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A roda parou de girar

Um carro quase sobrevoava a calçada. Noite escura. De repente, parou. Um homem de branco desceu, examinou os pneus, deu dois giros em torno e permaneceu quieto, em frente da casa que parecia abandonada. Não fez um gesto. O carro ainda pairava na calçada, a roda traseira no ar, se alguém a empurrasse faria várias voltas. Não havia ninguém. A noite se adiantava e a cidade, naquele bairro, morria. Ele moveu-se um pouco. Faiscou os olhos na luz intensa do celular. Ficou ali, perdido numa mensagem. Em seguida, aproximou-se do muro e encostou-se devagar. Olhou para os lados. Nada. Ninguém se aproximava. Nem um sinal. Nem mesmo a brisa costumeira da cidade litorânea desenhava algum movimento. Tudo parado. Morno. Suspirou, ansioso. Meteu as mãos e o celular nos bolsos. Por um momento, pensou em afastar-se, bater no portão de ferro, chamar alguém. Não teve coragem. Algo o segurava no chão. Um chão bolorento, de musgo e ervas que se erguiam pelas frestas das lajotas. Um chão sujo. Um lu

A CASA OBLÍQUA - CAP. XXIV

Clara atravessou a portaria do hotel, largando displicente a chave do carro sobre o balcão. O atendente assistia absorto um jogo na televisão. Quando a viu, surpreso, mostrou-se interessado em atendê-la. Clara percebeu-lhe as mãos magras, ossudas, com pêlos esparsos nos dedos. Num deles, um anel com uma grande pedra vermelha. — Um quarto? Sim, temos, sim. Quantos dias pretende ficar? Ela o encarou, achando esquisita a pergunta. Quem ficaria mais de uma noite naquela espelunca. Clara ficou algum tempo observando a ficha que o atendente lhe dera para preencher, como se precisasse tomar uma decisão definitiva. Ao invés de seu nome, escreveu em letra de forma: Luisa Paranhos Slavícek. O homem leu a ficha devagar. Em seguida, perguntou, curioso: — É de origem alemã? Clara sorriu. — Não. Meu marido é tcheco. Ele calou-se e entregou-lhe a chave. Perguntou pela mala. — Eu trouxe apenas uma valise. Amanhã, tomarei a balsa para a ilha. Ele observou-a na escada, após informar-lhe onde

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO III

CAPÍTULO III Não havia como recuar, embora Clara se sentisse perdida. Toda a euforia do resgate passara como por encanto. Estava deprimida, irritada consigo, atordoada. Como tirar aquele homem do carro, abrir a porta do prédio e torcer para que ninguém a visse. O vento estava mais intenso, embora não mais chovesse desde que deixara o porto. Começou por etapas, tentando acordá-lo. Agora percebia que ele estava praticamente dobrado em dois, como um malabarista. Encolhido no banco, a cabeça rente à janela e as pernas estiradas para baixo, joelhos articulados de forma a caber os pés sob o assento dianteiro. Puxou a capa, descobrindo-lhe os ombros, surgindo um corpo magro, cuja ossatura se salientava sob um casaco ruço, que mal lhe cobria as costas, tão curto, como se não fosse dele. Usava calças de algodão escuro e um cheiro de suor exalava de seu corpo. Clara tentou acordá-lo, mas não foi necessário. Ele virou a cabeça lentamente, fitando-a da mesma maneira anterior: entre sup

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO II

Resumo do primeiro capítulo (anterior). Todos os capítulos são publicados nas terças e sextas-feiras Naquela noite de muita chuva, vento e frio, Clara chegara ao porto, seu local de trabalho. Enquanto examinava as planilhas dos navios que deveriam ancorar no cais, recordava da desilusão amorosa que tivera com o namorado Bruno, que a deixara por não saber conviver com a rotina de um presumível casamento. Sozinha e triste, ela executou as suas tarefas no navio chegara, dirigindo-se ao porão para a inspeção normal. Assustou-se quando viu um homem escondido, percebendo tratar-se de um clandestino. Lembrando-se da vizinha e amiga, dona Luisa, que na época da Segunda Guerra Mundial, acolhera um refugiado, um tanto confusa , Clara decidira reproduzir a mesma situação. O homem revelava-se muito doente e ela dissera aos guardas portuários, que não havia nada de anormal no navio. Sendo assim, imaginou um plano de retirá-lo da embarcação. A seguir o segundo capítulo de A CASA OBLÍQUA

Um passeio no Gordini, com meu pai

Fui apresentado ao Gordini de forma inesperada. Tinha uns oito anos, quando um amigo de meu pai deu-nos carona. Nos acomodamos no carro branco, com os bancos de cor bege, e imediatamente começaram a comentar sobre o tamanho do carro, acostumados com veículos avantajados da época, com espaços generosos entre os bancos e porta-malas gigantescos. O Gordini, antigo Dauphini não era nada disso. Era pequeno, com espaços milimetricamente medidos para ajustar nossos corpos e alguns pertences. Era o que me parecia, ao observar meu pai e o amigo, quase encostarem a cabeça no teto. Nem sei se era impressão minha, ou sugestão pela conversa. Mas, também, pra mim, isso não era muito importante. O fato de estar ali, com eles, com meu pai dando os seus palpites sobre carros e motos e fazendo perguntas amistosas sobre o automóvel, já mobilizava toda minha atenção, ao ponto de imaginar, um dia comprar um carro como aquele. Eles conversavam animados. O dono, que a recém havia comprado, enaltecia as q

O peso da liberdade

Sentia as madrugadas se espraiarem e a sensação de que a vida se alongava, ali, naqueles momentos fugazes. Nada havia para impor: a natureza se completava. A vida estava além das paredes de seu quarto. Estirava-se nas sombras encardidas dos muros mal pintados, nas sacadas fragmentadas, nas quais figuras se expunham assim, descomedidas e sem pudor. Transformavam-se em manchas de água, nas calçadas limpas, sereno incrustado da umidade gélida produzida. Era assim. A natureza se esbaldava em fervor, em criação e criatura, em inventar a vida. Para ele, as madrugadas não passavam de um espiar solitário pelas persianas. Um olhar entrecortado em tiras. Um olhar apenas. Nada que impusesse uma vontade forte, que se derramasse em seu corpo e atingisse a alma. Que nada. Bastavam os sons difusos da noite insípida em que se resumiam suas horas. Uma coisa insossa. Uma coisa sua, mas que não compartilhava com ninguém. Melhor assim. Melhor deixar-se vesgo e perturbado ante o desconhecido

A fotografia da vida de Santa - CAP. 23

Capítulo 23 Naquela noite, a polícia foi chamada porque havia um movimento suspeito na casa que estivera há tempo tempo desabitada. Encontraram o corpo de Fernando estirado no chão e nenhuma impressão digital. Entretanto, investigaram com afinco as redondezas e descobriram quem tinha chamado a polícia. O vizinho do prédio à frente, havia visto as pessoas entrarem e sairem da casa e tinha a impressão de que havia algo errado. Os policiais também examinaram as câmeras de segurança na rua, mas não conseguiram ver as placas dos carros. Entretanto, o final de uma delas estava bem nítido e o vizinho ainda auxiliara, dizendo que anotara a placa de um carro, embora não coincidisse com a parte da placa que surgia nas câmeras. Já no âmbito da polícia, analisando detidamente as cenas, puderam constatar que a placa anotada era de um dos carros que parara no local. Dali em diante, foi fácil encontrarem o dono do carro, Alfredo Sampaio. Na manhã seguinte, Alfredo recebe uma intimação para ir à

A fotografia da vida de Santa - CAP. 19

Capítulo 19 No carro, faz-se um silêncio pesado. Parece que nenhum dos dois sabe o que dizer. Fernando porém ensaia alguns temas como o próprio trabalho, o tempo em que ficou desempregado e a proposta da tia para trabalhar na casa de Santa. Alfredo parece entediado. Não lhe interessa aquele assunto, muito menos falar sobre a vida profissional de Fernando. Fernando conclui, satisfeito: — Parece que somos amigos há muito tempo. Engraçado, quando há empatia, o assunto flui, não é mesmo? Na verdade, não era o que estava acontecendo entre os dois, mas Alfredo concorda. Por fim, pergunta: — Não acha que devemos parar num bar? Como lhe disse, seria bom conversarmos com mais calma. Fernando sorri, confiante. Em pouco tempo, estão num bar, tomando uma cerveja. — Então, me diga, o que é que você queria me dizer? — Não sei, Fernando. É que sou um homem muito solitário. — Mas nós não somos amigos. Sou apenas o jardineiro de sua mãe. — Há pouco tempo, você disse

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 14º CAPÍTULO

No capítulo 13, Júlio refletia sobre a personalidade de Rosa, que em poucos dias, conhecera como uma mulher com traços distintos, de acordo com a situação. Se havia alguém mais estranho naquela cidade, era a maestrina, pois um dia era uma pessoa cordata, tranquila, atendendo o pessoal do hotel com esmero e cuidado, bem como, segundo diziam, uma regente do coral com muito talento.Noutro, era uma mulher assustada e ao mesmo tempo indignada, mostrando-se rancorosa e com muitos segredos. Talvez ela estivesse assustada não pelos crimes, que segundo dissera a afetavam profundamente, em virtude de algumas pessoas terem sido assassinadas por um criminoso que ingetava insulina em pessoas saudáveis. Talvez o outro crime fosse a causa de sua aflição, em virtude da presumível implicação de seu protegido. A partir de agora, publicamos o capítulo 14 de nosso folhetim policial. Capítulo 14 Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bar-bebidas-álcool-geladeira-926256/ Ricardo dirigia-se ao

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 11º CAPÍTULO

No capítulo anterior, o detetive Júlio tomou informações com o médico Ricardo, que é acusado de matar uma jovem, que segundo o que dissera, se aproximara dele com uma intenção possessiva, a ponto de persegui-lo até mesmo no trabalho. O detetive também ficou sabendo que ela abandonara um presumível namorado, chamado Paulo, um mecânico da cidade, o qual tentara agredir o médico, mas que acabara entendendo que ele não era o culpado da situação. Por outro lado, havia uma jovem chamada Ana, de aproximadamente 14 anos que sabia alguma coisa sobre o crime. Júlio Ramirez então, prossegue a sua investigação no 11º capítulo a seguir. Divirtam-se com o nosso folhetim policial. CAPÍTULO 11 Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/ponte-grade-água-rio-1038830/ Júlio voltou para o hotel. Quem diria que estaria novamente na ativa, depois de ter afirmado tantas vezes para si mesmo que este era um tempo passado. Depois do almoço, a tarde se alongava e ele precisava seguir a investigação.

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IX

HOJE, TERÇA-FEIRA 09/02/2016, CONTINUAMOS O NOSSO FOLHETIM "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 9º CAPÍTULO . Capítulo 9 Susana temia demonstrar o caos que estava sua mente e em seu coração. Quantas vezes viera à clínica, quantas vezes entrara naquele quarto de reflexos nas paredes, um quarto despido de vida, de sensibilidade, de sensações. Um quarto nu. Entrou devagar, passos imprecisos, falseando o salto, como se obstáculos ocultos a impedissem de avançar, de se aproximar do homem que vivia distante, alienado, transbordando de dor e mágoa, ou apenas inerte, como uma poça dágua inatingível, escondida sob o alpendre, se deteriorando dia a dia. Estava lá, na cadeira isolada na sala branca, de sombras esparsas na parede, como se o sol de vez em quando aparecesse entre as nuvens e produzisse figuras que passeavam indiscretas, incontestes sem qualquer censura. Figuras que não significavam nada, apenas a solidão, a apatia, o desapego dos vivos. Ele a olhou co