ESTE É O SEGUNDO FOLHETIM QUE PUBLICAMOS EM CAPÍTULOS. COMO NO ANTERIOR, SERÁ PUBLICADO NAS TERÇAS-FEIRAS E QUINTAS-FEIRAS. HOJE QUINTA-FEIRA, 7 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O 1º CAPÍTULO. ESPERO QUE CURTAM E VOLTEM AO BLOG PARA ACOMPANHAR A SEQUÊNCIA. OBRIGADO.
Não sei se me arrumo de jeito. Quero ter as coisas no lugar e os dias passam rápidos que nem me dou conta. Acho que preciso parar e pensar e refletir muito, para não ficar rememorando coisas dormidas, esquecidas, mortas e enterradas.
Por mais que me esforce ao contrário, os fatos acontecem. Pudera amanhecer o dia e nem ver as primeiras cores, os primeiros riscos avermelhados, quando tem sol ou quando o sol vai aparecer daqui a pouco. Que nada. Já nem me animo com estas belezas da natureza. Tudo já é cinza, sem cor.
Afinal, passo as noites olhando pela janela, que nem desconfio se há qualquer diferença no tempo. Se chove, faz frio ou calor, saberei no decorrer do dia. A cabeça pesa, o corpo dói e os anos que se acumulam me entocam nesta casa, me deixam perplexa apenas com minha sisudez, com meu desânimo, com meu pouco fazer.
Quisera sair, nem que fosse para fugir desta janela inexorável como o tempo que corrói meus ossos, que afunila minha garganta, que me deixa rouca, voz cansada e sem vida. Meus cabelos esgadelhados. Se as pessoas me vissem assim, como me olho no espelho, por certo teriam náusea, virariam o rosto, entediados, aflitos.
Meu único filho morreu, faz cinco anos. Ele era lindo, um rapaz forte, homem de grandes paixões, sentimento cru. Morreu de dor, solidão. A mulher vive por aí, esquecida de mim, cobrindo a saudade com flores de plástico. Eu, por meu lado, vou quando posso. Só assim, me afasto de minha janela e visito o seu túmulo.
Recordo os tempos em que era apenas um menino, um garoto franzino, que se vestia de zorro, enfiava a espada nas almofadas e sentia-se um herói. Corria pela sala, batendo joelhos no passo desengonçado, de quem se afirma nas pernas miúdas sem grande presteza.
Já naquela época, eu quase não dormia, não tanto quanto hoje. O Jaime voltava tarde, ficava muito tempo na redação do jornal e Luisinho, cansado, dormia a sono solto. Eu olhava aquele vaivém da barriguinha e pensava comigo que nunca aquele sopro se dissiparia antes do meu. É a lei da vida. É a lógica. Por que não morri antes? Para ficar mais tempo olhando as luzes se apagar pela minha janela e o burburinho da cidade atiçada me empurrar pra dentro?
Na frente de minha janela, mora um velho ranzinza, que costuma falar sozinho. Deve ser mais velho do que eu, porque me parece caquético. Acho até que já caducou. Nunca olha pro meu lado e quando o faz, desvia os olhos depressa, temendo encontrar os meus.
Às vezes, vejo um homem no apartamento. Deve ser o filho, que aparece vez que outra pra ver se ainda vive, o infeliz. Eu não tenho este problema, já que ninguém vem me visitar. A não ser hoje, mas deixa pra lá. Quando chegar a hora, eu vou pensar nisso. Nem sei se vou atender, se vale à pena.
De noite, observo o velho estender a calça na poltrona, guardar os chinelos sob a cama e vestido num pijama démodé, se deita de qualquer jeito, enrolando-se nas cobertas. Acho que passa muito frio. Não fecha a janela, nem puxa as cortinas. Não atina. Faz sempre a mesma coisa. É metódico. Um dia, o vi pelado. Voltava do banho e nem se preocupara em vir com a toalha enrolada. Cena deplorável. Uma bunda magra sustentada em coxas finas, descarnadas. Acho que naquele dia, ou melhor, naquela noite, ele nem vestiu o pijama, porque quando voltei a olhar, já dormia virado pro lado. Cobertas até as orelhas. Será que ele tem ar condicionado? Mesmo assim. Velho sente muito frio. Eu já não sinto. Quer dizer, não sinto tanto, porque me aqueço bem. Meu hobby é fazer estes sapatos de lã que habitualmente uso. Mantenho os pés aquecidos e o restante vem por acréscimo.
Acho que devo me vestir com decência. Tirar estes chinelos de pano, procurar os meus brincos de ouro e todas as jóias que guardo no baú. Um baú de miséria. Se jóia me valesse de alguma coisa! Mas se todos pensassem assim, não existiria o garimpo da serra pelada. Será que ainda existe a serra pelada? Se pudesse, faria uma viagem. Deve ser um lugar muito lindo. O Jaime fez uma reportagem lá. Se eu tenho um sonho nesta minha vida, eu que nem sonho, seria o de ir até a serra pelada. Mas não tenho tempo pra isso, nem dinheiro, nem saúde. Quanto mais, vontade. Não tenho vontade de nada, nem de me vestir.
Estranho, o velho não apareceu na janela. Por estas horas, ele sempre dá uma olhadinha pra baixo. Acho que pra descobrir se os carros aumentaram um pouquinho de tamanho. Velho esquisito!... Olha de soslaio. Não encara. Às vezes, se debruça na janela, como se fosse se atirar na calçada. Qualquer dia desses, cai mesmo. Fraco como é. Mas deixa correr. O velho tem as dele, eu as minhas. Cada um com suas manias.
Hoje ele não apareceu. Será que foi ao médico? Quando velho sai de casa, ou é pra ir ao médico ou pra visitar cemitério. Falar nisso, bom que eu dê jeito nas coisas. Você não acha? Comprar flores, mandar fazer faxina no túmulo do Luisinho. A última vez que fui, tinha chovido muito e se acumulado folhas de tudo que é tipo de árvore. Um lixo só. Vento e chuva só atrapalham os mortos. Quando não os velhos!
Será que ela vem? Deixa eu ver, que dia é hoje? Deve ser amanhã, se não for na segunda...
Bem que podia ser hoje, pra me livrar de vez desta invasão. Sei o que essa gente procura: bisbilhotar a vida dos outros. Até que ponto lhe interessa a história de Jaime?
Vai sentir piedade, dó de uma velha atirada neste apartamento sozinha, que não arreda pé da janela. Uma mulher que um dia foi a esposa do Jaime. Coitada, vive da pobre aposentadoria que ele deixou.
A minha biografia? Deve desconhecer totalmente.
Não sabe, por certo, que fui uma grande pianista, uma mulher acostumada às luzes da ribalta, dos holofotes, ao olhar amoroso dos fãs, ao aplauso arrebatado do público. Mas faz tanto tempo! Não posso me apresentar mal, não acha Rita?
De qualquer forma, o interesse dela deve ser esse: bisbilhotar a minha vida. Detesto esta gente que fica se intrometendo na vida dos outros. Tal como a Dona Júlia, do 403. Não dá ponto sem nó. Vive cercada de gente, marido, filhos, sobrinhos, o diabo a quatro. Não tira a bunda da cadeira, tomando café e falando no telefone, mas não tem dia que não fique espiando da escada pra descobrir alguma novidade no prédio. Um dia ainda jogo aquela zinha escada abaixo.
Meu Deus, por um tempo, fui tão religiosa. Que aconteceu comigo que tenho estes pensamentos de ira? Mas que a Dona Júlia é uma maçante, ah, isso é. Sempre que a Dulcina chega, ela sempre pergunta como estou. Mas não é para saber da minha saúde, se fosse isso realmente, viria até meu apartamento ou ligaria. É pra ver se descobre alguma coisa. Tenho certeza que se ela vir a moça, vai interpelá-la na escada ou no elevador. A curiosidade ainda vai matar aquela lá.
A visita. Deve ser hoje sim. Melhor eu me arrumar para não causar piedade ou nojo. Você não acha Rita? Sabe-se lá como essa gente reage na frente de uma velha como eu.
Já tive meus encantos, fui muito admirada, não só na minha profissão, mas nas relações sociais. O Jaime tinha muito ciúmes, quando eu chamava a atenção dos homens.
Mas que fazer, eu tinha meus predicados. Era alta, a pele muito clara, os cabelos castanhos. E meus olhos eram grandes, expressivos. Hoje, quase não tem vida, escondidos que estão nas papadas que sobraram de minhas pálpebras. Quando o Luisinho se foi, envelheci dez anos. Meus olhos incharam, perderam o brilho. A vida não teve mais sentido. Se havia algum, se foi.
Ah, graças a Deus! O velho apareceu na janela. Você viu? Uhm, está lambendo os lábios. O café foi mais demorado, hoje. Nem deu tempo de passar um guardanapo naquela boca! Que velho desajeitado. Menos mal que está vivo. Não para ninguém naquele apartamento. Este aí, já faz mais de ano.
Olha, como ele não me encara. Acho que tem medo que eu puxe conversa. Pois pra eu abrir a boca, precisa ser alguém muito interessante, ou que me procure, como esta moça que vem aqui hoje: a tal visita. A que vem saber sobre a vida do Jaime. Este velho aí pode se benzer. Eu jamais vou conversar com ele. Nem que o prédio dele incendeie.
Se ele soubesse, que o vi pelado! Ia morrer de vergonha! Ou não, tem jeito de ser confiado. Jamais contaria isso a ele, jamais! Será que é mais cedo do que eu imagino? Quem sabe, ele está na hora correta? Quem sabe, acordou há pouco? Ando meio perdida nos horários. Vou pro meu banho, antes que batam na porta e eu tenha de atender com a boca cheia. Vou fazer o desjejum antes da moça chegar. Não lembro se já tomei café. A noite foi tão longa!
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