Academia Rio-grandina de Letras

Antes de iniciar a primavera, apavorado com o inverno, ousei fazer alguns versos o que chamei de poesia. Utilizando a mulher como a metáfora de primavera, eu a suplicava junto a mim, ouriçando-me os cabelos, guerreira e forte e superando o inverno que não acabava. Hoje, porém, tive a primavera bem próxima. E não foram os ventos que a trouxeram, talvez a temperatura suave acalentada pelo sol esparso sobre as árvores. Pois revelou-se com o encontro. Um encontro inédito e espontâneo, que se deu, a partir da sessão da Academia que se desenvolveu sob as árvores da praça Xavier, na falta da chave da biblioteca. Ali, nos expomos em nossas atitudes mais despojadas, sem didatismos ou preocupações formais. A ordem foi invertida, a lírica, a literatura e a harmonia dos textos chegou antes das atividades administrativas. Até mesmo o tradicional chá com salgadinhos e doces, alternou-se com a poesia. Senti o bafejo da primavera, bem perto, junto com meus colegas, perfazendo um círculo em que

Caminhos traçados

"O homem que deve morrer" era uma novela dos anos setenta. Na abertura, não lembro bem se era dentro do tema musical ou em off, na voz de um locutor, ouvia-se a frase “ando por caminhos que nunca foram abertos”. Tudo induzia ao clima de suspense da história. Aproveito este preâmbulo para deixar-me conduzir pelas memórias infantis que volta e meia surgem e via de regra, produzem uma sensação de boa melancolia. Nesta época, um amigo da escola e eu, tínhamos entre onze ou doze anos e costumávamos pegar um ônibus na volta da escola. Só que eram linhas opostas, enquanto o meu coletivo ia na direção do bairro Cidade Nova, o do meu amigo era no rumo do Santa Teresa. Ao sair do colégio, dirigíamos pela rua 24 de maio até a praça Tamandaré. Atravessávamos as pequenas vielas entre os canteiros, repletos de uma espécie de lírios lilases. Eram flores com muitas folhas verdes e longas, perfazendo o contorno dos canteiros. Enquanto ele se afastava em direção à rua Silva Paes, atrave