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O SEGREDO

Quando avistou a mãe no velho espelho do quarto, pensou que chegara a hora. Olhar enviesado, taciturno. Precisava de coragem, isso sim. Coragem que nunca tivera na vida. Era um fraco, diziam seus irmãos, truculentos e pouco amistosos. A própria mãe se preocupava com aquela passividade que sempre o caracterizara. Mas, enfim, era chegada a hora. Como contar porém, que à noite, não ia para a casa de amigos, mas apenas circular por vielas escuras. Um impulso indefinido. Talvez sentir-se vivo. Impulso, pulsão, compulsivo. Tudo que havia ouvido de centenas de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas e até autores de autoajuda. Sabia, entretanto que precisava seguir o ritual. Um sentimento de busca, uma verdade inconteste que latejava no peito e respondia no sexo, o degrau inferior que percorria pensamentos, mas que o impelia a se sentir alguém. Talvez fosse um louco, destes que andam às escuras, escondidos nas brumas das árvores dos parques, prontos a atacar ou serem atacad

Mãe no jardim

Às vezes, lembro a velha janela de veneziana e postigos verdes. Observava os rodamoinhos, folhas que giravam numa agitação festiva e alguns sacos plásticos efetuavam rápidos vôos para mergulharem em seguida na calçada ou no meio do rua. O vento fustigava a janela. A tarde era melancólica. Minha mãe passeava entre as dálias, diversas begônias, umas com folhas riscadas de vermelho, outras com um verde mais intenso, algumas com pendões de flores azuladas, além de uma roseira de rosas pequeninas que ela insistia que se grudassem ao muro. Brigava com as formigas que rendavam as folhas, lutava no pequeno jardim, no qual canteiros simbolizavam o seu afeto e dedicação pelas plantas. Havia arbustos maiores, a tal da Eva e do Adão, com folhas imensas, bem desenhadas e muito verdes. E as hortênsias? As hortênsias eram o seu xodó, sempre floriam na hora certa e mudavam a cor conforme a distância entre elas. Se havia hortênsias rosas próximas a azuis, elas trocavam de cor. As rosas mais azuladas

As sutilezas da felicidade

Os dias pareciam dissolver-se no anoitecer que se alongava. Ao voltar do trabalho, o seu hábito era tomar o chimarrão, enquanto ouvia o Repórter Esso. Após o jantar, costumava abrir o Correio do Povo para lê-lo na mesa. Era um ritual ao qual estávamos habituados e sempre interagíamos entre algum comentário ou mesmo sobre a dúvida de um vocábulo desconhecido. Olhávamos para meu pai e procurávamos descobrir a solução através de dicas que ele informava. Lembro de minha irmã e eu buscando métodos mais rápidos para chegarmos a algum resultado. Ela pegava os dicionários ou revistas nos quais houvesse palavras semelhantes. Também ele tinha por hábito pesquisar os atlas, cujos mapas mostravam centenas de países e cidades das quais nem imaginávamos a procedência. Até mesmo no Brasil, começávamos com as capitais, depois as cidades do interior e teríamos que procurar no mapa e ao acertarmos, ganhávamos um ponto. Tudo era considerado uma competição, na qual nos esforçávamos para chegar à

O piquenique

Aquela noite seria longa, mas provavelmente eu tenha caído no sono em seguida. A manhã chegou tão rápida que me ocupei de minhas coisas de modo a não perder um detalhe, a não esquecer a bola de vôlei, o estilingue e os guides. A mala era pequena, eu não tinha aquelas mochilas modernas, não, era uma mala esquisita de lona e papelão. Quando levantei, às 6 horas mais ou menos, tudo estava pronto, ou quase pronto à mesa, pois a condução que nos levaria ao passeio sairia às 7:30 horas. Minha mãe se desdobrava em fazer o lanche e mais do que isso, dar os habituais conselhos. Não pega muito sol, te cuida dos lugares perigosos, olha os precipícios, fica sempre atento e não te afasta do grupo, muito menos da professora. Ela será o teu guia. Não precisava de tudo aquilo, mas era de praxe. As horas passavam rápidas, mas a escola ficava apenas quatro quadras de minha casa. Nada que fosse atrasar-me. Eu estava ansioso. Ouvia com uma mão na mala e outra na xícara, atento ao que meu coração

Minha mãe

Minha mãe. Aqui na foto estás serena, uma aparência de quem espera. Talvez tenhas esperado muito por mim, quando voltava tarde da Universidade ou do trabalho, ou mesmo das festas. Recriminava a tua atitude, mas agora sei, mãe o que sentias e porque o fazias dessa forma, porque de algum modo, também espero. Talvez com outro método, mas com os mesmos receios e as mesmas dúvidas. Hoje seria o teu aniversário, dia 19 de agosto, por isso te lembro hoje, aqui, publicamente, embora pense em ti sempre. Este pensamento me leva a situações e condutas distantes, como o frisar da calça com perfeição para ir à escola (quando não se usava abrigo de malha, a não ser para o que chamávamos de educação física), o exigir o cuidado com a pasta de alcinha e duas dobradiças que deveriam ser fechadas com esmero (não se usava mochila), a merenda enrolada num pano de prato e envolta em papel de pão (raramente se comprava no bar) e o dinheiro para uma eventual necessidade. E quando voltava, sempre atenta com

A CALÇA COMPRIDA

Lembro-me dele. Chamava-se Camilo, um nome que eu achava estranho. Mas nossa amizade era segura, firme, quase madura. Confidenciávamos sobre tudo o que nos acontecia, falávamos da família, das ideias políticas de nossos pais, das agruras de minha avó, que se limitava a sentir aquela falta de ar absurda, o sorriso complacente e tranquilo de meu avô, o seu olhar sereno e belo. Parecíamos adultos, mas éramos crianças e não passávamos da 5ª. Série. Ele parecia mais velho, era mais forte, mais ágil. Eu franzino, pernas finas, calças curtas, meias até o joelho. Estávamos felizes. Aproximava-se o dia da procissão de Corpus Christi que eu ansiosamente aguardava, não exatamente a procissão, mas a oportunidade que se antecipava de eu usar calças compridas. Minha mãe prometera que usaria neste dia. Naquela época, usar calças compridas significava quase a passagem para a vida adulta, um símbolo de masculidade. Estávamos ficando homens de fato, portando-nos como tal. Minha mãe passou dias

A casa caiada de branco

Observava minha mãe andando de um lado para o outro. Parecia ansiosa. Punha umas roupas sobre a cama, examinava-as com cuidado, afastava-se do quarto, espiava pela janela. Chamava-me a atenção. Exigia que me arrumasse também. A vizinha aparecia, brejeira e eufórica. Cabelos muito loiros, tingidos. Voz fina, esganiçada. Olheiras pesadas sob os olhos. Saíram as duas, eu seguindo-as, chutando pedra, caminhando por entre os trilhos do bonde, minha mãe pedindo que saísse, era perigoso. Esquecia rápido as recomendações. Meu olhar, em seguida se detinha na velha casa caiada de branco, postigos verdes, de janelas sempre cerradas, aspecto meio sombrio. Minha mãe suspirava curto. Eu longo, na expectativa do desconhecido, no sorriso infantil da descoberta. A vizinha requebrava com a bolsa branca pendurada no braço. Minha mãe esfregava as mãos, suadas. Entramos, a porta quase não se abriu. Tudo em penumbra, pessoas que se mexiam pelos cantos, a sala completamente ocupada. Começaram os cân

Então, me explica...

Nem sempre me lembro de ti. Nem sempre me pergunto, porque te foste tão cedo. Nem sempre me envolvo nas histórias que contavas. Nem sempre me enfrento te olhando no espelho. Um espelho que parece muito comigo. Um espelho onde te imagino às vezes, caminhando ao nosso lado pelas ruas quase desertas da cidade, no feriado de Natal. Lembro-te de sapato preto, de verniz, bico de pato e salto fino. Do vestido azul e a bolsa de mão. Mas lembro mais do aconchego de tua mão na minha. Da alegria de meu pai ao teu lado, como um guia, um líder que nos levava à festa dos presentes. Lembro do guaraná, do quindim que sempre nos aguardava no imenso salão do clube. Lembro da expectativa dos prêmios. Dos palhaços, das músicas, dos mágicos. Lembro dos presentes. Uma boneca para minha irmã, um cavalo branco de gesso para mim. Mas lembro especialmente do brilho dos teus olhos, da emoção que passavas, que tornava nossos momentos intensos e felizes. Da alegria que sublinhavas com teu sorriso sincero. Tu er

A MÃE NA JANELA

A mãe na janela Tantas vezes a vi, assim, debruçada sobre a mesa, esticando, alisando com as mãos cuidadosas, alentadas de carinho e cautela, no fazer simples, mas imprescindível do passar o friso, transformar em plano o tecido rugoso, amarfanhado, atirado no cesto de roupas. Tantas vezes, a vi na costura, dobrando as costas no espaldar incômodo da cadeira, puxando sob a agulha, o pano, com a mão diligente, moldando-o de acordo com a linha que se desenhava autoritária, inventando curvas, metamorfoseando o que não tinha forma, transformando em vestuário o que era só projeto. Tantas vezes a vi, ainda perscrutando entre lentes emprestadas, o grau necessário para puxar o fio, manusear o dedal, criar a imagem em alto relevo, bordando o que era somente um risco imitando flores ou paisagens. Colorindo o que o sol se antecipava em dar-lhe cores e reflexos. Quem sabe os contemplasse, quando prontos e percebesse que sua criação devia muito à natureza, já que os punha sobre a mesa, ao alcance da