HOJE QUINTA-FEIRA, 14 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O TERCEIRO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.
Capítulo 3
Agora que Dulcina foi embora, sinto-me mais à vontade para viver a minha vida. Ela jamais me entenderá, como você. Tem a cabeça fraca, desorientada. Quase uma boçal.
Agora, posso observar a escuridão das ruas, as luzes ao longe, o vaivém de lâmpadas que se acendem nas escadas dos edifícios, quando alguém acaba de entrar nos prédios. Em alguns, quase participo de suas vidas. Vejo-os entrar, deslocarem-se para seus quartos, seus locais de trabalho ou lazer. Um menino passa metade da noite na frente da tela do computador. A mulher do prédio da esquina se acomoda numa poltrona que quase desaparece, hipnotizada pela tv. Cada um faz uma atividade que lhe faz bem, que lhe proporciona prazer.
Eu cá, fico na minha janela. Daqui vejo o mundo, do qual não posso partilhar. O velho aí da frente, ainda não se deitou. Já devia tê-lo feito, pelo menos, de acordo com a sua rotina diária. Como pode ser tão metódico. Fica perdido lá por dentro do apartamento, talvez na cozinha ou na sala assistindo tv. Isso, não posso descobrir, não tenho olhar de raio-x. Às dez horas, porém, costuma deitar, após o banho. Via de regra, já aparece de pijama. Coloca a calça passada na cadeira, ao pé da cama, o casaco, a camisa e as meias e se deita, esquecido do mundo. Que pensará um homem como aquele? Será que ele tem algum drama na vida? Será que perdeu um filho? E aquele homem, que aparece, além do enfermeiro? O enfermeiro passa algumas horas medicando-o e vai embora. O filho, raramente. Hoje, ele ainda não veio deitar-se. Sempre dá uma olhadinha na janela para baixo, antes de ir para a cama. A lâmpada, só a da cabeceira. Passa a noite na penumbra, deve temer o escuro. Acho que no prédio dele, não tem gente muito decente, não. Aquela prostituta bate o ponto invariavelmente às 6 da manhã. Como é que deixam uma mulher da vida, morar num prédio familiar? Mas quem disse que é familiar? Hoje em dia, elas estão em qualquer lugar, até nas igrejas.
Houve um tempo em que fui religiosa, acho que foi antes do Luisinho morrer. Acabei abandonando os santos ou eles me abandonaram. Meu destino é passar as noites a olhar para fora, a investigar a vida dos outros, a perscrutar seus relacionamentos, suas atividades noturnas. Não são muito criativos. Aos poucos, todos fazem a mesma coisa: vão apagando as luzes dos apartamentos e tudo vai ficando às escuras. Mas daqui, eu vejo as ruas. Estas não dormem jamais.
Meu Deus, quem diria! Lá está ele, como de praxe. Está atrasado, meu amigo. Certamente, vai fazer a revista na tropa. Espia para baixo, examina as esquinas, as pessoas que passam apressadas ou não, os que ficam na calçada, conversando ou os que entram na farmácia. A visão dele é melhor do que a minha, porque fica quase na esquina e do outro lado da rua, é possível observar toda a região de comércio pesado. Os botequins, os bares, as livrarias. Estranho, ele não voltou para dentro. Que está havendo com este velho? E está falando novamente! À noite, ele se abstém destas caduquices. Mas o que pretende?
Quando Gustavo ainda era menino, tínhamos a impressão que ficaríamos eternamente juntos. Sabíamos que preparávamos o seu futuro, mas o seu destino já estava traçado. Nada que fizéssemos mudaria o que estava escrito. Não imaginávamos, porém que a mudança seria tão radical.
A quem ele se refere? Ao filho? Então não sabe que o futuro não pode ser decidido por ninguém, muito menos pelos pais. Provavelmente, fora um homem autoritário, um machista que mandava e desmandava na família, que pretendia escolher até a carreira do filho. Por esta razão, o rapaz desistiu de visitá-lo, de aproximar-se, de compartilhar seus desejos, seus sofrimentos e alegrias. Este velho nunca me pareceu coisa boa.
Se ao menos Sarita estivesse ao meu lado, teríamos uma vida para recordar e quem sabe, reviver o passado. Não fosse o ciúme mortal, a dose de veneno que engoli, dia a dia, e que aos poucos fui expelindo, enchendo o ar, entornando o copo até alcançar o ápice da explosão.Sempre fui um homem exaltado, de orgulho próprio, de forte auto-estima. Jamais admitiria uma transgressão. Por isso, fui aos poucos te enjaulando, emparedando, te prendendo como o joão- de-barro traído. Não devias ter feito isso, não devias ter me transformado no que sou hoje. Oh, Sarita, se pudesse, se Deus me permitisse, eu desfaria tudo, eu retornaria ao passado e jamais cometeria o mesmo ato.
O que ele quer dizer com isso? Será que é o que estou pensando?
Sei que meu filho me abandonou porque acabei com a sua vida. Agora estás lá, emparedada naquele mar de cimento e brita. Morreste em pé e para sempre ficarás, enquanto tuas carnes não desprenderem de teus ossos e desaparecerem como pó.
– Meu Deus! Assassino! Assassino!
Ai, tenho que calar-me, ele pode ouvir-me. Como pude expressar com voz alta. Você ouviu, Rita? Não pude conter a indignação. Eu sabia que o maldito tinha alguma coisa a esconder. Então ele enterrou a mulher na parede, em pé, cheia de cimento e brita. Ele é um monstro e pode querer matar-me também, se souber que sei de tudo.
Quisera poder voltar atrás, sair desta masmorra que se transformou a minha vida ou o que restou dela. Sei que você me perdoou Sarita, mas não tive escolha. O desespero era intenso, a dor que sentia era maior do que tudo.
Velho miserável. Agora chora. Depois de matar a mulher sufocada num saco de cimento! Queria por acaso que o filho concordasse com ato tão covarde? Pois que o deixe sozinho, abandonado e que apodreça naquele apartamento! É por isso que ainda não se deitou, consciência pesada. Por isso, está na janela, como eu. Só que meus motivos não foram produzidos por mim, mas pela vida, que me traiu. Ele, ao contrário, traiu o filho. Este velho deveria estar preso, o que faz neste edifício, ao lado de pessoas de bem?
Olhe, Rita, olhe. Saiu da janela, sem encarar-me. Teme, por certo, meu olhar de censura. Intimamente sabe, que qualquer pessoa pode acusá-lo. Basta olhá-lo, basta ouvir-lhe a voz, os pensamentos.
Eu sabia, Rita, que hoje seria uma noite diferente. O velho escureceu o quarto, completamente. Pela primeira vez, apagou a luz da cabeceira. Certamente, não quer distinguir um só objeto, nem a própria sombra. Ou talvez esteja me espiando, às escuras, analisando a minha sala, tentando descobrir a minha fisionomia para marcá-la e cometer o mesmo homicídio cruel. É um psicopata perigoso, preciso fazer alguma coisa. E se eu ligasse para a polícia? Não, não acreditariam que eu sei de tudo e como vou provar que consigo ler os seus lábios e até pensamentos? Tenho que pensar num plano, um plano que me leve a alguma descoberta. Quem sabe, uma investigação? Sim, se a jornalista me ajudasse. Ela tem a mídia nas mãos, podemos acusar o velho, colocar a foto no jornal e denunciar toda a sua história. Ele não pode ficar impune.
Fonte da ilustração:columbo.jpgBy Prawny
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