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Mostrando postagens com o rótulo calçada

Não posso calar

Como falar dos dias tranquilos e ensolarados do outono, das tarde agradáveis e noites frias. Como falar das folhas amarelando pátios, calçadas e ruas? Como falar das aves que se apropriam dos espaços agora um tanto vazios e se mostram encantadas e encantando na sua beleza natural e avidez de liberdade e alimento? Como falar do vento que cria e recria dunas, que as destrói e reconstrói, que as troca de lugar e potencializa caminhos, às vezes mais arenosos, às vezes mais úmidos pela água do mar. Como falar das pequenas flores que se erguem submissas ao vento, calmas entre as depressões ali mesmo nos cômoros quase ondulantes? Como falar das ondas do mar, que se ajustam ao entardecer conservando vagas platinadas, quase translúcidas num avantajado azul? Como falar das gaivotas que riscam o céu, tão próximo ao mar que quase o tocamos, esticando o braço, esperando o pousar entre o céu e a mão nas garras molhadas e o bico salgado da pesca habitual. Como falar da lua que surge lenta e cordial

Mãe no jardim

Às vezes, lembro a velha janela de veneziana e postigos verdes. Observava os rodamoinhos, folhas que giravam numa agitação festiva e alguns sacos plásticos efetuavam rápidos vôos para mergulharem em seguida na calçada ou no meio do rua. O vento fustigava a janela. A tarde era melancólica. Minha mãe passeava entre as dálias, diversas begônias, umas com folhas riscadas de vermelho, outras com um verde mais intenso, algumas com pendões de flores azuladas, além de uma roseira de rosas pequeninas que ela insistia que se grudassem ao muro. Brigava com as formigas que rendavam as folhas, lutava no pequeno jardim, no qual canteiros simbolizavam o seu afeto e dedicação pelas plantas. Havia arbustos maiores, a tal da Eva e do Adão, com folhas imensas, bem desenhadas e muito verdes. E as hortênsias? As hortênsias eram o seu xodó, sempre floriam na hora certa e mudavam a cor conforme a distância entre elas. Se havia hortênsias rosas próximas a azuis, elas trocavam de cor. As rosas mais azuladas

O guri

Quando o vi pequeno e raquítico, não soube executar nenhum gesto. Quando o vi mal abrir os olhos na luz ofuscante da manhã, quase me afastei acovardado. Quando o vi, faminto e maltratado, quase chorei sentado em minha complacência. Então, pedi, suplicante. Não acorda guri, mesmo aqui, sob a marquise nesta calçada suja. Dorme guri, não vale à pena acordar. Dorme e sonha. Com que sonha o guri sozinho, se não uma porção de sorvete e balas de goma? De que vive o guri na rua, se não de sonhos? Terá ainda sonhos, o guri? Tenho eu, empurrando com os pés o saco de latinhas amassadas. Sonhos sinistros e medo de acordar. Medo que ele se aproxime e sua baba, sua fome, sua sede e seus sonhos respinguem em mim. Medo que tenha de enfrentar a dor dos outros, de mastigar sozinho as horas solitárias pelas quais passa, medo de pensar e me sentir menos humano do que ele. Por que levar a comida na geladeira de rua e sair correndo com medo da proximidade? Talvez a pandemia expliq

Todos eram puros e inocentes no passado? Nem tanto!

Acho notável que as pessoas tenham boas lembranças e sintam saudade dos tempos de infância, entretanto, há coisas que não entendo. Não entendo quando afirmam com veemência que naquela época, tudo era maravilhoso, a ponto de haver uma uniformidade nos costumes, cujos cidadãos eram pessoas extremamente afáveis, solidárias e felizes. As crianças eram educadas, disciplinadas e prestativas, os pais severos, conciliadores e gentis, os professores profissionais exigentes e respeitados na sala de aula e o mundo girava sob The The Sound Of Music, da Noviça Rebelde. Segundo estes relatos, os meninos entravam na igreja compenetrados, arrumando o cabelo e fazendo silêncio para ouvirem as orações, enquanto as meninas, por sua vez, se deparavam caladas, em frente aos santos, rezando para que suas provas não fossem muito difíceis ou para serem pessoas melhores. Os vizinhos sentavam nas calçadas, tomavam chimarrão ao anoitecer e jogavam conversa fora. Todos eram amigos, e nos natais, compartilhavam

Se o Natal te oferece

Se o Natal te oferece música, luzes e cores, aproveita. Usufrui da alegria e festeja. Se o Natal te oferece abraços, risos e flores, aproveita. Corresponde à euforia e brilha. Se o Natal te oferece fé, orações e lembranças do Aniversariante, aproveita. Ameniza os sentimentos, te doa, te alegra e reza. Se o Natal te oferece passeios, encontros e festas, aproveita. Compartilha com os amigos e parentes as tuas memórias, os teus desejos, os teus caminhos para acertar nos trilhos e urgente, refaz o desfeito, acerta o erro e resgata a história. Se o Natal te oferecer a mão, a comida, o amor, a bondade, aproveita. Retorna com mais amor, mais amizade, mais bondade e sustenta a mudança que talvez advenha desta passagem para o bem. Vive feliz e despreocupado. Te desembaraça de pensamentos confusos, de medos e cicatrizes. Te livra do mal. Mas não esquece jamais, dos que ficam lá fora, longe das festas e dos fogos, longe dos amigos, dos parentes, dos vizinhos. Afastados da vida, mort

A roda parou de girar

Um carro quase sobrevoava a calçada. Noite escura. De repente, parou. Um homem de branco desceu, examinou os pneus, deu dois giros em torno e permaneceu quieto, em frente da casa que parecia abandonada. Não fez um gesto. O carro ainda pairava na calçada, a roda traseira no ar, se alguém a empurrasse faria várias voltas. Não havia ninguém. A noite se adiantava e a cidade, naquele bairro, morria. Ele moveu-se um pouco. Faiscou os olhos na luz intensa do celular. Ficou ali, perdido numa mensagem. Em seguida, aproximou-se do muro e encostou-se devagar. Olhou para os lados. Nada. Ninguém se aproximava. Nem um sinal. Nem mesmo a brisa costumeira da cidade litorânea desenhava algum movimento. Tudo parado. Morno. Suspirou, ansioso. Meteu as mãos e o celular nos bolsos. Por um momento, pensou em afastar-se, bater no portão de ferro, chamar alguém. Não teve coragem. Algo o segurava no chão. Um chão bolorento, de musgo e ervas que se erguiam pelas frestas das lajotas. Um chão sujo. Um lu

Pai na bicicleta: uma acrobacia de alegria

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bicicleta-sombra-desporto-hispânico-233379/ Houve tempo em que te vi sorrindo, orgulhoso, satisfeito, encontrando nos filhos a certeza inabalável da vida, do se fazer pai e amigo. Houve tempo em que me puseste no colo e abriste a página do jornal, ensinando-me a ler. Ali conheci o valor das palavras, da leitura e mais ainda, o prazer de ser amado e protegido. Houve tempo em que te vi assim, cabisbaixo, olhando pros lados, insatisfeito. Talvez refletisses o que fazer diante dos problemas: da chamada do professor em casa, da briga costurada com o colega, da ordem desobedecida ao cruzar a rua e ver a bola picando, campo à fora, meninos ruidosos, na luta aguerrida do futebol. Sei, que na verdade, me querias na escrivaninha, pequeno troféu, que criaste, mais perto dos estudos e bem distante dos chamados “guris de rua”, daquela época. Benditos guris, nada semelhantes aos de hoje. Houve tempo em que te vi desconfiado com a política, com os

IOLANDA

Fonte da ilustração: Aravind kumar, do site https://pixabay.com Iolanda desceu as escadas lentamente. Na rua, um silêncio absurdo parecia isolar a praça do resto do mundo. Espiou pela porta do prédio e viu o ambiente amplo, completamente vazio. Sombras de árvores deitavam em bancos de pedra. Alguns caminhos irregulares. Afastou a porta devagar, deslocando-se em ritmo lento pela calçada. Estava sôfrega. Um cansaço parecia acumular-se nos ombros. Aflita dirigiu-se à praça, atravessando a avenida deserta. Que horas seriam? Mais de 3 horas num numa madrugada qualquer da semana, sem qualquer possibilidade de movimento. Um cão ladrava ao longe e uma pequena brisa começava a sacudir as folhas das árvores. Olhou para o alto. A lua desaparecia lenta, por entre nuvens e o céu tomava um negrume extraordinário. Se não fossem as luzes da cidade, tudo estaria numa escuridão total. Decidiu sentar-se e a madeira do banco martirizava a sua coluna. Mexia o corpo para frente, de vez enquanto par

A VISITA

Chegar a casa, percorrendo as ruas estreitas, de paralelepípedos irregulares, batida incerta no peito, olhos febris. Difícil saber o significado da visita, entender a expectativa da hora, o aperto de mão. Minha mão na do meu pai, caminhando orgulhoso, torcendo os pés nas pedras incólumes. Tropeçando, olhos pairando nos céus, gestos hesitantes, braços indagando inquietos. Segui-o em tudo, até na incerteza. Tinha de fazê-lo para chegar lá. Saber como o tal tio nos receberia e ter ao mesmo tempo a convicção do acolhimento sereno. Muito se falava nele. Meu pai tinha orgulho da sabedoria, da linguagem precisa, do seu amor pelas letras e filosofia. Eu divagava, mão apertada, coração aos saltos. Via as sombras das pernas longas de meu pai no sol da calçada. Os pés grandes, apressados. Se soubesse o quão distante seria o caminho, talvez não me levasse. Mas valia à pena o sacrifício para transmitir conceitos saudáveis que talvez eu apreendesse. Agora sei que ele estava certo, porq

Mormaço de domingo

Sentia o cheiro acre das calçadas sujas. O encardido denso esquentava os paralelepípedos mal estruturados. Um sol de ressaca, quase mormaço, mas nada pior do que o constrangimento de vê-lo ali, estirado na esquina, encostado no átrio da porta. Parecia franzino, quando o avistei do outro lado da rua. Cabeça estirada nas tijoletas quentes, os cabelos revoltos, os braços escondidos sob o corpo. Por um momento, pensei em chamá-lo, acordá-lo do torpor, que me parecia, se encontrava. Outras pessoas passavam mais adiante, olhavam curiosas, como eu, mas se dispersavam logo: um mendigo, um drogado que se abateu na noite e se transformou naquela figura estática e indefesa. Talvez não houvesse o que fazer mesmo. Para que acordá-lo? Por que trazê-lo ao mundo dos normais, se havia talvez muito mais intensidade na conduta que o levara ao abandono que ora demonstrava? Talvez uma noite de festa, bebedeiras, mulheres, alegria, e todos os prazeres da carne e da mente. Do físico, da alma? Uma peque

O DOCE BORDADO AZUL - 28º capítulo e 29º (ÚLTIMO CAPÍTULO)

A seguir os dois últimos capítulos de nosso folhetim. No 28º capítulo, Laura revela-se à filha e no último, em sequência, são guardadas as melhores emoções. Capítulo XVIII O vulto na janela Lúcia parou em frente da igreja do convento. Há tantos anos misturava-se entre aqueles prédios, passeava pelos jardins com a intimidade de seus sentimentos. Visitava vielas, aprofundava-se em seus encantamentos, observando, às vezes, o pôr-do-sol que se precipitava nos espaços que se abriam entre os muros. Hoje, porém movia-se sob um impulso quase incontrolável, induzida por uma sensação nova de bem-estar, disposta a entrar e quem sabe fazer uma prece, encontrar-se consigo. Não havia sofrimento. Tinha a alma leve e a impressão de que devia cultivar esta plenitude que poucas vezes sentira. Entrou na capela que estava na penumbra. Observou a iluminação fraca em decorrência dos raios de sol beijando os últimos bancos. Estava em completa solidão. Aproximou-se um pouco, olhou para