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O DOCE BORDADO AZUL - 20º CAPÍTULO

Hoje é quinta-feira. Nosso folhetim continua com o 20º capítulo. Na próxima terça, continuamos na sequência. Espero que gostem!

Capítulo XX

Os caminhos de Bárbara

Bárbara procura por um ponto de táxi, mas parece que tudo fica muito longe naquela rua. Se ao menos tivesse ficado com o telefone do taxista que a trouxera, a estas horas já estaria a caminho de casa. Avista um grupo de pessoas, cujo objetivo provável é esperar algum coletivo, embora não haja nenhuma placa que indique um ponto. Aproxima-se de uma senhora e pergunta se há alguma linha nas redondezas e qual é o destino. Informada de que o fim da linha é a parte velha da cidade, fica aliviada, pois é onde se situa o seu apartamento. Pelo menos, se afastará daquele bairro e pretende não encontrar Lúcia e Laura jamais. A dose já foi alta demais para um só dia.

No ônibus, sente-se confortável olhando pela janela. Já não vê a cidade em que se encontra, mas em Minsk, bem longe, onde por algum tempo foi muito feliz. Vê as ruas movimentadas, a construção de mais uma linha do metrô, com centena de trabalhadores entre máquinas e escombros, abrindo a terra, transformando-a em caminhos que levariam a grande extensões, os ônibus cruzando rápidos pelas avenidas tortas, os trolebus e os bondes descendo as ladeiras. Relembra Aliocha saltando do bonde, com um buquê de flores, comemorando qualquer data. Trazia-lhe, romântico um mimo, símbolo do amor que nutriam um pelo outro. Uma lágrima insistia em encher-lhe os olhos e escorrer pela face. Uma saudade que não pode evitar. Um desejo de voltar atrás, aos tempos em que era feliz, realizada como profissional e mulher. Agora tem a sensação de que está órfã novamente, como sempre fora durante toda a sua vida até conhecer Aliocha. Sente-se frágil como aquela menina que vivia entre freiras e que se acostumara ao mundo do convento, assumindo-o como seu. Estava definitivamente sozinha, nem a presença de Irmã Dolores havia para consolá-la, nem o convívio das amigas. Madalena tinha a sua vida de casada, de professora, Ana havia morrido e Lúcia parecia uma pessoa alucinada, capaz de cometer qualquer ato indigno para alimentar o seu ego.

Estava arrependida de ter tomado aquele ônibus tão cheio, ouvindo as conversas alheias, os gracejos de rapazes interessados nas meninas, um bando de senhoras vestidas com camisetas que as identificavam como pertencentes a um coral, conversando em alto brados, contando piadas como adolescentes saídas de festas. De certa forma, aquela alegria brejeira, descompromissada, a incomodava. Ela que vivia apenas agruras e incertezas, percebia nos outros uma felicidade desconhecida há tanto tempo. Tentou desligar-se e observar as casas, as pessoas ficando distantes nas calçadas, os carros que surgiam a todo momento, dobrando esquinas, os ônibus formando fila dupla nos sinais. Ficava assim, junto às pessoas que colavam nas vidraças, espiando curiosas o que ocorria nos outros veículos. Encolhia-se no canto, ajustava as pernas apertando-as contra a parede, afastando-as do homem gordo que se espalhava negligente na poltrona, ao seu lado. Olhava-o de soslaio, tentando distinguir a fisionomia das pernas maciças que se escoravam nela. Percebeu, num momento que tinha a pela morena, uma testa larga, suada, com uma linha forte que parecia intermediar o cabelo com os olhos. Sobrancelhas espessas, olhar frio. Boca escondida sob um bigode preto, que parecia tingido. Bárbara esqueceu, em seguida. Pensava como desceria, com aquele aglomerado de pessoas. Olhava de vez em quando para o meio do corredor e via braços pendurados, cabeças que se interpunham entre os braços, meninos com moxilas nas costas empurrando-as sobre os demais, como complemento de seu corpo, mulheres com bolsas que se acomodavam nas cabeças dos que estavam sentados, senhoras gordas que dançavam no balanço do ônibus, de lá para cá, enfiando seus cotovelos nas costelas magras de alguns ou ajustando seus seios nas costas de outros, sem poder segurar-se. Sentia então um arrepio. Com ela, certamente aconteceria o mesmo. Melhor era esperar o momento de sua saída.

Já estava escurecendo quando chegava ao seu prédio de apartamentos. Investiu rápida pelas pequenas vielas que separavam os edifícios e em alguns passos apenas, estaria na porta de seu apartamento. Estava cansada. Procurou a chave na bolsa, quando ouviu que a chamavam pelo nome. Era uma voz de homem, desconhecida. Voltou-se, surpresa e na luz fraca, não reconheceu o vulto.

–Bárbara, sou eu, Gustavo.

Bárbara não reconheceu o homem, embora o nome não fosse totalmente estranho. O que queria dela?
¬¬

–Desculpe, você pode pensar que a segui, mas não é verdade. Eu precisava vir para estas bandas, estava no mesmo ônibus que você pegou.

–Quem é o senhor?

–Você não se lembra? Eu a ajudei a encontrar a casa de Laura. Você estava procurando por Lúcia, lá no meu bairro. Aliás, se não me engano, está voltando agora.

Bárbara sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Correu para a porta e não a abriu, pedindo que fosse embora, não tinha o que conversar com ele, que certamente a estava seguindo, qual era o seu interesse real em vir até ali. Todas as frases vinham juntas, às vezes, em pensamento, às vezes, viva voz.

Gustavo defendeu-se, esclarecendo que não a tinha seguido, pelo contrário, fora apenas uma coincidência. Mas tinha um assunto pessoal e gostaria de encontrá-la num outro momento. Podia confiar, era um homem de respeito, tinha uma postura honesta, era um advogado aposentado. Jamais lhe faria algum mal.

–Mas o que o senhor quer comigo?

–Quero a principio, entregar-lhe o meu cartão. Aqui tem o telefone, o meu endereço. Gostaria de conversar sobre Lúcia, enfim, sobre aquelas duas.

–Por quê?

–Se você quiser me ouvir com calma, eu explicarei tudo. Não se preocupe, numa outra oportunidade, num lugar neutro, público, onde você me conhecerá melhor e não terá mais medo de mim.

–Eu não estou com medo do senhor.

–Sei disso, mas é natural que tenha algum receio de que eu seja um homem qualquer, sem eira nem beira, que possa lhe fazer algum mal. Afinal, é uma mulher sozinha.

Bárbara surpreendeu-se com aquela afirmação. Se ele sabia que era uma mulher sozinha, então já pesquisara a sua vida. Essa dúvida encheu-a ainda mais de temor.

–Como sabe que sou sozinha?

–Oh, minha amiga, desculpe a indiscrição. Foram elas que me contaram.

–Elas?
¬

–Na verdade, Laura. A filha, pouco conheço. Mas não quero que fique mais assustada comigo. Tem o meu cartão, o meu telefone e o meu e-mail. Se quiser saber mais detalhes, um outro dia a gente se encontra, está bem? Eu também tenho muito interesse nisso e na oportunidade, explicarei melhor.

–Está bem. Eu lhe ligo. Boa noite.

Gustavo afastou-se com um cumprimento rápido e ela ficou observando-o dobrar a esquina da viela que servia de divisória entre os prédios. Abriu a porta e entrou rapidamente em casa. Estava finalmente salva.

Salva e exausta. Aquela visita lhe trouxera mais dúvidas do que antes de sair. Mas para que cultivar as agruras daquelas mulheres estranhas, amargas, cheias de mistérios, dispostas a qualquer coisa para atingirem seus objetivos escusos. O melhor mesmo era esquecer e tocar a sua vida. O tempo passava depressa. Todas as feridas são curadas, umas demoram mais, outras se arrastam pelo resto da vida, como sal colocado em doses homeopáticas, para ativar a dor e prolongar a doença. Mas ela sobreviveria. Deve haver alguma maneira, de pelo menos tornar o sofrimento mais palatável. Como um veneno que faz purgar a dor, um veneno que em doses certas pode também consumi-la.

Perdida em pensamentos, atravessou a sala. Fechou as cortinas de voal que voecejavam pelo vento que entrava pela fresta da janela. Espiou um segundo para os telhados. Estava completamente escuro. Teve a impressão de ver uns olhos brilhantes de gato, na tocaia, esperando um açoite, temendo ser atingido. Fechou a fresta.

Afastou-se e despiu-se pelo caminho, displicente, numa vontade extrema de atirar-se no sofá e esquecer do mundo. Porém, não o fez. Correu até o banheiro, lavou o rosto, os braços, desde os ombros até a ponta dos dedos, cuidadosamente, como se purificasse com água boricada um ferimento. Depois, estendeu-se para as coxas, lavando-as com cuidado. Estava com preguiça de tomar banho, embora merecesse, pelo bate-bate no aglomerado de pessoas do ônibus, pela poeira das ruas, pelo ancorar-se em portas e janelas pedindo informações, pelo suor escorrido do calor do dia, pelo azedar dos humores. Doíam-lhe as costelas, as pernas, os joelhos. Se tivesse levado baldoardas, certamente não estaria tão dolorida. Pensava que o físico assimilava o psicológico de tal forma a sentir no corpo as dores da alma. Mas não era somente isso. Sabia que há muito tempo não se alongava, não cuidava de si, não retomara as aulas de balé que tanto a agradavam. Não seria o momento de recomeçar, de retomar a carreira que encerrara com a morte de Aliocha? Quem sabe encontraria uma boa academia, uma escola de artes ou quem sabe, criasse a sua própria. Surpreendia-se consigo, assim, sonhando, coisa que desabituara de seu interior e que agora surgia tímida, mas de uma revolucionária para a situação sem perspectivas em que se encontrava. Até sorriu em pensar numa volta às aulas de balé. Afinal, tinha um belo currículo no exterior. Por que não apresentá-lo por aqui. Terminou o banho e afastou-se do boxe, recuperada. Enrolou-se na toalha, outra nos cabelos e voltou para a sala. Ali ficaria, esticada no sofá até dormir. E quem sabe, sonhar.

Ilustração : foto de Clarissa Resende Corrêa

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