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O DOCE BORDADO AZUL - 25º e 26º capítulos

Estes dois capítulos de nosso folhetim referem-se à publicação desta terça-feira 15/12/15 (já adiantados). A sequência virá na próxima quinta-feira.

Capítulo XXV

O bordado azul e a meada vermelha

Sozinha, Laura descansava a cabeça em sua poltrona. Fora um dia repleto de emoções. O pote estava cheio e ela não mais tinha vontade de fazer nada, nem prosseguir no bordado, olhar pela sua janela ou dedicar-se à pesquisa dos acontecimentos. Até porque aquela gente já não lhe causava o menor interesse. Eram pessoas medíocres e nada de extraordinário acontecia em suas vidas, a não ser projetar as suas frustrações nela. Por outro lado, havia a expectativa da visita de Gustavo. Não tinha se ocupado ainda do tema, mas sem dúvida, não passaria em branco. Quanto à filha, estava no convento, com a finalidade de passar a noite com uma das irmãs que estava doente e cumpria a sua tarefa árdua na dívida que tinha com Irmã Carlota.

Laura vestia-se com simplicidade, mas de certa forma, bem alinhada. Nada lhe caía tão bem quanto uma roupa larga e confortável. Estava de preto e no pescoço, uma corrente estreita de ouro. Os cabelos curtos, penteados para trás, salientando a testa ampla, os olhos grandes e as maçãs do rosto vermelhas. Estava deste modo, distanciada de sua rotina, quando ele chegou. Limitou-se a esperar alguns segundos, para que insistisse, embora percebendo ser observada através da janela. Ele bateu novamente e então decidiu atendê-lo, sem pressa.

Gustavo antecipou-se a falar, ansioso para contar alguma coisa que tinha em mente.

– Laura, se você me permite, eu trouxe a minha sobrinha para conhecê-la. Não vai demorar muito, apenas para que se apresente e você tire algumas informações.

Laura o olhou aborrecida. A última coisa que queria naquele dia era pensar na proposta que ele fizera. Nem mesmo tivera tempo para qualquer decisão. Replicou, irritada: – Gustavo, dispenso os rapapés. Onde está a moça?

Gustavo chamou a sobrinha, que ficara um pouco atrás, à espera do convite. Apareceu à à porta, mostrando-se uma mulher requintada.

– Esta é Paula. Paula Andréia. Podemos entrar Laura?

Laura os convidou com um gesto. Imediatamente informou que não havia pensado no assunto, o que fatalmente a levava à indecisão.

– Não se preocupe Dona Laura. Eu aguardo alguns dias. É que meu tio insistiu...

Laura percebeu as unhas bem feitas, o corte de cabelo ajeitado. Não parecia uma pessoa humilde, que se submetesse a servir-lhe de empregada.

– Mas você acha que pode tomar conta do riscado?

– Como assim?

Laura olhou para Gustavo, sorrindo com ironia.

– Ela não me parece do ramo, Gustavo. Mas acho que pode aprender rápido.

– Sem dúvida, Laura, sem dúvida. Tenho a certeza de que minha sobrinha vai ser muito útil a você. Lembre-se que ela não tem muita experiência, mas estará aqui para ajudá-la e você sabe, para afastar-se daquele cafajeste.

Laura sorriu, desta vez pensativa.

– É um caso estranho. Mas acho que você vai me ser útil. Tenho esperanças que Lúcia consiga logo um emprego, então ficarei sozinha.

– Eu espero que sim.

Gustavo rapidamente descreveu as qualidades da sobrinha e pediu que voltasse para a casa, já que tinha sido apresentada. Laura abriu a porta e aguardou os dois conversarem na saída. Tentou ser gentil, dando um até breve para a moça, quando o telefone tocou. Pediu licença e foi atender, enquanto Gustavo voltava para dentro, fechando a porta atrás de si.

Laura visivelmente se surpreendeu com o telefonema. Ouviu a voz do outro lado da linha, apenas identificando-se. Depois, perguntou o que havia acontecido, para Bárbara telefonar para ela, querendo falar-lhe sobre um assunto importante e não com a filha.

– Mas é comigo mesma? Lúcia está no convento, neste momento. Vai passar a noite lá.

Bárbara insistiu que precisava falar-lhe.

–Então diga, minha filha. Aconteceu alguma coisa?

Gustavo sentava-se na poltrona, sentindo-se à vontade. Pegou um dos bordados de Laura e ficou examinando-o, prestando a atenção nos detalhes. Era um tecido branco e todo o bordado se desenvolvia na cor azul, o que o deixava intrigado. Havia alguns pontos prateados, entremeados no azul denso, quase cintilante. Não descobria, no entanto de que peça se tratava, se era uma toalha, um lençol ou mesmo uma cortina. Na verdade, aquilo não o interessava naquele momento. Aliás, embora reconhecesse aquela atividade como uma verdadeira arte, nunca havia se dado ao trabalho de pensar no assunto.

Laura prosseguia ao telefone e empalidecia a cada frase de Bárbara.

– Mas por que está me dizendo isso?

Bárbara insistia, com uma voz firme.

– Porque eu acusei a sua filha e quero reparar este erro. Ela não merece o que a senhora fez e antes que eu vá aí, quero que diga tudo a ela.

Laura avistava Gustavo sentado na poltrona. Temerosa de que ele desconfiasse do assunto, fingia uma tranquilidade que não possuía.

– Está bem, está bem, eu direi a ela. Mas eu preciso saber, como é que você deduziu tudo isso?

– Não deduzi, eu... – Bárbara se conteve, evitando citar nomes. Concluiu, hesitante – eu descobri que a senhora tinha se passado por Lúcia e que provavelmente tenha armado toda aquela situação.

– Como pode me acusar assim?

Bárbara calou-se e voltou a insistir que Laura revelasse a verdade à Lúcia. Laura concordou, mas antes que desligasse, passou-lhe uma dúvida pela mente, que deveria ser esclarecida.

– Está bem, Bárbara, mas antes que desligue, me diga uma coisa. Alguém a ajudou nesta descoberta?

Gustavo ouviu o nome de Bárbara e ficou intrigado. De repente, Laura poderia descobrir a sua jogada e por tudo a perder. Levantou-se e aproximou-se, inconveniente. –Laura, preciso falar-lhe – disse em tom confessional. Laura o afastou com a mão, mostrando que estava ao telefone. Neste meio tempo, Bárbara concordou que recebera ajuda e cortou logo a conversa.

Laura ficou pensativa, envenenada que estava com seus próprios pensamentos. Voltou-se para Gustavo e antes que ele dissesse qualquer coisa, disparou: – você conhece Bárbara?

Ele respondeu que sim, titubeando e perguntando ao mesmo tempo de quem se tratava.

Laura afastou-se do telefone e voltou para a sua poltrona. Ele a seguiu e sentou em sua frente, se explicando: – não sei se se trata da mesma pessoa. Conheci por acaso uma moça, que veio aqui.

– É esta mesma!

– Pois é, ela perguntou por vocês, estava perdida, procurando o endereço.

– E você como sempre solícito a acompanhou até minha casa.

– É verdade, como é que você sabe? – fingindo-se inocente.

– Não sei de nada, deduzi, seu palerma!

– Olhe aqui Laura, veja bem como fala comigo. Se não quer a minha companhia, me diga que vou embora.

Laura sorri, mudando de tática.

– Não é nada disso, seu bobo. Não se faça de rogado. Sabe que eu adoro a sua companhia!

– Ah, bom, se é assim.

– Não vamos mais falar nesta idiota. Vamos conversar sobre nós.

Gustavo encostou-se aliviado no sofá. Sorrindo, avisou que tinha muito a dizer sobre ele, mas que gostaria mesmo é saber da vida dela, que lhe parece muito interessante.

– Você acha? Tenho uma vida comum. Qualquer fato que aconteça comigo, parece tomar dimensões estratosféricas, todo mundo entra polvorosa. Você estava no bairro, hoje à tarde?

– Não, passei a tarde fora. Estava com minha sobrinha, comprando algumas coisas que ela necessitava.

– Então, já que você não sabe, conversaremos no momento apropriado. Me diga uma coisa, você é um bom cozinheiro?

– Por que você me pergunta?

– Porque hoje você vai fazer a comida!

Ele responde em tom alterado, satisfeito por ela ter se interessado no tema que mais o agradava. Justificou-se, porém, que não sabia nada de culinária.

– Laura, você só pode estar brincando, eu não manjo absolutamente nada de cozinha. O máximo que fiz foram os sanduíches que ajudei você a montar.

Laura dá uma risada que parece ampliada pelo ambiente fechado, enquanto afirma que está brincando, já que pediu uma comida especial para os dois. Sugeriu que Gustavo se servisse de um drinque qualquer para começarem a noite. Em seguida, afastaram-se para a peça que antecedia a cozinha, onde havia um bar com alguns bancos. Serviram-se, beberam os dois, mas Laura sempre com reservas, limitava-se a beliscar a borda do copo, evitando tomar goles maiores. Comeram e bebaram um bom vinho. Logo após voltavam para a sala, com os copos nas mãos.

– Laura, parece que você não está bebendo o suficiente?

– É verdade. Hoje estou com ressalvas em relação à bebida, mas não se preocupe, estou me divertindo muito.

– Então me diga, o que aconteceu hoje à tarde?

– Ah, uma bobagem sem importância. Vou lhe mostrar uma compra que fiz, depois você vai entender melhor.

– Uma compra?

– Sim, um objeto primoroso.

Enquanto falava, servia os dois copos. Observava satisfeita que o dele, ela o enchia mais vezes, pois Gustavo era insaciável na bebida. Por fim, perguntou o que tanto a incomodava.

– Quem é Bárbara?

Gustavo ria relaxado. Ratificava o que lhe contara, que conhecera a moça quando a vira procurando o endereço, portanto não tinha mais nada a dizer. Laura então, lançou uma carta decisiva, pondo em risco a informação pretendida.

– Mas você esteve com ela.

Gustavo ficou visivelmente preocupado. Ajeitou-se na poltrona, arrumando a gola da camisa que apertava a garganta, meneando a cabeça, para acomodá-la em definitivo. Laura percebeu que a cartada tinha atingido o alvo. Ele tentou sair pela tangente, também perguntando.

– Ela lhe disse que a encontrei?

– Disse – mentiu, ágil.

– Ah. Não tem nada de mal nisso, tem?

– Absolutamente. Só que você não me contou tudo. Por que fingiu não conhecer Bárbara, se até a visitou?

– Na verdade, não foi uma visita.

– Ah, não foi?

Gustavo esticou as pernas, quase encostando-as na poltrona da frente, como se as alongasse num gesto de preguiça. Depois, encolheu-as e levantou-se num salto, perguntando: – posso encher mais o copo?

– Sem dúvida, por favor.

Gustavo obedeceu como um menino pego em flagrante travessura. Balançava as calças nas pernas finas, enquanto se dirigia ao bar contíguo à sala. Desta maneira, desconversou, tentando refletir.

– Sabe de uma coisa, eu não estou entendendo nada. Parece que você me faz um interrogatório.

Laura, por sua vez, não se deixava vencer. A caça estava próxima e seu faro confirmava que não a perderia sob hipótese alguma. Sabia como proceder, de modo que parecesse uma curiosidade que precisava ser satisfeita.

– Não é nada disso, seu bobo. Apenas, você me escondeu que conhecia Bárbara e esta moça é muito amiga de minha filha. Você a trouxe aqui, você a visitou. Não acha normal eu ficar curiosa?

– Eu a visitei?

–Você mesmo afirmou.

– Sim, foi por acaso.

Ela insistiu, num bate e rebate, cada vez mais próxima de seu objetivo.

– Foi por acaso que a encontrou quando vinha para cá, foi por acaso que a visitou. Foi por acaso também que falou de mim para ela?

Nestas alturas, Gustavo, apesar de toda a agudeza de espírito, fica confuso.

– Como é que você sabe?

Laura levanta-se da poltrona com uma agilidade que nem ela desconfiava que possuía. Dá uma volta pela sala, larga o copo que tinha na mão, sobre a mesa e aproxima-se da janela. Dá uma pequena espiada para fora, arredando levemente a cortina como costumava fazer. Não havia nada de extraordinário na rua, apenas a escuridão quase absoluta. Poucas luzes da rua estavam acesas, o que lhe chamou a atenção.

– Parece que a prefeitura não pagou a empresa de energia elétrica. Está quase tudo às escuras.

– Deve ter sido uma pane.

Laura voltou a sentar e o encarava séria. Gustavo abaixa os olhos por um segundo, desorientado. Ainda com o copo na mão, imita o movimento anterior de Laura. Aproxima-se lentamente da janela, como se fizesse um esforço sobre-humano para chegar até lá. Não se atreve a fazer qualquer gesto. Desiludido, volta a sentar-se.

– Quero que você me diga Gustavo, o que ela queria saber de mim?

– Mas você não sabe tudo?

– Não, não sei, não sou onipresente. Mas você sabe, você ouviu de mim toda a história de minha filha, de que eu a protegia e por isso me comuniquei várias vezes com Bárbara, como se fosse Lúcia. Você sabe de tudo, eu não escondi nada!

– Era isso que ela queria saber!

– E você contou!

Gustavo se embaraça, percebendo que fora longe demais.

– Eu achei que não havia nada demais, que você apenas queria ajudar Lúcia.

Laura fica em silêncio. Ele prossegue, como se tivesse levado uma terrível reprimenda. Levanta-se em seguida, pedindo desculpas, dizendo que seria melhor afastar-se e não se envolver mais na vida dela. Voltaria para casa, esqueceriam o assunto.

Laura o desafia, com ódio.

– Esquecer o assunto? Você me traiu Gustavo. Eu lhe fiz uma confidência, não era um crime, mas uma coisa não muito correta de minha parte. Você contou para aquela...

Gustavo ainda em pé, pediu novamente desculpas. Sabia que tinha cometido um erro e que não a incomodaria mais com suas conversas, seus encontros, afinal, eles tinham se conhecido e para ele, Laura tinha um significado especial. Gostava da sua companhia, mas percebera que cometera uma indiscrição e assim tomaria o seu caminho e a deixaria em paz.

Aproximou-se da porta, meio cambaleante pelo efeito da bebida e permaneceu ali, parado, esperando que ela a abrisse e o dispensasse para sempre. No fundo, acreditava que Laura o perdoaria, mas não seria naquele momento.

Laura continuou calada, mexendo nos seus bordados, apenas preocupada com suas tarefas. Gustavo pediu que abrisse a porta. Agradecia o jantar, a acolhida, mas não havia mais nada a fazer ali. Laura, ainda sentada, pergunta, distraída: – você gostou do meu bordado azul?

Gustavo ficou espantado, mas concordou, esperando a brecha para escapar dali. Ela prosseguiu: – são linhas doces, suaves, de um matiz tão jovial. Você não acha?

– Sim, Laura, sim. Mas por favor, abra a porta.

Laura deixa o bordado com delicadeza sobre a poltrona e aproxima-se dele, rindo zombeteira, considerando toda a conversa que tiveram uma bobagem. Chegou bem perto e confessou ao ouvido: – seu bobo, sabe que eu gosto deste seu jeito assustado? Parece um gatinho medroso!

Gustavo sorriu levemente, mas em seguida, tomou ares de ofendido: – você estava muito zangada, comigo.

– Até parece que não me conhece. Vamos, já esqueci aquela história estúpida. Aquela moça e toda as suas acusações não me dizem nada – e pegando-o pelo braço, acrescentou – venha comigo. Vou mostrar-lhe a minha aquisição.

Gustavo rapidamente iluminou o semblante. Ergueu a sobrancelha, como se espiasse curioso; novamente pescoço alongado e faces brejeiras. Deixou-se guiar e respondeu, sorrindo: – então vamos ver esta compra maravilhosa.

Ela o largou de súbito e acrescentou que antes de visitarem a tal preciosidade, deveriam tomar alguma coisa para comemorar. Pediu que esperasse onde estava, traria mais um copo de vinho, agora um licoroso para saboriarem o aroma adocicado do acontecimento. Gustavo estirou-se no sofá, satisfeito. As pernas abertas, joelhos balançando, enquanto lhes dava pequenas palmadas, como para justificar a expectativa. Achava estranho aquele tecido imenso, com um bordado azul na ponta, recém iniciado e ao mesmo tempo, tão bem elaborado, mas não comentou nada. Esperou que Laura o descrevesse e indicasse a sua finalidade. Resmungou, sozinho, seguro de si: – você não me escapa, Laura. A minha sobrinha vai descobrir tudo e eu vou ganhar muito com as suas mentiras!

Laura apareceu com os copos pequenos e um líquido avermelhado. Cobria delicadamente os ombros com o tecido de bordado azul. Ele levantou-se, impetuoso.

– Prove, não é saboroso? É um vinho caseiro, receita de família.

Ele segurou-lhe as mãos, sorrindo, empolgado: – você é muito habilidosa, Laura.

Depois, sorveu a bebida, sentindo-a emoldurar o palato, como se atingisse até o cérebro. Acrescentou, raspando a garganta: – é forte!

Laura riu, achando-o exagerado. Depois do que havia bebido, não devia importar-se com um simples licor caseiro. Uma bebida artesanal, sem qualquer aditivo que a deixasse mais forte. Convidou-o para ir para a peça onde encontrariam o tão afamado objeto. Gustavo a seguiu, passando o braço pelo ombro, com intimidade. Laura o repeliu levemente, adiantando-se pelo corredor, sacudindo as ancas, num balanço moderado e chegando até a porta do quarto amarelo. Gustavo suspirou feliz. Era o local que ele desejara ardententemente conhecer. Acrescentou, queixoso: – você nunca me trouxe até aqui.

– É que precisava de uma boa limpeza. Agora está tudo em ordem.

Abriu a porta e entrou no ambiente escuro, apenas quebrado pela luz do corredor. Gustavo a seguiu até que ela chegasse ao interruptor, que ficava no centro da parede.

– Sente-se aqui, na cama e feche os olhos. Quando eu acender a luz, você verá a minha compra.

– Ah, Laura, você é muito engraçada!

–Você não viu nada, meu querido! Vamos, faça o que lhe pedi.

Ele esbarrou no pé da cama, inábil, fazendo o reconhecimento do ambiente. Sentou-se e fechou os olhos.

Laura acendeu a luz e exclamou em voz alta, como se anunciasse a uma plateia.

– Agora, abra os olhos.

Gustavo abriu os olhos, sentindo um desconforto pelo excesso de luminosidade que invadia a retina, após aquele pequeno espaço de tempo acostumado na penumbra. Reclamou, porque não viu nada de extraordinário, a não ser um quarto velho, com paredes gastas, quadros de fotografias antigas, uma estante com livros e uma pequena cômoda, se bem podia distinguir, mas...

Laura o convidou para virar-se então, estava de costas para o objeto de sua admiração.

Gustavo voltou-se devagar, apertando as longas pernas junto ao estrado de ferro e espantado, não sabia muito bem identificar o que via.

– Mas isto parece... Meu Deus, isto é um caixão – terminou a frase num salto, como se a presença do objeto lhe fizesse mal. Laura aproximou-se, sorrindo com doçura – não é lindo?

– Lindo? É terrível! O que faz isto aqui dentro?

Laura se volta em direção à porta, desiludida.

–Você é igual a eles, não entendeu nada.

Gustavo cambaleou um pouco e voltou a sentar-se na cama.

– Entender o que Laura, isto é um absurdo. Por acaso, você vai criar uma funerária na sua casa?

– Claro que não. É o meu caixão. Este vai me levar na minha última morada.

– É uma loucura. Como pode alguém pensar assim?

– Eu penso assim. E este bordado que você vê, este tecido lindo, com um doce bordado azul, é a minha mortalha. Eu quero que ela me cubra inteiramente e todos apreciem o meu trabalho, mesmo depois de morta.

Termina a frase jogando-o sobre a cama, quase batendo em Gustavo, que afasta ligeiramente o corpo. Ele acena a cabeça, abatido.

– Você está louca.

Laura não o ouve. Passeia pelo quarto, comentando sobre o seu próprio velório, como se antevisse todo o desenrolar dos acontecimentos de sua morte e em vista disso, tomaria as providências necessárias.

– Será lindo. Todos dirão, como ela tinha uma mão boa. Nem parece que ficava o dia todo naquela janela, espiando, cuidando da vida dos outros. Lúcia me deixará bem no meio da sala, próxima à janela, para que todos que passem por ali, me vejam vestida com a mortalha de bordado azul, com os desenhos que imaginei – fez uma pausa, preocupada com outra coisa – o meu cabelo deverá ter um corte perfeito que ressalte a paz do meu rosto. A pele deve estar bem maquiada, não quero aquele ar cadavérico, a boca meio aberta, à espera das moscas. Não, tenho de estar linda, de boca fechada, com uma aparência fresca, descansada. Quanto ao corpo, não interessa mostrar estas banhas para a comunidade, mas sim o resultado do meu trabalho, através da mortalha. Quero que fique acomodada até os pés, nada de flores, infestando o ambiente daquele cheiro fúnebre. Não, nada disso. Apenas a mortalha, com os desenhos que eu projetei, com o meu trabalho ali, vivo, mostrado a todos.

Gustavo quis afastar-se, sentia-se mal, com falta de ar, o licor não tinha lhe feito bem, mas não tinha forças suficientes para erguer-se. Uma frouxidão nas pernas, uma vontade de deitar-se naquela cama e dormir para sempre. Aquela sensação o assustava extremamente. Precisava com urgência achar uma maneira de sair deste local de malucos. Pediu à Laura que o ajudasse a levantar-se, mas ela não o ouvia.

– Por favor, Laura, me ajude. Não estou bem, estou tonto. Meus olhos não enxergam direito, tenho uma nuvem constante, como se nublasse tudo. Nem este seu maldito caixão estou enxergando.

Laura o olha de uma maneira insana, não o reconhecendo. Está tão absorvida em seu mundo interior, que nada a faz voltar à realidade. Mas Gustavo insiste, cada vez mais apavorado, até que ela repentinamente, parece acordar do transe. Pergunta ríspida: – o que você quer?

– Quero sair daqui, não estou bem. Quero ar, este quarto está muito abafado.

– Não é o quarto – e responde adiantando-se rápida até a porta, fechando-a com a chave. – é você o problema. Você é que não está bem. E não é pra menos, bebeu demais!

Gustavo encosta-se nos travesseiros, falando com dificuldade.

– O que você está fazendo? Por que fechou a porta?

– Porque chegou a hora de eu mostrar-lhe os meus apetrechos de bordar, meu querido.

Dirige-se ao armário e pega uma caixa com agulhas, meadas de linhas em em todas as cores e tipos, desde os fios de algodão, até os mais industrializados, passando pelos fabricados em seda, além de tesouras, bastidores e dedais. Larga a caixa sobre a cama e começa a separar os objetos, um por um, obecendo a um ritual. Parece preparar o tecido para bordar. Primeiramente, os bastidores, a tesoura, os dedais e as meadas de linhas. Enquanto coloca-os em fila, pergunta-se a si mesma, pegando algumas meadas: – não sei qual ficaria melhor, a vermelha ou a preta. O que você acha? Com qual linha, eu começo a operação?

Gustavo move-se na cama, tentando afastar-se da caixa, que não sabe porque o incomoda, aumentando desconforto que o consome. Volta-se para ela, os olhos congestionados, em súplica. Mal consegue articular a pergunta: – por que me mostra isso?

– Porque você vai observar o meu trabalho, vai avaliar o meu talento. Eu sei urdir uma textura como ninguém, sei bordar como uma mestra, sei transformar um pano vagabundo, medíocre, num tecido nobre, belo e útil. É o seu caso, você não passa de um trapo vagabundo, mas eu posso transformá-lo.

– Você é maluca.

A voz de Laura torna-se dura, implacável.

–Você me traiu, por isso vai pagar. Você quer destruir a minha família, quer me jogar contra minha filha. Vou mudar esta sua mente podre!

– O que está dizendo?

Gustavo sente o teto girar e teme que Laura tenha colocado alguma coisa em sua bebida. Afinal, o que bebera não seria capaz de derrubá-lo daquela maneira. Tinha os braços pesados e adormecidos, assim como a língua que parecia tombar na boca, impedindo-o de falar. Fazia pequenos gestos, até não poder se mover. Apenas observava Laura cortar uma linha vermelha que extraía da meada, enfiar na agulha e aproximar-se dele, de forma imperiosa. Disse-lhe baixinho: – este bordado será grosseiro. Não terei a delicadeza dos outros, mas é necessário. Com o tempo, adocicarei o máximo que puder e quem sabe, farei uma obra de arte.

Gustavo estremecia, na testa borbulhas de suor brotavam e escorriam rapidamente pelo rosto, os olhos vermelhos, arregalados de pavor. Não conseguia executar nenhum movimento. Estava totalmente paralisado. Apenas assistia a cena que se desenrolava naquele cenário absurdo. Sentia-se como um rato, acuado, preso na ratoeira, sem poder mexer-se, sem qualquer ação, a não ser revirar os olhos pra cá e pra lá, tentando circular com o olhar, para imaginar alguma tentativa de defesa. Apenas uma ilusão. O ar lhe faltava, a visão de vez em quando turvava, quando não o deixava tonto, como atravessando um labirinto. Suspirava aliviado, ao ver Laura com a agulha e a linha na mão afastar-se lentamente.

Ela soltou a agulha e a linha sobre a cômoda e dirigiu-se ao roupeiro que ficava encostado na parede posterior aos pés da cama. Via-a procurar com determinação alguma coisa que a interessava muito. Abaixou-se, ficando de joelhos perto do móvel e ele apenas podia ver-lhe a ponta dos cabelos. Seu coração palpitava descompassado e naquele momento, punha dúvidas em sua vitalidade. Achava que a qualquer momento, se não tivesse ajuda, poderia dar adeus aos seus planos, a sua vontade de vencer financeiramente e muito mais do que isso, dar adeus à vida. Lágrimas corriam de seus olhos, misturando-se com o suor.

Avistou Laura levantar-se com dificuldade, satisfeita em encontrar o que procurava. Encarou-a suplicante e ela parecia não vê-lo, estimulada em sua tarefa cujos objetivos ele temia imaginar.

Laura trazia às mãos alguns metros de cordas, que rapidamente envolveu-o pela cintura, amarrando-o na cabeceira de ferro da cama.

Ele tentou articular alguma coisa, pedindo socorro, mas somente um grunhido surdo emergia de suas cordas vocais. Mas mexia a boca, que ora acentuava um tremor involuntário no canto dos lábios, ora apaziguava-se, neutralizando-os completamente.

Laura prosseguia no seu intento, lábios apertados, fazendo esforço, olhos fixos em suas próprias mãos decididas e fortes. Amarrou os seus pés, dando várias voltas na corda, efetuando um nó resistente, bem engendrado. Cortou com a tesoura a ponta que sobrara e seguira com o mesmo processo nas mãos, colocando-as sobre o seu colo. Gustavo não desviava os olhos, tentando passar-lhe uma mensagem. Laura acabou o serviço e sorriu.

Olhou para ele, satisfeita e disse-lhe com doçura: – vamos para a segunda etapa, meu querido.

Levantou-se da cama, onde estivera com as pernas enganchadas no corpo magro de Gustavo e dirigiu-se à cômoda, exercendo o cerimonial a que se propusera e o fazia com dignidade, como se dele dependesse o destino da humanidade. Pegou a agulha com a linha vermelha, examinou-a mais uma vez, deu um pequeno nó, rebentando com os dentes, o fiapo que sobrara, num gesto brusco, atirando a cabeça para trás. Depois aproximou-se também lentamente em direção à cama, onde jazia Gustavo, de boca aberta, como um peixe sufocado pela falta de oxigênio. Sentou-se delicadamente ao seu lado, limpou cuidadosamente o suor de sua testa, passou a mão pelos olhos, enxugando-lhe as lágrimas. Ele, com este gesto, deitou a chorar mais intensamente, emitindo pequeno gemidos.

Laura levantou-se, fez a volta na cama e sentou-se sobre o caixão, sem largar a agulha. Sentia-se mais confortável. Ajeitou a cabeça de Gustavo, virando-a em direção a ela. Ele fechava os olhos, evitando olhar o caixão. Ela sorria. – bobinho, você tem medo, como Lúcia – e acrescentou, mudando o tom de voz, tornando-se mais ríspida – mas você me traiu. Eu não perdoo traidores, sabia? Agora, você terá o que merece.

Aproximou a mão, a linha vermelha com agulha, arrastando-a sobre o pescoço de Gustavo, fazendo-o estremecer pela aflição do leve incômodo. Depois, com uma mão segurou-lhe os lábios, juntando-os como quem une dois panos e enfia vigorosamente a agulha, atravessando-os, enquanto a linha carregava consigo uma mancha de sangue que se confundia com sua cor. Gustavo gemia e tentava mover-se, amarrado que estava e praticamente paralisado pelo processo dopante da bebida. Gemia como um animal agonizante. Lágrimas corriam densas. Olhar que se apagava num torpor de dor e desespero.

Laura prosseguia alinhavando-lhe habilmente a boca, puxando um fio daqui, enfiando a agulha ali, o sangue esguichando, esparramando-se pelo rosto, e o bordado em cruz se formando. Prosseguiu na tarefa até o fim, rebentando o que sobrara de linha, com a ponta do dente e sorriu, tranquila. Logo, deixou-o tombar a cabeça sobre a cama, percebendo que os olhos se fechavam, o corpo desfalecido.

Levantou-se do caixão, rodeou a cama, sentou-se novamente ao lado de Gustavo e começou a recolher todos os apetrechos, guardando-os cuidadosamente na caixa. Segurou-as com as duas mãos, cuidadosa e afastou-se para guardá-los na gaveta da cômoda. Parou no meio do caminho, olhou para Gustavo e disse, baixinho: – você teve o que merecia.

Depois, guardou a caixa, afastou-se em direção ao interruptor. Deu mais uma olhada para Gustavo, avaliando o quadro que tinha a sua frente. Apagou a luz, tateou até a porta, torceu a chave, abriu-a e saiu, fechando-a novamente. A seguir, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho. Estava imunda!

Capítulo XXVI

A volta de Gustavo

Laura se deitara, espalhando-se pela cama. Ora esticava uma perna, empurrando o lençol, ora encolhia-se, pensativa. Não conseguia dormir. Sentia-se estimulada, tendo solucionado uma parte de seus problemas. Pensava em Lúcia, imaginando-a pelas alamedas do convento, esgueirando-se pelos corredores, como uma sombra, esperando que a noite interminável passasse.

Ela, ao contrário, desfrutava as horas, sentindo o prazer da vingança. Agora traçaria os seus planos cuidadosamente. Já tinha se livrado de Gustavo, mas ainda tinha dúvidas se o deixaria morrer, sangrando e sem poder se alimentar. Quem sabe alimentá-lo com um canudo e permitir que sobreviva ali, encarcerado. Afinal, a punição tinha sido demasiada. Mas havia o outro lado da moeda: ele não a perdoaria. E se abrisse a boca – sorriu com seu próprio trocadilho – poria tudo a perder. Seria acusada, massacrada pela sociedade, acuada pelos vizinhos e presa. Lúcia a odiaria. Não, tinha de dar um fim naquilo.

Mas hoje não. Esta noite precisava ficar tranquila, absorver-se da plenitude do plano realizado. Um plano que executara rapidamente, produzindo-o em sua mente, a partir da confissão de Gustavo. Precisava dormir e quem sabe sonhar com um futuro promissor.

E assim aconteceu. Dormiu como uma criança e somente acordou com o toque da campainha, na manhã seguinte, julgando que Lúcia estivesse voltando do convento. Mas por que não abrira a porta? Por acaso esquecera a chave?

O excesso de luminosidade da janela prejudicava-lhe a visão. Afastou lentamente a cortina, franzindo o cenho numa careta que aumentava excessivamente as rugas da testa. Não reconheceu a pessoa que estava próxima à porta. Não se tratava de Lúcia, tampouco.

Aproximou-se da porta, abriu-a com cuidado, sem desativar o pega-ladrão. Espiou pela abertura. Era uma moça morena, de testa ampla, olhar profundo.

– Que deseja?

– Desculpe, Dona Laura, é que estou procurando por meu tio.

– Seu tio?

Laura pensou um pouco de quem se tratava. Lembrou-se então levemente da sobrinha de Gustavo. Estava escuro, não tinha observado bem a fisionomia, era natural que não se recordasse. Mas agora, abrindo a porta completamente, pode analisar com a devida minúcia a fisionomia da moça.

– Mas você é a tal da Paula Andréia.

– Paula, apenas Paula. Meu tio tem este costume bobo de me chamar por dois nomes.

– Mas não é o seu nome verdadeiro?

– Como lhe disse, apenas Paula.

– Muito bem, Paula. Então você está procurando por seu tio. Aconteceu alguma coisa?

– Não sei se aconteceu alguma coisa. Estou muito preocupada porque ele não dormiu em casa esta noite. Ele não costuma fazer isso!

Laura a encarou desconfiada, depois, riu irônica. – você não acha que ele está bem grandinho para dormir fora de casa, uma noite qualquer?

Paula não respondeu. Limitou-se a fitá-la, constrangida. Laura tornou-se mais suave: –entre e acomode-se aí, na minha poltrona. Fique à vontade, que eu já volto e podemos conversar. Vou pelo menos, dar um jeito na cara. Imagine, que acordei com a sua chamada.

Paula se desculpou, informando que iria embora e o esperaria em casa, mas Laura a impediu, com cortesia.

– Não se preocupe comigo. Eu já volto. Fique ai, que eu posso dar algumas informações, eu já volto.

Afastou-se rápida, arrastando os chinelos pelo corredor. Paula a observou timidamente por debaixo dos olhos. Mas logo que ela desapareceu, tomou ares bem mais audaciosos. Levantou e passeou pela sala, examinando todos os detalhes, desde os quadros na parede, até os móveis, inclusive os diversos tecidos bordados espelhados pelo sofá. Sentou-se novamente e começou a analisá-los, percebendo a maestria do bordado. Esqueceu-os em seguida, e afastou um pouco a cortina para olhar através da janela. Deteve-se nas crianças que jogavam bola na rua. Mas foi só por um minuto. Voltou à posição inicial, sentada, pernas unidas, mãos sobre os joelhos, esperando que Laura voltasse a qualquer momento. Laura a encontrou assim. Sentou-se a sua frente, pretendia comentar sobre os bordados, mas antes que abrisse a boca, Paula tomou a dianteira da conversa.

– A senhora disse-me que tinha informações sobre o meu tio. Ontem ele esteve aqui, que horas foi embora?

Laura acomodou-se um pouco na poltrona e aquietou-se, dando a impressão que jamais falaria no assunto, mas começou através de um comentário prescindível.

– Ele me parecia muito feliz. Conversamos animadamente. Imagine você que até tomamos vinho.

– Mas quando ele resolveu ir embora, era muito tarde?

– Sabe que lembro? Gustavo é assim, uma pessoa surpreendente. Nunca sabemos o que vai fazer no momento seguinte.

Paula tornou-se séria, sem qualquer esperança de esclarecimento. O que diz, confirma o que aparenta.

– Na verdade, não sabemos o que aconteceu. A senhora não sabe quando ele saiu daqui, o que fez depois, com quem se encontrou. Acho que não adiantei muito.

Laura finge não entender a expressão severa que a outra ostenta e prossegue dando informações desencontradas.

– Gustavo é mesmo impertinente. Às vezes, ele cisma que devo participar de uma partida de damas que adora. Fica horas e horas jogando damas, aqui em casa. Sabe que eu detesto este jogo? Mas para não perder a amizade, acompanho-o nestas bobagens. É que ficamos tão amigos! Paula parece antever uma luz que sinalize alguma descoberta.

– Desde quando vocês são amigos?

– Acho que desde que ele veio morar aqui.

Paula cala-se, absorta. Tenta demonstrar frieza, evitando conhecer detalhes da vida de Gustavo. Laura, por sua vez, reconhece que ela está jogando, tal como ela.

– Você deve conhecê-lo muito mais do que eu, afinal é a sobrinha dele.
P

aula foi rápida na explicação, afirmando que raramente o encontra. Mora longe e somente agora tiveram algum contato, em virtude dos problemas que tivera com o namorado e que, a partir disso, Gustavo ofereceu-se para ajudá-la.

Laura, então observou, displicente: – sabe que acho esta história muito estranha?

– Que história?

– Esta coisa de você fugir do namorado, nos dias de hoje, fica meio forçado, né?

Paula estremece. Suspira fundo e refuta a observação, acrescentando que há casos e casos, e o dela era muito semelhante a de muitos, muito mais do que ela poderia imaginar.

– É, isso ocorre com tanta frequência, mesmo?

Paula concordou, mas destacou que o que lhe interessava naquele momento era saber do paradeiro do tio. Foi então, que Laura contou-lhe uma história providencial.

– Para falar a verdade, ele bebeu um pouco, quero dizer, excedeu-se um pouco. Acabou dormindo aqui.

Paula surpresa, sorriu e perguntou se ele ainda estava dormindo. Laura prosseguiu.

– Ainda. Está lá estirado no quarto amarelo. Mas você não vai querer vê-lo da maneira em que se encontra – fez um pequeno silêncio e prosseguiu – bebeu em demasiado, como lhe falei, então tomou um bom banho, tirou as roupas e dorme nu, sob as cobertas como um bebê. Gustavo é muito engraçado, mesmo. Imagine, aquele homem comprido daquele jeito, com aquelas pernas finas, deitado, nu, na minha cama! – e acaba numa gargalhada constrangedora. Paula não sabe o que dizer. Não acredita numa só palavra, mas não tem como refutar a revelação tão convincente.

– Agora eu lhe pergunto novamente, você não vai querer vê-lo assim, não?

– Não, claro que não. Já estou satisfeita. Se meu tio está bem, isto é o que importa.

– Ótimo.

Laura pousa a mão delicadamente no ombro de Paula, sugerindo sutilmente que fosse embora. Afinal, já soubera do paradeiro do tio. Que a deixasse em paz. Paula levantou-se da poltrona, deu alguns passos e agradeceu. Laura, então, perguntou: – quando é que vai começar?

Os olhos de Paula brilharam. Quem a observasse bem de perto, perceberia perfeitamente que ela estava esperando aquela pergunta e um leve sorriso surgira em sua boca. Entretanto, fingia absoluto desinteresse.

– Pensei que a senhora não estava interessada.

– Inicialmente, eu abominei a idéia. Mas depois, pensei bem, acho que estamos precisando de alguém para ajudar-nos. Assim, posso me dedicar mais aos meus bordados.

– Eu reparei que são lindos.

– Pois então, minha querida, quando você trabalhar aqui, eu lhe mostrarei todos os meus bordados. Quem sabe, você até aprende algum ponto.

– Eu adoraria!

– Você começa amanhã, está bem? O suficiente para que eu prepare o espírito de Lúcia.

Paula concordou e antes de sair, voltou-se, deixando uma mensagem que Laura deveria transmitir ao tio.

– Está bem, eu direi que você está esperando-o, que se preocupou com ele e quer muito conversar. Pode ficar tranquila, que eu direi àquele velho danado! Agora, eu fico pensando, como ele vai pagar pelos seus serviços...

Quando Paula se afastou completamente, dobrando a esquina, Laura soltou a cortina, deixando que o emaranhado de tecido voltasse ao lugar. De repente, sentiu-se ansiosa, confusa, como se as coisas, repentinamente pudessem tomar um rumo inesperado, um caminho sem volta. Afastou-se rapidamente da sala, enveredando pelo corredor e chegando à sala que antecipava a cozinha. Olhou para o bar, os bancos desarrumados e pensou na noite anterior. Deteve-se nos copos em desordem, sujos de bebida. Entretanto, ela permanecera sã, lúcida e a loucura ficara para os débeis como Gustavo. Aproximou-se do bar e com uma mão examinou a prateleira que ficava mais acima, da qual não avistava nada, a não ser identificar pelo tato os objetos que lá estavam. Eram pequenas tigelas de porcelana, bandejas de metal, algumas de prata, talheres diversos. Empurrou-os para lá e para cá, enquanto uma música estranha e estridente emergia de alguma caixa de som amplificada, invadindo o ambiente, deixando-a aturdida. Jogou os objetos ao solo, alguns tombando sobre sua cabeça, que desviava oportunamente, dobrando o pescoço e uma dor aguda atingia a fronte. Cambaleou, ainda abalada, ouvindo a música. De repente, seus olhos encheram-se de tons diversos, como se um pintor imaginário, lançasse involuntariamente jatos de tinta, grudando-os nas pálpebras, inundando a retina com uma extraordinária frequência de cores. A cabeça agitava-se nestes pensamentos conflituosos, a mente se distorcia em tendências: ora sons estranhos, extremamente agudos ou demasiadamente graves, ora os olhos apertados entre cores e luzes e por fim, a boca sentindo o gosto amargo da bebida azeda da noite anterior. Queria afastar-se dali, precisava sair, fugir para um lugar tranquilo, mas sentia que uma força intensa a segurava no chão. Foi então que o viu e tudo parou: os sons, as luzes, as cores, o sabor amargo e seu coração disparou em cavalgada e um silêncio absoluto se fez. Não podia acreditar, mas Gustavo aproxima-se, vindo pelo corredor, desde o quarto amarelo, atravessando a cozinha, passando pela área estreita, chegando até a sala do bar. Boca costurada, rosto desfigurado, lágrimas de suor e sangue misturados, mas o olhar estreito, encarando-a cada vez mais próximo e ameaçador. Respiração ofegante através do nariz adunco, pequenos grunhidos como o de um animal selvagem e aquela gosma misturada de sangue e pus que jorravam da boca bordada. Tinha medo de enfrentá-lo, medo da ameaça que significava, mas estava ali, com os pés colados definitivamente no chão. Certamente a morte lhe espreitava, sorridente através do olhar estreito de Gustavo e por isso, não lhe dava guarida. A vingança talvez fosse bem maior do que a dela. Que faria ele? Talvez escalpelá-la viva? Ou deixá-la morrer, extraindo com uma seringa todas as gorduras que possuía, desnutrindo-a aos poucos, transformando-a num espectro de mulher. Então, com a voz estremecida e rouca, perguntou, insensata: – Gustavo, o que você quer?

Silêncio absoluto. Só o olhar instigante.

– Sei que não consegue falar, mas dê uma dica, uma orientação. Quem sabe, interpretamos juntos o que você quer de mim. Pode ser finalmente uma revelação. Nós nos conhecemos e nada mais haverá de mistério. Você sabe das minhas fraquezas, eu sei das suas. Por favor, faça algum gesto.

Então o vê aproximar-se lentamente, arrastando as pernas amarradas. As mãos juntas, exatamente como deixara na noite anterior e o corpo magro, umedecido de humores advindos do medo, do terror, da espera da morte iminente. A roupa, suja, molhada de suor, urina e sangue. As pernas fraquejando, os pés tortos pelo sapato descalço, desajeitados, impunes.

Laura então sente-o cada vez mais próximo, percebe o hálito acre que exala pelo nariz e pelos intervalos enfeitados pela linha vermelha, agora não mais vermelha, mas de um roxo coagulado.

Quando chegou bem perto, ele a envolveu em seu corpo. Conseguiu juntar as pernas magras, mesmo amarradas, em suas coxas gordas e salientes, ajustar o umbigo inchado no abdômen obeso e as mãos engendradas nos cordões retorcidos se acomodarem em seu colo, alisando-o com suavidade, aproximando-se da garganta e com as pontas do dedos, empurrar-lhe o pescoço, afundando-o.

Laura arregalava os olhos em desespero, a boca se entreabria, sentindo que o oxigênio faltava, enfraquecendo-a e tombava num som abafado.

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