HOJE, TERÇA-FEIRA 22/03/2016, APRESENTAMOS A SEGUIR AS EMOÇÕES FINAIS DE NOSSO FOLHETIM RASGADO, O 22º E ÚLTIMO CAPÍTULO DE PÁSSARO INCAUTO NA JANELA. OBRIGADO PELOS LEITORES QUE ACOMPANHARAM A HISTÓRIA.
Capítulo 22
Úrsula ouviu barulho no elevador e alertou os ouvidos, na espera de que o alvo fosse o seu endereço.
Atualmente, vivia sempre esperando que alguém chegasse, e a convidasse para tomar um chá, passear pelo parque, ou quem sabe, sobreviver numa dose de uísque.
Provavelmente Dulcina voltava para a faxina, quando bateram na porta, entretanto, seu coração bateu acelerado. E se fosse Susana, se o tribunal do júri a tivesse absolvido e ela estivesse pronta para acompanhá-la na maior pesquisa de sua vida.
Com algum esforço, antecipou-se até a porta. Abriu-a rapidamente, machucando a mão na maçaneta.
Não conseguiu evitar a decepção, quando um homem a aguardava com uma calma indefinida no olhar. A barba crescida, totalmente branca, o cabelo alinhado, embora ralo, com uma leve caída desenhando o perfil.
Úrsula percebia alguma coisa familiar naquela figura, mas não conseguia identificar o quê.
Seu coração estava aflito, apertado e por um momento, estremeceu completamente. Teve a ilusão de que Jaime estava ali, a sua espera, talvez para acusá-la de não ter participado como ele do movimento contra o regime, ou por não ter colaborado na sua biografia.
Sentiu-se fraca e temendo cair, acomodou-se na coluna próxima à porta e ficou ali, paralisada, como se estivesse à frente do espectro do marido. Ou do carrasco.
Um suor intenso inundava-lhe as têmporas e nem o sorriso afável do homem a afastava do torpor que sentia. Ele, percebendo que alguma coisa desagradável acontecia, apressou-se em apresentar-se.
–Úrsula, não está me reconhecendo? É normal, faz tanto tempo. Mas olhe, você é a mesma de quando a conheci.
Ela não reagiu. Nenhuma palavra articulava. Quem era aquele homem? O que queria dela? Como sabia o seu nome e lhe falava com tanta intimidade que a deixava ainda mais apavorada?
– Desculpe, acho que não vim num bom momento. Eu sou Gregório Bastos, o professor de português, lembra, amigo de seu marido.
Gregório Bastos, sim, como ela poderia esquecer. Era ele, um ativista que fora torturado durante muitos meses, tendo que se exilar do Brasil e que participara de todos os movimentos ao lado de Jaime. Além disso, eram extremamente amigos.
Agora percebia aquele mesmo olhar tranquilo, a voz clara, a linguagem correta, como se estivesse sempre dialogando com os alunos.
Não havia dúvidas, era ele. Apenas mais velho, com os cabelos e a barba branca, mas os mesmos olhos claros na pele avermelhada, o mesmo jeito brando e agradável de segurar a mão com firmeza num cumprimento demorado. O mesmo tom seguro ao dizer o que pensava.
A repressão o teria transformado? Quem era aquele homem após tantos anos?
– Bem, acho que realmente estou importunando você, mas não se preocupe. Eu voltarei outro dia.
– Não, por favor, fique – respondeu com voz sumida. Ele sorriu:_agora me reconheceu, Úrsula?
– Sim, Gregório. Eu o reconheci.
– O tempo passou e a gente se afastou demais. Mas há um momento para o encontro, quem sabe é agora, não é mesmo?
Ele tinha esta mania de instigar uma atitude, mesmo que não se quisesse. Além disso, sempre tinha uma solução para tudo. Um conciliador. Um homem de bem.
– Entre, Gregório. Pode acreditar, estou muito feliz que esteja aqui. É que ainda não me recuperei do susto.
– Pensou que eu estivesse morto?
– Não, é que faz tanto tempo e há muitas lembranças deste passado.
– Não vamos ficar falando em tempo, porque ele só existe porque falamos nele. O tempo é o que vivemos, registramos. Se não fazemos nada, nada significa. Não é tempo. Que nos interessa a ampulheta desandando aquela areia, nos deixando malucos? Interessa-nos a vida que vivemos no dia a dia, na cumplicidade dos gestos simples e solidários, do viver parelho, não paralelo. Você também não pensa assim, Úrsula?
Ela sorriu, ainda um pouco zonza. Confessa que ficara meio confusa com a conversa, mas pede que entre.
Gregório prossegue, entusiasmado. Segura as suas mãos e acrescenta, carinhoso : – desculpe se a embaracei Úrsula, juro que não era minha intenção. Ela afasta as mãos e recua um pouco o corpo, num recato que nem sabia que ainda experimentava. Um leve fulgor invadiu a face.
Gregório entra e instala-se no sofá, sem antes observar o velho piano em que recorda Úrsula tantas vezes, ali sentada, tocando suas eternas canções, embalando os sonhos de todos que se reuniam naquela sala.
– Você se lembra, Úrsula? Enquanto nós ficávamos horas discutindo estratégias para atingir o inimigo, você ficava no seu piano, um pouco distante, enchendo nossos ouvidos, pelo menos de alguma poesia.
– Não me lembre isso, me sinto tão culpada.
– Que isso, não se sinta culpada. Você deixava o ambiente menos tenso. Nós gostávamos muito.
–É verdade?
–Claro. Jaime nunca lhe falou?
–Jaime dizia tantas coisas para me agradar.
Os dois silenciam por um breve momento. Úrsula então decide oferecer-lhe uma bebida.
–Não se preocupe comigo, Úrsula. Já não bebo como antigamente, acho que nenhum de nós, não é mesmo? De qualquer maneira, o que eu gostaria mesmo é de um cafébem forte. O café aguça a mente.
Úrsula se esquiva, indecisa. Dulcina não está, teria que ir à cozinha, deixá-lo ali e não conseguia entender a si mesma, mas sentia-se impedida, os gestos imprecisos. Estava ainda perturbada.
Ele percebe a hesitação.
– Se você não se importa, eu lhe ajudo a fazer o café.
–Não diga isso.
–Digo sim. Vamos para a cozinha que eu mesmo preparo. Nestes anos todos sozinho, eu aprendi tudo nesta minha vida.
–Você está sozinho?
–Há mais de dez anos que Berta me deixou. E não tivemos filhos, você sabe.
Ela não sabia. Na verdade, não sabia nada sobre o seu passado recente. Enquanto se dirigem à cozinha, ele conversa com uma energia que a surpreende.
Uma pergunta não lhe sai da mente: qual é o motivo da visita.
Enquanto tomam o café, Úrsula fica mais à vontade. A mesa, às vezes, une as pessoas, talvez pela proximidade, por estarem no mesmo nível, por partilharem do mesmo prazer. Não sabe. Ele parece adivinhar a indagação.
– Não lhe disse que o café aguça a mente, deixa a gente mais solto, mais vibrante? Você me parece bem melhor.
Úrsula irrita-se com a observação. Quem é ele para julgar o seu estado de espírito. Ele então, complementa.
–Eu também sou assim. Quando alguma coisa me incomoda, quando recebo uma visita inesperada, às vezes, até desagradável, convido para um café. Assim, fica-se mais perto da pessoa e se desenvolve melhor o raciocínio. Esta bebida sagrada também ajuda.
–Então é um estratagema seu. Você pediu o café de caso pensado.
–Sim e não. Na verdade, eu gosto muito de café e pensei que você também gostasse. Por outro lado, é uma boa desculpa para ficarmos mais próximos, você não acha, Úrsula?
–Não sei, Gregório. Até agora, eu não descobri o motivo da sua visita. Tem um motivo, não tem?
–Naturalmente. Desde que eu conheci o Vinícius, tenho pensado muito em você.
–Vinícius?
–Você não o conhece?
–Nem imagino de quem se trata.
–Ah, então me desculpe. Acho que fui indelicado. Mas pelo que ele me falou, eu tinha certeza de que vocês se conheciam, inclusive porque ele está trabalhando na biografia do Jaime.
–Trabalhando? Como assim? Quem está fazendo a biografia do Jaime é Susana Medeiros, a jornalista do Diário de Hoje.
– Ah, exatamente. Não se inquiete, Úrsula, não há equívoco nenhum, nem ninguém está roubando o trabalho da sua jornalista. É verdade, ele me falou sobre ela. Inclusive, pensei que fosse me procurar, porque segundo ele, sou uma fonte privilegiada.
–Mas quem é este tal de Vinícius?
–É o editor do jornal, o chefe dela. Está muito interessado na biografia. Pretendem fazer uma série de reportagens revelando ao público o período de exceção que o Brasil viveu. Querem mostrar a cicatriz, revelar a ferida, sem esconder nada. Espero que ajude à sociedade a analisar o movimento como um período histórico que deve ser discutido, aprofundado, sem medo. Não há mais motivo para se esconder mais nada neste País, você não acha? Devem abrir os porões da ditadura. Você não acha isso, Úrsula?
–Gregório, você tem essa mania de querer sempre a minha opinião. Eu não sei de nada.
Ele a fita, afetuoso. Fala pausado.
–Você tem razão, Úrsula. Eu não devo questionar nada, nem ninguém. Mas como lhe disse, tenho pensado muito em você, desde que conheci o Vinicius. Agora, você já sabe o motivo. É porque quero ajudar esta moça a concluir o seu trabalho, quero que além das reportagens, ela publique um excelente livro, em que a verdade venha à tona. Que a história de Jaime seja um exemplo, para que nunca mais em nosso País, aconteça algo semelhante ao que lhe aconteceu. Você não concorda? Espere, espere, não vou perguntar nada.
–Mas eu concordo, Gregório. Eu concordo e juro que vou ajudá-lo. Jaime será o protagonista que exemplificará toda a saga de horrores que a nossa geração vivenciou e lutou contra. Ou pelo menos, a geração mais nova do que a minha, que foi muito atuante. Jaime e você foram quase exceções. Já eram homens maduros, estabilizados em seus empregos que resolveram compartilhar suas ideologias, lutar por suas ideias. Pensar um País diferente para nossos filhos e netos. O que eu não fiz naquela época, o que omiti, vou fazer agora, de uma outra maneira, é claro, mas vou tentar participar.
Jaime segura-lhe as mãos com carinho. Percebe que uma lágrima escorre rápida pela face de Úrsula.
–Você fez, Úrsula. Você fez muito. Você o amou.
Ela levanta a cabeça e por um momento seus olhares compartilham da mesma visão, vendo um no outro, o que seus corações balbuciam baixinho, indecisos, à espera.
Úrsula desfaz-se do enlevo, soltando-se as mãos e levantando-se, dirige-se à sala, sendo seguida pelo olhar afetuoso de Gregório.
Ela dá alguns passos, tamborila levemente as teclas do piano, aproxima-se da janela, mas não olha para a rua. Como um pássaro incauto se debate na vidraça. Mas só por um instante.
Agora desfruta a quietude da alma.
Instintivamente, levanta a cabeça em direção ao quadro de Rita Rayworth. Volta-se rapidamente e torna a olhar, porque tem a impressão de que ela piscou o olho, maliciosa.
FIM
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