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Uma bomba e a aeromoça gaúcha



Meu amigo tinha por hábito externar qualquer pequeno problema que o acometesse. Às vezes, um mudança abrupta no seu estado psíquico, como uma melancolia, uma vontade de afastar-se de onde estava ou simplesmente um pequeno ruído que o incomodava. Via de regra, sabíamos que reagia com certo exagero às circunstâncias, mas respeitávamos o seu modo de ser e procurávamos conciliar seus pequenos desajustes aos nossos interesses. 

Naquele dia, porém a coisa fora diferente. Estávamos reunidos no aeroporto para seguirmos à Brasília para um curso relâmpago de três dias. Éramos em torno de 30 pessoas e comemorávamos a ideia de projetar o nosso trabalho de marketing para a instituição em que trabalhávamos. 

Ao entrarmos no avião, fomos para nossos acentos e conversamos animados com a possibilidade de ainda chegarmos cedo à cidade para quem sabe, irmos num bom restaurante após a chegada no hotel e nos prepararmos para o dia seguinte que seria bem puxado. 

Meu amigo Júlio (era seu nome) estava num assento próximo à asa do avião. Fazia alguns selfies com os colegas, tirou também algumas fotos de alguns aviões estacionados e de repente, aquietou-se manifestando uma palidez que nos assustou. 

O avião estava prestes a decolar e Júlio parecia fora de si. Suelma, uma morena de olhos grandes, sempre extrovertida e dada a piadas, perguntou o que acontecera. Sandro, um dos que estavam no lado esquerdo ao de Júlio também ficara apreensivo, achando que o colega iria desmaiar. Eu tentei perguntar alguma coisa e fui interrompido antes que chegasse na primeira frase. 

Júlio avisou que estava ouvindo um ruído estranho que vinha de sua poltrona, era uma espécie de chiado, como se houvesse uma bomba ali instalada. Seus lábios estremeciam e sua voz saía rouca, como se o som precisasse atravessar um túnel que a interceptava. 

Alguns riram, achando que meu amigo fazia piada ou tinha na verdade, era medo de voar. Outros reclamavam, achando tudo uma grande bobagem. 

Sandro porém, era o único que parecia paralisado. Pálido, olhos arregalados, sem conseguir dizer nada. Olhava para a namorada um tanto apalermado, achando que alguma coisa errada estava acontecendo. Neusa, a companheira, ria desajeitada, esclarecendo que isso era coisa de Julinho, como ela o chamava. Nada demais. Ele costuma inventar estas bobagens, dizia sem muita convicção. 

Eu perguntei o que estava acontecendo de verdade.
Júlio voltou a afirmar que o chiado permanecia e cada vez mais insistente, como se o dispositivo estivesse ligado, talvez a ponto de explodir o avião. 

Na poltrona a sua frente, estava uma aeromoça de Porto Alegre. Levantou-se um pouco temerosa, aproximou-se dele e sentou ao seu lado, exclamando, naquele sotaque característico da capital: 
– Bah, eu nunca tinha ouvido este chiado antes! Faz muito tempo que tu ouve isso? 

Júlio apavorado, não sabia o que dizer, na verdade, sabia sim, afirmava que não, nunca tinha ouvido nada igual e que precisavam tomar alguma providência. O avião não poderia decolar de jeito algum. 
Os demais começavam a se irritar com Júlio, não se contendo em suas observações, uns afirmando que era uma situação absurda, não tinha nada a ver com bomba ou coisa parecida, outros porém tinham suas dúvidas e queriam descer do avião a todo custo. 

Sandro agarrava-se ao braço de Neusa, agora muito vermelho, como se ele fosse a própria bomba pronta a explodir. Doía-lhe a barriga e a sensação de que deveria ir ao banheiro imediatamente, pois seu organismo não o obedecia. Temia estar com dengue ou coisa parecida. Neusa acompanhou-o até a porta. Os colegas se olharam indignados. Só faltava agora um cagão no grupo! 

Alguns minutos depois, o que nos parecia um tempo interminável, Sandro voltava alisando a barriga e caminhando devagar ao lado de Neusa, que também ficava vermelha com os olhares curiosos. Sorria, acenando a cabeça, como quem diz, “coisas de Julinho”. Mas a situação piorava a cada instante, não no que concernia a Sandro, mas ao fato observado por Júlio, o tal chiado que não parava. 

A aeromoça, nestas alturas já se afastara, pedindo ajuda aos engenheiros e mecânicos do avião, mostrando-se apavorada. As demais procuravam não intervir e se limitavam a ficar na cabine, esperando os procedimentos do piloto. A ordem porém era impedir a decolagem imediatamente e aguardar a solução do problema. De vez enquanto, o piloto falava no microfone evitando alarmar a tripulação. 
Aproximei-me da aeromoça e perguntei o que ela pensava disso. Ela respondeu com uma pergunta: 
— Capaz!, tu não acha que o caso é sério? Tri responsável o rapaz avisar dessa coisa. Vai ver que é uma bomba, mesmo! 

Eu não tinha o que dizer. Fiz um gesto qualquer e me afastei na direção de minha poltrona, porque a conduta estabelecida era ficarmos em nossos lugares. Dali, observava os colegas, especialmente Sandro que parecia desabar na poltrona. Em dado momento, levantou-se, tentando falar com um comissário de bordo, que insistiu para que ficasse sentado. No entanto, não havia como impedir a marcha pelo corredor do pobre coitado, cujo único destino parecia ser o vaso sanitário. O comissário deu um meio sorriso e deixou-o ir, mas exigiu, dirigindo-se à Neusa: 
– A senhora não precisa acompanhá-lo. Fique onde está, porque estamos trabalhando para que tudo se resolva da melhor forma possível. É preciso que todos fiquem atentos! 

Ao ouvirem isso, todos começaram a falar em uníssono, já desesperados, temendo que o pior acontecesse. Um burburinho que se transformou em algazarra, com os ânimos cada vez mais exaltados. 

Suelma, a piadista, decidira rezar e o fazia em voz alta, deixando os demais ainda mais irritados. De vez enquanto, olhava de vesgueio para Júlio, quase suplicando que dissesse ser uma brincadeira. Em seguida, leu um salmo da bíblia e todos a mandaram calar-se. Ela sentou-se, pensou numa piada, mas decidiu ficar quieta. Era melhor obedecer.

Enquanto isso, os engenheiros e mecânicos trabalhavam no assento em que Julio se acomodara, do qual se ouvia o chiado , que parecia a todos, cada vez mais sinistro. Só faltava uma luzinha vermelha para que o dispositivo fosse acionado. 
Entretanto, os profissionais reviraram o banco de todas as maneiras e não havia nada que confirmasse a suspeita. Onde estaria a tal bomba? O que causava aquele ruído terrível, que deixava todos em pânico. 

Júlio sentou na poltrona próxima a minha, enquanto esperava o resultado fatídico. Sentiu um pouco de frio e vestiu a jaqueta de couro, que trazia no bagageiro. 

Neste momento, Sandro voltava pelo corredor, quase se arrastando, quando meu amigo resolveu enfiar a mão no bolso e retirar o celular. Quando o fez, não se conteve e exclamou animado, como se tivesse salvo a humanidade: 
— Pessoal, é o meu celular que estava ligado na tv fora do ar! 

Houve um silêncio absoluto, apenas quebrado pelo som surdo de Sandro desmaiando no meio do corredor. 

Os engenherios levantaram-se da posição que estavam, investigando a poltrona e o olharam com uma expressão que demandava uma fúria que em mil anos não se repetiria. 

Os demais levantaram-se dos bancos, também furiosos, como uma turba que planejava vingar a pátria e matar o inimigo. Queriam linchá-lo, não fosse Neusa que pedia clemência porque matariam o namorado pisoteado no piso da aeronave. Este abria um olho e o fechava, como se quisesse permanecer no sonho. 

Todos pararam e afastei-me com Júlio para a parte traseira do avião. De lá, ainda vimos Sandro levantar-se devagar e fazer um sinal para a namorada, que não havia mais tempo de ir ao banheiro. Todos voltaram correndo para a parte dianteira do avião. 

Nesse momento, a aeromoça gaúcha deu a palavra final: 
— Pessoal, pega o rabo quente, porque a única bomba que temos aqui é a do mate! 



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