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Total desassossego

Quando a vida lhe parecia sorrir, sentia-se em total desassossego. Sampaio não era de se envolver nos problemas alheios, ainda bem, dizia consigo, já lhe bastavam os seus. Mas de uma hora para outra, passou a ter desejos estranhos, que não lhe cabiam em seu pensamento conservador. O que poderia lhe causar mal a melhoria no emprego, o galgar melhores condições de trabalho, inclusive de salário? Sei lá, o tal do desassossego, o temor de que alguma coisa lhe acontecesse, sempre vinha a cabresto. Trabalhava numa empresa de informática e seus conhecimentos na área nunca decepcionavam a chefia. Sua vida familiar era tão estável como água parada. Tinha mulher e filha que completavam um ciclo de ajustamento doméstico. Tudo muito certo, muito adequado, bem nos trilhos. Sampaio também não saía da linha, como costumava dizer um dos colegas mais chegados, que lhe cabia na categoria de amigo. Com ele, fazia até confidências. Mas Sampaio andava inquieto. Quando deixava o carro no estacionamen

Dessolidões

Meu vizinho sofria de uma doença estranha. Foi ao médico, ao curandeiro, ao pastor, leu todos os livros de autoajuda, e nada. A tal da moléstia não o deixava em paz. Era um vazio no peito, uma fome de não sei o quê, um vagar assustado pela casa, um temor de qualquer coisa que não se parecesse com movimento e folia. Não tinha o que se queixar, sua vida era perfeita, muito amado nas redes sociais, vivia em noitadas, antecipada aos happy-hours cercados por amigos. Mas o que acontecia que o aporrinhava tanto? Não passava um minuto sozinho, não tinha nada que o aborrecesse de verdade, até no trânsito costumava se divertir: carro potente, som atordoante, quase um trio elétrico. A vida se lambuzava de prazeres e o mundo nada mais era do que o seu portal de acesso. Estava sempre entre os melhores, aparecia com as mulheres mais lindas, era conceituado como um grande executivo, um homem de negócios e de valor. Até que apareceu aquela dor no peito, aquela quase falta de ar, aquela opacidade

CLARISSA

  Sair à procura de algo que não se sabe, muitas vezes do que se trata: uma viagem no pequeno diário, um caderno colorido, de páginas desenhadas, margens de arabescos ou uma caneta especial, de ponta fina, da marca tal, que tinha na loja tal, naquela livraria onde compraste o teu livro. Quase sempre assim, exigente, disciplinada, austera para a idade, com atitudes impensadas para os mais velhos. Era assim, mandona, talvez autoritária, uma espécie de Mônica, amiga do Cebolinha, ou a Mônica forçuda, como a chamavam, os mais destemperados. Tinha sempre um argumento na ponta da língua, afiada, ferina, mas amiga, afetuosa e sincera. Por vezes, deixava-se levar pela ilusão e fantasia: tinha um cão imaginário, o mar, a lagoa, as árvores da praça eram entidades com vida própria (e atitudes), às quais costumava cumprimentar, relacionar-se e compartilhar com a natureza, como se suas histórias fossem tão presentes e atuais, que fizessem parte do seu cotidiano, não apenas de seu imaginário.