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PRESSÁGIO

Colocou o notebook no colo e abriu, afoito, os e-mails, imaginando que pelo menos, naquela situação,  haveria alguma resposta. Era tardia, sabia, mas tinha de haver, tinha que acreditar, um último fio de esperança. Abriu e o que viu era a rotina de spans de sempre, cadastros mal elaborados, informações do trabalho. E nada dela. Nada de sua conduta marcada pelos tons nevrálgicos das discussões inacabadas.

Nada que valesse à pena esperar. Abriu uma página, duas, assustou-se com o imenso número de pessoas participando de chats àquela hora da tarde. Espiou um, bisbilhotou nas mensagens e arrepiou-se com o que viu. Sentia-se perdido no mundo de ilusões que criara desde a infância.

O barulho ensurdecedor do metrô abafou seus pensamentos. Milhares de pessoas corriam para a plataforma, filas se formavam e ele oculto dentro de si mesmo, olhando para o nada, esperando quem sabe, ser assaltado naquele terminal repleto de mal intencionados.

Um homem o olhava de soslaio, desconfiado, examinando-lhe a roupa, o terno bem cortado, a elegância dos sapatos e principalmente a maleta com o laptop em cima. Resolveu guardá-lo, fechar a maleta e levantar-se do banco. Passear dissimulado pela estação. O metrô afastou-se abarrotado, olhares pelas janelas, gente absorta como ele que olhava o que vinha pela frente, pensamentos do dia.

Ele pressentiu que o homem o seguia com o olhar dissimulado, esgueirando-se entre as pessoas que iam e vinham, em busca de  novas chegadas,  extenuadas com as partidas.

Resolveu afastar-se, tomar a escada rolante que levava até a rua, afinal, não estava à espera de transporte, não se afastaria daquele bairro, não faria nada para mudar as coisas. Olhou para trás na mancha escura de pessoas que preenchiam a escada e viu o homem de moletom vermelho, também no mesmo rumo, olhando para os lados, fingindo outros objetivos, que não escusos, outras direções, que não a dele.

Temeu por sua vida. Mas o que ele faria naquela multidão? Melhor era retirar-se rapidamente, quase correr, alcançar a rua e entrar em qualquer bar ou galeria que encontrasse.

De repente, sentiu uma pancada na cabeça, uma dor forte, as veias latejando, parecendo rios inchados e as forças esvaindo-se, vendo-se rolar escada abaixo, esbarrando em pessoas que o empurravam, acotoveladas, desviando-se surpresas, obtusas em suas fisionomias próximas, olhos arregalados, pavor, torpor.

Um vazio imenso. Um nada no infinito. Ouvia-lhe a voz suave, dando-lhe as boas vindas e vontade de estar perto e não mais sentir dor. Nenhuma.

Viu o homem do moletom vermelho afastar-se depressa, como um fugitivo que deixara uma bomba às ocultas, num lugar público.

Avistava o céu embrumar-se em nuvens rápidas que corriam para o sul, trazendo chuva. Sentia os pingos frios e grossos chocarem-se com seu rosto, mas não podia mexer-se.

Pessoas corriam, abrigando-se. Poucos o olhavam e se o faziam, temiam se envolver. Comentários rápidos acenando ajuda.

Um que outro se aproximava e desistia, mas alertava os demais. Como pombos famintos nos grãos deixados na praça, chegando curiosos, cautelosos e debandando rápido, pressentindo  algum perigo. Outro resistia no banco da praça, incauto, à espreita, esperando retorno.

Até que pediram documentos, mexeram em sua maleta, pesquisaram seus bolsos, reviraram a sua vida. Quem sabe o salvariam? Sentiu um nó na garganta de dó e esperança, de medo e aflição, de angústia e espera.

Mãos fortes o seguraram, o retiraram da calçada de ladrilhos coloridos, picotados, como aqueles adornos de festa junina da escola, bandeirolas, correntes de papel de seda, enfeitando a sala. Uma menina de tranças vermelhas, correndo em sua direção, mostrando exultante os enfeites de papel, os desenhos mal acabados, mas coloridos e acalentados com um 10. Ele, empurrando-a, com força, com raiva e inveja, deixando-a esticada no chão, aos gritos, entre lágrimas que molhavam a cara vermelha de sangue.

Podia ser ela, podia ser Eugênia, ali, ao seu lado, sem despedidas, sem brigas, sem dores, repleta de mensagens reais em sua face macia, seus olhos vivos, brilhantes, examinadores. Olhos de detetive.

Deixaram-no no carro, o frio que sentia não era mais o dos pingos da chuva chocando-se com seu rosto, nem o medo do assalto, nem a expectativa da espera.

Era um frio interior que aumentava a cada minuto.

Sirenes invadindo as ruas, os ouvidos doendo, vozes misturadas, confundindo-lhe a mente.

Por que não se mexia? Por que não tomava o notebook que estava tão perto, por que não procurava novamente as mensagens, não buscava as informações que precisava, não levantava a cabeça para ver além. Além do carro, da sirene, das vozes, do corredor branco, do soro no braço, da cama inerte, do vizinho do quarto. Havia quarto? Vizinho?

Quem estava do seu lado, só divisava sombras, vozes distantes, absurdas, um buraco no estômago dilacerando-lhe as entranhas, um sentimento de onipotência, uma falta de dor, de consciência.

Quando distinguiu uma frase nítida aos ouvidos, pensou que fossem recados do celular. Quem sabe ela atendeu. Quem sabe estava ali, tão próxima, tão intima, esquecida das brigas, dos maus tratos, das vinganças, dos perigos da rua.

Mas não era a voz dela.

Era uma voz estranha, tão distante quanto o tempo em que estava assim, sem se mexer. Referiam-se a ele e precisava ouvir para ter certeza. Desligar os aparelhos. Foi tempo demais. Não tem mais volta. A família não suporta esperar. É muito sofrimento. Esperar o que? Desligar o que?  Suportar o que? Por que vão desligar...?

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