Seus pés pequenos mergulhavam, solitários, na água morna. O sol ardia, escaldante, nas têmporas. Mas aquele minuto de sol significava mais do que tudo que precisava fazer. Quase deslizava na água. A ponta dos dedos observavam mariscos, a areia da praia que afundava na pressão do calcanhar, as pequenas conchas que teciam a rede de espumas que se espalhava. Era lindo e ela sabia disso. Suas pernas finas e ágeis davam, de vez enquanto, pulos, como uma rã em busca de insetos. E assim, passavam a correr, mal pisando a água clara e morna, limpando a planta dos pés, deixando-as mais brancas ainda. Os pés e as pernas eram escuras, como o resto do corpo, mas as plantas eram claras, tão claras que tinha a impressão que as tinham pintado. Agora estavam quase murchas. O sol a pino produzia gotas de suor na testa ampla. Os olhos grandes, argutos, analisavam apenas o que lhe convinha: o conviver com o que a natureza oferecia. E não era pouco. Ali ficou, nos saltos e em cada um, vislumbrava um pensamento rápido de quem sonha. O vestido já molhado não obedecia aos gestos e se ajustava às pernas. Não havia vento, nem frio. Só aquela brisa suave e a sensação boa de estar sozinha. Há tanto tempo permanecia assim no vazio de sua vida, sem ninguém, que estava até acostumada. O vazio, que experimentava agora, era diferente. Era gostoso. Um vazio de pessoas, embora um momento pleno de si mesma.
Ouviu um assobio bem longe de seus ouvidos, mas o suficiente para parar de supetão. De repente, seus pés se acomodaram na areia, afundaram na água morna e se enterravam devagar, pelas canelas finas, quase na altura do joelho, já alcançando o vestido. Vestido que pairava quieto, sobre a água. Uma pequena deusa, que se vestia de santa e olhava ao longe, com cara de menina bondosa. Na verdade, não era tão menina assim. Já tinha os seus 14 anos e apesar de mirrada, parecendo um pouco mais do que 11, já se considerava uma mocinha.
O assobio insistiu, estava mais próximo. Dava arrepio voltar à realidade, assim, de repente. Que bom se pudesse ficar saltitando pela água do mar, chutando as espumas, fazendo rodopios com o corpo. Mas de sonho, já vivera até demais. Melhor aquietar-se no mundo que a esperava. Um mundo desconhecido, do qual não dava conta.
Às vezes, se imaginava branca, de olhos claros. Aliás, quando pensava em si, não tinha uma identidade negra. Quando se olhava no espelho, não era ela, que via. Era uma outra menina, com um olhar diferente, muito mais sério, com uns lábios apertados que não descreviam o que sentia.
E esse assobio que penetrava nos seus ouvidos. Alguém se aproximava, alguém muito familiar que causava esse desassossego. Quando Omar se aproximou, ela já era outra. Seu olhar maduro, os gestos robotizados, lábios apertados.
Omar perguntou, ríspido, se ela não voltaria ao trabalho. “As doceiras lhe esperam. Ou pensa que os doces se vendem, sozinhos, de mão em mão?”
Marina baixou a cabeça, ou melhor enviesou os olhos o mais que pode. Não lhe interessava argumentar sobre a água, nem se desculpar, muito menos encarar aquele homem que não lhe transmitia nenhuma segurança. Afastou-se na sua frente, na direção das cozinhas do velho restaurante. Em pouco tempo, voltaria para a praia, agora não mais deserta, nem agradável aos pés e olhos. Apenas a areia escaldante, o grito rouco da propaganda, o abrir e fechar de cestas, divulgando a mercadoria. E assim, as horas passaram e quando se deu conta, estava em casa, entre centenas de crianças que se embrulhavam como presentes nos cobertores ralos. Ela agora sentia um pouco de frio, mas a memória da água morna e das espumas ainda estavam presentes. Foi com isso que sonhou, pois dormiu num sono só. Só acordou com o chamado do sino habitual para a higiene e o café da manhã. Havia poucas meninas com as quais se relacionava. Uma que outra lhe passava mais confiança. Com estas costumava falar de Omar.
Apesar da raiva que sentia dele, por tratá-la com um certo desprezo, ele lhe despertava alguma coisa lá dentro. Talvez fosse esse o motivo de tanta raiva. Afinal, Omar não era um homem feio: forte, cara dura, braços e pernas musculosas. Tinha um olhar obtuso que não levava a lugar nenhum, a não ser um gestual peculiar de empáfia. Mas não o achava feio. Se não fosse tão mal...pensou.
― Qual é a dele – perguntou uma das meninas – anda sempre atrás de você.
― O negócio dele é vender doces. Estou lá para isso. Tenho que me arranjar.
― Você é quem sabe. Por mim, eu dava um chega pra lá neste cara. Ele marca de cima, parece seu namorado
Marina enrubesceu. Seu coração batucou no peito, agora de raiva da colega. Ela não tinha namorado e quanto a Omar, estava descartado, afinal ele era muito mais velho do que ela, apenas o sócio do restaurante perto da praia, e jamais pensaria nela como namorada. Além disso, diziam que ele andava metido com gente da cidade, isto é, tinha uma mulher que morava no centro. O interesse dele era exclusivamente ganhar dinheiro. Mas vai explicar isso para a colega. Melhor levantar-se rápida do café e arrumar as suas coisas.
As noites passavam sem graça para Marina. Por vezes, pensava numa família que não teve. Afinal quem seria o pai? Talvez alguém muito parecido com Omar, um homem frio, cheio de salamaleques, metido a dono de tudo. A mãe? Desaparecera no mundo, certamente quando ela nascera, pois fora morar naquela Casa de Meninas. E jamais fora escolhida para ser filha de alguém. Ninguém queria uma menina negra, mirrada, de nariz sujo e olhos grandes como ela. Agora, porém, era outra pessoa. Uma pessoa diferente. Talvez não tanto quanto gostaria, mas uma pessoa que pensa consigo, sem se interessar mais com a opinião de ninguém. Afinal, nunca se importaram com ela. A não ser uma ou outra pessoa que a ajudou na Casa ou mesmo no restaurante, do qual vendia os doces na praia. As noites se alongavam, intermináveis. Tinha vontade de sair da Casa de Meninas, por rumo na sua vida. Mas nem tudo acontecia como se imaginava, ou quase nada. Acha que viverá a vida vendendo doces. Até morrer.
Um dia recebeu um livro de um instrutor. Leu algumas paginas, enjoou. Mas vez que outra, abria aquelas folhas amassadas e lia um ou dois parágrafos. Apesar da dificuldade na leitura, sempre gostava do que lia. Talvez algum dia, lesse o livro todo. O instrutor foi embora e deixou como herança o livro. Bem diferente de Omar. Ao contrário deste, o instrutor era um homem educado, generoso, tranquilo. Sabia conversar com facilidade, sabia dar conselhos. Mas dava-os de modo que o receptor nem se desse conta da mensagem. Ou se desse conta apenas do conteúdo, sem saber que estava sendo doutrinado. Era isso que as meninas diziam. “O instrutor de educação física sabia doutrinar a gente, parece um padre”. Mas ele foi embora de uma maneira triste, decepcionante. Até hoje, Marina não acreditava na versão que deram. Não pode ser, ele era um homem tão íntegro, tão verdadeiro. Ele não faria o que disseram. Mas todos juravam que era verdade. Que aquilo aconteceu mesmo.
Marina se lembrava como se fosse hoje. A professora irrompeu na sala, aos soluços. Tratava-se de dona Sarita, uma mulher já passada nos quarenta, que se julgou ofendida pelo assédio do instrutor. Ela fora chamada à atenção pela diretora da Casa e certamente seria demitida, se houvesse participado dos galanteios do instrutor, isto é, se os tivesse aceitado, assim se comentava na época. Foi uma situação desesperadora, porque ela teimava que era inocente, que não tinha aceito aquelas obscenidades em plena sala de aula. Era o que diziam. Ela ficou e ele acabou indo embora.
Marina nunca gostara de dona Sarita. Preferia que o instrutor ficasse. Mas isso, ela não podia decidir.
Fonte da ilustração.: www.pixbay.com
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