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O DOCE BORDADO AZUL - 21º CAPÍTULO

Hoje é terça-feira. Nosso desbragado folhetim continua com o 21º capítulo. Na próxima quinta, continuamos na sequência. Espero que gostem! Faltam 9 capítulos para o fim!

Capítulo XXI

A briga e o reencontro

Laura estava curiosa para saber detalhes do encontro de Lúcia com Bárbara, mas tinha lá suas reservas. Temia que tudo viesse à tona e devesse dar explicações à filha. Não era do seu feitio ficar na berlinda, justificar-se, como se deparasse com um tribunal. A curiosidade, porém era imensa. Percebera que Lúcia não se afastara um só segundo do quarto, desde que chegara. Via pela abertura debaixo da porta, uma luz que incidia pelo corredor, além de pequenos barulhos, como se carregasse objetos, fizesse as malas. Esperaria ali, na sua janela. Por certo, logo Lúcia lhe traria as novidades que tanto ansiava.

Deixou-se ficar assim, quieta, assistindo um programa qualquer de tv, sem prestar a mínima atenção. Tomava de vez em quando um copo de refrigerante e mexia no controle compulsivamente. Não tocara nos tecidos, nos bordados, nos inúmeros desenhos de que dispunha sempre à mão, para qualquer eventualidade, tal como ocorria, quando lhe vinha a inspiração para um bordado novo.

Estava ficando aflita com o silêncio de Lúcia. Às vezes, a filha parecia uma adolescente mimada. Isso a incomodava. Além disso, ao seu ver as relações se misturavam. Quando a vira conversando animadamente com Gustavo, sentiu um golpe profundo no peito, como se pudesse haver alguma coisa mais forte entre eles. Claro que Lúcia jamais teria qualquer interesse nele, mas temia que Gustavo se insinuasse e tentasse seduzi-la, assim como tinha feito com ela. Era um homem perigoso, não tinha dúvidas. Sozinho, acostumado a lidar com todo tipo de mulher. Provavelmente pensava que eram fáceis, que se jogariam aos seus braços, só porque são mulheres solitárias.

Começou a sentir um ódio extremo por ele, afinal, não deveria ter se apresentado daquela maneira tão amigável com sua filha. Irritada e sem raciocinar devidamente, levantou-se da poltrona, sentindo uma leve tontura, mas que não a impediu de dirigir-se ao quarto de Lúcia. Ao chegar lá, bateu na porta, descomedida. Lúcia a abriu, assustada.

– O que aconteceu?
Laura a fitava com o olhar insano, quase em desespero.

– Gustavo, ele esteve aqui?

Lúcia não a entendia porque se referia a Gustavo, nem sabia exatamente de quem se tratava.

– Aquele homem, minha filha, aquele homem que esteve aqui, conversando com você, ajudando-a na cozinha, consertando o encanamento. Diga-me, o que ele pretendia com você?

–Mamãe, se liga. Aquele homem é seu amigo, não meu. Foi por sua causa que ele veio aqui, porque a conhecia. Lembrei dele, porque precisava arrumar a cozinha que estava uma poça só d’água!

Laura cala-se, ofegante. Respira fundo, tentando coordenar as idéias. Em seguida, sorri e aproxima-se de Lúcia, abraçando-a.

– Que bom, filha. Você é a mesma, a minha menina.

Lúcia sentiu os seios da mãe esparramarem-se em seu peito e aquele cheiro acre de suor antigo. Afastou-se como pôde, encaminhando-se para a cama, enquanto Laura a seguia com o olhar, como um cão fiel. Lúcia sentou-se e fez um gesto para que ela também sentasse ali, ao seu lado. Laura obedeceu, arrastando os chinelos, chegando perto e afundando no colchão. Perguntou com uma voz meio infantil, sorrindo: – como você está?

Lúcia não disse nada, limitou-se a olhar para o chão, contando sem querer os parquês, juntando figuras geométricas, um de cada lado, mudando a cor vez ou outra, formando detalhes distintos, que somente agora ela percebia.

–Você já reparou que os parquês estão mudando de cor?

Laura sorriu, mais uma vez satisfeita.

–Você não sabia que eu troquei a cor da cera? Agora está mais colorido!

Lúcia a encarou, intrigada.

–Mas você não podia ter feito isso. Não se pode trocar as cores do parquê. Ele já tem a coloração própria.

–Mas é só uma cera, por que vamos brigar?

–Você cometeu um grave delito. Se fosse pecado, queimaria no fogo dos infernos!

Levantou-se irritada, fazendo gestos desconexos, como se através deles precisasse a raiva intensa, o seu desapontamento.

Laura respondia, tranquila.

–Mas não é nenhum pecado, felizmente nós estamos incólumes destas situações. Somos mulheres honestas. Eu diria, santas até. Afinal, não roubamos, não matamos, não extorquimos ninguém, não corrompemos. Já não acha o suficiente?

–Você é louca, como pode pensar assim.

E aproxima-se dela com ódio.

–Você não é nenhuma santa, sua indecente! Sua vagabunda!

Faz-se um silêncio. Laura sente-se perdida, confusa. De repente, tudo que se alicerçava como bom e saudável em sua vida ruia. A sua filha, a pessoa que ela mais amava na vida, lançava toda a fúria contida, como se pretendesse exterminá-la. Seus olhos encheram-se de lágrimas, seu coração agoniado, um cheiro de morte. Tentou mover-se, mas não conseguiu.

Lúcia a fitava, encostada na parede da cômoda, em transe. Nos olhos um desafio. A boca estremecida, os cabelos em desalinho, as mãos estiradas sobre o corpo paralisado. Em seguida, como tocada por um espírito, passou a enfiar os dedos nos cabelos, a cobrir o rosto com as mãos e a perguntar-se “o que está acontecendo”, tentando entender a sua conduta, que manifestava tanto ódio em relação à mãe.

Laura permanecia arrasada. O tronco arqueava-se sobre os joelhos, mantendo a cabeça segura pelas mãos gordas e manchadas. Não tinha atitude. Não se atrevia a esboçar algum movimento.

Lúcia então correu até ela, ajoelhou-se em sua frente, abraçou-a e beijou-a várias vezes, pedindo perdão. Chorava destemperada, como uma criança.

Laura permanecia quieta, na defensiva. Não ousava olhar a filha. Temia arrefecer a dor e perdoar rapidamente. Por isso não disse nada. Limitou-se a ouvir.

Lúcia derretia-se em lágrimas. Repetia pedidos de perdão, um atrás do outro. Laura a afastou delicada, com a mão, que havia retirado do rosto num gesto contínuo. Quando respondeu, disse-o pausada, serena e fria.

– Por favor, Lúcia, vamos esquecer isso agora.

–Você me perdoa?

–Não vamos pensar nisso.

–Mas eu preciso saber.

E afastando-se mais um pouco, tentando levantar-se, completou: – vamos dar tempo ao tempo.

Lúcia saltou da cama, tentando ajudá-la levantar-se, mas Laura a impediu com a mão.

Laura ergueu-se, gemendo e dirigiu-se à porta do quarto. Lúcia então, perguntou, esperançosa: – você não quer saber do meu encontro com Bárbara?

Laura calou-se, por um segundo, mas logo respondeu : – não agora. Mais tarde.

Afastou-se do quarto.

Lúcia esperou que a mãe saísse e e não moveu-se, apenas ouvindo o farfalhar do vestido nas ancas obesas e o arrastar do chinelo. A porta ficara providencialmente aberta. Então, espiou, sentindo o coração doído e culpado. Depois, dirigiu-se até a cômoda e abriu todas as gavetas, retirando as roupas com violência e jogando-as no chão, sobre a cama, soluçando baixinho.

Laura já estava na sala, tomando o seu refrigerante e assistindo a tv, quando o telefone tocou. Era Gustavo que a convidava para beber alguma coisa, desta vez, na casa dele. Ela não aceitou e desligou secamente, não querendo ouvir a sua voz.

Voltou a assistir a tv, mas nada a despertava da inércia em que se encontrava. Confusa, pensamentos exorbitavam em velocidade, deixando-a indecisa e exausta. Pegou o bordado, mas acabou ferindo os dedos. Não havia o que a acalmasse. Então, resolveu ligar para Gustavo.

–Escute, acho que fui meio mal educada, é que na verdade, hoje é impossível eu sair de casa. Então, resolvi convidá-lo.

Ouve a voz vigorosa de Gustavo e morde os lábios. Espera que se acalme na euforia e prossegue, decidida.

–Amanhã, se você quiser, pode vir aqui. Quem sabe comemos alguma coisa, tomamos um outro vinho.

Quando ele pergunta pela filha, ela sente uma fisgada no peito. Engole em seco e responde, rápida.

–Farei com que ela não esteja presente. Venha, lá pelas 9 horas – e conclui, falsa – a noite é nossa.

Desliga o celular e fica pensativa. Pensa em Lúcia. Não vale à pena permanecer brigada com a filha. Precisa reverter a situação. Por isso, serve um vinho para as duas e a chama para a cozinha.

Está assim, sentada à mesa, esperando a filha, quando a vê aparecer na porta, com uma camisola branca, os cabelos em desalinho. A primeira coisa que lhe vem à cabeça é criticá-la,, mas se contém e pergunta: – você já tinha se preparado para dormir?

–Não sei, acho que não vou dormir toda a noite.

–Mas esta camisola...há tanto tempo que você não a usa, está até amarelada.

–Não achei nada melhor.

–Está bem, então aproxime-se e sente-se aqui, na minha frente.

–Você adora esta cozinha, não é mamãe?

Laura considera deplorável a sua observação, mas acata a idéia, como o início de conversa. Por isso, indaga qual é a razão da pergunta.

Lúcia senta-se e de cabeça baixa conclui, medindo as palavras.

– Porque esta casa é tão grande, pelo menos para nós duas. Tem a sua sala pequena, mas e aquele quarto imenso, desocupado. Por que não o transformamos num ambiente agradável, quem sabe para leitura ou para ver tv.

Laura a encara, subitamente severa.

–Você sabe que eu não mexo naquele quarto.

Lúcia começa a rir, meio descontrolada.

– O segredo do quarto amarelo! Engraçado! Isto é coisa de literatura barata. Sabe que já li muita história de quartos fechados, com terríveis segredos.

– Você sabe o quanto é penoso para mim entrar naquele quarto. Aqueles móveis, aqueles quadros, tudo me traz terríveis lembranças.

–Já sei, já sei. Sua mãezinha passou anos presa naquele funesto quarto, até morrer. Papai, antes de morrer se mudou para lá – e depois, pensativa, acrescenta – acho que ali é o fim de todos nós.

–Não diga asneiras.

–Por que, não é assim que acontece? Sabe que às vezes ouço os gritos da vovó.

–Pare com isso Lúcia.

Lúcia não a escuta, envolvida em seus pensamentos. Prossegue na atitude fantasiosa, que Laura desconhece e se surpreende.

–Tenho a impressão que ela a chama: Laura, Laura, venha aqui. Me traga aquela canja quente, que eu lhe pedi. Quero aquecer as tripas – e termina a frase numa gargalhada excessiva.

Laura se exaspera. –Você esta brincando com uma coisa séria. Está debochando de sua família.

Houve um breve silencio entre as duas. Lúcia a interrompeu, pedindo que servisse o vinho. – Então, o que vamos comemorar?

–Você ainda quer comemorar alguma coisa?

Lúcia sorrindo, conclui: – sempre há o que se comemorar, você sempre afirma isso. Que acha que devemos comemorar, hoje?

–Não sei, você é quem sabe.

–O seu caixão!

–Ah, ele nem chegou ainda. Quando chegar, daremos uma festa.

Lúcia fecha rapidamente o semblante.

–Você está maluca, mesmo.

Laura se acalma um pouco. Percebe que Lúcia age daquela maneira infantil para agredi-la. Às vezes, pensa que a filha está sofrendo de um distúrbio mental muito grave, pois muda assim, da água para o vinho em tão pouco tempo. Estava há pouco, chorando, pedindo-lhe perdão e agora surge na cozinha, desdenhando de tudo, inclusive da própria família e rindo daquela maneira desequilibrada. Então, resolve ir direto ao que interessa, para testar a sua reação.

–Fale-me de Bárbara.

Lúcia calou-se abatida, mas em seguida, resolve abrir o jogo.

–Ela esteve aqui. Disse-me coisas terríveis, fez acusações descabidas.

–Como assim?

Lúcia toma um gole de vinho e narra as acusações feitas por Bárbara, percebendo que Laura empalidece, mostrando-se preocupada com suas queixas. Quando Lúcia terminou, entretanto, Laura não sabia o que dizer, achando que a filha exagerava em sua indignação. Lúcia, então insistiu: – você não diz nada? Não vê o quanto fui afrontada, humilhada?

Laura ajeitou-se na cadeira, doía-lhe as costas, faltava um pouco o ar. Lúcia prosseguia, impiedosa.

–Aquelas mensagens foram eram falsas, uma armação pra mim. Eu quero saber quem esteve no meu quarto!

Laura revirou os olhos, fingindo sentir-se mal. Lúcia correu ao seu encontro, batendo na quina da mesa até chegar ao seu lado, aproximar o rosto e examinar a face suada.

–Você não está bem?

– Não muito, deve ser o vinho. Vai passar. Mas olhe, não fique triste com esta moça. Aos poucos, tudo vai se acomodar.

Lúcia pousou, delicada, a mão na testa da mãe, medindo a temperatura. Pediu que esquecesse, não era um problema para ser discutido agora. As duas achariam uma solução. Afastou-se e deu a Laura um copo d’água. Laura tomou e decidiu ir para o quarto, devia descansar. Lúcia pediu que esperasse um pouco, até sentir-se melhor, mas ela insistiu que estava bem. Lúcia auxiliou-a no caminho, apoiando-a em seus braços, pedindo sempre que se acalmasse e procurasse descansar. Quando voltou, bebeu o que sobrara do vinho. Deixou-se ficar assim, esperando o tempo passar.

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