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Meu padrinho, o turfe e a laguna

Meu padrinho estava sempre disposto a levar-me ao hipódromo, a sua paixão. Eu, guri de 12 ou 13 anos, não me interessava muito pelo esporte, entretanto, aquele passeio de certo modo, representava uma liberdade de ação, da qual não tinha acesso à época, em virtude da severidade da disciplina paterna.

Meus pais muito severos no encontro com os colegas ou na eventualidade de passeios com desconhecidos, não permitiam passeio sozinho pela cidade, principalmente em lugares diferentes dos que frequentava. A possibilidade de me relacionar com meninos desconhecidos, de jogar bola nos campinhos de várzea, de me embrenhar pelas dunas próximas à laguna, geralmente criavam muitos conflitos.

Pois bem, meu padrinho significava essa liberdade, essa possibilidade de passear com ele, mas com o direito de fazer o que quisesse, ou seja, não participar das carreiras com as quais tanto se encantava. Eu aproveitava o momento para encontrar os amigos.

Naquela tarde domingueira, fui como de hábito ao jóquei-clube ao seu lado. Para mim, era uma pequena viagem, pois demorávamos muito a chegar. Lá, meu padrinho se ocupava dos conhecidos e eu aproveitava para sair. Deixava-o tomando uma cerveja e confabulando sobre o cavalo que sinalizava o melhor prêmio, ou mais previsível ou o azarão e me afastava, indo ao encontro dos meus melhores momentos.

Ali, bem próximo ao hipódromo, ficava a laguna, cujas margens contornavam a cidade em toda a extensão e naquele espaço não havia casas, mas muitas dunas, algum pequeno campo com areia onde jogávamos futebol e depois nos refrescávamos nas águas da prainha, deixando o futebol improvisado para a natação mais precária ainda.

Atravessávamos o lamerão, o chamado lodaçal que se desenhava numa ampla faixa para chegarmos á agua límpida da laguna e ali nos envolvíamos nas marolas e passávamos tanto tempo que nem percebíamos se era tarde ou cedo.

O problema era sempre a volta, cujas explicações não convenciam em nada meus pais pela roupa encharcada e suja ou pelos tênis embarrados. Embora, muitas vezes, eu participasse do ambiente dos jogos, dos bilhetes, das apostas, da torcida, naquele cenário fervoroso do turfe, meu padrinho sabia que mais dia, menos dia, eu fugiria para aquele tufo de liberdade, do qual buscava como um cavalo marchador. Eu que me explicasse em casa. Sua alma, sua palma, dizia ele.

Outras vezes, saíamos pela cidade. Ele costumava tomar café no mercado público, tinha muitos amigos pelas redondezas e cercava-se do pessoal das ilhas ou mesmo dos amigos do turfe, que também frequentavam o lugar. Eu costumava observá-los e perceber que apesar da rudeza das argumentações, das conversas sobre a lida no campo ou no trato com os animais, ou mesmo entre aqueles, que como meu tio eram pequenos comerciantes, havia entre eles um elo de amizade muito grande, cuja sensibilidade revelava homens com maturidade humana muito forte. Percebia, nos discursos pouco estruturados, as informações que indicavam confiança na vida e no ser humano, que somente mais tarde a vida me revelaria.

Por vezes, observava-o sorver o café devagar, enquanto saboreava o pastel frito na hora e de vez enquanto, tentava me incluir nas conversas. Esse guri estuda muito, é muito dedicado, vai ser grande coisa na vida. E dava um meio sorriso que às vezes parecia revelar uma certa desconfiança, misturada com orgulho. Na verdade, ele acreditava que eu teria uma profissão digna, mas talvez não conseguisse projetar em suas percepções simples, o que realmente eu faria na vida. Estudar já bastava.

Era um homem tímido, mas ao mesmo tempo de muitos amigos. Eu gostava de sua presença, gostava da companhia e deixava outros companheiros para ficar ao seu lado.

Talvez aquele misto de liberdade, aquela volta na laguna, o encontro com os amigos, o encantamento nas corridas do jóquei-clube, simbolizassem para mim um homem que aproveitava o lado bom da vida com uma certa leveza difícil de se aceitar nos dias de hoje, e de certo modo, indicava um caminho, me deixando livre para também acolher o que a vida me oferecesse.

Um bom homem.

Fonte da ilustração: Escritor, poeta e fotógrafo Wilson Rosa da Fonseca.

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